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Políticas Sociais: das Origens ao Welfare State Material Teórico América Latina e Brasil: a Regulação Social Tardia Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Sílvia Maria Crevatin Revisão Técnica: Prof. Me. Denis Barreto da Silva Revisão Textual: Prof.ª Me. Rosemary Toffoli 5 • Um panorama sobre as ditaduras na América Latina • O Neoliberalismo · Analisar as ditaduras na América Latina e suas relações com a economia e o bem- estar europeu e norteamericano; Os processos de redemocratização em nosso continente e no Brasil. Caro(a) aluno(a), Leia atentamente o conteúdo desta Unidade, que lhe possibilitará conhecer como e em quais contextos se deu a implementação, tardia, do neoliberalismo no Brasil e na América Latina e como as políticas sociais foram contempladas. Você também encontrará nesta Unidade uma atividade composta por questões de múltipla escolha, relacionada com o conteúdo estudado. Além disso, por meio de uma atividade reflexiva, terá a oportunidade de trocar conhecimentos e debater questões relevantes desse conteúdo. É extremante importante que você consulte os materiais complementares, pois são ricos em informações, possibilitando-lhe o aprofundamento de seus estudos sobre este assunto. Bons estudos a todos! América Latina e Brasil: a Regulação Social Tardia 6 Unidade: América Latina e Brasil: a Regulação Social Tardia Contextualização Caro(a) aluno(a), O neoliberalismo foi implementado tardiamente no Brasil, assim como nos demais países latinos americanos. Similar a outros países latinos americanos, o Brasil só reconheceu os direitos sociais e humanos no último quarto do século XX, após lutas sofridas contra ditaduras militares que, embora empregando a ideologia nacionalista ou o modelo desenvolvimentista de Estado-Nação, não praticavam a universalidade da cidadania. Mostra-se muito importante este estudo de nossa história como de também de um panorama mundial para compreendermos como muitas das conquistas que hoje parecem direitos já consolidados, na realidade, foram construídos ao longo de anos e, muitas vezes, décadas, a custas de muitas mobilizações e movimentos sociais. Preparados!? Vamos lá... 7 Um panorama sobre as ditaduras na América Latina As ditaduras militares na América Latina foram implantadas e inseridas no contexto da Guerra Fria, quando as ideologias capitalista e socialista, representadas respectivamente pelos EUA e pela URSS, estiveram em disputa por áreas de influência. Após a Revolução Cubana em 1961, os Estados Unidos apertaram a política de contenção do avanço comunista na América, incitando os sucessivos golpes de estado planejados pelos militares nos anos seguintes. O Brasil foi primeiro país na América do Sul onde os militares tomaram o poder em 1964, golpe que serviu de modelo para os seguintes países: Bolívia (1964), Argentina (1966), Peru (1968), Uruguai (1973), Chile (1973), entre outros. Nas ditaduras, os governos militares adotaram a Doutrina de Segurança Nacional, ideologia na qual o aparelho de estado estava voltado para o combate daqueles que eram entendidos como “inimigos da nação” e associados ao “comunismo”, aqueles que não se identificavam com os regimes militares. A colaboração entre os países do Cone-sul na repressão aos que resistiam aos regimes ditatoriais chamou-se Operação Condor. A Operação Condor foi responsável pela troca de informações entre as ditaduras e pela tortura, pelos assassinatos de dissidentes e pelo desaparecimento de filhos de revolucionários. Desde os anos de 1955, a Argentina viveu uma grande instabilidade política, quando os militares infligiram o primeiro golpe, depondo o presidente Perón. Os anos seguintes, foram marcados pela perseguição ao peronismo e resultaram em um novo golpe militar, no ano de 1966, quando o General Ongania assumiu o poder. Após desencadear uma intensa repressão, Ongania perdeu o apoio e, em 1973, Perón foi novamente eleito. O presidente faleceu e deixou a presidência para Isabelita Perón, sua esposa e vice-presidente. Um novo golpe militar retirou Isabelita do poder, em 1976. Os militares governaram o país até 1983. Durante estes anos, estima-se que o governo foi responsável pelo desaparecimento de cerca de trinta mil pessoas. O golpe militar de 1973 derrubou o governo socialista democraticamente eleito de Salvador Allende no Chile. Seu governo contrariava as intenções norte-americanas, por isso, a CIA passou a financiar e incentivar os militares a tomar o poder. Em 11 de setembro daquele ano, o general Pinochet, que, até então, participara do governo de Allende, lidera as forças armadas na tomada do governo. Allende recusa-se a deixar o palácio de La Moneda, sede da Fonte: lounge.obviousmag.org 8 Unidade: América Latina e Brasil: a Regulação Social Tardia presidência, que é bombardeado por aviões e tomado pelos militares. O presidente comete suicídio e Pinochet passa a governar. A repressão no Chile é intensa, o número de presos políticos foi tão grande nos primeiros dias que estádios de futebol foram transformados em prisões. Milhares de pessoas foram fuziladas e enterradas em covas coletivas. O governo militar acabou em 1990, quando Pinochet deixou o poder. No Brasil, a Ditadura Militar foi um período da política brasileira que vigorou de 1964 a 1985. Caracterizou-se pela falta de democracia, supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contra o regime militar. Podemos destacar alguns efeitos representativos desse período como: a cassação de direitos políticos de opositores; a repressão aos movimentos sociais e manifestações de oposição; a censura aos meios de comunicação, aos artistas (músicos, atores, artistas plásticos). Houve uma aproximação dos Estados Unidos e controle dos sindicatos. Nesse período. também ocorreu a implantação do bipartidarismo: ARENA (governo) e MDB (oposição controlada) e o enfrentamento militar dos movimentos de guerrilha contrários ao regime militar. Fez-se uso de métodos violentos, inclusive tortura, contra os opositores ao regime. O período entre 1969 a 1973, chamado de “Milagre econômico”, caracterizou-se por forte crescimento da economia com altos investimentos em infraestrutura, porém isso teve um custo altíssimo com o aumento da dívida externa. Ainda entendendo sobre o contexto no qual se encontrava a América Latina, ela passou por uma forte crise em sua história, uma crise que foi marcada por uma estagnação econômica e altas taxas de inflação. Logicamente, os países têm suas peculiaridades, alguns cresceram, outros apresentaram relativa estabilidade nos preços, mas a grande maioria apresentava taxas de inflação muito elevadas. Muitos desses países viviam um processo de espiral inflacionária interrompido por congelamento de preços. Em alguns períodos, alguns países como Peru (1988/90), Brasil (1990), Bolívia (1985), Argentina (1989/90), a inflação superou em 50% a taxa mensal, caracterizando uma hiperinflação, situação que nunca havia acontecido. Para que possamos continuar nossa reflexão, é importante situarmos que, em 1989, realizou- se uma reunião entre os organismos de financiamento internacional de Bretton Woods (FMI, BID, Bando Mundial), funcionários do governo americano e economistas latino-americanos, para avaliar as reformas econômicas da América Latina. Essa reunião ficou conhecida como Consenso de Washington, tendo abarcado diferentes áreas. De acordo com o referido Consenso, as causas da crise latino americana seriam principalmente duas: 1) o excessivo crescimento do Estado, traduzindo em protecionismo, excesso de regulação e empresas estatais ineficientes e em número excessivo; 2) o populismo econômico, incapacidade de controlar o déficit público e de manter sob controle as demandas salariais tanto do setor privado,como do público. 9 O Neoliberalismo O neoliberalismo foi implementado no Brasil tardiamente, assim como nos demais países latinos americanos, e foi mundialmente entendido como uma alternativa à crise da social democracia. Tal atraso fez com que a América Latina já entrasse na fase das chamadas medidas corretivas, combinando com as políticas ortodoxas com propostas ditas de “reforma do Estado”, aliadas a programas de alívio para a pobreza. Similar a outros países latinos americanos, o Brasil só reconheceu os direitos sociais e humanos no último quarto do século XX após lutas sangrentas contra ditaduras militares que, embora empregando a ideologia nacionalista ou o modelo desenvolvimentista de Estado- Nação, não praticavam a universalidade da cidadania. Ao pensarmos sobre a relação entre neoliberalismo e políticas sociais na América Latina, temos que levar em consideração que se trata de uma relação bem mais complexa do que aquela ocorrida nos países do primeiro mundo, na qual a regulação social sob o modelo Welfare State iniciou-se no final da metade do século XX. É preciso ter claro que estamos contextualizando em sociedades subalternas à regulação econômica dominante exercida pelo mercado financeiro ou pelos “grandes” da economia mundial. O neoliberalismo surgiu como estratégia de reestruturação do capital face à crise ao avanço tecnológico-científico, à reorganização geopolítica e às lutas de classe que se desenvolveram pós-70, desdobrando-se basicamente em três frentes articuladas: a reestruturação produtiva, a reforma do Estado e o combate ao trabalho (às leis trabalhistas e às lutas sindicais e da esquerda). Nesses países que se mostraram marcados pela violação de direitos humanos e sociais, até os anos 70, busca-se a construção de um novo modelo de regulação social que vincula democracia e cidadania e é descentrado da noção de pleno emprego ou de garantia de trabalho formal a todos. Este modelo de regulação social distancia-se da universalização dos direitos trabalhistas e se aproxima da conquista de direitos humanos, ainda que de modo incipiente. Os temas trabalho e seus direitos são descentrados, dando lugar para a categoria mercado, resultante do enquadramento globalizado ao neoliberalismo. O movimento social por direitos humanos e sociais, embora demande reconhecimento da cidadania para todos, vai se confrontar com a precedência da regulação econômica que descentra a condição de cidadão para a de consumidor. Os direitos sociais no Brasil foram de reconhecimento tardio. O direito à educação pública só apareceu no século XX, na Constituição de 1946, em decorrência de forte movimento de educadores e intelectuais de destaque, embora ainda hoje existam crianças sem vagas em ensino fundamental ou analfabetas em idade que já deveriam estar alfabetizadas. Outros direitos sociais, como à saúde pública, só foram reconhecidos nas últimas décadas do século XX, com a Constituição de 1988. Fonte: Wikimedia Commons 10 Unidade: América Latina e Brasil: a Regulação Social Tardia A sociedade luta, então, por direitos difusos entre os quais os de gênero, os etários, de etnia, de opção sexual. Os movimentos nacionais e internacionais de mulheres, negros, idosos, crianças, homossexuais ganharam repercussão como direitos de minorias, quando tais direitos não tinham também se efetivados. A regulação social tardia nos países, nos quais os direitos sociais foram legalmente reconhecidos no último quarto do século XX e cujo reconhecimento legal não significa que estejam sendo efetivados, podem continuar a ser direitos de papel que não passam nem pelas institucionalidades, nem pelos orçamentos públicos. Embora estejam inscritos em lei, seu caráter difuso não os torna passíveis de reclamações nos tribunais. Assim, uma parte da população pode permanecer excluída do alcance efetivo do disposto em lei. As políticas sociais nesses países no último quarto do século XX, caracterizam-se por: reconhecimento de direitos sociais com lutas protagonizadas por movimentos sociais e não por movimentos sindicais; diluição desse reconhecimento em lutas locais, no âmbito de cidades, dando caráter difuso à efetivação de direitos sociais para todos, isto é, territorializando direitos, embora o país não constitua uma federação; fragilidade da continuidade do reconhecimento dos direitos sociais ou de sua permanência ou do modo de sua permanência na agenda pública, já que se tornam dependentes da “sensibilidade política” do grupo no governo e não, efetivamente, resultado de conquistas consolidadas reclamáveis nos tribunais como direitos não efetivados pelo Estado. O impacto do neoliberalismo em sociedades de regulação social tardia, como é o caso da sociedade brasileira, não ocorre nem pelo desmanche social, nem pela redução de gastos sociais. Estas sociedades não viveram o pacto de Welfare State fundado no modelo keynesiano ou beveridgiano. Estados ditatoriais não incluíam pactos democráticos de universalização de cidadania. Essas sociedades são, portanto, carentes de um contrato social alargado, o que torna uma luta contínua na construção universal da cidadania e a superação do divisor entre pobres e não pobres. Com isso, o conceito de cidadania é chancelado como luta contra a pobreza o que não afiança direito a ninguém. A “nova” regulação social tardia vai combinar o desejo e a luta por direitos sociais, não mais fundados na condição de trabalho, com a luta pela democracia. A combinação entre movimentos sociais, democracia política e democracia social inaugura as políticas sociais de terceira geração. Nessa política trata-se, de modo central, de pensar na proteção e desenvolvimento da vida humana e não da proteção ou crescimento financeiro do mercado ou do mundo dos negócios, o foco em questão está na ética solidária, por meio da qual o social preserva e capacita o homem e a mulher em suas relações, qualidade de vida sem degradação de si, da natureza e do mundo em que vivem. Ao pensarmos no trato das políticas sociais, podemos verificar que os países têm sensíveis diferenças de acordo com as peculiaridades e contextos de cada um. Esping-Andersen, ao considerar a existência de regimes de políticas sociais, caracteriza os modelos de regimes de Welfare State pelo modo de gestão interna das políticas sociais e o alcance das provisões sociais para o cidadão. Esping-Andersen Fonte: upf.edu 11 Destaca que os países de regulação social tardia apresentam três grandes determinantes: 1) os condicionamentos do processo histórico-político que fundam o modelo de contrato social e o alcance do reconhecimento da cidadania e da garantia de mínimos sociais; 2) a forma de combinação da responsabilidade pública e social entre Estado-Sociedade- Mercado e o modo de gestão dos múltiplos agentes; 3) a hegemonia democrática no processo de gestão do país, da região, da cidade e suas relações de submissão aos agentes financiadores externos e de externalidade em relação aos movimentos e lutas mundiais no cumprimento das agendas internacionais. A combinação destas três grandes determinantes traz marcas distintas ao contrato social firmado entre sociedade-estado-mercado e, por consequência, às políticas sociais entre os países com regulação social datada no final do século XX. Esping-Andersen desenvolveu um estudo no qual construiu tipologias de Welfare States. O estudo de Andersen possibilitou várias reflexões. Titmuss em 1958 e 1974 também construiu uma tipologia de welfare state caracterizando-os desde um modelo residual. Pensar nessas tipologias nos ajuda a entender o Welfare State como um tipo de regulação social entre Estado, Sociedade e Mercado, que historicamente teve a precedência do Estado. Outras formas de regulação social podem centrar-se na sociedade ou no mercado. Parece-nos importanteestudar esses antecedentes para compreender o formato das políticas sociais na América Latina, cuja formação histórico e social tem aspectos divergentes da europeia, berço do modelo welfare state da metade do século XX. Observando os países de regulação tardia com os de regulação beveridgiana da metade do século XX, consegue-se identificar muitas semelhanças quanto ao modo pelo qual tratam e abarcam “os mais pobres” na população e no alcance dos direitos sociais. Acabamos por identificar alguma forma de discriminação e dificilmente os programas de erradicação da pobreza se orientam pela condição de “não pobreza”. O fenômeno da exclusão social da sociedade de regulação neoliberal coloca um freio na expansão da universalização da cidadania. Assim parece persistir a dualidade entre a regulação social para os ainda consumidores e os não consumidores. O reconhecimento e conquista dos direitos sociais ocorre em países subalternos, ao mesmo tempo em que o welfare state entra em crise nos países do primeiro mundo e provoca a ruptura entre o social e o econômico, cuja unidade foi a base da regulação keynesiana. A regulação social tardia é demarcada por um conceito liberal do econômico e uma difusão do princípio privatista no social que obstaculiza a possibilidade de universalização da cidadania. Este processo é, no mais das vezes, encoberto por uma formulação avançada no campo das leis que não é alcançável pela realidade de vida de todos. A demanda pelo reconhecimento dos direitos sociais tem por marca fundamental os movimentos sociais (e não os movimentos sindicais), todavia, isto não vai significar o caráter universal da cidadania e sim a manutenção de forma dual das coberturas sociais, ou seja, as vinculadas aos direitos trabalhistas que atendem Richard Titmuss Fonte: Wikimedia Commons 12 Unidade: América Latina e Brasil: a Regulação Social Tardia só os trabalhadores formais e as frágeis coberturas para os informais. A regulação neoliberal provoca o crescimento do mercado informal de trabalho criando novos conflitos e dualidades nas garantias sociais. Estes movimentos apresentam uma característica muito interessante, pois muitos são encabeçados por mulheres, exigem do Estado uma nova agenda de inclusão no mundo público de necessidades sociais entendidas até então, como privadas. Ao mesmo tempo, a regulação liberal segue o caminho inverso: fazer retornar ao mundo privado respostas que eram da esfera pública. A forte presença feminina nos movimentos traz também uma demanda pela visibilidade dos direitos sociais no cotidiano, no próprio lugar onde vivem e não por direitos conceitualmente estabelecidos sem lugar concreto. Esses movimentos ultrapassam o perfil tradicional das políticas e necessidades setoriais (saúde, habitação, educação etc.) e são mescladas com direitos específicos de novos segmentos: mulheres, idosos, crianças, jovens, etnias, opção sexual, deficientes, drogaditos, população em situação de risco. Com isso, o modelo tradicional das políticas sociais fundadas na igualdade e homogeneidade é posto como insuficiente, exigindo-se um novo modelo capaz de encontrar uma gestão matricial entre igualdade e equidade. Trata-se, portanto, de uma exigência de políticas sociais complexas em Estados que sequer instalaram os modos tradicionais das políticas sociais. 13 Material Complementar Livros: Para complementar os conhecimentos adquiridos nesta Unidade, leia as seguintes obras: Ruiz, L.S. Jefferson. Direitos Humanos e Concepções Contemporâneas. São Paulo: Cortez. Boschetti, Ivanete. Capitalismo em crise, política social e direitos. São Paulo Editora Cortez, 2010. Faleiros, Vicente de Paula. A política Social do Estado Capitalista - 12ª. Ed. São Paulo Ed. Brasiliense, 1941. Estas leituras enriquecerão sua compreensão sobre os aspectos que abrangem as políticas sociais e poderão lhe oferecer subsídios na reflexão de tema tão complexo. Boa leitura a todos! 14 Unidade: América Latina e Brasil: a Regulação Social Tardia Referências SADER, Emir e GENTILI, Pablo. Pós-neoliberalismo - As políticas sociais e o estado democrático. São Paulo, Paz e Terra, 1996. SPOSATI, A. Regulação Social Tardia: características das políticas sociais latino- americanas na passagem entre o segundo e o terceiro milênio. Caderno Ideação, II Fórum Social Mundial, Porto Alegre, p. 33- 53, 2002. 15 Anotações