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> aNálise do compoRtameNto: poR que as pessoas fazem o que fazem? A ciência é um empreendimento que pode ser descrito e definido de muitas formas. Uma maneira comum de definir a ciência é afirmar que ela é uma busca por relações causais, ou relações entre cau- sas e efeitos. Os ter- mos “causa” e “efei- to” têm suas limita- ções, e podem ser discutidos do ponto de vista da filosofia da ciência (Laurenti, 2004; Skinner, 1953/1965). Por mais importantes que sejam, porém, não nos deteremos aqui em tais discussões. Por ora, interessa -nos apenas reconhecer que a ciência é, entre outras coisas, uma maneira sistemática de tentar responder a questões causais: por que um certo con- junto de fenômenos acontece desta ou daquela forma? A análise do comportamento é uma ci- ência que, como indica sua denominação, toma o comportamento como objeto de estu- do. Tornou -se comum entre os analistas do comportamento definir este objeto através de expressões mais amplas, como “interações orga nismo -am bien te” (Todorov, 1989) ou O conceito de 8 liberdade e suas implicações para a clínica Alexandre Dittrich ASSunToS do CAPÍTulo > Ciência como busca de relações de determinação. > Definição de comportamento. > Explicações causais em psicologia. > A posição determinista do Behaviorismo Radical. > As vantagens de uma posição determinista para o psicólogo. > Alguns dos principais significados de “liberdade” e como o analista do comportamento os compreende: como sentimento, como diminuição ou eliminação da coerção, como autocontrole. > O analista do comportamento como profissional que busca a “liberdade” para a sociedade, incluindo os seus clientes. A ciência é, entre outras coisas, uma maneira sistemática de tentar responder a questões causais. Comportamento é sempre e inva‑ riavelmente um fenômeno relacional: comportar ‑se é interagir cons‑ tantemente com um entorno que a análise do compor‑ tamento denomina genericamente como “ambiente”. 88 Borges, Cassas & Cols. “relações comporta- mentais” (Tourinho, 2006). Essas defini- ções apontam para o fato de que o com- portamento é sempre e invariavelmente um fenômeno relacional: com por tar -se é inte- ragir constantemente com um entorno que a análise do comportamento denomina gene- ricamente como “ambiente”. Uma distinção entre “o que uma pessoa faz” e “o ambiente no qual ela o faz” é importante para objetivos teóricos e práticos, mas entende -se que não há como isolar o fenômeno “comportamen- to” do fenômeno “ambiente”. Os analistas do comportamento estudam, portanto, relações comportamentais: relações comportamento- -ambiente. O objetivo primordial do analista do comportamento é descobrir por que uma pessoa, ou grupo de pessoas, faz o que faz, da maneira como o faz. Para o analista do comportamento, esse “fazer” tem um am- plo alcance: quere- mos saber por que as pessoas falam o que falam, pensam o que pensam, sentem o que sentem. Ainda hoje algumas pessoas entendem “compor- tamento” como sen- do apenas aquilo que uma pessoa faz pu- blicamente: os movimentos do corpo exter- namente perceptíveis. A análise do compor- tamento há muito superou essa concepção. Uma pessoa pode comportar -se de muitas maneiras, visíveis ou não para outra pessoa. O comportamento, não obstante, interessa- -nos como objeto de estudo mesmo quando algumas de suas dimensões não são publica- mente observáveis. Relações comportamentais são, na aná- lise do comportamento, relações causais – isto é, relações nas quais buscamos identifi- car no ambiente de uma pessoa as causas para aquilo que ela faz. Essa é uma opção talvez óbvia: se nosso “efeito” é o comporta- mento humano, tudo o que possa afetá -lo de alguma forma deve ser tratado como “causa” – e o que nos resta é o ambiente. Essa concepção pode dar a alguns a impres- são de que o ser humano está sendo tratado de forma excessivamente passiva: o ser hu- mano não age sobre o mundo, não o trans- forma? Obviamente que sim! B. F. Skinner, o precursor da análise do comportamento, afirma isso textualmente (1957, p. 1), e o fato de que o homem age sobre o mundo e o transforma constitui o cerne do que os ana- listas do comportamento chamam de com- portamento operante.1 Sob esse ponto de vista, o comportamento humano é, sem dú- vida, causa para vários efeitos em seu am- biente, e isso é parte importante da descri- ção que o analista do comportamento faz das relações comportamentais. Ainda assim, nossa pergunta causal primordial continua sendo sobre o comportamento, por mais ati- vo e transformador que seja: o que o causa? É importante perceber que a resposta a essa pergunta só pode estar nas relações do comportamento com o ambiente, e não no próprio comportamento.2 Se nos pergunta- mos sobre as causas do fazer de alguém, não podemos tomar esse próprio fazer como ex- plicação – ele é justamente o que queremos explicar. Se algum comportamento é invoca- do como variável importante para explicar outro comportamento, é natural que pergun- temos, por sua vez, por que o comportamen- to inicial ocorreu. Em algum momento, ine- vitavelmente, veremo -nos novamente investi- gando relações comportamentais. Uma distinção entre “o que uma pessoa faz” e “o ambiente no qual ela o faz” é importante para objetivos teóricos e práticos, mas entende ‑se que não há como isolar o fenômeno “compor‑ tamento” do fenôme‑ no “ambiente”. Ainda hoje algumas pessoas entendem “comportamento” como sendo apenas aquilo que uma pes‑ soa faz publicamen‑ te: os movimentos do corpo externamente perceptíveis. A análi‑ se do comportamen‑ to há muito superou essa concepção. Uma pessoa pode comportar ‑se de muitas maneiras, visíveis ou não para outra pessoa. Clínica analítico ‑comportamental 89 A psicologia, com sua ampla variabilida- de teórica, oferece outros caminhos. Explica- ções causais em psicologia frequentemente se- guem o modelo “a mente causa o comporta- mento”. Mesmo que algum psicólogo adote essa postura, ainda lhe restará a tarefa de explicar causalmente a ocorrência dos even- tos chamados “men- tais”. Fatalmente, esse psicólogo, em algum momento, deverá re- met er -se às relações da pessoa com seu ambiente. Se insistir que não deve ou não precisa fazê -lo, pode- -se desafiá -lo a mudar qualquer aspecto da vida mental de uma pessoa sem alterar nada em seu ambiente (e devemos lembrar aqui que o comportamento verbal de um psicólogo faz parte do ambiente das pessoas com as quais ele interage). Outro desafio que poderia le- gitimamente ser lançado a este psicólogo se- ria demonstrar que algo foi mudado na men- te de uma pessoa, sem que o comportamen- to dela (verbal ou não verbal) pudesse ser tomado como indício de tal mudança. Tendemos a utilizar verbos para desig- nar o que a mente faz: pensar, imaginar, sen- tir, decidir... Isso é importante, porque evi- dencia que estamos tratando de comporta- mentos, mesmo que algumas de suas dimensões não sejam publicamente observá- veis. (Troquemos “mente” por “pessoa”, na primeira frase, e teremos uma definição per- feitamente aceitável para qualquer analista do comportamento.) “Decidir” talvez seja aqui um verbo importante. Para a análise do com- portamento, decidir é comportar -se: é fazer algo e, com isso, produzir certas consequên- cias (Skinner, 1953/1965, p. 242-244). O número de situações em nosso dia a dia nas quais efetivamente nos engajamos no com- portamento de decidir antes de fazer alguma outra coisa provavelmente é muito menor do que gostaríamos de pensar. Talvez nossa vida fosse impossível se as coisas não fossem assim. Fazemos muitas coisas “sem pensar”, porque nossa experiênciaem situações semelhantes nos dá alguma segurança de que os resultados do que faremos são previsíveis. Quando não o são, porém, podemos preliminarmente “de- cidir” – isto é, buscar subsídios que nos permitam tomar um certo curso de ação e não outros. Se decidir é comportar -se, porém, o fato de que decidi- mos também deve ser causalmente explica- do. Ninguém nasce sabendo como deci- dir, e presumivelmen- te algumas pessoas decidem melhor, ou com mais frequência, do que outras. Isso quer dizer que o comportamento de decidir também deve ser aprendido, no sentido de ser selecio- nado por suas consequências: Um homem pode gastar muito tempo plane- jando sua própria vida – ele pode escolher as circunstâncias nas quais viverá com muito cui- dado, e pode manipular seu ambiente cotidia- no em larga escala. Tais atividades parecem exemplificar um alto grau de autodetermina- ção. Mas elas também são comportamento, e nós as explicamos através de outras variáveis ambientais e da história do indivíduo. São es- sas variáveis que proveem o controle final (Skinner, 1953/1965, p. 240). É importante notar também que, se um comportamento é aprendido, ele pode ser en- sinado. Se tratamos o decidir como um acon- tecimento mental inalcançável e inexplicável, essa perspectiva se fecha. Se o tratamos, po- rém, como uma relação comportamental, po- demos interferir sobre ele. Esse é o lado positi- Explicações cau‑ sais em psicologia frequentemente seguem o modelo “a mente causa o comportamento”. Mesmo que algum psicólogo adote essa postura, ainda lhe restará a tarefa de explicar causalmen‑ te a ocorrência dos eventos chamados “mentais”. Ninguém nasce sa‑ bendo como decidir, e presumivelmente algumas pessoas decidem melhor, ou com mais frequência do que outras. Isso quer dizer que o comportamento de decidir também deve ser aprendido, no sentido de ser se‑ lecionado por suas consequências. 90 Borges, Cassas & Cols. vo da insistência dos analistas do compor- tamento em buscar “causas” ambientais para “efeitos” com- portamentais: se po- demos mudar o am- biente que afeta uma pessoa, podemos mudar seu comportamento. > o compoRtameNto HumaNo é livRe? Analisamos o comportamento de decidir porque ele costuma ser apontado como um exemplo claro de que cada ser humano go- verna sua própria vida de forma autônoma, mesmo que se admita que o ambiente in- fluencie seu comportamento em alguma me- dida. Mas se mesmo o comportamento de decidir pode ser causalmente explicado, o que resta de autonomia, de liberdade para o ser humano? A controvérsia entre determinismo e livre -arbítrio tem uma história praticamente tão longa quando a da própria filosofia. É um tema complexo, que desperta discussões apai- xonadas. Para a psicologia, esta é uma discus- são inevitável: não importando os conceitos e teorias utilizados por diferentes psicólogos, é razoável afirmar que todos estão interessa- dos em saber por que as pessoas fazem o que fazem, dizem o que dizem, pensam o que pensam, sentem o que sentem. Como qualquer ciência, a psicologia está inte- ressada em relações causais: ela busca identificar causas para certos efeitos. Esses efeitos podem ser chamados de comportamentais e/ou mentais, a depender da teoria utilizada – mas suas causas devem ser obrigatoriamente procuradas entre fenômenos que não sejam “comportamento” ou “mente”. É plausível imaginar que algum psicólogo se satisfaça com explicações causais nas quais a mente é causa, e o comportamento, efeito. Mas também é plausível imaginar que, em al- gum momento, esse psicólogo precisará expli- car a própria origem do que chama de “men- te”. Nesse caso, repetimos, é inevitável que re- corra a relações com o ambiente. Enquanto pesquisador, ao apontar variáveis ambientais atuais ou passadas como responsáveis pelo que as pessoas fazem, falam, pensam ou sentem, um psicólogo está provendo suporte empírico à plausibilidade de uma posição determinista, seja qual for a teoria que fundamenta seu tra- balho. Skinner apresenta uma posição marca- damente determinista ao longo de sua obra. Esse parece ser um resultado natural de sua fi- losofia, dadas as relações causais que a análise do comportamento busca estudar. Vejamos alguns trechos de sua obra nos quais ele trata do assunto: Para ter uma ciência da psicologia, precisamos adotar o postulado [itálico nosso] fundamental de que o comportamento humano é um dado ordenado, que não é perturbado por atos ca- prichosos de um agente livre – em outras pala- vras, que é completamente determinado (Skin- ner, 1947/1972, p. 299). Se vamos usar os métodos da ciência no campo dos assuntos humanos, devemos pressupor [itálico nosso] que o comporta- mento é ordenado e determinado (Skinner, 1953/1965, p. 6). A hipótese [itálico nosso] de que o homem não é livre é essencial para a aplicação do mé- todo científico ao estudo do comportamento humano (Skinner, 1953/1965, p. 447). Embora Skinner apresente uma posição firme sobre o assunto, chama a atenção nessas Ao olharmos para comportamento como um fenômeno determinado por sua relação com o ambiente, esta‑ mos mais perto de encontrarmos meios de mudá ‑los. Ao apontar variá veis ambientais atuais ou passadas como res‑ ponsáveis pelo que as pessoas fazem, falam, pensam ou sentem, um psicó‑ logo está provendo suporte empírico à plausibilidade de uma posição determinista, seja qual for a teoria que fundamenta seu trabalho. Clínica analítico ‑comportamental 91 passagens o uso de palavras como “postula- do”, “pressupor” e “hipótese”. Skinner não está afirmando, como verdade absoluta, que o comportamento humano é determinado, mas sim que o cientista do comportamento deve pressupor que o seja. Mas por quê? Isso faz alguma diferença? A análise do comportamento tem entre seus objetivos prever e controlar o comporta- mento. É para isso, afinal, que ela busca in- vestigar relações causais: para intervir sobre causas ambientais e produzir efeitos compor- tamentais. Pressupor a determinação do com- portamento é benéfi- co para uma ciência do comportamento que busca investigar quais as variáveis que o determinam. Um cientista que supõe a existência de variá- veis que controlam o comportamento ten- de a procurá -las; um cientista que supõe que elas talvez não existam possivelmente não terá bons motivos para aprofundar suas in- vestigações. Assim, enquanto pressuposto, o determinismo impulsiona a pesquisa: mesmo que não consiga, em um primeiro momento, identificar as variáveis relevantes para a previ- são e controle de certas classes de comporta- mentos, o analista do comportamento insisti- rá em procurá -las. Eis uma passagem na qual Skinner se manifesta explicitamente nesse sentido: Determinismo é um pressuposto útil, por- que encoraja a busca por causas. [...] O pro- fessor que acredita que um estudante cria uma obra de arte exercitando alguma facul- dade interna e caprichosa não buscará as condições sob as quais ele de fato trabalha criativamente. Ele também será menos ca- paz de explicar tal trabalho quando ele ocor- re, e menos inclinado a induzir estudantes a se comportar criativamente (Skinner, 1968, p. 171). Esse exemplo aplicado à educação pode ser facilmente transferido para outras modali- dades de aplicação da análise do comporta- mento – como a clínica. O clínico analítico- -comportamental está interessado em mudar aspectos do comportamento de seu cliente, incluindo o que ele fala, pensa ou sente. Se o clínico pressu- põe que o comporta- mento de seu cliente, por mais complexo que seja, é determi- nado por suas rela- ções com o ambien- te, ele deve intervirsobre tais relações e verificar se isso surte o efeito esperado no repertório comporta- mental do cliente. Caso isso não aconteça, o clínico continuará tentando produzir tais efeitos, lançando mão de outras estratégias de intervenção sobre as relações comportamen- tais; em outras palavras, ele continuará bus- cando as causas do comportamento de seu cliente. O teste final sobre o sucesso dessa empreitada é empírico: se o comportamento do cliente muda, o clínico conseguiu intervir sobre pelo menos parte de suas causas. Um clínico analítico -compor tamental jamais de- sistirá de mudar o comportamento de um cliente por julgar que ele não tem causas. Essa é a utilidade do determinismo enquanto pres- suposto no trabalho do clínico. > existem outRos sigNificados paRa “libeRdade”? A palavra “liberdade”, como qualquer outra palavra, pode ser utilizada de diversas formas, Um cientista que supõe a existência de variáveis que controlam o com‑ portamento tende a procurá ‑las; um cientista que supõe que elas talvez não existam possivel‑ mente não terá bons motivos para aprofundar suas investigações. Se o clínico pressupõe que o comportamento de seu cliente, por mais complexo que seja, é determinado por suas relações com o ambiente, ele deve intervir sobre tais relações e verificar se isso surte o efeito espe‑ rado no repertório comportamental do cliente. 92 Borges, Cassas & Cols. em diferentes situações. Um analista do com- portamento pode, eventualmente, defender certos tipos de liber- dade, mesmo adotan- do o determinismo como pressuposto. Não há nisso qual- quer tipo de contra- dição, como veremos ao analisar alguns sentidos possíveis do termo. liberdade como sentimento A classe de relações comportamentais deno- minada reforçamento positivo parece favore- cer o relato de certos sentimentos, que po- dem receber vários nomes: amor, felicidade, confiança, fé, segurança, interesse, perseve- rança, entusiasmo, dedicação, felicidade e prazer são apenas alguns deles (Cunha e Bor- loti, 2005). O sentimento de liberdade tam- bém pode ser relatado nesse contexto. Quan- do nosso comportamento é positivamente re- forçado, sentimos que fazemos o que queremos, gostamos ou escolhemos. Não há sentimento de coer- ção ou obrigatorie- dade – há sentimen- to de liberdade. Até que ponto é possível ou desejá- vel abrir mão da uti- lização deliberada de relações comporta- mentais coercivas (de punição e reforçamento negativo) na aplica- ção da análise do comportamento é assunto discutível, e os subsídios mais importantes para essa discussão devem, sem dúvida, deri- var de dados empíricos. Ainda assim, é razoá- vel afirmar que os analistas do comportamen- to tendem a favorecer a utilização de relações comportamentais de reforçamento positi- vo. Com isso, podem favorecer também o relato de sentimen- tos de liberdade. Esse é um resultado previ- sível e desejável da prática do clínico analítico- -comportamental. Não há nisso nenhuma contradição com a adoção do determinismo enquanto pressuposto por parte do clínico. liberdade como diminuição ou eliminação da coerção Se o reforçamento positivo pode gerar relatos de sentimentos de liberdade, relações com- portamentais coercivas (de punição ou refor- çamento negativo) podem gerar, além do re- lato de outros sentimentos (ansiedade, raiva, tristeza, entre muitos outros) uma “luta pela liberdade” – que, neste caso, nada mais é do que uma luta contra esse tipo de relação. Social- mente, a luta contra as relações compor- tamentais coercivas pode receber diversos no- mes: busca -se promover a liberdade política, econômica, religiosa, sexual, etc. Em cada um desses campos, quando pessoas são proibidas de emitir certos comportamentos ou obriga- das a emitir outros, surge a possibilidade de que se revoltem contra esse tipo coercivo de controle. Skinner (1971) analisou profundamen- te a luta por esse tipo de liberdade, e reconhe- ceu sua importância: “A literatura da liberda- de tem feito uma contribuição essencial para a eliminação de muitas práticas aversivas no governo, na religião, na educação, na vida fa- miliar e na produção de bens” (p. 31). Analis- tas do comportamento, portanto, podem Um analista do comportamento pode, eventualmen‑ te, defender certos tipos de liberdade, mesmo adotando o determinismo como pressuposto. Não há nisso qualquer tipo de contradição. “Quando nosso comportamento é positivamente reforçado, sentimos que fazemos o que queremos, gostamos ou escolhemos. Não há sentimento de co‑ erção ou obrigatorie‑ dade – há sentimen‑ to de liberdade.” Os analistas do comportamento tendem a favorecer a utilização de rela‑ ções comportamen‑ tais de reforçamento positivo. Quando pessoas são proibidas de emitir certos comporta‑ mentos ou obrigadas a emitir outros, surge a possibilidade de que se revoltem con‑ tra esse tipo coerci‑ vo de controle. Clínica analítico ‑comportamental 93 igualmente defender certos tipos de liberda- des sociais, sem que haja nisso qualquer con- tradição com a adoção do determinismo en- quanto pressuposto. Um dos problemas apontados por Skin- ner na mesma obra é que as pessoas tendem a identificar a ausência de coerção com liber- dade absoluta, igno- rando o tipo mais po- deroso de controle – isto é, aquele exercido através de reforça- mento positivo. Ele é poderoso, entre ou- tros motivos, porque, via de regra, não nos revoltamos contra ele – aliás, sequer costumamos reco nhe cê -lo como um tipo de controle. O controle por re- forçamento positivo, como qualquer tipo de controle, pode ser utilizado com objetivos es- púrios, em benefício dos controladores, mas com graves prejuízos de longo prazo para os controlados. Empregados que enfrentam jor- nadas exaustivas ou insalubres de trabalho, aliciadores que levam adolescentes a se prosti- tuir, crianças e adolescentes atraídos para o tráfico de drogas ou pessoas levadas a consu- mir produtos prejudiciais à sua saúde são al- guns exemplos. Diante disso, é compreensí- vel a afirmação de Skinner de que “um siste- ma de escravidão tão bem planejado que não gere revolta é a verdadeira ameaça” (Skinner, 1971, p. 40). A “revolta” contra um sistema desse tipo só é possível, em primeiro lugar, se o escravo percebe que é um escravo. Por isso, de acordo com Skinner, “o primeiro passo na defesa contra a tirania é a exposição mais completa possível das técnicas de controle” (Skinner, 1955-1956/1972, p. 11). Considerado esse sentido da palavra li- berdade, podemos inclusive classificar a edu‑ cação para a liberdade como uma tarefa im- portante para os analistas do comportamen- to. Uma educação para a liberdade estimula a formação de cidadãos críticos, bem informa- dos e ativos, e pode cumprir um papel impor- tante para o futuro de nossas culturas. liberdade como autocontrole O clínico analítico -comportamental, via de regra, deseja que seu cliente “tome as rédeas de sua vida”, seja au- tônomo e indepen- dente, governe seu cotidiano – entre ou- tros motivos, para que não seja depen- dente do próprio clí- nico. Ora, tudo isso não parece funda- mentalmente contra- ditório com o pres- suposto de que o comportamento humano é determinado? Como pode um clínico ana lí- tico -comportamental fomentar autonomia em seus clientes se adota tal pressuposto? O clínico analítico-comportamental, enquanto parte importante do ambiente de seus clientes, trans- forma parte de seu repertório comporta- mental. Ele pode en- sinar seus clientes a analisar seu próprio comportamento e as variáveis que o con- trolam. Ao fazer isso, ele estará gerando em seus clientes o que Skinner (1953/1965,cap. 15) chamou de autocontrole – isto é, estará proporcionando a eles a oportunidade de identificar e controlar algumas das variáveis que controlam seu pró- prio comportamento. Como o autocontrole também é comportamento, ele também é, por si só, efeito de causas ambientais – e o Um dos problemas apontados por Skinner é que as pessoas tendem a identificar a ausên‑ cia de coerção com liberdade absoluta, ignorando o tipo mais poderoso de controle – isto é, aquele exercido através de reforça‑ mento positivo. O clínico analítico‑ ‑comportamental via de regra deseja que seu cliente “tome as rédeas de sua vida”, seja autônomo e independente, governe seu coti‑ diano – entre outros motivos, para que não seja dependente do próprio clínico. O clínico analítico‑ ‑comportamental transforma parte de seu repertório comportamental. Pode ensinar seus clientes a analisar seu próprio com‑ portamento e as variáveis que o con‑ trolam. Ao fazer isso, ele estará gerando em seus clientes autocontrole. 94 Borges, Cassas & Cols. comportamento do clínico responde, neste caso, pela maior parte de tais causas. O uso da expressão “autocon- trole”, portanto, não significa que o com- portamento da pes- soa que o exerce não esteja sujeito à deter- minação ambiental. Como afirma Skin- ner, “o ambiente de- termina o indivíduo mesmo quando ele altera o ambiente” (Skin- ner, 1953/1965, p. 448). Em certo sentido, porém, é possível afirmar que pessoas que exercem um alto grau de autocontrole são mais autônomas, independentes e “livres” do que as que não o fazem. O clínico analíti- co-comportamental, nesse sentido, busca en- sinar e promover a liberdade. Se compreendermos a palavra “liber- dade” em qualquer um desses três sentidos, podemos concluir que os analistas do com- portamento – entre eles os clínicos analí- tico-comportamentais – promovem a liber- dade com frequência. Ainda assim, como behavioristas radicais, os clínicos analíti- co-comportamentais tendem a adotar o de- terminismo enquanto pressuposto, sem que haja nisso qualquer contradição implicada. A adoção desse pressuposto, como vimos, justifica-se por sua utilidade para os pró- prios objetivos do trabalho terapêutico. Por mais paradoxal que isso possa parecer, pres- supor o determinismo ajuda os clí nicos analí ti co-com por tamentais a torna rem os seus clien tes mais livres! > Notas 1. Sobre comportamento operante, sugere -se ler o Ca- pítulo 2. 2. Para uma maior compreensão do modelo causal da análise do comportamento, ler Capítulo 7. > RefeRêNcias Cunha, L. S., & Borloti, E. B. (2005). Skinner, o senti- mento e o sentido. In E. B. Borloti, S. R. F. Enumo, & M. L. P. Ribeiro (Orgs.), Análise do comportamento: Teorias e práticas (pp. 47-57). Santo André: ESETec. Laurenti, C. (2004). Hume, Mach e Skinner: A explicação do comportamento. Dissertação de mestrado não publicada, Uni- versidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo. Skinner, B. F. (1957). Verbal behavior. New York: Appleton- -Century -Crofts. Skinner, B. F. (1965). Science and human behavior. New York: Macmillan. (Obra original publicada em 1953) Skinner, B. F. (1971). Beyond freedom and dignity. New York: Knopf. Skinner, B. F. (1972). Current trends in experimental psychology. In B. F. Skinner, Cumulative record: A selection of papers (pp. 295-313). New York: Appleton -Century- -Crofts. (Trabalho original publicado em 1947) Skinner, B. F. (1972). Freedom and the control of men. In B. F. Skinner, Cumulative record: A selection of papers (pp. 3-18). New York: Appleton -Century -Crofts. (Trabalho ori- ginal publicado em 1955-1956) Todorov, J. C. (1989). A psicologia como o estudo de inte- rações. Psicologia: teoria e pesquisa, 5, 347-356. Tourinho, E. Z. (2006). Relações comportamentais como objeto da psicologia: Algumas implicações. Interação em Psicologia, 10, 1-18. Pessoas que exer‑ cem um alto grau de autocontrole são mais autônomas, independentes e “livres” do que as que não o fazem. O clínico analítico‑ comportamental busca ensinar e pro‑ mover a liberdade. PARTE I - As bases da clínica analítico-comportamental 8. O conceito de liberdade e suas implicações para a clínica