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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/262725377 Gestão de Águas: pricípios e práticas Book · January 2003 CITATIONS 15 READS 3,577 2 authors: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Drenagem Urbana View project Conflito pelo Uso da Água View project José Nilson B. Campos Universidade Federal do Ceará 153 PUBLICATIONS 357 CITATIONS SEE PROFILE Ticiana Marinho de Carvalho Studart Universidade Federal do Ceará 76 PUBLICATIONS 117 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by José Nilson B. Campos on 03 November 2015. The user has requested enhancement of the downloaded file. Gestão de Águas princípios e práticas 2001 Fortaleza-Ce Impresso no Brasil Printed in Brazil Gestão de Águas princípios e práticas EDITORES Nilson Campos Ticiana Marinho de Carvalho Studart AUTORES Francisco de Assis Souza Filho José Adonis Callou de Araújo Sá José Carlos de Araújo Larry Simpson Luciana Ribeiro Campos Marco Aurélio Holanda de Castro Marisete Dantas de Aquino Nilson Campos Raimundo Oliveira de Sousa Sandra Tédde Santaella Sila Xavier Gouveia Suetônio Mota Ticiana Marinho de Carvalho Studart Vicente de Paulo Pereira Barbosa Vieira Fortaleza, 2003 Copyright @ 2003, de ....... Reservados todos os direitos autorais. Nenhuma parte desse livro poderá ser reproduzida sejam quais forem os meios empregados sem a permissão, por escrito, da Editora ..... Aos infratores se aplicam as sanções previstas nos artigos 122 e130 da Lei 5.988 de 14 de dezembro de 1973. I- Gestão de Águas. 2. Planejamento de Recursos Hídricos CDU “Vista de longe a Terra é pura água; Mas não é água pura. Essa é rara e cada vez mais cara.” Ricardo Arnst Agradecimentos Os editores do livro agradecem à Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP, pelo patrocínio ao projeto de pesquisa Instrumentos de Gestão dos Recursos Hídricos(RECOPE/REHIDRO/SUB-REDE 4). Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, pelo suporte ao projeto de pesquisa Gerenciamento Integrado dos Aspectos Qualitativos e Quantitativos dos Recursos Hídricos em Regiões Semi-Áridas.(Processo 521169/97-6). Aos Professores Fazal Chaudry e Antônio Eduardo Leão Lanna, respectivamente Coordenador Geral do RECOPE/REHIDRO e Coordenador da Sub-Rede 4, pela eficiente condução do projeto. Ao Professor Ernesto da Silva Pitombeira, Diretor do Centro de Tecnologia, ao Professor Joaquim Bento Cavalcante Filho, Chefe do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental e ao Professor Horst Frischkorn, Coordenador do Curso de Mestrado e Doutorado em Recursos Hídricos da UFC, pelo apoio institucional recebido. Ao Professor Alber Uchoa, pela valiosa revisão dos textos. A srta. Marisa Lopes Freire, pelo seu trabalho de secretariado nos vários projetos de pesquisa. Prefácio As preocupações relacionadas ao gerenciamento de recursos hídricos têm estado presente na sociedade desde muito tempo atrás. Porém, somente nas últimas décadas, conceitos como gestão da demanda, gestão da qualidade das águas e gestão ambiental de bacias hidrográficas incorporaram-se de forma proeminente nos modelos de gerenciamento dos recursos hídricos. Esse assunto, tornou-se um capítulo importante no novo paradigma do desenvolvimento sustentável. A Agenda 21, documento emanado da Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento, dedicou o Capítulo 18 à proteção da qualidade e do abastecimento dos recursos hídricos. O documento aborda temas como a integração de medidas de proteção e conservação dos mananciais; o desenvolvimento de técnicas de participação do público na tomada de decisões; a mobilização dos recursos hídricos, particularmente em zonas áridas e semiáridas; o desenvolvimento de novas alternativas de abastecimento de água, como dessalinização de águas do mar, reuso e reposição de águas subterrâneas. Toda essa mudança refletiu também em mudanças na Engenharia. A gestão de águas que no passado era área de domínio de engenheiros, passou a ser trabalhada também por administradores, economistas, biólogos, químicos, sociólogos e outros profissionais. A formação de recursos humanos na área de gestão de recursos hídricos, nas universidades brasileiras, ainda se dá predominantemente em mestrados e doutorados em Engenharia Civil. Porém, o importante é que nesses cursos participam também geógrafos, biólogos, matemáticos e de outras formações. Nesse processo, a convivência com diferentes visões enriquece tanto o engenheiro como os outros profissionais, levando ao aprendizado do trabalho em equipe. O presente livro procura suprir uma lacuna deficiência na literatura técnica e se destina a estudantes, professores, técnicos e, em geral, a interessados em gestão de águas. O texto foi organizado em treze capítulos. No primeiro capítulo, Gestão de Águas: Novas Visões e Paradigmas, Nilson Campos aborda conceitos históricos e atuais sobre o tema central do livro. Nos segundo e terceiro capítulo, o mesmo autor trata, respectivamente de Política de Águas, com base em experiências em curso no Brasil e dos princípios e procedimentos para o estabelecimento de um Modelo Institucional. No quarto capítulo, Planos de Bacias Hidrográficas, Nilson Campos e Raimundo de Sousa apresentam algumas experiências brasileiras e mostram como o desenvolvimento dos planos de gerenciamento de bacias hidrográficas no Brasil vêm sendo procedidos com filosofias distintas para os diferentes estados, embora todos tenham sofrido influência do modelo francês. Aspectos inseridos na Lei Brasileira de Águas também são apresentados. No quinto capítulo, Gestão da Demanda, Ticiana Studart e Nilson Campos discutem as diversas medidas chamadas “não-estruturais” para o aumento da eficiência de sistemas hídricos. O texto aborda a experiência de alguns países na gestão da demanda. No sexto capítulo, Sistemas de Suporte às Decisões, Assis Filho e Sila Gouveia discorrem sobre as linhas gerais de um sistema de suporte a decisão, definindo marcos conceituais para o projeto e para a implantação de um sistema deste tipo. No sétimo capítulo, A Cobrança pelo Uso da Água, Nilson Campos e Ticiana Studart fazem uma retrospectiva histórica do processo de cobrança pela água bruta – da Roma Antiga aos tempos atuais. Os autores mostram que, embora a cobrança pelo uso da água bruta seja uma ferramenta considerada moderna, a mesma vinha sendo praticada por muitos séculos, em casos específicos e particulares. No oitavo capítulo, Gestão Ambiental, Suetônio Mota e Marisete Aquino discutem a gestão de bacias hidrográficas, com ênfase à conservação ambiental. São comentados aspectos legais e institucionais da gestão de recursos hídricos e é apresentado um roteiro para elaboração de um plano de conservação ambiental de uma bacia hidrográfica. Vicente Vieira, no nono capítulo, Análise de Risco, conceitua e identifica riscos e incertezas e apresenta exemplos de aplicaçãoda análise de risco como instrumento de gestão das águas, tanto a nível de engenharia de projeto quanto a nível de prática administrativa. No décimo capítulo, Gestão da Qualidade, José Carlos de Araújo e Sandra Santaella apresentam conceitos ligados ao gerenciamento da qualidade da água. São abordadas a poluição, a eutrofização e ainda mostrados alguns exemplos de degradação da qualidade de reservatórios superficiais devido ao deficiente manejo e proteção das margens desses corpos de água. No décimo primeiro capítulo, Mercado de Águas, Nilson Campos e Larry Simpson apresentam conceitos ligados ao uso do mercado como instrumento de gestão. Seis pré-requisitos para o funcionamento do mercado de água são discutidos. Algumas situações favoráveis para a aplicação dessa ferramenta são apresentadas. No décimo segundo capítulo, Águas Subterrâneas, Marco Aurélio de Castro apresenta os conceitos ligados à hidrologia de águas subterrâneas, essenciais para o entendimento do funcionamento de aquíferos como reservatórios hídricos. O décimo terceiro capítulo, O Direito e a Gestão das Águas, José Adonis Callou de Araújo Sá e Luciana Campos expõem os aspectos legais na gestão de águas e apresentam, sob a ótica do Direito, uma interessante experiência de direito de águas que tem lugar no Sul do Ceará. Finalmente, o décimo quarto Capítulo, Nilson Campos aborda os conceitos relacionados ao conflito de águas, tema de muita importância nos dias atuais. O Capítulo apresenta alguns exemplos históricos de conflitos de água em todo o mundo. Ao formularmos o projeto desse livro, nós, editores, buscamos a companhia de profissionais competentes e de variadas formações no intuito de propiciar ao leitor uma visão mais abrangente sobre tema Gestão de Águas. A eles, colegas co-autores, o nosso agradecimento por compartilhar conosco essa experiência. Nilson Campos e Ticiana Studart Autores Nilson Campos (EDITOR) Engenheiro Civil e Mestre pela Universidade Federal do Ceará, PhD em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos pela Universidade do Estado do Colorado (CSU), Professor Titular da Universidade Federal do Ceará. Ticiana M. de Carvalho Studart (EDITORA) Engenheira Civil, Mestre e Doutora em Recursos Hídricos pela Universidade Federal do Ceará, Professora Adjunto da mesma Universidade. Francisco de Assis Souza Filho Engenheiro Civil pela Universidade Federal do Ceará, Mestre em Recursos Hídricos pela Universidade de São Paulo, Professor da Universidade de Fortaleza. José Adonis Callou de Araújo Sá Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará, Advogado, Procurador da República, Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará. José Carlos de Araújo Engenheiro Civil pela Universidade Federal do Ceará, Doutor em Recursos Hídricos pela Universidade de São Paulo, Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará. Larry Simpson Engenheiro Civil e Geotécnico, Mestre em Engenharia de Solos e Minas pela Escola de Minas do Colorado, Mestre em Finanças pela Universidade da California em Los Angeles (UCLA), Licenciado em Engenharia nos estados do Colorado e Califórnia. Luciana Ribeiro Campos Graduada em Administração de Empresas pela Universidade Estadual do Ceará, Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Ceará, Procuradora do estado de Alagoas. Marco Aurélio Holanda de Castro Engenheiro Civil pela Universidade de Brasília, Mestre em Recursos Hídricos pela Universidade de New Hampshire (UNH), Doutor pela Drexel University, Filadélfia, Professor Adjunto da Universidade Federal do Ceará. Marisete Dantas de Aquino Engenheira de Pesca pela Universidade Federal do Ceará, Mestre em Recursos Hídricos pela Universidade Federal do Ceará, Doutora pela Universidade de Ponts et Chaussés de Paris, Professora Adjunto da Universidade Federal do Ceará. Raimundo Oliveira de Sousa Engenheiro Civil pela Universidade do Amazonas, Mestre pela Universidade do Estado do Colorado (CSU), Doutor em Recursos Hídricos pela Universidade de São Paulo com pós doutorado na Universidade de Cornell, Professor Titular da Universidade Federal do Ceará. Sandra Tédde Santaella Química e Doutora em Saneamento pela Universidade de São Paulo, Professora Adjunto da Universidade Federal do Ceará. Sila Xavier Gouveia Engenheiro Civil pela Universidade Federal do Ceará, Trinta anos de experiência em consultoria de recursos hídricos em vários estados brasileiros. É consultor da Secretaria de Recursos Hídricos do Ceará. Suetônio Mota Engenheiro Civil pela Universidade Federal do Ceará, Mestre e Doutor em Saneamento pela Universidade de São Paulo, Professor Titular da Universidade Federal do Ceará. Vicente de Paulo Pereira Barbosa Vieira Engenheiro Civil pela Universidade Federal do Ceará, Mestre pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, PhD em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos pela Universidade do Estado do Colorado (CSU), Professor Titular da Universidade Federal do Ceará. Sumário 1 - Gestão de Águas: Novas visões e paradigmas 1 Nilson Campos 2 - Políticas das Águas 11 Nilson Campos 3 - O Modelo Institucional 31 Nilson Campos 4 - Planos de Bacias Hidrográficas 48 Nilson Campos e Raimundo Oliveira de Sousa 5 - Gestão da Demanda 63 Ticiana M. de Carvalho Studart e Nilson Campos 6 - Sistemas de Suporte às Decisões 86 Francisco de Assis Souza Filho e Sila Xavier Gouveia 7 - A Cobrança pelo Uso da Água 111 Nilson Campos e Ticiana M. de Carvalho Studart 8 - Gestão Ambiental 127 Suetônio Mota e Marisete Dantas de Aquino 9 - Análise de Risco 150 Vicente de Paulo Pereira Barbosa Vieira 10 - Gestão da Qualidade 165 José Carlos Araújo e Sandra Tédde Santaella 11 - Mercado de Águas 189 Nilson Campos e Larry Simpson 12 - Águas Subterrâneas 201 Marco Aurélio Holanda de Castro 13- O Direito e a Gestão das Águas 216 José Adonis Callou de Araújo Sá e Luciana Ribeiro Campos 14- Conflitos em Gestão de Águas 238 Nilson Campos 1 Gestão de Águas: novas visões e paradigmas Nilson Campos 1.1. AS NOVAS VISÕES DE GESTÃO DE ÁGUAS As preocupações da sociedade com problemas ligados ao uso e ao manejo das águas levaram a debates e inovações nas últimas décadas. Expressões como gerenciamento de recursos hídricos, gestão de águas e uso racional das águas passaram a fazer parte do dia-a-dia das pessoas e dos meios de comunicação. Todavia, a maneira de abordá-las, de entendê-las e, principalmente, de praticá-las varia de pessoa para pessoa e, mesmo, de técnico para técnico. Apesar dasdiferenças de entendimento, há algo novo nascendo na sociedade: a aceitação de que devemos mudar o modo de tratar os recursos hídricos do planeta, conservando-os para nosso futuro e para as futuras gerações. Essa mudança de atitude foi ocasionada por desastres ecológicos que resultaram em poluição de corpos de água e também da ocorrência de secas com graves conseqüências para alguns segmentos da sociedade. Muitos estudiosos passaram a alertar que o modelo de administrar o recurso água então em prática era insustentável. O aumento da demanda, acompanhado pelo declínio na qualidade das águas, pode levar, segundo os mais enfáticos, a uma nova guerra mundial. O consenso atual é que há uma premente necessidade de novos paradigmas para racionalizar o uso das águas. Por outro lado, uma 2 retrospectiva histórica há de mostrar que a busca por uma prática sustentável de uso da água já era objeto da preocupação de muitos filósofos. São esses os pontos abordados no presente capítulo: os velhos e os novos paradigmas de gestão de águas. 1.2. O QUE É GERENCIAMENTO DE RECURSOS HÍDRICOS Grigg (1996) nos oferece a definição de gerenciamento de recursos hídricos como sendo a aplicação de medidas estruturais e não estruturais para controlar os sistemas hídricos, naturais e artificiais, em benefício humano e atendendo a objetivos ambientais. As ações estruturais são aquelas que requerem a construção de estruturas, para que se obtenham controles no escoamento e na qualidade das águas, como a construção de barragens e adutoras, a construção de estações de tratamento de água etc. As ações não-estruturais são programas ou atividades que não requerem a construção de estruturas, como zoneamento de ocupação de solos, regulamentos contra desperdício de água etc. A análise da definição de Grigg permite que se identifiquem no processo de gerenciamento “o sujeito, o objeto e a ação. ” Os objetos da gestão são os sistemas hídricos, naturais e artificiais. O sujeito é a sociedade que atua sobre os sistemas hídricos com vistas a atingir seus objetivos. As ações são as estruturais e não estruturais aplicadas pela sociedade no meio ambiente, nos corpos de águas e na administração dessas águas. Por sua vez os sistemas hídricos são formados por estruturas artificiais de controle e transmissão de águas e por elementos naturais geográficos que executam as funções de armazenamento e transporte de águas. 3 1.3. RETROSPECTIVA HISTÓRICA NO MANEJO DAS ÁGUAS “Ciência sem história é como um homem sem memória. Os resultados de tal amnésia coletiva são medonhos. ” Assim escreveu Collin Russel em Nature, em 1984. Dentro dessa idéia, apresentamos no primeiro capítulo deste livro uma breve retrospectiva histórica, com a finalidade de alertar os leitores para a necessidade de ver, com espírito crítico, o uso das águas no passado, para planejar bem o futuro. Quando o tema em análise é gestão de águas, essa abordagem crítica desempenha papel de grande relevância. Não se pode perder de vista que a gestão de águas reflete os processos econômicos, políticos e sociais que ocorrem no âmbito de uma sociedade (Perry e Vanderklein, 1996). A abordagem apresentada a seguir procura caracterizar o problema da gestão de recursos hídricos como uma área de conhecimento em evolução cujos valores variam ao longo do tempo. 1.3.1. A água na Roma antiga Durante 441 anos, após a fundação da cidade, os romanos se abasteceram de água através de retiradas diretas no rio Tibre ou de fontes ou poços. No ano 312 a.C., os romanos iniciaram a construção do aqueduto Aqua Appia. Quarenta anos depois, foi construído o Anio Vetus e, em seguida, construíram-se sucessivos aquedutos que formaram uma complexa rede hidráulica para abastecimento da cidade. Quando o atendimento da demanda entrava em crise, buscavam-se novas fontes que tivessem quantidade e qualidade. As pessoas que procuravam essas novas fontes eram chamadas de caçadores de água e a elas eram rendidas homenagens. Assim, vieram a existir muitos aquedutos que hoje são monumentos da Roma moderna. 4 Para gerenciar o sistema assim formado, os romanos foram gradativamente formulando modelos de organização e estruturas administrativas. No ano 97 d.C., Julius Frontinus VI foi nomeado Comissário de Águas de Roma (Curator Aquarum) pelo Imperador Augustus Nerva. Frontinus tinha sob sua responsabilidade um complexo sistema de aquedutos que captava água em fontes afastadas e as conduzia até reservatórios distribuídos ao longo da cidade. Sob o comando de Frontinus, mais de 700 homens exerciam funções variadas como as de inspetor geral, engenheiros, registradores de uso de água, mensuradores, bombeiros, zeladores de reservatórios e outras. “Os usos das águas eram divididos nas classes: nomine Caesari, privatis e usus publici. A classe usus publici era subdividida em castra, opera publica, munera e lacus. As águas nomine Caesari destinavam-se ao palácio imperial e aos prédios diretamente sob o controle do Imperador. As águas privati, eram concedidas aos particulares por ato do Imperador (beneficio principis) e estavam sujeitas ao pagamento de uma taxa. As águas usus publici, destinavam-se a prédios públicos, a balneários, instalações militares e para-militares, fontes ornamentais e reservas de emergência”. O nosso conhecimento da história da gestão das águas de Roma deve-se ao legado escrito de Frontinus VI, De aquedutu, o qual tem sido objeto de muitos estudos e análises. Nota-se nessas análises que muitas estruturas modernamente utilizadas têm algum tipo de similar no sistema de gestão de águas da Roma antiga. 1.3.2. A atitude perante a água pós Idade Média Houve um período na História, que se seguiu à Idade Média, no qual as pessoas tinham pavor da água. Os hábitos de higiene, como o banho, não eram praticados com a freqüência hoje recomendada. Para combater o 5 odor, as pessoas recorriam aos perfumes. Essa prática e a sua racionalização pelo ser humano fizeram que odores fortes gerados por perfumes fossem tomados como um sinal de prosperidade. Nesse contexto não houve evolução mais significativa na maneira de administrar as águas. Somente no final do século XVIII é que os hábitos de higiene ganharam vulto. 1.3.3. A atitude perante a água pós revolução industrial Depois da revolução industrial, a rápida concentração de populações em cidades fez que sérios problemas ligados à qualidade da água passassem a aparecer. As cidades já não podiam ser abastecidas por fontes em suas vizinhanças. Por falta de um adequado sistema de esgotamento sanitário, as águas próximas tornavam-se imprestáveis. Certamente, essa maneira pouco racional de uso da água é insustentável. O resultado é o aumento gradativo da poluição e dos custos de obtenção da água. Como exemplo, o rio Tietê, ao passar pela cidade mais industrializada do Brasil, São Paulo, torna-se a maior vítima dessa maneira de “tratar” a água. 1.3.4. O moderno ciclo de uso da água Modernamente, com o agravamento dos problemas de poluição dos corpos de água, foram estabelecidos conceitos e técnicas necessários a um sistema correto de abastecimento das cidades. São eles: Captação das águas brutas em rios, poços, lagos, reservatórios etc. Adução das águas brutas da fonte de captação aos pontos de consumo, através de canais, adutoras, túneis etc. 6 Tratamento da água bruta para melhorar as características das águas nos aspectos físico, químico, bacteriológico e organoléptico, para torná-las próprias para o consumo. Distribuição das águas tratadas nos locais de consumo,através de um sistema de tubulações de distribuição. Coleta das águas usadas, esgotos, através de uma rede de tubulações, para afastá-las para um local seguro. Tratamento das águas usadas para atingir o padrão assimilável pelo corpo receptor final. Infelizmente, muitas grandes cidades modernas, que cresceram desordenadamente, continuam com o processo de pós-revolução industrial. No Brasil, de fato, nenhuma grande cidade é atendida por um moderno sistema de água, no rigor de sua definição. 1.4. PARADIGMAS DE HOJE, FILÓSOFOS DE ONTEM Segundo Jean Piaget, o cientista que não passa pela filosofia permanece portador de uma doença incurável. Considera Piaget a filosofia indispensável a todo homem completo, “por mais cientista que ele seja.” Nesse espírito, procurou-se desenvolver na presente seção uma rápida abordagem histórico-filosófica da gestão da água e dos recursos naturais, confrontando-se os paradigmas de hoje com o pensamento de filósofos do passado. Assim, são abordados conceitos “modernos” como desenvolvimento sustentável, visão holística e a cobrança de água bruta. 7 1.4.1. O desenvolvimento sustentável A Terra provê o suficiente para a necessidade de todos, mas não para a voracidade de todos. De alguma maneira, Mahatma Ghandi, famoso pacifista indiano, ao expressar essas idéias, antecipava o que os dirigentes dos países desenvolvidos aceitaram, na teoria, ao definirem o conceito de desenvolvimento sustentável. No livro Nosso Futuro Comum, o desenvolvimento sustentável é definido como aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras (CMMAD, 1987). Em outras palavras, é o desenvolvimento no qual o homem procura atender a suas necessidades, sem a voracidade de consumir o capital ambiental das futuras sociedades. Como transformar esse discurso em prática é o grande desafio. 1.4.2. A visão holística “Primeiramente, queremos ter a visão total de um bosque para depois conhecer demoradamente cada uma das árvores. Quem considera as árvores primeiro e somente está dependente delas, não se dá conta de todo o bosque, se perde e se desnorteia dentro dele.” Este primor de pensamento filosófico de Hegel, adequa-se muito bem aos conceitos modernos de visão holística. Embora isto hoje pareça o óbvio, em passado recente muitos estudos, planos, programas e ações foram executados de forma totalmente setorial, sem se enquadrarem no contexto geral. Assim, planos de irrigação não se compatibilizavam com planos hídricos; planos de grandes obras não se enquadravam nos projetos econômicos. O resultado desse procedimento fragmentário, normalmente, são obras inacabadas ou, no pior caso, desastres ambientais. 8 Dentro dos novos paradigmas, a Agenda 21 recomendou para a década de 90 e anos futuros, o manejo holístico da água doce, tratada como um recurso finito e vulnerável, e a integração de planos e programas hídricos setoriais aos planos econômicos e sociais nacionais. 1.4.3. A cobrança da água bruta Na China antiga, o Li-Chi estabelecia: "Na primavera toda a vida começa e as chuvas do Paraíso caem na Terra, e, portanto, deixem as águas correrem e irrigarem os campos, nos meses de verão construam-se barragens e diques e estoque-se água para uso posterior; (...) nos meses de inverno a vida cessa e a dureza chega, faça-se a inspeção dos trabalhos, a coleta de taxas de água e a punição dos ofensores” (Caponera, 1992). A determinação mostra que a cobrança pelo uso da água já era praticada há milênios. Porém é importante contextualizá-la. O texto do Li-Chi, por exemplo, por certo não colocava a cobrança como um instrumento para racionalizar o uso da água. Provavelmente, a cobrança a que se referia o Li-Chi funcionava mais como um instrumento de coleta de impostos para o Imperador. Modernamente, esse objetivo seria classificado como instrumento financeiro. Nesse aspecto, há ainda alguma confusão conceitual. Algumas vezes, à cobrança tem sido dado tanta ênfase, que há aqueles que defendem que a mesma seja efetuada em qualquer circunstância e a qualquer usuário. Afirma-se, porém, no próprio texto da Agenda 21, capítulo 18, item 18.8, que ao se desenvolverem e usarem os recursos hídricos deve-se dar prioridade à satisfação das necessidades básicas e à proteção dos 9 ecossistemas e que, satisfeitas essas necessidades, o uso das águas devem ser pagos com tarifas adequadas. 1.5. RESUMO Embora muitos segmentos da sociedade ainda sonhem com os caçadores de água, tão eficientes e produtivos no tempo da Roma antiga, já se sabe que novas práticas de gestão de águas são extremamente necessárias. Essas práticas baseiam-se em estabelecimento de medidas de médio e longos prazos para a proteção e conservação das águas. Conforme o consenso em encontros internacionais sobre o assunto, essas medidas devem incluir: 1) uma visão abrangente de planejamento e gerenciamento que leve em conta os fatores físicos, econômicos, sociais e ambientais; 2) participação da sociedade nos processos de decisão e operação; 3) descentralização das decisões para os níveis mais baixos possíveis; 4) aumento de confiança nas técnicas de gestão da demanda e 5) proteção da qualidade das águas e dos ecossistemas aquáticos (Moigne et alii, 1994). É nessa linha que a gestão dos recursos hídricos tem caminhado. Os profissionais de várias formações trabalham em equipe. A esses profissionais de visão abrangente destina-se este livro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAPONERA, Dante A. Principles of water law and administration. Rotterdam, Netherlands: A.A. Balkema Publishers, 1992, 260 p. COMISSÃO MUNDIAL SOBRE O MEIO AMBIENTE. Our Common Future. New York: Oxford University Press, 1987, 383p. FRONTINUS VI, J. De aquaeductu urbis Romae. Reprint. Harvard, Massachusetts: Havard University Press, 1997, 495 p. 10 GRIGG, NEIL. Water resources management: principles, regulations and cases. New York: McGraw-Hill,, 1996, 540 p. MOIGNE, G., SUBRAMANIAN, A., XIE, M., e GILNER, S. A guide to the formulation of water resources strategy. Washington DC: World Bank Technical Paper Number 263, 1994, 102 p. JAPIASSU, Hilton. A revolução científica moderna. De Galileu a Newton. São Paulo: Letras & Letras, 1997, 284 p. . 2 Política de Águas Nilson Campos 2.1. VISÃO GERAL DO TEMA Uma política é definida como um conjunto de princípios e medidas postos em prática por instituições governamentais ou outras, para a solução de certos problemas da sociedade. No caso específico da política de recursos hídricos, os princípios e objetivos referem-se ao uso das águas, respeitando os objetivos das políticas sociais do País. Dessa forma, o estabelecimento de uma política de recursos hídricos visa proporcionar meios para que a água, recurso essencial ao desenvolvimento social e econômico, seja usada de forma racional e justa pelo conjunto da sociedade. Entende-se como justa uma política na qual as necessidades vitais tenham suprimento prioritário sobre os demais usos. Como racional, entende-se uma política na qual o uso se dá com parcimônia, sem desperdícios e atendendo aos modernos conceitos da gestão dos recursos hídricos. A política de recursos hídricos, como a de qualquer outro recurso, é formada por: 1) objetivos a serem alcançados, 2) fundamentos ou princípios sob os quais deve ser erguida, 3) instrumentos e mecanismos para executá-la, 4) uma lei, ou arcabouço legal para lhe dar a sustentação e 5) instituições para executá-la e fazer seu acompanhamento 12 As políticasdevem ser moldadas para determinados espaços geográficos e respeitar as peculiaridades locais. No que se refere ao Brasil, como uma federação, há estabelecidas várias políticas de recursos hídricos estaduais e uma Política Nacional. A Política Nacional deve ser suficientemente geral para abrigar os aspectos que podem ser aplicados a todos os estados. As políticas estaduais devem respeitar a Política Nacional e inserir suas peculiaridades. Essas políticas devem também, por consistência com o princípio da descentralização, deixar para os comitês de bacias as questões particulares de interesse das diferentes bacias hidrográficas. Não se pode esquecer que o Brasil é um país imenso e que nele existem realidades bem distintas nos aspectos hidrológicos, culturais e econômicos. O presente capítulo apresenta e comenta os fundamentos, as diretrizes, e os instrumentos para o estabelecimento de uma política de águas com base nos textos da Política Brasileira estabelecidos na Lei 9.433/97. Adicionalmente são feitas análises sobre a aplicabilidade ou não- aplicabilidade da Lei a esse País de dimensões continentais, que engloba culturas e ambientes tão diversos. 2.2. PRINCÍPIOS E FUNDAMENTOS DA LEI A Lei 9.433/97, que dispõe sobre a Política de Nacional de Recursos Hídricos, estabelece meios legais e direciona a Sociedade Brasileira para um novo modelo de gestão de águas. A Lei, seguindo os rigores técnicos para o estabelecimento de uma Política, foi construída sobre os seis fundamentos a seguir 1. O domínio das águas; 2. O valor econômico; 3. Os usos prioritários; 4. Os usos múltiplos; 13 5. A unidade de gestão; 6. A gestão descentralizada. Esses fundamentos ou princípios são apresentados e comentados nos itens subsequentes. 2.2.1. Fundamento I - Do domínio das águas A Política de Águas Brasileira tem como primeiro fundamento a assertiva de que a água é um bem de domínio público. De fato, esse fundamento é uma repetição de um Artigo Constitucional que a Lei não poderia mudar. No ponto de vista do Direito, há autores que consideram a repetição de uma norma constitucional em uma lei totalmente desnecessária. Outros encaram essa repetição como uma ênfase que se dá ao assunto e que resulta em uma melhor estrutura do texto. No estabelecimento de políticas estaduais, muitas leis incorporam o texto constitucional relativo ao domínio. Se uma nova lei está para ser formulada e aprovada, a repetição, ou não, do domínio das águas é uma questão local que deve refletir também a cultura e a política local. 2.2.2. Fundamento II – Do valor econômico da água A Lei 9.433 estabelece como fundamento que a água é um recurso limitado, dotado de valor econômico e estabelece a cobrança da água bruta com os seguintes objetivos: a) reconhecer a água como bem econômico; b) dar ao usuário uma indicação do seu real valor; c) incentivar a racionalização do uso da água e d) gerar recursos financeiros para o financiamento de programas formulados nos planos de recursos hídricos (Kettelhut et. al., 1999). 14 Até a julho de 2000, todas as leis estaduais consideraram a água como um bem econômico e estabeleceram mecanismos para viabilizar a sua cobrança. Deve ser lembrado que o fato de se adotar esse fundamento na Política não implica necessariamente que a retirada de águas brutas deva ser cobrada em qualquer quantidade, em qualquer tempo e em qualquer lugar. Em vários estados da Federação, como a Amazonas e o Pará, a água ainda não é um bem escasso. Muitos outros estados têm colocado limites mínimos de retirada, abaixo dos quais não incide qualquer taxa. A Lei de Águas do Ceará estabelece esse limite em 2.000 litros por hora. A Lei Federal isenta de outorga e de pagamento o uso de águas para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais e as derivações e captações considerados insignificantes (artigos 12 e 13). 2.2.3. Fundamento III - Do uso prioritário O terceiro fundamento na Lei de Águas Brasileira estabelece que, em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais. Esse princípio consta no Código de Águas (art. 36), o qual estabelece que, quando o "uso da água depende de derivação, em qualquer hipótese, terá preferência aquela para o abastecimento das populações". Pode-se dizer que, quanto a este aspecto, a Lei 9.433 é menos rigorosa que o Código de Águas, pois este é enfático ao estabelecer a prioridade em qualquer hipótese enquanto que a Lei 9.433 estabelece a condição em situação de escassez, deixando margem para que se defina em que situação fica caracterizada a escassez. Nas leis estaduais, fica definido o uso prioritário pela Lei Federal. Porém, a hierarquia para os outros usos pode ser definida nos próprios 15 estados ou, quiçá, nas próprias bacias hidrográficas, pelos Comitês de Bacias. O estado do Ceará adotou em sua lei a seguinte ordem de prioridade: 1) abastecimento doméstico; 2) abastecimentos coletivos especiais, como em hospitais, colégios, etc. 3) abastecimentos coletivos de cidades, inclusive em indústrias, 4) indústrias e comércios por captação direta; 5) irrigação e 6) outros usos (Decreto 123.067, art. 15). Uma maneira a ser pensada, seria deixar a decisão da hierarquia inferior ao consumo humano para os Comitês de Bacias. Há vários motivos para isto. As prioridades de uso podem variar de região para região e de tempos em tempos. Uma região agrícola teria certamente, no uso com irrigação, uma prioridade mais elevada do que no uso industrial. Uma região mais industrializada, principalmente em épocas de crise de desemprego, certamente estabeleceria uma escala inversa de prioridades. Ficaria para as políticas e leis estaduais a decisão de colocar, ou não toda a hierarquia de prioridades de uso. 2.2.4. Fundamento IV- Dos usos múltiplos das águas A Política Nacional de Águas estabelece que a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas. Trata-se de um princípio de caráter técnico, que tem por objetivo otimizar o aproveitamento das disponibilidades em água. Na maior parte dos rios e lagos esse princípio é atendido naturalmente pelas populações ribeirinhas. Talvez a palavra sempre esteja forte demais. Pode haver situações de escassez em que seja necessário adotar um uso prioritário, em detrimento de todos os demais usos conflitantes. Nessas situações, os usos múltiplos seriam restritos àqueles que não conflitassem com o uso para consumo humano (como explicitado no Fundamento III) 16 2.2.5. Fundamento V – Da unidade de gestão das águas A Lei 9.433 estabelece a bacia hidrográfica como unidade territorial para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e a atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Em princípio, pode-se observar que a Lei não utilizou explicitamente a terminologia bacia hidrográfica como unidade de gestão, sempre presente nos meios técnicos. No modelo francês, no qual se inspirou o modelo brasileiro, a bacia hidrográfica foi adotada como unidade de gestão onde se tomam decisões políticas importantes sobre a aplicação de vultosas quantias de recursos financeiros. O processo de definição dos comandos político desses comitês passou por uma ampla disputa política. Resolveu-se que a presidência dos comitês deve ser exercida por uma autoridade política, como o prefeito de uma das províncias das bacias. No Brasil, a presidências de alguns comitês de bacia ainda se encontram nas mãos de técnicos. Isso reflete duas coisas: o processo éincipiente e ainda não se decide sobre grandes orçamentos. Não se pode também afirmar que haja uma unanimidade na aceitação do conceito de bacia hidrográfica como unidade de gestão para qualquer local. Kemper (1997), reportando-se ao modelo de gestão de águas em prática no Ceará, concluiu que a experiência local sugere que a bacia hidrográfica, enquanto unidade de gestão ou de análise pode ser uma escolha equivocada. 2.2.6. Fundamento VI – Da gestão descentralizada das Águas O sexto Fundamento da Lei 9.433 estabelece que a gestão dos recursos hídricos deva ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades. Esse princípio de administração vem sendo, se não empregado, pelo menos propagado em 17 quase todos os segmentos da administração pública. O fundamento tem por base a premissa de que não se deve levar a uma decisão superior o que pode ser solucionado em uma hierarquia inferior. Como esse princípio sairá da teoria para a prática? Certamente isso só será possível quando os comitês de bacias tiverem condições plenas de exercer as funções que lhes são atribuídas pela Lei 9.433. Contudo, mesmo limitadamente esse princípio vem sendo praticado em alguns comitês. A Agência Nacional de Águas (ANA) criou vários programas e incentivos para que os Comitês de Bacia exercitassem a prática de tomar decisões no âmbito da bacia hidrográfica. A priorização dos projetos de saneamento das bacias PCJ (Piracicaba, Capivari e Jundiaí) tem como base as definições da Deliberação Conjunta dos Comitês PCJ nº 077/07. Essa deliberação define as regras de hierarquização dos empreendimentos submetidos para o financiamento com recursos oriundos das cobranças pelo uso dos recursos hídricos em rios de domínio da União e dos Estados de São Paulo e Minas Gerais, localizados nas bacias PCJ (CAMPOS,V. 2012). 2.3. INSTRUMENTOS DE GESTÃO A Lei 9.433, em seu Capítulo V, define seis instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos. Os planos de recursos hídricos; O enquadramento dos corpos de água em classes; A outorga dos direitos de uso dos recursos hídricos; A cobrança pelo uso dos recursos hídricos; 18 A compensação a municípios; Os sistemas de informação de recursos hídricos. 2.3.1. Os planos de recursos hídricos O que vem primeiro, o Plano ou a Política? Esta é uma questão por vezes argüida por especialistas da área. Esta questão tem origem na diversidade dos processos de implantação de novas políticas de águas nos diferentes estados. Prosseguindo-se, poder-se-ia questionar: como pode ser o Plano, se o mesmo é um instrumento da Política? Para responder a essa questão, deve-se recorrer à história do estabelecimento de políticas nacionais e estaduais. Examinando a cronologia da formulação das novas políticas de recursos hídricos, vamos encontrar situações distintas que levam ao questionamento expresso no início desta seção. Para os estados do Ceará e São Paulo, precursores nacionais da nova política de águas, o processo se deu na seguinte ordem: Tomou-se a decisão de formular uma nova política de águas; Formaram-se grupos para formular um plano estadual de recursos hídricos; Desenvolveram-se os planos estaduais englobando e documentando a política; Formularam-se as leis e ajustaram-se as instituições para a execução da política. Muitos outros estados seguiram caminhos semelhantes, porém considerando suas próprias peculiaridades. Por sua vez, a Política 19 Nacional de Recursos Hídricos teve uma trajetória bem distinta. Talvez, até, como conseqüência de as unidades federação estarem mais adiantadas do que a União. As tratativas políticas resultaram na criação da Secretaria Nacional dos Recursos Hídricos, como unidade do Ministério do Meio Ambiente. A Secretaria, usando de suas prerrogativas e com a participação da sociedade, através da Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH), escreveu uma proposta de Lei, apresentada pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo. A proposta foi relatada na Câmara de Deputados pelos deputados Fábio Feldman e Aroldo Cedraz e no Senado, pelo Senador Bernardo Cabral. O resultado foi a promulgação pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso da Lei 9.433, em 08 de janeiro de 1997. A Lei instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Recursos Hídricos. Em um segundo momento, foi iniciado o processo de formulação do Plano Nacional de Recursos Hídricos, que terminou por não alcançar seus objetivos, por vários motivos. O Capítulo 4 desse livro discute, com maior abrangência e profundidade, as formulações dos planos de recursos hídricos. Para executar a Política Nacional de Águas a Lei 9.984 de 17 de julho de 2000 criou a Agência Nacional de Águas (ANA). A ANA tem como missão implementar e coordenar a gestão compartilhada e integrada dos recursos hídricos e regular o acesso a água, de modo a promover o uso sustentável em benefício da atual e das futuras gerações. 20 Instituição integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos, com o objetivo de implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos.1 2.3.2. O enquadramento dos corpos de água em classes Não há, nos meios técnicos, consenso quanto a considerar o enquadramento dos corpos de água em classes como instrumento de gestão propriamente dito. Considerando-se que o enquadramento dispõe sobre os padrões de qualidade dos corpos de água, ele poderia ser classificado como um instrumento. Por outro lado, considerando-se o enquadramento como um padrão de qualidade que se deseja para o corpo de água, o mesmo poderia também ser classificado como uma meta ambiental (Ribeiro, 2000). Dois são os motivos para enquadrar dos corpos de água em classes: 1) assegurar que os corpos de água tenham qualidade compatível com os usos que lhes forem atribuídos; 2) agir preventivamente para reduzir custos com tratamento de água e combate à poluição (Ribeiro, 2000). Deve ser observado que, embora a Lei 9.433 utilize o enquadramento como instrumento de gestão, a competência para enquadramento nas classes definidas pela Resolução 020/86 CONAMA é dos órgãos ambientais. 2.3.3. A outorga dos direitos de usos dos recursos hídricos A outorga é classificada na literatura como um instrumento de Comando e Controle em que uma cota (porção) das disponibilidades hídricas é concedida para um dado uso, por um tempo limitado, a determinado usuário. Os principais objetivos da outorga são assegurar o controle 1 Projeto de Lei Complementar n0 3 de 2.000, submetido à sanção Presidencial em 28/06/2000. 21 quantitativo e qualitativo dos usos das águas e proporcionar o direito ao acesso às águas (Ribeiro, 2000). Duas questões são relevantes no estabelecimento de uma Lei de Recursos Hídricos: o máximo valor outorgável (volume ou vazão, ou ambos) e como dividir o racionamento nas épocas de escassez. Essas decisões são bastantes regionais, pois dependem fortemente do regime dos rios e de seus controles. Dessa maneira, o estabelecimento de normas de amplitude nacional para regulamentar a outorga deve ser visto com muita cautela. 2.3.3.1. A vazão máxima outorgável Uma das questões centrais na concessão das outorgas diz respeito ao estabelecimento, ou não, de limites nos totais de outorgas, que podem ser concedidos em uma determinada fonte hídrica ou em um sistema de fontes (reservatórios, aqüíferos etc.). Dois tipos de critérios para essa definição podem ser encontradosna literatura: o da vazão de referência e o da vazão excedente. O critério da vazão de referência tem sido o preferido pelos estados do Nordeste. Normalmente, tem sido adotada como vazão de referência uma fração, próxima da unidade, da vazão regularizada com 90% de garantia por reservatórios superficiais. Nos rios perenes, há preferência por se tomar como vazão de referência a vazão média mínima de sete dias consecutivos com período de retorno de dez anos, denotada por Q(7,10).O critério da vazão excedente foi proposto por Pereira e Lanna (1996) e testado para a bacia dos Sinos, no Rio Grande do Sul. 22 Outro modo de definir a vazão máxima outorgável é deixar que a área técnica decida, após análises hidrológicas, decida se um determinado pedido de outorga deve ser aceito ou não. Esse é o procedimento adotado pela Secretaria dos Recursos Hídricos do Estado do Ceará. Em resumo, na formulação de uma Política de Águas, a questão da vazão máxima a outorgar pode receber vários tratamentos. Sua incorporação à Lei e à Política deve ser objeto de decisão política local, após análise e simulações das conseqüências da adoção de qualquer um dos critérios disponíveis na literatura. 2.3.3.2. Como proceder em épocas de racionamento A menos que as demandas por água na região em análise sejam bem inferiores às disponibilidades naturais (por exemplo, às margens do Tocantins), o estabelecimento de um limite superior para a concessão de outorgas torna-se recomendável. Todavia, o estabelecimento desse limite não tem o poder de evitar que haja períodos de escassez no fornecimento de água quando algum racionamento se torna inevitável. Nesse ponto, o do início do racionamento, entram em jogo as prioridades dos diversos usos. Resguardadas as prioridades estabelecidas na Lei Federal (consumo humano e dessedentação), os estados podem estabelecer critérios para os demais usos. Há duas principais linhas que podem ser estabelecidas em leis estaduais: 1) fixação de prioridades na própria Lei e 2) na permissão de que as negociações, respeitadas as prioridades da Lei Federal, sejam procedidas no âmbito dos comitês. Não se deve, contudo, perder de vista que a convivência com um racionamento de águas está sujeita a tantas variáveis e envolve tantos conflitos, que seria quase impossível estabelecer em lei um procedimento a ser adotado em todos os casos e 23 em todos os locais. Alguma reflexão e visão local será sempre necessária para se decidir o que colocar em Lei. 2.3.4. A cobrança pelo uso dos recursos hídricos A cobrança pelo uso da água como instrumento de gestão pode ser entendida como dispositivo de aplicação do Fundamento II da Política Nacional, que vê a água como um bem escasso dotado de valor econômico. No Brasil, o processo de cobrança de água bruta, na atual lógica da Política, está em seus momentos iniciais e ainda há muito a aprender. Todavia, tem sido dada tanta ênfase à cobrança de águas, que se pode ter a falsa impressão de que esta é panacéia para os problemas no uso das águas. A racionalização do uso das águas seria conseqüência da cobrança como mecanismo econômico (as pessoas consumiriam menos, para pagar menos). Muitos estudos mostraram que, no atual nível de valor da água, essa racionalização não tem sido aumentada por conta da cobrança. Ribeiro (2000) considera que, no Brasil e em outros países, a cobrança tem sido mais utilizada como mecanismo financeiro. Há também a questão de que limites e condições devem ser estabelecidos para que os usuários estejam isentos de cobrança. Muitas das leis em vigor, no Brasil e no mundo, já estabelecem esses limites. 2.3.5. A compensação a municípios A compensação a municípios não é um instrumento de gestão de águas propriamente dito, apesar de assim ter sido considerado na Lei 9. 433/97. Trata-se de um assunto controverso, com conflitos de interpretação e duplicidades com o setor elétrico. Como consequência dessas indefinições, na Sessão V da Lei 9.433, que trata da compensação a 24 municípios, não consta sequer um artigo a respeito. O resultado é um instrumento de gestão que somente tem o título. No caso de formulação de novas leis e decretos, a questão de transferência de água entre bacias hidrográficas distintas merece alguma análise e deveria ser objeto de algum artigo, não necessariamente rígido, que não dificultasse as negociações entre usuários. Nesse caso, a compensação a municípios poderia ser vista mais como um instrumento de negociação política. 2.3.6. Os sistemas de informação de recursos hídricos Os sistemas de informação de recursos hídricos são condições indispensáveis para o gerenciamento das águas. Independente de constar na Lei, Os avanços na informática e nas comunicações pela Internet fizeram com que a maioria dos estados brasileiros desenvolvesse Portais na WEB com disponibilidade de muitas informações em recursos hídricos. Cuidados especiais devem ser tomados para que não se relegue a segundo plano a obtenção, em campo, de dados fluviométricos e climatológicos. Uma das maiores vantagens desses sistemas está na democratização das informações. À medida que algumas instituições federais e estaduais forem avançando na divulgação de informações na Internet, as demais instituições serão forçadas a adotar a mesma política de informações. 2.4. AS DIRETRIZES O estabelecimento de diretrizes consta em todas as leis estaduais de recursos hídricos. A Lei 9.433 traçou as seguintes diretrizes para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos: 1. Gestão integrada qualidade – quantidade; 25 2. Adequação ao ambiente e às culturas; 3. Integração com a gestão ambiental; 4. Articulação com os usuários e diversos níveis de planejamento; 5. Articulação com o uso do solo; 6. Integração de bacias hidrográficas, sistemas estuarinos e zonas costeiras. 2.4.1. Gestão integrada qualidade – quantidade A demanda por água se dá por uma dada quantidade, em um determinado local, em certo tempo e com um grau desejável de qualidade. A gestão integrada tinha o status de princípio na Carta de Gramado da Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH) e talvez ainda mereça esse status, tal a sua importância. Em essência, essa diretriz (ou princípio) é inserida nas políticas de água e de meio ambiente, visto que a qualidade das águas e o uso e a ocupação dos solos são fortemente relacionadas. No campo institucional, qualidade e quantidade muitas vezes estão em diferentes instituições da administração pública. A gestão da quantidade cabe às Secretarias de Recursos Hídricos e a da qualidade cabe às secretarias que tratam da questão ambiental. A ênfase à integração quantidade–qualidade é importante para a articulação Política Ambiental–Política de Águas. 2.4.2. Adequação aos ambientes e às culturas A diretriz de adequação aos ambientes e às culturas combina totalmente com as necessidades de um país imenso como o Brasil. A Lei Nacional 26 deve ser o mais geral possível, contemplando as características comuns a todo o País. Pode-se dizer também que essa diretriz está relacionada com o Fundamento VI da gestão descentralizada. 2.4.3. Integração com a gestão ambiental De alguma maneira essa diretriz engloba a diretriz da gestão integrada quantidade–qualidade. Mesmo que não houvesse sido inserida na Lei, representaria uma necessidade para a formulação das políticas de usos de qualquer que seja o recurso natural. De fato, a mesma representa um grande desafio para a sociedade e especialmente para os governantes, legisladores e magistrados. Em geral,os governantes buscam popularidade através de melhoria nos indicadores de desenvolvimento. Muitas vezes, o desenvolvimento acelerado resulta do uso intensivo e não sustentável dos recursos ambientais. Então, a diretriz deve nortear a busca de um ponto de equilíbrio: usar as águas sem causar grandes danos ao meio ambiente. 2.4.4. Articulação com os usuários e diversos níveis de planejamento Talvez uma melhor interpretação dessa diretriz, fosse a de recomendação de que a participação da população seja aceita e incorporada na tomada de decisões importantes para a política das águas. Essa diretriz está ligada ao Fundamento VI que trata da gestão descentralizada. O instrumento adequado para a prática dessa diretriz está no fortalecimento dos comitês de bacias. 2.4.5. Articulação com o uso do solo A ênfase dada ao uso do solo decorre de sua grande influência nos processos de formação de cheias e de recarga dos aqüíferos. O caos decorrente das cheias em muitas cidades brasileiras, de dificílima e 27 onerosa solução, deve-se em grande parte ao uso inadequado do espaço urbano. A grande dificuldade em estabelecer uma política apropriada para o uso do solo decorre, fundamentalmente, dos interesses econômicos envolvidos. Quanto mais intensivamente for usado o espaço urbano, mais valor econômico lhe é agregado. Essa diretriz deve ser também entendida como um desafio para a sociedade, visto que, embora seja importante colocá-la no texto da Lei, mais importante e desafiante é colocá-la em prática. 2.4.6. Integração de bacias hidrográficas, sistemas estuarinos e zonas costeiras Essa diretriz ambiental dá ênfase aos sistemas estuarinos e às zonas costeiras. São sistemas integrados pela natureza que devem ser considerados na formulação das políticas de uso da água. Nas áreas urbanas, em especial, muitos manguezais vêem sendo destruídos, ou intensamente poluídos por uma ocupação irresponsável e predatória. A colocação de uma diretriz específica para esses sistemas vai ao encontro de novos paradigmas. Os modernos tratados de recursos hídricos, como Grigg (1996), Perry e Vanderklein (1996), Harper e Ferguson (1997) e outros, costumam dedicar um capítulo a esses sistemas. 2.5. RESUMO DO CAPÍTULO Neste capítulo foi analisado o estabelecimento de uma política de águas com base em experiências em curso no Brasil. A formulação da Política Nacional foi tomada como linha central de análise. Os elementos apresentados podem ser úteis para a análise crítica das leis existentes, bem como, do ponto de vista técnico, para o estabelecimento de novas leis, normas e regulamentos para a gestão de recursos hídricos. 28 PARA REFLETIR Consulte seu dicionário e veja as definições de princípios, fundamentos, diretrizes. Leia a Lei de seu estado e a Lei Nacional. Comente: Você acha que os princípios e diretrizes dessas leis estão de acordo com as definições que você encontrou? Que você entende por adotar a bacia hidrográfica como unidade de gestão? Firme um conceito e escreva. Depois consulte a Lei Nacional, a Lei de seu Estado e a atual prática de gestão de águas adotada. Procure detectar os pontos nos quais seu conceito foi atendido e aqueles nos quais deixou de ser atendido. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Lei Federal nº 9.433, de oito de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal e altera o art. 10da Lei 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei 7.990, de 28 de dezembro de 1989. CEARÁ. Lei Decreto nº 23.067 de 11 de fevereiro de 1994. Regulamenta o art. 40 da Lei 11.996 de 24 de julho de 1992 na parte referente à outorga do direito de uso dos recursos hídricos, cria o Sistema de Outorga para Uso da Água e dá outras providências. GRIG, N. S. Water resources management: principles, regulations and cases. New York: McGraw-Hill, 1996,540 p. HARPER, D. M. e FERGUSON, A. J.D. The ecological bais for river management. Chichester, England: John Wiley & Sons, 1997, 614 KEMPER, K.E. O Custo da água gratuita: alocação e uso dos recursos hídricos no vale do Curu, Ceará, Nordeste Brasileiro. Linköping Studies in Art and Science. – 152. Linköping, 1997, 236 p. KETTELHUT, J.T.S , RODRIGUEZ, F.A, GARRIDO, R.J., PAIVA, F. CORDEIRO NETO, O. RIZO, H. Aspectos legais e gerenciais. 29 In: O Estado das águas no Brasil- 1999. Agência Nacional de Energia Elétrica ANEEL. Brasília,, D.F. PEREIRA, J.S. e LANNA, A.E.L. Análise de critério de outorga nos direitos de uso da água. In: III Simpósio de Recursos Hídricos do Nordeste (Anais). Associação Brasileira de Recursos Hídricos Salvador, 1996, p. 335-342. PERRY, J. e VANDERKLEIN, E. Water quality: management of a natural resource. Massachusetts: Blackwell Sciences, 1996, 639. RIBEIRO, M.M.R. Alternativa para a outorga e a cobrança pelo uso da água: simulação de um caso. Porto Alegre. Tese de Doutoramento, 2000, 196 p. 3 O Modelo Institucional Nilson Campos 3.1. VISÃO GERAL DO TEMA A implementação dos novos paradigmas de gestão de águas no Brasil, em diversos estados da Federação, tem-se dado acompanhada por mudanças no aparato institucional vigente. Essas mudanças variam desde as de pequena monta, limitando-se a modificações nas atribuições das instituições existentes, até as de grande monta, com a criação de instituições ou mesmo de um sistema específico. O capítulo apresenta uma sistemática para a formulação de um modelo institucional de gestão de águas. As etapas da formulação abrangem a definição das funções hídricas em benefício da sociedade, a organização dos sistemas institucionais para desempenhar essas funções, o desenvolvimento de um diagnóstico do quadro institucional vigente e a formulação e verificação do novo modelo institucional. 3.2. ATRIBUTOS DESEJÁVEIS AO MODELO No desenvolvimento de um modelo institucional, é essencial o conhecimento das funções que são desempenhadas e a serem desempenhadas no segmento de águas, bem como em outros segmentos da administração pública. Além dos aspectos técnicos, a análise dos condicionantes políticos também é de fundamental importância. Pouco 32 adianta conceber um modelo tecnicamente perfeito, porém de pouca aceitação política. O sistema institucional deve ser concebido de modo a proporcionar eficiência na execução das tarefas que lhe são atribuídas. Assim, o modelo proposto deve ser dotado de alguns atributos que o caracterizem como um bom modelo. Os três principais atributos de um bom modelo são apresentados a seguir: Consistência com a realidade local, política e financeira; Harmonia com as demais funções desempenhadas em outros segmentos da administração pública; Inserção no Modelo Nacional. Formular um modelo com esses atributos não é algo que possa ser executado isoladamente por um único profissional. Trata-se, em essência, de um trabalho de equipe no qual a humildade e a sensibilidade dos membros que a compõem são fundamentais para o sucesso da tarefa. 3.3. FORMULAÇÃO DO MODELO Para sistematizar a formulação de um modelo institucional, deve-se partir de premissas sobre o sistema a ser estruturado e de sua interação com os demais sistemas da administração pública e com a sociedade. No presente texto, admite-se que se busca uma nova estruturação do segmento de águas e que os demais segmentos da administração devem permanecer sem modificações importantes. Dentro dessa premissa, concebeu-se uma sistemática deformulação do modelo nas quatro etapas a seguir discriminadas. 33 ETAPA 1 – Caracterização das funções no setor hídrico e identificação das funções dos outros setores da administração pública. O que é feito? O que deve ser feito? ETAPA 2 – Diagnóstico do modelo institucional vigente: Quem faz o quê? Há duplicidade de funções? Algumas funções importantes estão sem instituição responsável? Há funções desempenhadas informalmente? ETAPA 3 – Formulação do novo modelo. Quem vai fazer o quê? ETAPA 4 – Verificação de homogeneidade entre modelo, princípios e leis. O modelo proposto atende aos princípios de gerenciamento? O modelo está inserido no sistema Nacional? O modelo é politicamente viável? Esta seqüência foi seguida no Ceará quando da formulação do modelo institucional em vigência no Estado. O modelo concebido foi implementado, com pequenas modificações, e vem obtendo sucesso ao longo de sua aplicação. 3.4. FUNÇÕES E SISTEMAS NO MODELO A fase inicial de desenvolvimento do modelo é essencialmente conceitual. Deve-se entender inicialmente que funções devem ser desempenhadas para o uso racional e sustentável da água. Definidas as funções, deve-se partir para uma arquitetura abstrata dos sistemas, para o desempenho competente das funções. Esses são os pontos-chave abordados nesta seção. 34 3.4.1. Caracterização das funções hídricas A caracterização das funções desempenhadas, direta ou indiretamente, para o aproveitamento e controle dos recursos hídricos pode ser feita segundo várias classificações. Apresenta-se, neste texto, a classificação adotada no Plano de Recursos Hídricos do Ceará (SRH, 1992), o qual se baseou em modelos propostos e pela no Plano Integrado de Recursos Hídricos do Nordeste (SUDENE, 1980) e por Barth e Pompeu (1987). Foram definidas e caracterizadas cinco funções principais, com as respectivas subfunções, a seguir descritas e esquematizadas, na Tabela 3.1. Essas grandes funções são: gestão, oferta, uso e preservação. 3.4.1.1. A gestão Em sentido amplo, a gestão das águas é definida como o conjunto de procedimentos organizados no sentido de solucionar os problemas referentes ao uso e ao controle dos recursos hídricos. O objetivo da gestão é atender, dentro das limitações econômicas e ambientais e respeitando os princípios de justiça social, à demanda de água pela sociedade a partir de uma disponibilidade limitada. A gestão é formada por três subfunções: o planejamento, a administração e a regulamentação. O planejamento é constituído pelo conjunto das atividades necessárias à previsão das disponibilidades e das demandas de águas, com vistas a maximizar os benefícios econômicos e sociais. O planejamento consta das atividades: inventário dos recursos hídricos, estudo da qualidade das águas, estimativa das demandas, estudos prospectivos do balanço oferta x demanda, e da avaliação e controle do próprio planejamento. 35 Tabela 3.1 – Funções do sistema de gestão de água e demais sistemas, consideradas no Plano de Recursos Hídricos do Ceará. FUNÇÕES GESTÃO Planejamento Administração Regulamentação OFERTA Nucleação artificial Represamento Poços Cisternas U S O CONSUNTIVO Abastecimento Irrigação Abastecimento industrial Aqüicultura Abastecimento urbano NÃO CONSUNTIVO Geração hidrelétrica Navegação fluvial Lazer Pesca e piscicultura extensiva Assimilação de esgotos PRESERVAÇÃO COMPLEMENTARES Ciência e tecnologia Meio ambiente Planejamento global Incentivos econômicos Defesa civil A administração constitui-se das ações que dão suporte técnico ao planejamento e dos mecanismos de avaliação da efetividade dos planos anteriores, tendo em mente uma realimentação dos futuros planos. A administração engloba a coleta e a divulgação de dados hidro- meteorológicos, as estatísticas do uso da água, o poder de política administrativa e a programação executiva e econômico-financeira das obras previstas nos planos. 36 A regulamentação é formada pelas ações desenvolvidas na formação de um suporte legal para o desempenho da gestão das águas, a partir do disciplinamento e normatização do funcionamento do Sistema Estadual de Recursos Hídricos. A regulamentação se consolida através de sugestões de leis, decretos, portarias, instruções e regulamentos. 3.4.1.2. A oferta A gestão das águas, pelo lado da oferta, dá-se no sentido de aumentar as disponibilidades hídricas através da ativação das potencialidades. Assim, classificam-se como funções da oferta as diversas ações, em obras ou serviços, através das quais a água se torna disponível para utilização no tempo e no local onde ocorre a demanda. A função oferta compreende a construção de barragens para a formação de reservatórios, a perfuração e recuperação de poços, a captação de águas em lagos naturais, a captação de águas da chuva através de cisternas, etc. 3.4.1.3. O uso A gestão dos usos das águas, também denominada gestão da demanda, dá-se no sentido de utilizar, da melhor maneira possível, as disponibilidades hídricas viabilizadas pela oferta. Classificam-se como funções do uso, o conjunto de ações necessárias para que a água se torne efetivamente útil aos homens, às plantas, aos animais e às paisagens. O uso acontece sob duas formas: o consuntivo, que ocorre quando há perdas, derivação ou consumo, havendo diferença entre o que é derivado e o que retorna ao corpo d’água; o não-consuntivo, quando não há consumo, derivação ou desperdício da água. São basicamente usos nos corpos de água. 37 Os usos consuntivos envolvem: o abastecimento rural, a irrigação, a aquicultura, o abastecimento industrial e o abastecimento humano. Dentre os usos não-consuntivos, estão: a geração hidrelétrica, a navegação fluvial, o lazer, a pesca e piscicultura extensiva, e a assimilação de esgotos. Vale ressaltar que a assimilação de esgoto, embora não implique em consumo real de água, pode tornar as águas imprestáveis para os usos mais nobres. 3.4.1.4. A preservação Engloba as ações preventivas e corretivas voltadas para garantir o correto escoamento das águas, evitar a erosão do solo, promover a manutenção da vegetação e a implantação de novas áreas verdes. As ações de preservação também criam barreiras que impedem ou reduzem a poluição de fontes de água. 3.4.1.5. As funções complementares São formadas essencialmente pelas ações de suporte ao funcionamento do setor hídrico. Constituem atividades de apoio como o treinamento para capacitação de pessoal técnico, o desenvolvimento de pesquisas, a orientação técnica dos produtores usuários de água; o aparelhamento, com máquinas, laboratórios e aeronaves, para a realização de serviços e obras das diversas funções e o financiamento, antecipando receita para as instituições públicas e privadas no desempenho das funções hídricas. 3.4.2. Os sistemas Para executar ou fazer executar as funções hídricas, são organizadas instituições, que podem ser agrupadas em forma de sistemas. Tradicionalmente, os sistemas são agrupados em secretarias (ministérios, 38 na esfera federal). Geralmente, as secretarias são instáveis, visto que sempre estão sujeitas a pressões políticas. Não é fato raro, a criação e extinção de várias secretarias em um único mandato de governo. Além do mais, como já foi comentado, o modelo proposto procura ver os sistemas de dentro para fora, sendo a formulação do modelo abstrato de sistemas importante para o processode interação do sistema de gestão com os demais sistemas. No presente documento, de natureza técnica e didática, os sistemas são agrupados por afinidades de funções. A classificação empregada seguiu o modelo da ABRH, que consiste no agrupamento das instituições em três sistemas: Sistema de gestão; Sistemas afins; Sistemas correlatos. A prática mostra que dificilmente esses sistemas podem ser puros. Isto é, muitas vezes uma instituição do sistema de gestão desempenha funções de outros sistemas, da mesma forma que instituições de outros sistemas por vezes desempenham funções do sistema de gestão. Na formulação conceitual, os sistemas devem ser agrupados por suas funções mais importantes. 3.4.2.1. O sistema de gestão É formado pelas instituições que desempenham a função gestão, através das funções de segundo nível – planejamento, administração e regulamentação. Admite-se que o comando do sistema de gestão seja de uma única instituição, denominada Órgão Gestor. As demais instituições componentes do sistema desempenham a função de gestão delegada pelo 39 Órgão Gestor. Entende-se que o sistema de gestão deve ter as seguintes atribuições: Promover a articulação institucional e comunitária no âmbito estadual; Formular políticas de água, preservação e saneamento; Promover a articulação com órgãos municipais; Elaborar planos plurianuais de investimento (serviços, equipamentos e obras hídricas); Estabelecer critérios para a outorga de águas públicas estaduais; Estabelecer normas e critérios para a construção de açudes em rios de domínio estadual; Executar as funções de planejamento, administração e regulamentação; Gerenciar as reservas hídricas, superficiais e subterrâneas. 3.4.2.2. Os sistemas afins Esse conjunto se compõe dos sistemas que desempenham as funções oferta, utilização e preservação dos recursos hídricos. Englobam sistema de oferta, o sistema de utilização e o sistema de preservação. O sistema de oferta é formado pelas instituições com competência para desempenhar a função oferta. As atividades de Planejamento da própria função, como projeto executivo de barragens, devem ser executadas no âmbito desse sistema. São suas atribuições: Projetar e executar obras de represamento e de captação de águas subterrâneas; 40 Projetar e executar obras de transferência de água entre bacias hidrográficas; Desempenhar suas atribuições, no que couber, dentro dos princípios e normas oriundos do Sistema de Gestão. O sistema de utilização contempla as instituições que desempenham formalmente as funções de usos de água e tem na água um fator importante de produção. A esse sistema compete: Projetar e construir obras de irrigação, abastecimento urbano, rural e industrial, aquicultura, etc.; Administrar, na condição de usuário, as águas concedidas pelo sistema de gestão; Desempenhar funções, dentro do que couber, conforme os princípios e normas oriundos do Sistema de Gestão. O Sistema de preservação é formado pelo conjunto de instituições que desempenham a função preservação. São atribuições desse sistema Elaborar o zoneamento de uso dos solos; Proteger os mananciais usados como fonte de abastecimento de água; Desenvolver programas educativos da população; Executar suas atribuições, no que couber, em consonância com a política delineada pelo Sistema de Gestão. 3.4.2.3. Os sistemas correlatos Essa designação abrange o conjunto de sistemas que, embora não- associados a recursos hídricos diretamente como área de atuação, 41 desenvolvem atividades que interagem com os sistemas afins e de gestão. São definidos como correlatos os seguintes sistemas: Planejamento e Coordenação Geral; Incentivos Econômicos e Fiscais; Ciência e Tecnologia; Defesa Civil e Meio Ambiente. O sistema de Planejamento e Coordenação Geral é formado por instituições que cuidam do planejamento e coordenação geral da ação do Estado (basicamente a Secretaria de Planejamento – SEPLAN). Executa as atividades de: Planejamento do desenvolvimento estadual; Orçamento público; Acompanhamento, controle e avaliação dos planos, programas e projetos governamentais. O Sistema de Incentivos Econômicos e Fiscais é composto por instituições que, através de incentivos econômicos e fiscais, procuram induzir o desenvolvimento do Estado. Esse sistema desenvolve atividades ligadas a recursos hídricos, através do incentivo a projetos de desenvolvimento hidroagrícola, projetos agro-industriais, etc. As atividades executadas são: Planos de investimento em empreendimentos de aproveitamentos múltiplos dos recursos hídricos; Planos de desenvolvimento industrial com base em disponibilidade de água e potencial de poluição das indústrias. O Sistema de Ciência e Tecnologia é formado por instituições que lidam com a capacitação de recursos humanos e o desenvolvimento de conhecimentos e tecnologias para o Estado. Atribuem-se a esse sistema as seguintes atividades: Formação e especialização de recursos humanos; 42 Desenvolvimento de pesquisas na área de recursos hídricos; Desenvolvimento de tecnologia para prospecção, captação, uso, conservação e controle de recursos hídricos. O Sistema de Defesa Civil lida com o socorro e assistência à população em situações de calamidade. Parte destas situações advém de excesso ou falta de água, isto é, da ocorrência de enchentes e secas, por isso há forte interligação entre o Sistema de Gestão e o Sistema de Defesa Civil. A ele competem as atividades de: Instalação de uma rede de alerta contra as cheias; Programas de assistência às populações atingidas por cheias ou secas. O Sistema do Meio Ambiente atua na preservação do meio ambiente com vistas, em última análise, à preservação dos seres vivos. A água é assumida como elemento vital, devendo ter, portanto, sua qualidade preservada de acordo com os padrões requeridos para os usos a que se destina. Por outro lado, o Sistema de Gestão considera a água um bem a ser utilizado para múltiplas finalidades, inclusive para o desenvolvimento econômico. Em uma visão mais abrangente, não deveriam existir interesses conflitantes entre os dois sistemas, porquanto a boa qualidade da água, objetivo do Sistema de Gestão, depende fortemente do uso correto do meio ambiente. Além do mais, é muito difícil estabelecer uma fronteira bem definida entre os dois, no sentido de que qualidade e quantidade de água são indissociáveis. Do ponto de vista institucional, cabem ao Sistema do Meio Ambiente as seguintes atividades: Estabelecimento dos padrões de qualidade das águas de acordo com o usos a que se destina; 43 Fiscalização da qualidade das águas em rios, reservatórios e no subsolo. 3.4.2.4. A interação entre os sistemas Para que a água possa ser utilizada e controlada em níveis satisfatórios de quantidade e qualidade, seja pela geração atual, seja pela geração futura, são necessários mecanismo de planejamento e gerenciamento integrado, descentralizado e, sobretudo, participativo. Essa filosofia norteou a instituição de um Sistema Integrado de Gestão dos Recursos Hídricos para o Ceará, o SIGERH. Esse Sistema Integrado constitui um dos instrumentos da Política Estadual de Recursos Hídricos e, na medida em que impõe mudanças significativas de postura daqueles envolvidos com a utilização, proteção, conservação e recuperação de água, sua consolidação associa-se a um processo político e social. 3.5. DIAGNÓSTICO DO MODELO VIGENTE Definidas as funções e os sistemas institucionais
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