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2UNIDADE 2Conhecendo alguns clássicos da Filosofia do Direito Objetivos de aprendizagem Identificar algumas teses tradicionais de filósofos do Direito as quais marcaram a Filosofia do Direito. Conhecer a classificação idealista, materialista e crítica da Filosofia do Direito. Seções de estudo Seção 1 As perspectivas idealista, materialista e crítica da Filosofia do Direito Seção 2 Alguns filósofos do Direito Leandro Kingeski Pacheco Sérgio Sell José Dimas d’ d’Avila Maciel Monteiro filosofia_do_direito.indb 53 12/07/12 13:31 ____________________ ____________________ Pacheco, Leandro Kingeski. Conhecendo alguns clássicos da Filosofia do Direito. In: Filosofia do Direito: livro didático – 1. ed. rev. – Palhoça: UnisulVirtual, 2011. 54 Universidade do Sul de Santa Catarina Para início de estudo Nesta unidade, você estuda, brevemente, algumas teses singulares que marcaram a Filosofia do Direito. Ao fazê-lo, contata o pensamento de diferentes filósofos do Direito. Compreenderá, também, que alguns filósofos, ao pensarem o Direito, o fizeram de modo único, imprimindo-lhe um acento que pode ser generalizado como idealista, materialista ou crítico. Muitos são os filósofos que lidaram com o Direito e que não o fizeram de modo superficial. Logo, duas limitações se impõem desde o começo deste estudo, considerando esta pequena unidade de livro didático: a) é preciso reconhecer que não será viável lidar com todos os filósofos do Direito; b) é preciso reconhecer que não será viável aprofundar o entendimento de um filósofo sobre o Direito, seja pela impossibilidade de lidar com todas suas teses sobre este tema, seja pela impossibilidade de considerar a totalidade de sua respectiva filosofia. Deste modo, para este estudo, arbitrariamente, foram escolhidos alguns poucos filósofos, assim como poucas teses pertinentes às reflexões sobre o Direito. Os filósofos escolhidos foram Platão e Aristóteles (abordados pelo professor Leandro), Thomas Hobbes (abordado pelo professor José Dimas), Immanuel Kant e John Rawls (abordados pelo professor Sérgio). Esperamos que estes conteúdos contribuam para a sua formação. Bons estudos. Seção 1 – As perspectivas idealista, materialista e crítica da Filosofia do Direito Antes de estudar uma singela exposição acerca da classificação de Filosofias do Direito, é pertinente considerar que toda classificação é arbitrária e reducionista, pois nenhuma classificação é capaz de contemplar a especificidade do classificado. Por outro lado, todo exercício de classificar contribui, didaticamente, para reconhecer um conjunto de semelhanças e ou de diferenças daquilo que é classificado. filosofia_do_direito.indb 54 12/07/12 13:31 55 Filosofia do Direito Unidade 2 Para classificar, critérios são necessários. Tradicionalmente, as Filosofias do Direito são classificadas por seus fundamentos ou princípios filosóficos, reconhecendo um ‘tipo’ de escopo privilegiado para se pensar a justiça, a lei, etc. Tais fundamentos filosóficos, no ensino de Filosofia do Direito, são geralmente elencados como idealistas, materialistas ou críticos. Grosso modo, Filosofias do Direito classificadas como idealistas reconhecem a “ideia” como fundamento filosófico. Filosofias do Direito classificadas como materialistas reconhecem a “matéria” como seu fundamento filosófico. E Filosofias do Direito classificadas como críticas reconhecem a “crítica”, o exame reflexivo e racional, o tribunal da razão, como fundamento filosófico, como escopo privilegiado para pensar as possibilidades e os limites da justiça, da lei, do magistrado, etc. Obviamente, o sentido destes termos (ideia, matéria e crítica) não é consenso entre os filósofos, mesmo para os que adotam este fundamento comum. Logo, correto seria falar de tipos de Filosofias do Direito idealistas, tipos de Filosofias do Direito materialistas e tipos de Filosofias do Direito críticas. Ou seja, é no bojo de uma filosofia específica que o sentido de ‘idealista’, ‘materialista’ ou ‘crítico’ se particulariza. Ainda, muitas outras categorias poderiam ser exploradas, como ‘realista’, ‘empirista’, ‘estruturalista’, fenomenologista, etc. – ampliando esta classificação ‘tradicional’. Geralmente, os fundamentos pertinentes às Filosofias do Direito confundem-se, fundem-se, diluem-se na respectiva Filosofia dos filósofos. Assim, é possível, de antemão, falar de Filosofia do Direito idealista de Platão, Filosofia do Direito crítica de Kant, Filosofia do Direito materialista de Karl Marx, e assim por diante. filosofia_do_direito.indb 55 12/07/12 13:31 56 Universidade do Sul de Santa Catarina Durante o estudo da seção seguinte, após você identificar teses e conceitos respectivos a alguns filósofos do Direito, as distintas Filosofias do Direito serão marcadas com este acento: idealista, materialista ou crítico. Seção 2 – Alguns filósofos do Direito Nesta seção, você acompanha algumas considerações sobre alguns filósofos do Direito, especificamente, Platão, Aristóteles, Thomas Hobbes, Immanuel Kant e John Rawls. Algumas teses acerca da Filosofia do Direito de Platão [...] à lei não importa que uma classe qualquer da cidade passe excepcionalmente bem, mas procura que isso aconteça à totalidade dos cidadãos, harmonizando-os pela persuasão ou pela coação, e fazendo com que partilhem uns com os outros do auxílio que cada um deles possa prestar à comunidade; ao criar homens destes na cidade, a lei não o faz para deixar que cada um se volte para a atividade que lhe aprouver, mas tirar partido dele para a união da cidade. (A República, 2002, VII, 519, p. 215). Vários textos de Platão (428/27-347 a. C.) permitem compreender a Filosofia do Direito deste pensador. Nader (2006) destaca três obras capitais de Platão que abrangem a Filosofia do Direito: O Político, As Leis e A República. Nader sintetiza que, na obra A República, o Estado é compreendido como “instrumento de realização da mais completa justiça [...] criado pelo homem para suprir suas deficiências [...] prover as suas mais variadas necessidades.” (2006, p. 108); e que, nas Leis, ele reverá alguns dos princípios adotados na República. Feitas estas considerações preliminares, atente que não nos aprofundaremos na filosofia de Platão, mas apenas em algumas teses pertinentes à justiça – tomando como referência a obra A República. Acompanhe. Figura 2.1 - Platão. Fonte: Franco (2002). filosofia_do_direito.indb 56 12/07/12 13:31 57 Filosofia do Direito Unidade 2 A justiça identifica-se com a perfeição dos homens. O que isto quer dizer? O homem tratado com justiça tende a tornar-se justo, melhor, perfeito; e o homem tratado com injustiça tende a tornar- se injusto, pior, imperfeito. Assim, tratar a todos com justiça implica procurar difundir e cultivar a perfeição humana. A justiça e a injustiça opõem-se. A oposição entre a justiça e injustiça é evidenciada de muitos modos. A justiça identifica-se com a virtude e com a sabedoria; é uma virtude da alma; gera a concórdia e a amizade. Já a injustiça identifica-se com a maldade e a ignorância; ela é um vício da alma; gera a revolta e o ódio. Logo, a justiça é sempre mais vantajosa que a injustiça, pois o homem justo é bom, sábio e feliz – atua com facilidade. Por outro lado, o homem injusto é mau, ignorante e desgraçado – atua com dificuldade, principalmente em conjunto. Aliada a esta concepção de justiça, a obra de todos os poetas e artistas deve ser abominada, pois estes retratam: pessoas injustas como felizes ou pessoas justas como infelizes; vantagens ao se cometer atos injustos ou prejuízo ao se cometer atos justos. Os bons governantes visam cuidar dos governados. O bom governante, o magistrado, não visa àprópria conveniência, mas a dos governados. O bom governante ocupa a magistratura por necessidade, por sentir-se castigado ao ser governado por quem é pior do que ele mesmo. Para tanto, os governantes, magistrados, formulam leis. Algumas destas são bem formuladas, enquanto outras, infelizmente, não. O filósofo deve governar a cidade na qualidade de magistrado. O filósofo, amigo do aprender, ao considerar a ideia de bem como princípio fundamental, deve legislar, criar as leis pertinentes à cidade e obedecer a elas. Para tanto, deve usar o raciocínio como ‘instrumento necessário’. Tanto mais usa a razão, mais próximo o filósofo, governante e magistrado estará da lei e da ordem. filosofia_do_direito.indb 57 12/07/12 13:31 58 Universidade do Sul de Santa Catarina Há duas opções para o fim das desgraças e males para o Estado, para os cidadãos, enfim, para o gênero humano: que os filósofos tornem-se reis, legisladores, chefes, governantes da cidade; que os atuais governantes da cidade (reis, soberanos, etc.) tornem-se filósofos (de fato). Saiba mais sobre a natureza do filósofo, governante e magistrado! O filósofo, enquanto juiz, não pode ser novo, mas mais idoso e testado aos limites. Ele precisa atingir pelo menos cinquenta anos; destacar-se no trabalho e na ciência (saber); destacar-se na procura pela ideia (forma ou essência) de bem, em si, considerando esta ideia como paradigma orientador à cidade; dedicar-se à filosofia – para, então, chefiar a cidade por amor, por necessidade. Convém que tal juiz não conviva, desde pequeno, com injustiças e almas perversas. É preciso que, na condição de aprendiz, ele seja primeiramente inexperiente e intacto aos maus costumes. Depois de educado nos bons costumes, pode conhecer injustiças, não com o intuito de cultuá-las, mas de abominá-las – seja na infância, na juventude e na maturidade – primando, sempre, pelo julgamento justo. Ao julgar, o filósofo, governante precisa evitar que bens alheios sejam detidos ou que bens próprios sejam privados. Para tanto, a justiça visa garantir ou restituir a posse do que é de cada um. Entenda aqui filósofo tanto o homem quanto a mulher, pois Platão, explicitamente, reconhece que a mulher e o homem são capazes de bem administrar a cidade e, mesmo, desenvolver qualquer ocupação – sem preconceitos de gênero. Por outro lado, Platão expõe que nem todos têm capacidade de ser filósofo, de governar, e que, portanto, deverão ser governados. Dito de outro modo: o filósofo deve governar; e os demais, ser governados. Ainda, ao filósofo compete mentir para benefício da cidade, embora a mentira seja sempre um erro para os governados e algo inútil para os deuses. A ideia do bem é a mais elevada de todas, enquanto causa do que é justo. A partir da ideia de bem, a justiça torna-se útil e valiosa. filosofia_do_direito.indb 58 12/07/12 13:31 59 Filosofia do Direito Unidade 2 As leis visam à harmonia da cidade. Pela lei, é possível garantir a paz entre os cidadãos da cidade. A lei não deve visar aos interesses de uma classe, mas à totalidade dos cidadãos. A lei visa, também, harmonizar as atividades desenvolvidas por diversos profissionais com o intuito de unir e fortalecer a cidade. Para tanto, a lei pode fazer-se valer pela persuasão e pela coação. Ainda, a cidade bem fundada é justa, enquanto a injustiça representa para ela o maior dos danos. Para apoiar a tese do filósofo como magistrado e governante, Platão pressupõe três teses, uma relativa à origem da cidade (a) e outras duas relativas ao aperfeiçoamento do ofício dos indivíduos da cidade (b1 e b2). Veja a seguir uma breve explicação das três teses sobre a origem da cidade: a) A origem da cidade reside na necessidade das pessoas superarem sua incapacidade de serem autossuficientes. As pessoas têm inúmeros tipos de necessidades (na esfera da alimentação, do vestuário, da segurança, etc.) e beneficiam-se, obviamente, da vida comunitária, nas cidades, à medida que procuram superar sua incapacidade de serem autossuficientes. b.1) Se cada pessoa fizer um só tipo de coisa, então ela poderá aperfeiçoar tal ofício. A cidade tende a tornar-se perfeita, modelo, feliz com a exclusividade dos afazeres de cada cidadão. Logo, tanto quanto possível, as pessoas precisam descobrir suas ocupações, relativas a uma determinada classe social, e aperfeiçoarem-se nelas, a fim de obter o melhor resultado, para si e para a cidade. Não é dito que a pessoa deve deixar de realizar outras ocupações, mas que é pertinente exercitar um ofício coerente com o seu perfil. filosofia_do_direito.indb 59 12/07/12 13:31 60 Universidade do Sul de Santa Catarina b.2) A ocupação de um ofício implica o exercício de uma função justa na cidade. Executar a função que lhe é própria, conforme a sua natureza mais adequada, tem a justiça como princípio. A cidade é bem governada, justa, quando a cada um cabe uma tarefa. Recorrer à justiça evidencia uma falta. É vergonha e sinal de falta de educação ter que recorrer à justiça de outro, uma vez evidenciado que a justiça de si próprio é insuficiente. Maior vergonha e maior falta de educação são demonstradas por aquele que vive nos tribunais – na qualidade de réu ou de acusador – por cometer injustiças e gabar-se por elas. Pensar como deve ser a educação dos homens implica examinar como a justiça e a injustiça ocorrem na cidade. Nesta linha de raciocínio, educação honesta contribui para a cidade justa. Aqueles que não recebem educação jamais serão capazes de se tornarem filósofos, governantes, magistrados. Saiba mais sobre a concepção de educação de Platão! A educação deve ser adequada à natureza do cidadão. Para entender esta tese, saiba que Platão recorre ao mito para explicar diferenças entre as classes, reconhecendo diferenças na origem de cada cidadão. Platão distingue, basicamente, três classes na República: a dos governantes, a dos guardiães e a dos lavradores e demais cidadãos. Para Platão, Deus modelou a todos com ligas diferentes de metal. Em especial, forjou com ouro os aptos a governar, com prata os guardiães e com ferro e bronze os lavradores e demais cidadãos. Nada impede, porém, que de uma classe áurea nasça uma criança de natureza ligada à prata, ao ferro ou ao bronze. Do mesmo modo, nada impede que, de uma classe ligada ao bronze, nasça uma criança de natureza ligada ao ferro, à prata ou ao ouro. Contudo, ao ser identificada a origem (liga ou natureza) da criança, esta deve ser educada conforme sua natureza. filosofia_do_direito.indb 60 12/07/12 13:31 61 Filosofia do Direito Unidade 2 A (in)justiça existe no indivíduo assim como existe na cidade. Tanto o indivíduo quanto a cidade são justos quando há temperança, coragem e sabedoria – executando as tarefas que lhes são próprias. Por outro lado, a injustiça aflora (tanto no indivíduo quanto na cidade) por meio da intemperança, covardia e ignorância. É preciso observar, também, que a pior injustiça é aquela que parece justa, mas não é. A Filosofia do Direito de Platão adota um acento na noção de ideia, no bem em si, entendido como paradigma, modelo, algo que existe por si. Tal acepção de Platão sobre ideia não deve ser confundida com pensamento, reflexão, etc. A noção de ideia não é simples nem de origem mundana, mas metafísica, pois o filósofo, o magistrado, precisa procurar, no plano inteligível (e não no mundo fático) a ideia de justiça capaz de subsidiar leis coerentes com a cidade ‘ideal’. Neste sentido, a Filosofia de Direito de Platão pode ser classificada como idealista. Algumas teses acerca da Filosofia do Direito de Aristóteles A justiça é uma espécie de meio-termo, mas não no mesmo sentido que as outras virtudes, e sim porque ela serelaciona com uma quantia ou quantidade intermediária, ao passo que a injustiça se relaciona com os extremos [...] Por esta razão a injustiça é excesso e falta [...]. (Ética a Nicômaco, 2001, V, 5, p. 115). Saiba mais sobre a concepção idealista Conforme Reale (2002, p. 118-119) “O idealismo de Platão (247-347 a. C.) poder-se-ia chamar idealismo transcendente, ou da transcendência, pois para o autor do Fedro as idéias ou arquétipos ideais representam a realidade verdadeira, da qual seriam meras cópias imperfeitas as realidades sensíveis, válidas não em si mesmas, mas enquanto participam do ser essencial [...] Os idealistas modernos partem da afirmação de que as coisas não ‘existem’ por si mesmas, mas na medida e enquanto são representadas ou pensadas, visto como só podemos falar aquilo que se insere no domínio de nosso espírito e não das coisas como tais, distintas de como as percebemos. Nada, em suma, pode ser, sem ser necessariamente percebido ou pensado.” filosofia_do_direito.indb 61 12/07/12 13:31 62 Universidade do Sul de Santa Catarina Vários textos de Aristóteles (384-322 a.C.) apresentam contribuições para compreender a Filosofia do Direito deste pensador. Nader (2006) destaca duas obras capitais de Aristóteles que abrangem a Filosofia do Direito: Ética a Nicômaco e Política. Nader também sintetiza que na obra Ética a Nicômaco, “o estagirita formulou a teorização da justiça e equidade, considerando-as sob o prisma da lei e do Direito.” (2006, p. 110). Acerca das duas obras de Aristóteles já mencionadas, Ética a Nicômaco e Política, Morris (2002, p. 6) destaca que “A primeira, considerada a mais madura, desenvolve uma teoria da justiça que não é tratada pela última.” Destas obras, as principais reflexões sobre o direito têm abrigo no Livro V da Ética a Nicômaco e nos Livros I e II da obra Política (Morris, 2006). Feitas estas considerações introdutórias, atente que não nos estenderemos na filosofia de Aristóteles, mas apenas em algumas teses pertinentes à justiça – tomando como referência a obra Ética a Nicômaco. Acompanhe. O homem se torna (in)justo por meio da prática de atos (in) justos. O homem é injusto ao infringir a lei, ao ser ganancioso e ímprobo, ao ser sem lei. O homem é justo ao ser honesto, probo, ao cumprir e respeitar a lei. A lei, sobre todos os assuntos, visa à vantagem comum, o bem comum, de todos. A lei bem elaborada contribui para produzir e preservar a felicidade dos cidadãos; contribui para a prática de atos virtuosos. A lei visa à prática das virtudes e à proibição de qualquer vício. O propósito do legislador é, por meio da lei, incutir hábitos pertinentes ao bom cidadão. Neste sentido, a lei é considerada boa, ou ruim, à medida que, respectivamente, alcança sua meta, ou falha. O juiz, magistrado, intermediador, mediador, é guardião da justiça, da lei. Por outro lado, o juiz pode decidir injustamente, por ignorância (no sentido legal), ou por conhecimento de causa (que evidencia um excesso inadmissível). Figura 2.2 - Aristóteles. Fonte: O Globo (2006). filosofia_do_direito.indb 62 12/07/12 13:31 63 Filosofia do Direito Unidade 2 A justiça, algo essencialmente humano, pode ser considerada a maior das virtudes. Tal caráter é evidenciado por a justiça requerer o exercício de outras virtudes e por ela ser aplicável ao próprio agente e aos demais cidadãos (seja um governante ou um membro humilde). Nesta perspectiva, a justiça é perfeita, porque é aplicável a si próprio e aos outros. Por outro lado, a injustiça identifica-se com o que é contrário à virtude, como um vício. A justiça é compreendida como meio-termo e a injustiça como extremos que devem ser evitados. Aristóteles defende a aplicação da regra do meio-termo para encontrar o ato justo. Dadas duas ações contrárias, radicais e extremas, marcadas pelo excesso ou pela falta, a justiça é a escolha deliberada de equilibrá-las. Ou seja, a justiça é um meio-termo entre estas duas injustiças, entre estes dois vícios. Por exemplo, após a realização de certo trabalho é pertinente que o empregado receba uma compensação justa do empregador. Esta compensação, por sua vez, não deve ser ínfima (marcada pela falta) e nem exagerada (marcada pelo excesso). A distinção entre ação voluntária e ação involuntária é útil ao legislador para, considerando a justiça, reconhecer a pertinência de honras ou de castigo. O caráter voluntário ou involuntário é evidenciado no momento da ação do agente. A ação voluntária tem o próprio homem como motor, princípio. Tal ação é contextualizada pela possibilidade de praticar, ou não, tal ação, com o conhecimento de causa (pessoas afetadas pelo ato; instrumento usado; o fim a ser alcançado). Já a ação involuntária ocorre por compulsão ou coação do agente (situação em que o próprio homem não é seu motor, seu princípio) ou por ignorância (por desconhecimento do próprio agente). Um ato de (in)justiça pode ocorrer de modo acidental. Acidentalmente, é viável participar de um ato (in)justo. Tal caráter acidental pode estar associado a uma ação ou a uma inação. Tal caráter acidental é, geralmente, involuntário. filosofia_do_direito.indb 63 12/07/12 13:31 64 Universidade do Sul de Santa Catarina Existem duas espécies de justiça particular: a justiça distributiva e a justiça corretiva. Acompanhe. Justiça Particular Características Distributiva A justiça distributiva baseia-se na ideia de proporcionalidade geométrica, na igualdade de razões, na consideração de, pelo menos, quatro termos, em que se estabelece uma relação equivalente entre as pessoas e as coisas. Assim, o justo decorre como meio- termo. Refere-se, por exemplo, à distribuição de bens ou de coisas, considerando a contribuição de cada um na produção destes. Corretiva A justiça corretiva baseia-se na proporcionalidade aritmética. Considerando um delito praticado, ou seja, uma relação desigual (nas relações entre indivíduos), a lei visa restabelecer a ‘igualdade’. Para tanto, o juiz procura igualar o dano em litígio por meio de pena (para o ofensor) ou de ganho (para o ofendido). Neste tipo de justiça, a igualdade ocorre pelo estabelecimento do meio-termo entre perda e ganho. A justiça corretiva visa equiparar vantagens e desvantagens, decorrentes de relações voluntárias e involuntárias. Quadro 2.1 – Duas espécies de Justiça Particular Fonte: Pacheco (2010). A justiça particular corretiva ainda pode ser especificada como voluntária ou involuntária. A justiça particular corretiva voluntária abrange atos de compras e vendas, empréstimos, penhor, depósito, locação. A justiça particular corretiva involuntária abrange atos de furto, adultério, envenenamento, lenocínio, engodo, falso testemunho; agressão, sequestro, assassinato, roubo, mutilação, injúria e ultraje. A justiça política existe para os homens livres e iguais que são regidos, mutuamente, pela lei. Ela também existe ante a possibilidade de que ocorra uma injustiça. A justiça política pode ser distinta como natural e legal. filosofia_do_direito.indb 64 12/07/12 13:31 65 Filosofia do Direito Unidade 2 Justiça Particular Características Natural (por natureza) A justiça política natural é aquela que apresenta a mesma força em todos os lugares, independentemente de posições pessoais. Legal (por convenção) A justiça política legal é determinada, indiferentemente, em alguns lugares, enquanto que em outros não, e é evidenciada nas leis promulgadas para casos particulares. Quadro 2.2 – Duas espécies de Justiça Política Fonte: Pacheco, (2010). A equidade é uma espécie de justiça. A equidade é aplicável quando a lei, por sua generalidade, universalidade, caráter absoluto, não contempla um caso particular. Neste sentido, a aplicação da equidade visaà correção da justiça legal, visa à decisão ‘correta’ para um caso particular. Ou seja, a equidade apela para a justiça, com o intuito de corrigir a lei. Aristóteles relaciona a noção de equidade a uma régua adaptável, de chumbo, usada por construtores de Lesbos para ajustar as molduras. A Filosofia do Direito de Aristóteles reconhece na realidade, nos atos, nos fatos, na esfera do humano, nas relações estabelecidas entre homens, um escopo privilegiado para pensar o direito, a lei, etc. Assim, embora Aristóteles não faça referência conceitual à ‘matéria’, sua Filosofia do Direito pode ser classificada como materialista. Conforme esta interpretação, matéria tem o sentido de algo que existe e que está na base das reflexões sobre o Direito. Figura 2.3 - A equidade é tal e qual a régua de chumbo de Lesbos. Fonte: Pacheco (2010). filosofia_do_direito.indb 65 12/07/12 13:31 66 Universidade do Sul de Santa Catarina Saiba mais sobre a concepção de realidade Conforme Reale (2002, p. 116-117) o realismo “É a orientação ou atitude espiritual que implica a preeminência do objeto, dada a sua afirmação fundamental, de que nós conhecemos coisas. Daí o emprego da palavra ‘realismo’, que diz respeito à ‘coisa’ (res) reconhecida como independente da consciência. Os idealistas, ao contrário, não obstante todas as suas variações, apegam-se à tese fundamental de que não conhecemos coisas, mas sim representações de coisas ou as coisas enquanto representadas [...] O realismo é a atitude natural do espírito humano [...] Quando o realismo indaga de seus fundamentos e procura demonstrar que suas teses são verdadeiras, é que surge propriamente a atitude filosófica, que não deixa, porém, de ser ‘atitude natural’, como tendência comum do espírito humano. Poderíamos denominá-lo realismo tradicional, visto como a corrente que sustenta tal maneira de ver é aquela que invoca a tradição clássica, de Aristóteles aos nossos dias.” Algumas teses acerca da Filosofia do Direito de Hobbes “[...] os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito.”. (HOBBES, 2000, p. 108). Uma das teses centrais do pensamento filosófico de Hobbes (1588 – 1679), e que possui decisiva influência na construção das discussões em Filosofia do Direito, versa a respeito da origem do Estado e/ou da Sociedade Civil. Hobbes não admitia que a sociedade possuísse uma origem natural, que houvesse no ser humano uma disposição natural para viver com os outros, como compreendia a consolidada tradição aristotélica: o ser humano como zoon politikon (animal social). Figura 2.4 – Leviatã. Fonte: E-book-Hobbes (2009). Como um dos mais importantes representantes da concepção contratualista, Hobbes concebia esta tese a partir da célebre obra Leviatã . Segundo Abbagnano (1998), “com esse nome, de um monstro bíblico (Jó, 40, 20), Hobbes denominou ‘o Estado’, a origem da Sociedade Civil diferentemente da Clássica (aristotélica) filosofia_do_direito.indb 66 12/07/12 13:31 67 Filosofia do Direito Unidade 2 O autor considerava, por outro caminho, a origem da Sociedade Civil fundada num Contrato, num Pacto, entre os seres humanos. Porém, para nossos estudos, tal origem somente pode ser compreendida, ao menos, por meio de dois conceitos: condição humana e estado de natureza. Desse modo, vamos investigar alguns aspectos que constituem esses dois conceitos. Acompanhe. Você, certamente, reconhece a expressão “o homem é lobo do homem”. Isso mesmo!! Hobbes usa essa expressão no Leviatã, não apenas para expressar a miséria da condição humana, mas, principalmente, para denominar tal condição no estado de natureza. Como podemos entender, portanto, a relação entre a expressão “o homem é lobo do homem” e o estado de natureza? Para Hobbes, os seres humanos eram naturalmente iguais nas capacidades do corpo (física) e do espírito e, por isso, todos igualmente tinham a esperança de alcançar seus objetivos, seus desejos. Entretanto, como bem aponta Renato Janine Ribeiro, Hobbes “não afirma que os homens são absolutamente iguais, mas que são ‘tão iguais que[...]’: iguais o bastante para que nenhum possa triunfar de maneira total sobre o outro” (RIBEIRO, 1989, p.55). Neste sentido, é importante você compreender que dessa condição derivará um conflito natural. Portanto: Se havia igual esperança entre os seres humanos na realização de seus desejos, havia também limites para tal realização. Hobbes afirmava: “se dois homens desejam a mesma coisa, da qual não obstante, ambos não podem desfrutar, eles se tornam inimigos.”(HOBBES, 1988, p.108). filosofia_do_direito.indb 67 12/07/12 13:31 68 Universidade do Sul de Santa Catarina Ora, esse é um dos emblemas mais nítidos da relação entre condição humana e estado de natureza, em Hobbes. Se, para alcançar seus desejos, o outro era sempre uma ameaça, gerava-se disso uma desconfiança mútua. A saída mais razoável era, então, atacar antes de ser atacado. A isso Hobbes chamava antecipação e serve-nos como indicativo da brutalidade do estado de natureza: “a guerra de todos contra todos”. Com medo da morte violenta, preocupado em conservar a própria vida, o ser humano vivia da imaginação e se lançava a subjugar o outro, antecipando o ataque: melhor atacar antes, para que outro não o faça, não é mesmo!!? Nesta situação, pouco sobrava ao ser humano, como ressaltava Hobbes: “E a vida do homem é solitária, sórdida, embrutecida e curta.”(HOBBES, 1988, p.109). É preciso ter cuidado ao interpretar esta situação. Parece equivocado atribuir ao ser humano uma natureza má. Cuidado!!! A miserabilidade da condição humana, em Hobbes, não nos leva, necessariamente, à consideração de que o ser humano seja mau por natureza. A afirmação “o homem é o lobo do homem” não quer dizer que este seja mau. Significa, numa medida, que o ser humano usará de todos os meios para alcançar o que deseja, e isso lhe é garantido pelo direito de natureza, conforme afirma Hobbes: “o direito de natureza é a liberdade que cada homem tem de usar seu próprio poder, como quiser, para a preservação de sua própria natureza, o que vale dizer, de sua própria vida.” (HOBBES, 1988, p.113). Contudo repare que se levarmos esta afirmação às últimas consequências, a vida em sociedade não teria sentido, pois o que imperaria seria o medo e a lei do mais forte. Mas seria uma vida assim possível? Suportaria o ser humano viver no estado de natureza? Certamente não, mas, para compreendermos isso, é importante considerarmos outras características do estado de natureza hobbesiano. filosofia_do_direito.indb 68 12/07/12 13:31 69 Filosofia do Direito Unidade 2 O estado de natureza era, para Hobbes, um estado hipotético, isto é, não havia comprovação de sua existência, nem era um estado primitivo, se você achar que isso se refere à “vida das cavernas” ou coisa parecida. Não é isso!! Como você pôde ver anteriormente, o estado de natureza era a guerra de todos contra todos, e duas consequências, ao menos, decorriam disso, como precisamente definiu Hobbes: Note que, no estado de natureza, não há lugar para a legitimidade, nem para a lei, nem para o Direito. Assim, seu caráter hipotético é secundário para respondermos às questões anteriormente postas, já que podemos admitir que o ser humano que vive em sociedade é o mesmo do estado de natureza, como bem nota Renato Janine Ribeiro (RIBEIRO, 1989). Eis o ser humano do estado de natureza, segundo Hobbes. Então poderíamos admitir que as causas dos conflitos humanos não estariam na sociedade, mas decorreriam de sua própria condição, como a competição, a segurança e a glória? 1. “Nadapode ser injusto. As noções de certo e errado e, de justiça e injustiça não têm lugar aí. Onde não há poder comum, não há lei; onde não há lei, não há injustiça.” (HOBBES, 1988, p.110). 2. “Não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; mas será de cada homem apenas o que ele puder pegar e durante o tempo que puder conservá-lo.” (HOBBES, 1988, p.110). filosofia_do_direito.indb 69 12/07/12 13:31 70 Universidade do Sul de Santa Catarina Hobbes concebia que os conflitos em sociedade eram consequência da condição humana. Continuando este raciocínio, fica a pergunta: Isto justificaria, num sentido, a necessidade de um Contrato que determinasse um poder comum para regular a vida dos seres humanos em sociedade? Somente um pacto que administrasse os interesses individuais resultaria numa vida adequada? A organização da sociedade se constituía, em Hobbes, em função da necessidade, como é o caso do medo da morte violenta. Daí a constituição do Poder Soberano, o Estado, o qual impusesse respeito pela força legitimada que administrasse as paixões humanas. Segundo Renato Janine Ribeiro (RIBEIRO, 1989, p. 62), Hobbes desenvolve a ideia de que, no Estado, deve haver um poder soberano capaz de resolver todos os conflitos. A sociedade nasce, assim, com o Estado. O esquema seguinte contempla algumas peculiaridades da concepção de estado de natureza e de estado civil, segundo Hobbes: ESTADO DE NATUREZA SOCIEDADE CIVIL/ESTADO Os homens são iguais na esperança seus desejos Compe�ção, segurança e glória Guerra de todos contra todos Não há Lei, Jus�ça e Propriedade Vida sórdida, embrutecida e solitária Os homens são iguais na esperança de alcançar seus desejos Paz e segurança Contrato Social Estado absoluto (Leviatã) Hobbes e o Leviatã de alcançar Leis Paz e segurança Figura 2.5 – Esquema ilustrativo da passagem do estado de natureza para a Sociedade Civil Fonte: Dimas (2010). filosofia_do_direito.indb 70 12/07/12 13:31 71 Filosofia do Direito Unidade 2 Ainda, você já pensou no que legitimaria um poder comum? Falar num poder comum centralizado no poder absoluto do Estado parece, em princípio, ser paradoxal, pois excluiria a liberdade e a igualdade. Para Renato Janine Ribeiro (RIBEIRO, 1989), Hobbes desmontará o valor retórico desses termos, tão caros ao Direito. Como você viu anteriormente, igualdade entre os seres humanos é geradora de conflitos constantes; a liberdade, define Hobbes (HOBBES, 1988, p.113, capítulo XIV), é a “ausência de impedimentos externos; impedimentos estes que, com freqüência, tiram parte do poder do homem de fazer o que faria; mas que não podem impedi-lo de usar o poder que lhe restou, de acordo com o que seu julgamento e razão lhe ditarem.” Algumas teses acerca da Filosofia do Direito de Kant O Direito é o conjunto de condições sob as quais o arbítrio de um pode ser conciliado com o do outro segundo uma lei universal de liberdade. (KANT, 1785 apud LOPARIC, 2003, p. 5). A concepção kantiana de Direito encontra-se formulada nas obras Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Crítica da Razão Prática (1788), Sobre a Paz Perpétua (1795), Princípios metafísicos da Doutrina do Direito (1797) e Metafísica dos Costumes (1797). No entanto a obra filosófica de Kant é muito mais abrangente, incluindo uma reflexão profunda sobre os limites do conhecimento (tema da obra Crítica da Razão Pura, de 1781) e uma análise dos nossos juízos de valor (tema da obra Crítica do Juízo, de 1790). A proposta fundamental de Kant é a de fazer uma avaliação dos limites e possibilidades do uso da razão. Em particular, Kant propõe uma averiguação da possibilidade de se usar a razão como fundamento do Direito. A partir dessa análise, Kant formulou uma das mais influentes concepções teóricas do Direito. Figura 2.6 - Kant.Fonte: Schriftman (2008). filosofia_do_direito.indb 71 12/07/12 13:31 72 Universidade do Sul de Santa Catarina Ainda que de forma breve e resumida, vamos a seguir discutir as principais teses da Filosofia do Direito de Kant, tomando como referência a obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Acompanhe. A razão nos possibilita conhecer aos princípios universais. A razão é a capacidade humana de conhecer as leis universais que regem os fenômenos. Neste sentido, ela é diferente da experiência. Enquanto a experiência nos permite conhecer casos particulares e determinações arbitrárias, a razão nos permite encontrar os princípios invariáveis os quais nos ensejam conhecer a realidade e dar sentido a ela. Perceber que uma pedra, ao cair, se desloca de forma diferente de uma pena caindo é algo que fazemos usando a experiência. Identificar que são exatamente os mesmos fatores que determinam a ocorrência desses dois fenômenos (força gravitacional, resistência do ar, atrito, densidade, etc.) é um trabalho da razão. Portanto: a experiência nos permite perceber tudo aquilo que pode variar, que é relativo, que depende do contexto, que envolve a subjetividade ou que depende de fatores pessoais, históricos ou culturais; a razão, ao contrário, nos permite transcender as variáveis e formular aquilo que é objetivo e necessário em cada situação. Distinção entre razão pura, razão teorética e razão prática. A razão, enquanto faculdade humana, é uma só. No entanto, ela pode ser aplicada a situações diferentes. Quando nos referimos à razão independente de qualquer aplicação, podemos chamá-la de razão pura. Mas há, basicamente, duas aplicações gerais para a razão: o conhecimento do mundo físico através da ciência (que Kant chama de uso teorético da razão) e o conhecimento daquilo que envolve a liberdade humana (uso prático da razão). O uso prático da razão se realiza na descoberta dos fatores universais que interferem nas escolhas humanas, tanto por motivos e condicionamentos internos (subjetivos) quanto por motivos e condicionamentos externos (em sua relação com outras pessoas). filosofia_do_direito.indb 72 12/07/12 13:31 73 Filosofia do Direito Unidade 2 A razão prática lida com valores. Sendo a razão a capacidade humana de determinar aquilo que é universal, compete à razão prática identificar o que há de universal nas ações humanas livres. A liberdade manifesta-se através das escolhas, as quais são realizadas a partir de critérios e valores – ou seja, a partir daquilo que, por algum motivo e num determinado contexto, consideramos ser a melhor opção. Haveria, no entanto, algo que pudesse ser considerado incondicionalmente bom? A “boa vontade” é o princípio fundamental da razão prática. Quando consideramos aquilo que nos dá prazer, ou que, de alguma forma, nos satisfaz, percebemos que não é possível chegar a nenhum consenso. A experiência parece nos mostrar que tudo aquilo que numa determinada situação representaria um bem, num outro contexto poderia ser indesejável ou mesmo danoso. Assim, tem-se a impressão de que todos os bens são relativos. No entanto Kant identifica na própria vontade do sujeito um valor capaz de superar esse relativismo: a boa vontade. A boa vontade é a vontade de fazer a melhor escolha, é a vontade de agir da melhor forma possível, é a vontade de fazer o que é certo. Segundo Kant, essa vontade de agir corretamente é a única coisa que pode ser considerada incondicionalmente boa. Diz ele na Fundamentação da Metafísica dos Costumes: “Neste Mundo, e até mesmo fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade.” (KANT, 1988, p. 21). A razão prática lida com imperativos. Toda ação livre requer motivos para se concretizar. Os motivos da ação costumamser ou a busca de um prazer ou a tentativa de evitar uma situação desagradável. No entanto, por decorrerem da experiência, tais motivos não caracterizam uma escolha racional. A racionalidade só é alcançada quando o indivíduo percebe a ocorrência de certas regularidades na forma de agir que é capaz seja de propiciar o prazer buscado seja de evitar o mal do qual se quer fugir. A partir do momento em que percebemos que “toda vez que alguém faz filosofia_do_direito.indb 73 12/07/12 13:31 74 Universidade do Sul de Santa Catarina ‘x’, consegue ‘y’”, é possível formular uma regra do tipo: “se eu quero ‘x’, então devo fazer ‘y’”. Esse tipo de proposição usando o verbo “dever” recebe o nome técnico de ‘imperativo’. Os imperativos não são, propriamente falando, leis universais – mas funcionam como se fossem. E é exatamente essa possibilidade de tratar os imperativos como se fossem leis universais que assegura o uso prático da razão. No nosso dia a dia, a maior parte dos imperativos tem a forma de um condicional – ou seja, estes sempre partem de um “se”: “se quero isso, então devo fazer aquilo”. Os imperativos que começam com “se” são denominados imperativos hipotéticos. No entanto a razão é capaz também de formular imperativos incondicionados, os quais se tornam obrigatórios a todo ser movido pela boa vontade: trata-se dos imperativos categóricos. Haveria algum imperativo que pudesse ser considerado incondicionado? O “imperativo categórico” é o principal resultado da aplicação da boa vontade. Um imperativo só poderia ser considerado incondicionado se ele pudesse ter uma validade universal, ou seja, se pudesse ser válido em toda e qualquer situação. Segundo Kant, esse requisito pode ser alcançado quando formulamos o seguinte imperativo: devo agir de tal modo que minha ação possa ser reconhecida como modelo de correção para toda e qualquer pessoa movida pela boa vontade. O imperativo categórico é único. No entanto ele pode ser formulado de diversas formas, sem alterar o seu conteúdo. filosofia_do_direito.indb 74 12/07/12 13:31 75 Filosofia do Direito Unidade 2 Veja como Kant o formula em diferentes formas na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 1988, p.59): “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza.” As formulações do imperativo categórico partem sempre da boa vontade e a ela retornam. Ou seja, o imperativo categórico é fruto da aplicação da boa vontade e propõe, justamente, que a boa vontade seja o critério de avaliação de todos os nossos atos livres. Sendo assim, ele pode ser entendido como uma proposta de universalização da boa vontade. Com o imperativo categórico, a razão prática, até então meramente formal, passa a ter um conteúdo. O imperativo categórico nos permite agir com autonomia. Algumas das nossas ações não são totalmente livres. Ainda que sejamos dotados de liberdade, em muitas situações agimos por obediência a uma determinação alheia. Quando obedecemos a uma ordem, ou quando fazemos alguma coisa para agradar a outras pessoas, ou mesmo quando adequamos a nossa vontade a determinações culturais, estamos de alguma forma sendo influenciados por uma vontade alheia. A isso, Kant dá o nome de heteronomia. E, mesmo quando agimos sem uma influência externa, muitas vezes guiamos as nossas escolhas por elementos subjetivos que fogem à nossa deliberação. É o que ocorre quando agimos sob a influência das paixões (amor ou ódio, por exemplo) ou das necessidades fisiológicas (fome, sono, etc.). Também nesses casos a nossa ação envolve a heteronomia. A plena liberdade, realização máxima do ser humano, só é alcançada quando agimos com autonomia. A autonomia é a ausência de qualquer determinação alheia à vontade. É o exercício da escolha puramente racional. O conceito de autonomia remonta a Sócrates e Platão, que já a definem como a ação guiada pela razão, em oposição à ação motivada por desejos, apetites ou sentimentos. filosofia_do_direito.indb 75 12/07/12 13:31 76 Universidade do Sul de Santa Catarina O conceito de autonomia da vontade permite estabelecer uma correspondência plena entre liberdade e lei moral. A ideia de autonomia é princípio fundamental da moralidade. Associada à noção de imperativo categórico, a ideia de autonomia permite formular a noção de vontade legisladora universal, que, por sua vez, pode servir de critério para todos os juízos a respeito da ação correta. Você já pensou na concepção de Direito em Kant? A razão prática é a base do direito. Como você viu anteriormente, a razão prática, ou seja, o uso prático da razão, envolve tanto o indivíduo em relação aos seus motivos e condicionamentos internos (subjetivos) quanto os motivos e condicionamentos externos (em sua relação com outras pessoas). O uso prático da razão se manifesta na busca dos fatores universais (subjetivos e intersubjetivos) que interferem nas escolhas humanas. Tomando o indivíduo isoladamente, a razão prática possibilita a identificação da boa vontade, fundamento da ética, e a formulação do imperativo categórico como expressão máxima da autonomia. No que diz respeito ao direito propriamente, pode-se afirmar que este surge quando saímos do plano individual e levamos em consideração a existência dos outros seres humanos, igualmente racionais e autônomos. No entanto essa consideração do “outro” não provoca nenhuma ruptura no tratamento dado à identificação do certo e do errado. Ao contrário, o direito nada mais é do que a ampliação dos princípios da ética. Confira a seguir uma breve explanação da concepção kantiana de Direito, feita por Almeida (2006): filosofia_do_direito.indb 76 12/07/12 13:31 77 Filosofia do Direito Unidade 2 A concepção de Direito de Kant Na concepção de Kant, o Direito baseia-se em dois princípios [...]: o princípio de avaliação (principium diiudicationis) e o princípio de execução (principium executionis) das ações conformes ao direito (recht). O primeiro está formulado da seguinte maneira: “Toda ação é direita (ou conforme ao direito, recht) se ela, ou a liberdade do arbítrio segundo a sua máxima, pode coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal.” Kant dá a esse princípio o nome de “princípio universal do Direito”, presumivelmente porque: 1) estipula um critério para a aplicação do predicado “direito”, servindo assim de fundamento para todos os juízos particulares com que avaliamos a conformidade de nossas ações ao Direito; e também porque: 2) é um princípio fundamental tanto para o Direito privado quanto para o Direito público, que são as duas partes em que se divide o Direito. O segundo princípio, Kant enuncia-o da seguinte maneira: “Age externamente de tal maneira que o uso livre do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal”. Kant denomina-o “lei universal do Direito”, certamente porque, na sua terminologia, as leis (práticas) são proposições que apresentam uma ação como objetivamente necessária para todo agente dotado de razão. Além disso, visto que essa ação é subjetivamente contingente para agentes imperfeitamente racionais, que nem sempre fazem o que a razão lhes apresenta como objetivamente necessário, Kant formula essa “lei universal do Direito” como um imperativo, que é a forma pela qual as leis práticas se apresentam a um arbítrio imperfeitamente racional. Fonte: Almeida (2006, p. 210-211). Vê-se, dessa forma, que o Direito se aplica às ações de cada indivíduo, na medida em que elas interferem nas ações de outros indivíduos. Mas é preciso deixar claro aqui que se trata ainda de uma concepçãoformal de direito: tal como está formulado, o direito considera unicamente a forma da relação entre indivíduos racionais e autônomos e a sua compatibilidade com leis universais. Estamos ainda no nível do Direito racional. filosofia_do_direito.indb 77 12/07/12 13:31 78 Universidade do Sul de Santa Catarina E sobre o Direito Positivo? O que você sabe a respeito? A existência do Estado civil é uma necessidade da razão prática. A única forma de associação humana compatível com a ideia formal de direito apresentada por Kant é a reunião de indivíduos submetidos às mesmas leis jurídicas a partir de um consenso geral. Dessa forma, a Filosofia do Direito de Kant desemboca numa perspectiva política contratualista. O que dá legitimidade ao Estado civil é o contrato social. Nesse sentido, a finalidade do Estado e da legislação positiva é a tutela do direito (em sua concepção formal) e terá cumprido a sua função quando assegurar a todos o exercício da autonomia. As leis positivas devem ser obedecidas, na medida em que são decorrentes do contrato social. No entanto essa obrigação de obediência à lei civil é limitada pela ética. Para que se garanta a autonomia, é preciso assumir que as leis positivas são subordinadas aos princípios formais do direito. A formação de um Estado único é uma meta a ser perseguida. Segundo Kant, a plena realização do direito, em seu sentido formal, exige a superação dos limites políticos. A construção de um Estado único é uma vocação da humanidade, uma meta a ser buscada. Nesse sentido, as relações internacionais também devem ser regidas pela boa vontade e pelos mesmos princípios do direito formal. Na medida em que o Estado não é uma propriedade, não pode ser adquirido, vendido, permutado e nem mesmo herdado. E, mais que isso, não é legítima qualquer intromissão violenta nas questões internas de outro Estado. E, mesmo no caso de disputas e conflitos entre Estados, a boa vontade e a ação conforme o dever não podem ser desconsideradas. Assim, até mesmo na guerra devem ser respeitados certos limites, tais como a não violação dos direitos humanos e o respeito aos tratados (como por exemplo, às tréguas mutuamente acertadas). Lembre-se do que você estudou sobre o contrato social anteriormente, nesta mesma seção. A teoria kantiana sobre as relações internacionais é tratada por Kant, fundamentalmente, na obra A Paz Perpétua. filosofia_do_direito.indb 78 12/07/12 13:31 79 Filosofia do Direito Unidade 2 Herdeiro da tradição moderna (que inclui as contribuições dos contratualistas e, em especial, de Rousseau), Kant realizou uma renovação na Filosofia do Direito que influenciou profundamente as discussões posteriores. Com Kant, a luta pelos direitos humanos e pelos ideais republicanos, o combate ao absolutismo e a defesa do Estado de direito ganham uma fundamentação mais rigorosa. Com ele, a Escola do Direito Natural alcança a maturidade e se torna Escola do Direito Racional. Portanto a Filosofia do Direito de Kant não parte nem de uma ideia abstrata de justiça nem do Direito enquanto fato concreto. O ponto de partida de Kant é a crítica da razão e a análise da própria noção de direito. Neste sentido, a Filosofia de Direito de Kant pode ser classificada como crítica. Algumas teses acerca da Filosofia do Direito de Rawls A justiça é a virtude primeira das instituições sociais, tal como a verdade o é para os sistemas de pensamento. Uma teoria, por mais elegante ou parcimoniosa que seja, deve ser rejeitada ou alterada se não for verdadeira; da mesma forma, as leis e as instituições, não obstante o serem eficazes e bem concebidas, devem ser reformadas ou abolidas se forem injustas. (RAWLS, 1993, p. 27). Embora ainda não possa ser considerado um clássico, John Rawls é uma das principais referências da Filosofia do Direito contemporânea, e sua obra é fruto de uma análise madura e profunda dos ideais e das realizações políticas do século XX. Ao longo de sua formação intelectual, nas décadas de 40, 50 e 60, Rawls acompanhou os debates acerca de qual seria o modelo econômico mais justo (o socialismo, o liberalismo econômico americano, o wellfare-state britânico, etc.); acompanhou as discussões sobre os limites e possibilidades da democracia, bem como as críticas aos modelos políticos totalitários, e aprofundou seus estudos sobre os fundamentos teóricos da política e do direito. Figura 2.7 - John Rawls Fonte: Negron (2009). John Rawls (EUA, 1921 - 2002) foi professor na Universidade de Harvard e escreveu, entre outras obras, Uma Teoria da Justiça (A Theory of Justice, 1971), Liberalismo Político (Political Liberalism, 1993) e O Direito dos Povos (The Law of Peoples, 1999). filosofia_do_direito.indb 79 12/07/12 13:31 80 Universidade do Sul de Santa Catarina A importância da sua obra decorre da sua habilidade em formular, de forma equilibrada e bem fundamentada, uma proposta capaz de conciliar a tradição iluminista da modernidade europeia e os ideais democrático-republicanos dos americanos com os clamores por justiça social que eclodiram ao longo do século XX. As ideias fundamentais da concepção de justiça de Rawls encontram-se formuladas na obra Uma Teoria da Justiça (1971). É fundamentalmente essa obra que servirá de base para a breve análise que faremos a seguir das principais teses desse autor, relativas à Filosofia do Direito. Acompanhe. Três pressupostos fundamentais. A teoria da justiça rawlsiana parte de três pressupostos fundamentais: a) escassez moderada dos recursos, que faz com que ocorra um conflito permanente entre indivíduos. Essa escassez decorre de uma limitação dos recursos naturais associada ao desejo ilimitado de posse pelos indivíduos. Uma teoria da justiça não teria sentido em uma situação de abundância plena nem em uma situação de escassez absoluta; b) reconhecimento do fato do pluralismo, ou seja, a aceitação de que existe um desacordo irredutível a respeito da ideia de bem e uma decorrente variedade nos projetos racionais de vida; c) racionalidade e razoabilidade de todos os indivíduos. Uma teoria da justiça só se torna aplicável quando os indivíduos estão predispostos a cooperar e a fazer concessões negociadas. Nesse sentido, é necessária a racionalidade (enquanto capacidade de formular projetos de vida que levem em consideração adequação de meios a fins) e a razoabilidade (capacidade de perceber que os meus fins não são os únicos nem podem ser impostos aos demais). filosofia_do_direito.indb 80 12/07/12 13:31 81 Filosofia do Direito Unidade 2 É possível conciliar liberdade e igualdade. A proposta de Rawls para conciliar a justiça social com os princípios da tradição política ocidental é a concepção de justiça como equidade. Nessa proposta, a justiça social decorre de uma conjugação entre dois valores fundamentais: a liberdade e a igualdade. Apesar da inegável importância de tais valores para a cultura ocidental, a maioria das ideologias modernas trataram-nos como se fossem inconciliáveis na prática, sempre fazendo opção por um em detrimento do outro. Igual acesso aos bens primários sociais. Rawls considera a sociedade como um “esquema de colaboração” mútua entre os indivíduos. Essa colaboração só é possível a partir de bens sociais primários, a partir dos quais é possível produzir ou alcançar novos bens sociais. Segundo Rawls, os bens primários são aquelas coisas que se supõe todo homem racional desejar, independente de qualquer outra coisa que ele possa desejar de modo particular. “Os bens primários [...] são direitos, liberdades e oportunidades, assim como renda e riqueza”(RAWLS, 1997, p. 98). O objeto da teoria da justiça é a Estrutura Básica da Sociedade. Embora o objetivo da teoria da justiçaseja a realização de uma distribuição equitativa dos bens sociais primários, o foco da análise teórica deve ser direcionado à estrutura básica da sociedade, ou seja, às instituições que, em última análise, determinam direitos e deveres e repartem os bens e obrigações entre todos os cidadãos. Entre essas instituições fundamentais, Rawls enumera a constituição política, os principais acordos econômicos e sociais. Por exemplo, nas sociedades ocidentais, a proteção legal da liberdade de pensamento e de consciência, os mercados competitivos, a propriedade particular no âmbito dos meios de produção e a família monogâmica. filosofia_do_direito.indb 81 12/07/12 13:31 82 Universidade do Sul de Santa Catarina Quando as desigualdades sociais atingem a estrutura básica da sociedade, os seus efeitos são profundos e influenciam os projetos de vida dos indivíduos. Por isso, uma sociedade justa e bem ordenada é aquela em que a estrutura básica da sociedade promove o acesso equitativo aos bens sociais primários. A justiça como equidade. A proposta de Rawls, com a sua teoria da justiça, é determinar como os benefícios e encargos da sociedade podem (e devem) ser distribuídos entre os indivíduos de uma maneira razoável ou equitativa. A equidade é alcançada quando se consegue achar um ponto de equilíbrio razoável entre a igualdade e as diferenças. Assim, de maneira geral, a teoria de Rawls pode ser resumida da seguinte forma: Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima – devem ser distribuídos igualmente a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos. A injustiça, portanto, se constitui simplesmente de desigualdades que não beneficiam a todos. (RAWLS, 1997, p. 66). A partir da concepção de justiça como equidade ( justice as fairness), Rawls formula dois princípios fundamentais de justiça (RAWLS, 1997, p. 64): 1. cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais, que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras; 2. as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo: (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos. Veja no texto a seguir a origem dessas duas concepções de Rawls: Rawls utiliza os termos fair e fairness, que são de difícil tradução para o Português. filosofia_do_direito.indb 82 12/07/12 13:31 83 Filosofia do Direito Unidade 2 A posição original e o véu da ignorância: situação hipotética e princípio metodológico Rawls reivindica para os seus dois princípios de justiça um caráter de universalidade e generalidade. Segundo ele, tais princípios seriam aqueles que qualquer indivíduo racional escolheria, se pudesse fazer uma opção puramente racional. Se fizéssemos uma avaliação isenta, veríamos que os princípios de justiça ideais para alcançar a equidade seriam aqueles que pudessem ser acordados entre indivíduos concebidos como agentes morais desinteressados e sem conhecimento de suas respectivas situações reais de vida (incluindo raça, sexo ou condição econômica). Sendo assim, note que Rawls propõe uma situação hipotética, denominada “posição original”, na qual cada indivíduo desconhecesse totalmente a sua situação social (véu da ignorância). É essa situação hipotética – irrealizável, porém imaginável – que possibilita compreender a racionalidade e a universalidade dos princípios de justiça. Rawls procura formular uma teoria política da justiça que seja aplicável nos dias atuais. Tal como Kant, Rawls parte de um exame reflexivo e racional da justiça. Neste sentido, a Filosofia de Direito de Rawls pode ser classificada como crítica. Síntese Nesta unidade, você estudou algumas teses acerca da Filosofia do Direito de Platão. Entre elas, que a justiça identifica-se com a perfeição dos homens, que a justiça e a injustiça opõem-se, que os bons governantes visam cuidar dos governados e que o filósofo deve governar a cidade na qualidade de magistrado. Para tanto, os filósofos, governantes, magistrados formulam leis, considerando a ideia de bem como paradigma, como princípio filosofia_do_direito.indb 83 12/07/12 13:31 84 Universidade do Sul de Santa Catarina fundamental. O filósofo, enquanto juiz, não pode ser novo, mas mais idoso e testado aos limites e, ao julgar, precisa evitar que bens alheios sejam detidos ou que bens próprios sejam privados. Você também identificou algumas teses acerca da Filosofia de Direito de Aristóteles. Conheceu, nesta perspectiva, que o homem se torna (in)justo por meio da prática de atos (in)justos, e que a lei, sobre todos os assuntos, visa à vantagem comum, o bem comum. Identificou que o propósito do legislador é, por meio da lei, incutir hábitos pertinentes ao bom cidadão. A justiça, por sua vez, algo essencialmente humano, pode ser compreendida como meio-termo, e a injustiça é um extremo, um vício, a ser evitado. A justiça pode ser distinta como distributiva e corretiva, e a equidade procura invocar a justiça para atender as particularidades não contempladas na generalidade da lei. Você estudou também que Hobbes contribui para pensar o Direito, na medida em que aborda a origem do Estado e/ou da Sociedade Civil a partir de uma concepção contratualista. Aprendeu que o Direito para Kant pode ser entendido tanto em seu aspecto puramente formal quanto em sua realização positiva. O direito formal é uma decorrência do uso da razão prática e surge como uma extensão da boa vontade e do raciocínio que levou à formulação do imperativo categórico. Já o Direito positivo surge a partir da necessidade racional da constituição do Estado civil e torna-se legítimo, na medida em que possibilita o exercício da autonomia. Finalizando esta unidade, você estudou que a teoria da justiça de Rawls surge de uma tentativa de conciliar igualdade e liberdade e de construir uma teoria que, mesmo sendo formal e universal, possa ser aplicada no mundo contemporâneo – marcado pela diversidade cultural e pelo pluralismo das concepções de bem. Rawls estabelece em sua teoria aqueles elementos indispensáveis a uma concepção política de justiça, aplicável a uma sociedade bem ordenada: dois princípios de justiça (o da igualdade e o da diferença) que têm por objetivo garantir a equidade na distribuição dos bem sociais primários. filosofia_do_direito.indb 84 12/07/12 13:31 85 Filosofia do Direito Unidade 2 Atividades de autoavaliação Ao final de cada unidade, você realizará atividades de autoavaliação. O gabarito está disponível no final do livro-didático. Mas se esforce para resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará promovendo (estimulando) a sua aprendizagem. 1) Leia atentamente o texto a seguir. Demos ao homem de bem e ao mau o poder de fazerem o que quiserem. Sigamo-los e vejamos aonde a paixão os vai conduzir. Vamos surpreender o homem de bem avançando na mesma estrada que o outro, conduzido pelo desejo de ter cada vez mais, desejo que qualquer natureza segue como um bem, mas que a lei constrange pela força ao respeito pela igualdade. (Platão. A República). Tendo como referência o texto acima, analise as asserções abaixo. O homem de bem não faz o mesmo que o mau porque a lei constrange pela força o homem de bem a seguir a igualdade. Acerca desse enunciado, assinale a opção correta. a) ( ) As duas asserções são proposições verdadeiras, e a segunda é uma justificativa correta da primeira. b) ( ) As duas asserções são proposições verdadeiras, mas a segunda não é uma justificativa correta da primeira.c) ( ) A primeira asserção é uma proposição verdadeira, e a segunda é uma proposição falsa. d) ( ) A primeira asserção é uma proposição falsa, e a segunda é verdadeira. e) ( ) As duas asserções são proposições falsas. Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2005, p. 8). filosofia_do_direito.indb 85 12/07/12 13:31 86 Universidade do Sul de Santa Catarina 2) Leia atentamente o texto a seguir. O princípio que de entrada estabelecemos que devia observar-se em todas as circunstâncias, quando fundamos a cidade, esse princípio é, segundo me parece, ou ele ou uma das suas formas, a justiça. Ora nós estabelecemos, segundo suponho, e repetimo-lo muitas vezes, se bem te lembras, que cada um deve ocupar-se de uma função na cidade, aquela para a qual a sua natureza é mais adequada. (Platão. A República. Fundação Calouste Gulbenkian). No trecho apresentado acima, faz-se referência à justiça, na concepção platônica. Assinale a opção que contém a proposição verdadeira que sustenta o argumento usado por Platão para definir e justificar tal concepção: a) ( ) A igualdade natural predispõe o ser humano para a justiça e para o bem comum. b) ( ) Compartilhar tarefas e habilidades com nossos semelhantes é a base natural de uma cidade justa. c) ( ) A execução da função própria é uma exigência das convenções políticas como instrumentos jurídicos para a fundação das cidades. d) ( ) O ato de cada um fazer o que lhe é mais adequado por natureza é necessário para a formação de uma cidade justa. e) ( ) O interesse pessoal de cada um conduz naturalmente à implementação da justiça na cidade. Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2008, p. 7). 3) Leia atentamente o texto a seguir. A justiça é uma espécie de meio-termo, porém não no mesmo sentido que as outras virtudes, e sim porque se relaciona com uma quantia ou quantidade intermediária, enquanto a injustiça se relaciona com os extremos. E justiça é aquilo em virtude do qual se diz que o homem justo pratica, por escolha própria, o que é justo [...]. filosofia_do_direito.indb 86 12/07/12 13:31 87 Filosofia do Direito Unidade 2 Este trecho, extraído de uma obra clássica da filosofia ocidental, trata de uma discussão da justiça considerada como: a) ( ) simetria, dentro da filosofia estética de Platão. b) ( ) valor, no tridimensionalismo de Miguel Reale. c) ( ) medida, dentro da concepção rigorista e positivista de Hans Kelsen. d) ( ) virtude, dentro do pensamento ético de Aristóteles. e) ( ) contradição, na posição dialética entre justo e injusto, no pensamento de Karl Marx. Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2006, p. 9). 4) Identifique as passagens seguintes com ‘P’, os trechos que se referem à Filosofia de Direito de Platão; ou com ‘A’, os trechos que se referem à Filosofia de Direito de Aristóteles. Esta atividade visa ampliar sua compreensão acerca de cada uma destas Filosofias do Direito, a partir do expresso pelos próprios filósofos. a) ( ) “Ora o maior dos castigos é ser governado por quem é pior do que nós, se não quisermos governar nós mesmos. É com receio disso [...] que os bons ocupam as magistraturas, quando governam; e vão para o poder, não como quem vai tomar conta de qualquer benefício, nem para com ele gozar, mas como quem vai para uma necessidade [...] se houvesse um Estado de homens de bem, a que houvesse competições para não governar [...] tornar-se-ia então evidente que o verdadeiro chefe não nasceu para velar pela sua conveniência, mas pela dos seus subordinados.” (______, 2002, p. 34). b) ( ) “[...] os legisladores tornam bons os cidadãos por meio de hábitos que lhes incutem. Esse é o propósito de todos os legisladores, e quem não consegue alcançar tal meta, falha no desempenho de sua missão, e é exatamente neste ponto que reside a diferença entre a boa e a má constituição.” (______, 2001, p. 41). filosofia_do_direito.indb 87 12/07/12 13:31 88 Universidade do Sul de Santa Catarina c) ( ) “E acaso se arranjará prova maior do vício e da educação vergonhosa numa cidade do que serem necessários médicos e juízes eminentes, não só para as pessoas de pouca monta e os artífices, mas também para os que dão ares de terem sido criados em grande estadão? Ou, não julgas uma vergonha e um grande sinal de falta de educação ser-se forçado a recorrer a uma justiça importada de outrem, como se eles fossem amos e juízes, por fala de justiça própria? [...] vergonha ainda será maior do que esta, se uma pessoa não só passar a maior parte da vida nos tribunais, como réu ou como acusador, mas ainda, pela sua grosseria, for levada a gabar-se precisamente da sua habilidade de cometer injustiças, e capaz de arquitetar todas as partidas, de se escapar por todas as saídas e de se dobrar como uma cana para não apanhar o castigo, e isso por amor de coisas mesquinhas e insignificantes, ignorando até que ponto é mais belo e melhor modelar a sua vida [...].” (______, 2002, p. 98). d) ( ) “É evidente a maneira como devem ser distinguidos os significados de ‘justo’ e de ‘injusto’ que lhe correspondem, pois praticamente a maioria dos atos ordenados pela lei é constituída por aqueles que são prescritos tendo em vista a virtude considerada como um todo. De fato, a lei nos manda praticar todas as virtudes e nos proíbe de praticar qualquer vício, e o que tende a virtude como um todo são aqueles atos prescritos pela lei visando à educação para o bem comum.” (______, 2001, p. 107). e) ( ) “[...] o juiz [...] governa a alma por meio da alma, à qual não convém desde nova ser criada no convívio com as almas perversas nem ter percorrido todas as injustiças, cometendo-as ela mesma, de modo a poder conjecturar com precisão, pelo seu próprio exemplo, os crimes dos outros, tal como avaliava das doenças pelo seu corpo. Deve antes ser inexperiente e estar intacta dos maus costumes na juventude, se quer tornar-se perfeita, para julgar corretamente o que é justo. Por esse motivo é que as pessoas de bem, quando jovens, se mostram simples e fáceis de ludibriar pelos injustos, por não terem em si modelos com sentimentos iguais aos dos perversos [...] Por isso [...] o bom juiz não deve ser novo, mas idoso, tendo aprendido tarde o que é a injustiça, tendo-se apercebido dela sem a ter alojado na sua própria alma, mas tendo-a observado como coisa alheia nos outros, durante muito tempo, para que, servindo-se do saber, e não da experiência própria, compreenda o mal que ela é.” (______, 2002, p. 103). filosofia_do_direito.indb 88 12/07/12 13:31 89 Filosofia do Direito Unidade 2 f) ( ) “O justo é, por conseguinte, uma espécie de termo proporcional [...] Efetivamente, a proporção é uma igualdade de razões, e envolve no mínimo quatro termos [...] O justo envolve também no mínimo quatro termos, e a razão entre dois desses termos é a mesma que existe entre o outro par, pois há uma distinção equivalente entre as pessoas e as coisas. Desse modo, assim como o termo A está para B, o termo C está para D; ou alternando, assim como A está para C, B está para D. Por conseguinte, também o todo mantém a mesma relação para com o todo; essa combinação é efetuada pela distribuição, e se os termos forem combinados da maneira que indicamos, terá sido efetuado justamente. Temos então que a justiça distributiva é a conjunção do primeiro termo de uma proporção com o terceiro, e do segundo com o quarto, e o justo neste sentido é o meio-termo, e o injusto é o que viola a proporção, pois o proporcional é o intermediário, e o justo é o proporcional. Os matemáticos chamam esta espécie de proporção de geométrica,pois [...] o todo está para o todo assim como cada parte está para a parte correspondente. A justiça distributiva não é uma proporção contínua, visto que o segundo e o terceiro termo correspondem a alguém que recebe parte de algo e à participação na coisa, e não podemos obter um termo único que represente uma pessoa e uma coisa.”. (______, 2001, p. 109). g) ( ) “Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis e soberanos filósofos genuínos e capazes, e se dê esta coalescência do poder político com a filosofia, enquanto as numerosas naturezas que atualmente seguem um destes caminhos com a exclusão do outro não forem impedidas forçosamente de o fazer, não haverá tréguas dos males [...] para as cidades, nem sequer [...] para o gênero humano.” (______, 2002, p. 170). filosofia_do_direito.indb 89 12/07/12 13:31 90 Universidade do Sul de Santa Catarina h) ( ) “Outra espécie de justiça é a corretiva, que tanto surge nas transações voluntárias como nas involuntárias [...] não de acordo com a espécie de proporção que citamos, e sim de acordo com uma proporção aritmética. Com efeito, é indiferente que um homem bom tenha lesado um homem mau, ou o contrário, e nem se é um homem bom ou mau que comete adultério; a lei considera apenas o caráter distintivo do delito e trata as partes como iguais, perguntando apenas se uma comete e a outra sofre a injustiça, se uma é autora e a outra é vítima do delito. Sendo, então, esta espécie de injustiça uma desigualdade, o juiz tenta restabelecer a igualdade, pois também no caso em que uma pessoa é ferida e a outra infligiu um ferimento, ou a matou e a outra foi morta, o sofrimento e a ação foram desigualmente distribuídos, e o juiz tenta igualar as coisas por meio da pena, subtraindo uma parte do ganho do ofensor. O temo ‘ganho’ aplica-se geralmente a tais casos, embora não seja apropriado a alguns deles (por exemplo, à pessoa que inflige um ferimento), e ‘perda’ se aplica à vítima. De qualquer forma, uma vez estimado o dano, um é chamado perda e o outro, ganho. Assim, o igual é intermediário entre o maior e o menor, mas o ganho e a perda são respectivamente menores e maiores de modos contrários: maior quantidade de bem e menor quantidade do mau são ganho, e o contrário é perda; o meio-termo entre os dois é, como já vimos, o igual, que chamamos justo; portanto, a justiça corretiva será o meio-termo entre perda e ganho. Eis por que, quando ocorrem disputas, as pessoas recorrem ao juiz. Recorrer ao juiz é recorrer à justiça, pois a natureza do juiz é ser uma espécie de justiça animada, e as pessoas procuram o juiz como um intermediário, e em algumas cidades- Estado os juízes são chamados mediadores, na convicção de que, se os litigantes conseguirem o meio-termo, obterão o que é justo. Portanto, justo é um meio-termo já que o juiz o é. O juiz, então, restabelece a igualdade. Tudo ocorre como se houvesse uma linha dividida em partes desiguais e ele subtraísse a diferença que faz com que o segmento maior exceda a metade para acrescentá-la ao menor. E quando o todo foi igualmente dividido, os litigantes dizem que recebem ‘o que lhes pertence’ – isto é, obtiveram o que é igual.” (______, 2001, p. 110-111). filosofia_do_direito.indb 90 12/07/12 13:31 91 Filosofia do Direito Unidade 2 i) ( ) “[...] toda lei é universal, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares [...] o erro não está na lei nem no legislador, e sim na natureza do caso particular, já que os assuntos práticos são, por natureza, dessa espécie [...] Desse modo, a natureza do equitativo é uma correção da lei quando esta é deficiente em razão da sua universalidade.”. (______, 2001, p. 125). Saiba mais Existem várias obras que podem ajudar a ampliar sua compreensão sobre a Filosofia do Direito de Platão ou a Filosofia do Direito de Aristóteles. Por meio das seguintes referências, você pode saber mais sobre pelo menos um destes dois temas: ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2001. HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 1988. KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1995. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 1988. MORA, J. F. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes: 2001. MORRIS, Clarence (Org). Os grandes filósofos do direito: leituras escolhidas em direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002. filosofia_do_direito.indb 91 12/07/12 13:31 92 Universidade do Sul de Santa Catarina OLIVEIRA, Nythamar. Rawls. [Passo-a-passo]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. PLATÃO. A república. São Paulo: Martin Claret, 2002. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Lisboa: Editorial Presença, 1993. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In: Clássicos da Política. v.1. São Paulo: Ática, 1989. filosofia_do_direito.indb 92 12/07/12 13:31
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