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Unidade III - Características da Escrita do Surdo

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Curso Básico de Libras
Módulo III
Profa. Gleidis Roberta Guerra
Unidade III - Características da escrita do surdo
Unidade III - Características da escrita do surdo
Nesta unidade estudaremos um pouco sobre as características da
escrita do surdo, e as dificuldades que ele encontra no processo de
aquisição da língua portuguesa escrita.
A primeira coisa a se fazer, quando estamos diante de uma produção
escrita de um aluno surdo, é considerar que o português não é a sua
primeira língua. O surdo pode ser visto e compreendido, do ponto de
vista socioantropológico, como um estrangeiro em seu próprio país.
Desenvolvimento da linguagem
Considerando Vigotsky (1991), podemos afirmar que a linguagem se
constrói nas interações que estabelecemos com as pessoas e com o
meio em que vivemos. A língua, que deve ser adquirida a partir das
vivências da criança, geralmente, é passada de geração para geração, e
vem carregada de cultura e de valores que são transmitidos pela
família.
A criança surda, em 90% das vezes, nasce em famílias ouvintes. Isso
ocorre porque as principais causas da surdez não estão relacionadas à
hereditariedade, mas sim a alterações que ocorreram no período
gestacional, no parto, ou mesmo durante a infância. Dessa maneira, o
acesso à língua de sinais acaba ocorrendo não no ambiente familiar,
mas em instituições como escola, associações de surdos, ou mesmo em
terapia fonoaudiológica.
Ainda nos remetendo à teoria Vigotskyana, verificamos que a
construção de uma língua e o desenvolvimento da linguagem não
servem apenas para a comunicação, mas também darão o aporte
cognitivo necessário para o desenvolvimento do pensamento. Assim,
podemos afirmar que quanto mais tardiamente a criança surda
desenvolve a língua de sinais, maiores serão suas dificuldades de
aprendizagem.
Santana (2007), ao tratar do desenvolvimento das crianças surdas,
afirma que não podemos ensinar uma criança surda da mesma maneira
que ensinamos uma criança ouvinte, também não podemos comparar
o desenvolvimento entre elas. Quando pensamos em duas línguas
orais, hipoteticamente a língua inglesa e a língua portuguesa, parece
claro que não dá para ensinar a escrita do português para um nativo
americano, da mesma maneira que se ensina para um brasileiro.
A autora ainda destaca que se não houver uma língua (no caso a de
sinais) como mediadora da aprendizagem do português escrito, essa
aprendizagem não se efetuará.
Na realidade brasileira ainda temos muitas crianças surdas que ou não
tem acesso ao aprendizado da Libras, ou que só têm esse acesso
tardiamente, o que dificulta todo o processo de alfabetização. Além
disso, embora seja Lei, ainda não é uma realidade que todos os
professores tenham o domínio da língua de sinais, ou mesmo que a
criança possa contar com um profissional de Libras em sala de aula.
Concepção de escrita e o conceito de interlíngua
Muitos autores defendem que durante o processo de aprendizado da
escrita esta ocorre como se fosse uma representação gráfica da língua
oral. Podemos perceber que as crianças ouvintes, ao iniciarem esse
aprendizado, usam do apoio na oralidade para conseguir realizar suas
produções escritas.
Assim, Mello (2005) afirma que a escrita é como se fosse um
simbolismo de segundo grau, ou seja, um sistema de signos que
identificam os sons das palavras faladas oralmente.
Ainda de acordo com a autora, no decorrer do processo de
aprendizagem da escrita, a representação da linguagem oral vai
desaparecendo gradualmente, até não ser mais necessária. Assim, a
escrita passará a designar diretamente o objeto que se propõe, sem
essa intermediação.
Outros autores apontam a necessidade de a criança falar corretamente
para que consiga escrever dessa maneira também. Do ponto de vista
fonoaudiologico, é comum observar crianças que, por falarem “errado”,
acabam escrevendo da mesma maneira.
Se transferirmos esse raciocínio e pensarmos na criança surda, como
ficaria a aprendizagem de uma língua escrita que não tem nenhuma
relação com a língua por ele utilizada?
Perlin (2010) afirma que no caso das pessoas surdas não há como ela
utilizar-se dos signos orais como apoio para sua escrita. Para a autora, o
surdo se baseará, durante o seu processo de aprendizagem, nos signos
visuais. Em outras palavras, enquanto a criança ouvinte aprende
comparando os sons e as letras, as crianças surdas utilizam um
processo de memorização visual para esse aprendizado.
O pensamento visual da escrita é o que o surdo utilizará durante todo o
processo. Exemplificando melhor essa situação, pensemos em uma
criança ouvinte, no início da alfabetização, e veremos que é comum ela
escrever MININU no lugar da grafia MENINO. Isso ocorre pois ela se
baseou na sua forma de falar.
Se pegarmos uma criança surda e a mesma palavra, será comum,
enquanto erro, que ela escreva NEMIMO, pois irá utilizar a sua
memória visual da palavra e poderá cometer esse tipo de erro.
Para que o processo se dê de maneira adequada, o surdo deverá
aprender o português escrito dentro de um processo de aprendizagem
da segunda língua. Assim como um ouvinte aprende uma língua
estrangeira, o surdo deveria aprender o português. Nesse processo
ocorrem diferentes estágios, que chamamos de interlíngua e veremos a
seguir.
Guerra (2016) afirma que no início do aprendizado de uma segunda
língua (língua estrangeira para o ouvinte ou língua portuguesa para o
surdo) é natural que o aluno apresente características que misturam a
primeira e a segunda língua. Nesse caso, a interlíngua não é uma
questão de desorganização ou confusão, mas faz parte do processo de
aprendizagem.
Para Brochado (2003), esse processo é evidente na aprendizagem dos
alunos que são fluentes em Língua de Sinais. Pereira (2009) também
afirma o quão é comum as pessoas surdas escreverem obedecendo a
estrutura gramatical da sua primeira língua.
A autora ainda apresenta os diferentes estágios de interlíngua pelos
quais a criança surda irá passar até chegar à escrita formal da língua
portuguesa.
No estágio Interlíngua I, o que predomina são as estratégias da Língua
de Sinais (primeira língua) para a Língua Portuguesa (segunda língua).
Assim, respeitando as características da Libras, como vimos
anteriormente, é comum que a pessoa surda utilize os verbos no
infinitivo, omita artigos e preposições, use frases do tipo tópico-
comentário.
Conseguindo avançar no aprendizado da segunda língua, e para isso ela
deve ser estimulada corretamente durante o processo, ela chegará no
estágio denominado Interlíngua II. Nesse estágio Brochado (2003)
revela que embora ainda haja uma mistura entre as duas línguas, já é
possível verificar os elementos que compõem a língua portuguesa. Há
assim uma justaposição entre a primeira e a segunda língua.
Ao chegar ao estágio Interlíngua III, o aluno deve ser capaz de escrever
usando predominantemente a estrutura da língua aprendida, no caso
do surdo, a língua portuguesa escrita. Assim, ele usa estruturas frasais
complexas, artigos, preposições, entre outros conectivos dessa língua.
(BROCHADO, 2003).
Por que então os alunos surdos, já no ensino superior, muitas vezes
mantém as características do estágio que denominamos interlíngua I?
Quadros (2006) afirma que as dificuldades encontradas advêm do
modelo de ensino utilizado nas escolas brasileiras para os alunos
surdos, baseado no processo de alfabetização dos alunos ouvintes.
Pesquisas realizadas pelo INEP (BRASIL, 2012) apontaram que a maioria
dos estudantes surdos, após passarem de 10 a 15 anos dentro da
escola, ainda se apresentavam no estágio Interlíngua II. Poucos são os
que atingiram o estágio Interlíngua III.
Podemos inferir que a dificuldade não seja apenas da falta da
linguagem oral para o surdo, mas que o uso de metodologias
inadequadas, professores sem formação adequada para atender à
diversidade e o desconhecimentoda própria língua de sinais por parte
desses, dificultam o processo de aprendizagem da língua portuguesa,
na modalidade escrita, pelo aluno surdo.
O que devemos então considerar, ao olhar para a escrita de um aluno
surdo, é o conteúdo que ele procurou transmitir, pois se avaliarmos
predominantemente a forma como escreveu, deixaremos de considerar
o conhecimento que esse tem a respeito do assunto que está sendo
tratado.
Ademais, essas dificuldades da escrita também interferem no processo
de leitura e interpretação de textos em língua portuguesa. Dessa
forma, muitas vezes o aluno surdo, mesmo no ensino superior, possui
dificuldades na compreensão de perguntas simples, de uma prova por
exemplo.
Muitas vezes o professor, por desconhecimento das questões tratadas
nesta Unidade, acaba julgando o aluno como inapto ao ensino superior
ou mesmo analfabeto. É necessário modificarmos essa maneira de
enxergarmos o surdo em nossa sala de aula e compreendermos que o
Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais (TILS) é fundamental para que
o aluno acompanhe o que está sendo ensinado.
Ainda em relação ao TILS, ele precisa ser visto em sala de aula como
um apoio profissional para o estudante, para o docente e demais
discentes, ele é responsável por mediar a comunicação entre o
estudante com surdez e a comunidade acadêmica, interpretar, para
esses estudantes, toda mídia veiculada que não conte com janela da
Libras, além de auxiliar no esclarecimento de palavras e/ou conceitos
que não contam com o sinal correspondente na Língua Brasileira de
Sinais.
É direito do aluno surdo ter auxílio para interpretação de provas,
considerando sua especificidade linguística, e é papel do intérprete
fazer isso. Porém, o que muitas vezes acontece, é um professor
“desconfiado” de que esse profissional irá favorecer o aluno, passando-
lhe, por exemplo, as respostas da avaliação.
Para melhor elucidação das questões apresentadas, veremos a seguir
alguns textos produzidos por alunos surdos em diferentes anos
escolares. Leiam esses textos com um novo olhar, a partir dos
aprendizados que tiveram nos três módulos que compuseram o curso
Básico de Libras, respeitando as características linguísticas
apresentadas.
Texto 1
Fonte: Arquivo pessoal da autora.
Texto 2
Textos 3 e 4
Fonte: Arcoverde (2006). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0101-32622006000200008. Acesso em 15/12/2017.
Com base nos textos acima, podemos inferir que os estudantes com
surdez conseguem estruturar uma linha de raciocínio frente à
necessidade de comunicação escrita, contudo, os aspectos inerentes à
Libras permanecem presentes em seus textos. Com isso, é necessário
voltar à atenção ao que quer ser comunicado, qual é a ideia a ser
passada, e não à estrutura que está posta, tendo em vista, como já
sabemos, que a Libras possui estrutura gramatical própria.
Assim, terminamos mais um curso de Libras. Parabéns a todos e todas
que chegaram até aqui! Que os conhecimentos adquiridos contribuam
para um atendimento mais adequado, voltado aos estudantes com
surdez, e que seja apenas o primeiro passo para conhecer essa língua
tão rica, a Libras.
Referências
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO
TEIXEIRA. Censo da educação básica 2012. Disponível em: <
http://portal.inep.gov.br/resultados-e-resumos>. Acesso em 15 dez. 2017.
BROCHADO, S. M. D. A apropriação da escrita por crianças surdas usuárias da
Língua Brasileira de Sinais. Assis: UNESP, 2003. 431f. Tese (Doutorado em
Letras) – Programa de pós-graduação em filologia e linguística portuguesa.
UNESP, Assis, 2004.
GUERRA, G. R. O ensino do português como segunda língua para o aluno surdo.
REAe - Revista de Estudos Aplicados em Educação, v.1, n.2, ago./dez 2016.
MELLO, S. A. O processo de aquisição da escrita na educação infantil
contribuições de Vygotsky. In: FARIA, A.L.G. e MELLO, S.A. (orgs.). Linguagens
Infantis outras formas de leitura. Campinas Autores Associados, 2005, p 23-40.
Referências
PEREIRA, M. C. Aquisição da escrita por crianças surdas: início do processo.
Porto Alegre: Letronica, v.02, n.01, jul. 2009. p.138-149.
PERLIN, G. T. T. Identidades Surdas. In: SKLIAR, C. (org.). A surdez: um olhar
sobre as diferenças. 4 ed. Porto Alegre. Mediação, 2010.
QUADROS, R. M. Ideias para ensinar português para alunos surdos. Brasília:
MEC, SEESP, 2006.
SANTANA, A. P. Escrita: Uma opção bilíngue. In: Surdez e Linguagem:
aspectos e implicações neurolinguísticas. São Paulo, Plexus, 2007.
VIGOTSKY L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
Para orientações a respeito do atendimento voltado aos estudantes com
deficiência auditiva/surdez, entre em contato com o Núcleo de Educação
Especial Inclusiva – NuEEI.
Contato: nueei_ed.inclusiva@kroton.com.br

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