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Copyright (©) Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Projeto gráfico (capa e diagramação): Ana Claudia França Impressão: Ajir Artes Gráficas e Editora Construindo a igualdade na diversidade : gênero e sexualidade na escola / or- ganização : Nanci Stancki da Luz, Marília Gomes de Carvalho, Lindamir Salete Casagrande.— Curitiba : UTFPR, 2009. 286 p. : Il. color. ; 21 cm Vários autores Inclui bibliografias ISBN : 978-85-7014-055-5 1. Sexo – Diferenças (Educação). 2. Papel sexual. 3. Feminismo e educação. 4. Relações de gênero. 5. Feminismo. 6. Papel sexual. I. Luz, Nanci Stancki da (org.). II. Carvalho, Marília Gomes de. III. Casagrande, Lindamir Salete. II. Título. CDD (22. ed.) 306.43 306.7 C758 Printed in Brazil/ Publicado no Brasil Dezembro de 2009 Curitiba 2009 Editora UTFPR Sumário APRESENTAÇÃO Nanci Stancki da Luz Marília Gomes de Carvalho Lindamir Salete Casagrande GÊNERO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO Marília Gomes de Carvalho e Cíntia de Souza Batista Tortato SEXUALIDADE E GÊNERO NA ESCOLA Beatriz L. Ferreira e Nanci Stancki da Luz VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM DESAFIO À CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Nanci Stancki da Luz QUESTÕES DE GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL: AS POSSIBILIDADES DA LITERATURA INFANTIL Cíntia de Souza Batista Tortato GÊNERO, EDUCAÇÃO E ARTEFATOS TECNOLÓGICOS: OS DIFERENTES MEIOS PARA ENSINAR Solange Ferreira dos Santos e Benedito Guilherme Falcão Farias UM OLHAR CRÍTICO PARA OS LIVROS DIDÁTICOS: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DE GÊNERO Lindamir Salete Casagrande e Marília Gomes de Carvalho CIÊNCIA E TECNOLOGIA SOB A ÓTICA DE GÊNERO Maria Aparecida Fleury Costa Spanger, Tânia Rosa F. Cascaes e Marília Gomes de Carvalho 11 21 47 73 91 109 1 2 4 3 5 6 7 133 33 151 171 193 209 DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E PROFISSÕES CIENTÍFICAS E TECNOLÓGICAS NO BRASIL Nanci Stancki da Luz REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE, MEDIADAS PELA PUBLICIDADE Maristela Mitsuko Ono, Luciana Martha Silveira e Ronaldo de Oliveira Corrêa DESAFIOS E AVANÇOS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE GÊNERO Nanci Stancki da Luz DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS: A REPRODUÇÃO, A SEXUALIDADE E AS POLÍTICAS Marlene Tamanini HOMOFOBIA E A ESCOLA Toni Reis “O OLHAR NÃO É MAIS O MESMO”: UMA ANÁLISE SOBRE OS RESULTADOS DE UM CURSO SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA Lindamir Salete Casagrande, Marília Gomes de Carvalho e Nanci Stancki da Luz SOBRE AS AUTORAS E AUTORES 8 9 10 11 12 13 247 261 283 11 nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande APRESENTAÇÃO Nanci Stancki da Luz Marília Gomes de Carvalho Lindamir Salete Casagrande Este livro é resultado do Projeto “Construindo a igualdade na escola: re- pensando conceitos e preconceitos de gênero”, realizado durante o ano de 2008, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), por inter- médio do Grupo de Estudos de Relações de Gênero e Tecnologia (GeTec) do Programa de Pós-graduação em Tecnologia (PPGTE) em parceria com a Secre- taria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC). O objetivo do projeto era contribuir para a formação de pro�ssionais de educação de Curitiba e região metropolitana na temática “gênero, sexu- alidade e diversidade sexual na escola”. Nesse sentido, foram desenvolvidas várias ações, entre as quais a oferta de cursos de formação continuada, com duração de 60 horas cada, visando sensibilizar pro�ssionais da educação – professores e professoras do Ensino Fundamental e Médio, pessoal técnico- administrativo, inspetoras(es), merendeiras(os), pedagogos, entre outros – preparando-os(as) para perceber e trabalhar com questões de gênero e diversidade sexual no ambiente escolar. O projeto tinha como meta inicial a capacitação de 160 pro�ssionais, no entanto, devido à enorme demanda, além das 4 turmas previstas inicial- mente, foram abertas mais vagas e turmas, possibilitando que 328 pro�ssio- nais da educação participassem desse processo de formação que procurou: • Oportunizar o acesso a um referencial teórico que discuta con- ceitos como igualdade de gênero, homofobia, sexismo e diversi- dade sexual. 12 apresentação • Provocar reflexões críticas entre os profissionais da educação a respeito da construção dicotômica de gênero em nossa socie- dade e suas conseqüências quanto à discriminação e preconcei- tos. • Sensibilizar profissionais da educação das escolas-alvo do pro- jeto para a modi�cação de estereótipos de gênero que geram comportamentos discriminatórios. • Auxiliar docentes na utilização crítica do material didático em sala de aula quanto aos conteúdos de gênero que provocam a invisibilidade histórica das mulheres na construção da socieda- de brasileira, da ciência e da tecnologia; a reprodução dos pa- drões tradicionais, conservadores e discriminatórios de gênero que refletem na linguagem escrita e visual. • Problematizar questões como a violência de gênero, enfati- zando a violência contra as mulheres, a violência doméstica e violência contra homossexuais. • Discutir juntamente com profissionais da educação a definição de pro�ssões “masculinas” ou “femininas” e o conseqüente dire- cionamento e/ou enquadramento dos alunos em determinadas pro�ssões (geralmente de conteúdos técnicos) e das alunas em pro�ssões de conteúdos voltados às ciências humanas e às ar- tes. • Problematizar juntamente com profissionais da educação comportamentos homofóbicos na sociedade em geral e na es- cola em particular e suas conseqüências na exclusão de pessoas que não seguem os padrões hegemônicos de gênero. • Repensar em parceria com profissionais da educação formas de inclusão no processo de escolarização daqueles(as) que eva- dem ou nem ingressam nas escolas por fatores de discriminação de gênero. • Contribuir para a reflexão da importância da promoção da eqüidade de gênero e para a reflexão sobre os direitos sexuais e reprodutivos de jovens e adolescentes. 13 nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande O curso propunha-se a refletir sobre a realidade escolar e sobre questões que inviabilizam a construção da igualdade na escola, sendo composto por quatro módulos que abordaram os seguintes temas: • Módulo 1– Gênero: construção social do masculino e do femini- no; sexualidade: problematização da heterossexualidade norma- tiva e diversidade sexual; violência de gênero. • Módulo 2 – Gênero e diversidade sexual no ambiente escolar: livros didáticos; espaço escolar, intervalos e datas comemorativas; currículo explícito e oculto. • Módulo 3 – Gênero, ciência e tecnologia: gênero e escolha de uma pro�ssão; as disciplinas escolares; acesso, produção e uso de tecnologias; gênero e mídia – cinema, imprensa escrita, músicas, Internet, teatro, publicidade, entre outros. • Módulo 4 – Eqüidade de gênero e enfrentamento ao sexismo e homofobia: direitos sexuais e reprodutivos; políticas públicas, particularmente as educacionais, voltadas para a promoção da eqüidade de gênero; ações e propostas para o combate do sexis- mo e homofobia, promoção da eqüidade de gênero e dos direitos produtivos e reprodutivos. Além desses quatro módulos, o grupo de participantes desen- volveu um trabalho final com questões que visavam a refletir sobre a própria realidade e diagnosticar a presença de estereótipos e violências de gênero. Valendo-se dessa análise preliminar do ambiente escolar, foi proposto ao grupo que apresentasseações no sentido de contribuir para a promoção da eqüidade de gênero e dos direitos sexuais e repro- dutivos de jovens e adolescentes. Buscou-se explorar a experiência vivida pelos(as) participantes, trabalhando os temas com base na realidade de cada pessoa. A des- construção de padrões estereotipados de gênero e da heteronormati- vidade e a reflexão sobre as suas conseqüências – preconceito, discrimi- nação e outras formas de violência – foi o passo inicial para a discussão da promoção de uma educação democrática e inclusiva, bem como o enfrentamento do sexismo, machismo, misoginia, homofobia, lesbofo- bia e transfobia no ambiente escolar. 14 apresentação Gênero, enquanto construção social do feminino e do masculi- no, foi assumido como um elemento das relações sociais e, portanto, presente em todas as nossas instituições, particularmente, na escola – ambiente que contribui para a produção/reprodução de padrões e identidades de gênero e de sexualidade. Nesse sentido, os educadores foram considerados profissionais de extrema relevância para a cons- trução da igualdade de gênero. Assim, caberia aos educadores e edu- cadoras refletir sobre as práticas educacionais, buscando não reforçar preconceitos, discriminações e violências de gênero, assumindo para si como um dos objetivos da educação o enfrentamento das inúmeras formas de violência, a promoção da eqüidade de gênero e o respeito à diversidade. Dessa forma, as práticas escolares devem ser repensadas, elimi- nando-se do ambiente escolar conteúdos discriminatórios, bem como ações que configurem qualquer tipo de violência, seja física, moral ou psicológica. É preciso desnaturalizar o determinismo biológico pre- sente nos padrões dicotômicos de gênero que aprisionam homens e mulheres em comportamentos e atributos considerados, respectiva- mente, naturalmente masculinos e femininos. A escola deve se pro- por a contribuir com o desenvolvimento humano pleno, o que pres- supõe assumir o desenvolvimento social e, nesse sentido, fazendo-se necessário respeitar diferenças, mas, sobretudo, construir cidadania e contribuir para a concretização dos direitos fundamentais de todo ser humano. Sendo assim, não há espaço na instituição escolar para de- sigualdades sociais, de gênero ou de caráter étnico-racial, ou, ainda, para hierarquias de conhecimentos e pro�ssões. É importante destacar que o espaço escolar pode ser um espaço de inúmeras contradições, pois pode contribuir para a construção das desigualdades de gênero, mas também pode se constituir num espaço de transformação social e de construção da igualdade. Políticas edu- cacionais, projeto político-pedagógico, currículo escolar, planos de ensino, planos de aula, cotidiano escolar e práticas escolares podem contribuir para a transformação das relações de gênero e para a con- solidação da justiça social. Certamente esse não é um processo rápi- do, tampouco simples, entretanto, viável, desde que haja disposição e participação da comunidade escolar em um projeto de emancipação, autonomia e desenvolvimento de todos e todas. 15 nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande Este livro, construído de acordo com os pressupostos expostos anteriormente é composto por quatro unidades. A primeira discute, en- tre outras questões, gênero, sexualidade e violência. O artigo “Gênero: considerações sobre o conceito”, de Marília Gomes de Carvalho e Cíntia de Souza Batista Tortato, traz uma discussão acerca das diferentes con- cepções e abordagens do conceito de gênero, enfatizando aquele que norteará o conteúdo deste livro. Para as autoras, não existem caracterís- ticas femininas ou masculinas imutáveis, assim como não há como con- siderar habilidades ou di�culdades próprias de mulheres ou de homens, pois a construção social do masculino ou do feminino não está marcada pela natureza, devendo sempre ser entendida no contexto em que se inserem. O artigo “Sexualidade e gênero na escola”, de Beatriz L. Ferreira e Nanci Stancki da Luz, revela o quanto o tema sexualidade é polêmico e enfrenta resistências no ambiente escolar. A sexualidade quando vista de forma restrita desconsidera a relação com o corpo, o prazer e o de- sejo. As autoras defendem que é necessário desconstruir a amálgama entre sexo (ato sexual) e sexualidade, para que se possa considerar a sexualidade em uma dimensão ampla, contemplando seus diversos as- pectos nos processos educacionais. “Violência contra a mulher: um desa�o à concretização dos direi- tos humanos”, de Nanci Stancki da Luz, encerra a primeira parte e discu- te a violência contra a mulher, apontando elementos que contribuem para a sua construção e reprodução social. Destaca as resistências e con- quistas da luta feminista na desconstrução da naturalização da violência contra a mulher e no combate à sua impunidade, contribuindo de forma signi�cativa para a efetivação dos direitos humanos das mulheres. A segunda parte desta obra tem como objetivo discutir as rela- ções de gênero e diversidade no universo escolar e é composta de três artigos. No primeiro deles – “Questões de gênero e diversidade sexual: as possibilidades da literatura infantil” – Cíntia de Souza Batista Tortato apresenta debates sobre questões de gênero e diversidade sexual, usan- do a literatura infantil como elemento disparador dessas discussões e contemplando as mais diversas situações que acontecem em uma esco- la e que podem proporcionar momentos preciosos para a abordagem das questões de gênero ou de diversidade sexual com as crianças ou jovens. 16 apresentação Solange Ferreira dos Santos e Benedito Guilherme Falcão Farias, em seu artigo “Gênero, educação e artefatos tecnológicos: os diferentes meios para ensinar”, destacam que as diferentes formas de ensinar e o uso dos artefatos tecnológicos disponíveis para isso podem contribuir para a disseminação, problematização e construção de um novo conhe- cimento, especialmente, nas questões de gênero e educação. Lindamir Salete Casagrande e Marília Gomes de Carvalho encer- ram essa unidade com o artigo “Um olhar crítico para os livros didáti- cos: uma análise sob a perspectiva de gênero”. As autoras apresentam reflexões sobre as representações de gênero encontradas em livros di- dáticos de Matemática, Geogra�a, Ciências e Português para o Ensino Fundamental, sendo as ilustrações e os textos dos livros didáticos o foco das atenções nessa análise. As autoras consideram que ao questionar as representações estereotipadas nos livros didáticos não estão negando a sua qualidade e a importância que eles, os livros, assumem no coti- diano escolar, mas objetivam, sobretudo, alertar para a necessidade de se manter um olhar crítico sobre representações que podem transmitir preconceitos e gerar discriminações. A terceira unidade traz artigos que visam contribuir com a refle- xão crítica sobre a ciência, tecnologia e gênero. Nesse sentido, o primei- ro deles, “Ciência e tecnologia sob a ótica de gênero”, das autoras Maria Aparecida Fleury Costa Spanger, Tânia Rosa F. Cascaes e Marília Gomes de Carvalho, traz uma revisão teórica sobre a temática ciência, tecnolo- gia e gênero, destacando e assumindo a construção social da ciência e da tecnologia que, historicamente, ocorreu com base nas referências do mundo masculino, contribuindo assim para a invisibilidade da mulher nessas áreas. No segundo artigo, “Divisão sexual do trabalho e pro�ssões cien- tíficas e tecnológicas no Brasil”, Nanci Stancki da Luz, valendo-se de uma discussão teórica sobre a divisão sexual do trabalho, apresenta uma dis- cussão sobre pro�ssões que historicamente tiveram uma composição majoritariamente masculina: as carreiras científicas e tecnológicas, entre as quais, destaca o Magistério Superior, a Matemática, a Física, a Quími-ca, a Estatística e a Engenharia/Arquitetura. Encerrando essa unidade, Maristela Mitsuko Ono, Luciana Martha Silveira e Ronaldo de Oliveira Corrêa no artigo “As representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via meios de 17 nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande comunicação”, abarcam discussões sobre representações do feminino e do masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via mensagens pu- blicitárias veiculadas pelos meios de comunicação impressos [revistas semanais, gibis, entre outros]. A última unidade tem como objetivo trazer reflexões sobre eqüi- dade de gênero, enfrentamento ao sexismo e à homofobia e a promoção dos direitos sexuais e reprodutivos. Visa ainda apresentar os resultados parciais dos trabalhos desenvolvidos pelos(as) cursistas. Nessa perspec- tiva, quatro artigos compõe essa unidade, sendo o primeiro deles o arti- go de Nanci Stancki da Luz – “Desafios e avanços nas políticas públicas de gênero” – no qual a autora analisa os conceitos de política pública, destacando a relevância das políticas de gênero para a construção de um mundo justo e igualitário. Tais políticas são consideradas importan- tes aliadas no processo de desconstrução de estereótipos de gênero e eliminação das discriminações negativas. Por outro lado, contribuem para que mulheres tenham acesso aos direitos fundamentais e se con- solide a igualdade e a justiça social. O artigo “Direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexua- lidade e as políticas”, de Marlene Tamanini, discute a temática direitos sexuais e reprodutivos com base na perspectiva dos direitos humanos. A autora traz uma discussão sobre as desigualdades de gênero e como elas contribuem para a não concretização dos direitos reprodutivos e sexuais, enquanto liberdade, direito à assistência, atendimento e infor- mação, autonomia e escolha. “Homofobia e a escola”, de Toni Reis, considera que a escola é um lugar privilegiado para promover a cultura do respeito às diferenças, à diversidade e da inclusão social, rumo a uma verdadeira democracia em que todos os cidadãos e cidadãs possam conviver com igualdade e sem discriminação. Para o autor, no entanto, quando se trata de homosse- xualidade, o tema ainda é cercado de preconceitos, presentes também no ambiente escolar, e que podem se transformar em discriminação e marginalização das pessoas. Finalizando essa unidade, Lindamir Salete Casagrande, Marília Gomes de Carvalho e Nanci Stancki da Luz, no artigo “O olhar não é mais o mesmo: uma análise sobre os resultados de um curso sobre gênero e sexualidade na escola”, apresentam uma análise das respostas dos pro- �ssionais de educação sobre questões que buscavam identi�car as pos- 18 apresentação síveis transformações que, por ventura, tivessem ocorrido nos olha- res dos(as) participantes após o curso. “O olhar não é mais o mesmo” – frase retirada da fala de uma dupla de professores (um homem e uma mulher), sobre as transformações em suas formas de enxergar e perceber as questões de gênero no ambiente escolar e na sociedade em geral, após a realização do curso, representa simbolicamente o resultado do trabalho desenvolvido por todas as pessoas que se en- volveram neste projeto. Vale destacar que o projeto que originou este material foi pen- sado e coordenado pelas professoras Dra. Nanci Stancki da Luz, Dra. Marília Gomes de Carvalho e Ms. Lindamir Salete Casagrande, mas só foi possível a sua concretização devido à consolidação de diversos apoios e parcerias, aos quais agradecemos imensamente por contri- buírem na construção de uma educação com eqüidade de gênero e respeito à diversidade. Nesse sentido, agradecemos: À Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversi- dade do Ministério da Educação (Secad/MEC), por apoiar propostas que contribuem para a construção da eqüidade de gênero no am- biente escolar. À Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) que, em seus cem anos de existência, sempre contou com pessoas dispos- tas a contribuir para a educação do país e, nesse momento particular, de implementação do projeto, disponibilizou seu espaço físico, para a realização do curso, e pessoas, que contribuíram para o bom desen- volvimento das atividades. Ao Programa de Pós-graduação em Tecnologia (PPGTE), por entender a importância dos estudos de gênero e colaborar para que essas discussões sejam difundidas na sociedade. Ao Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Relações de Gênero e Tecnologia (GeTec), vinculado ao PPGTE, por se consolidar como um espaço para estudos, desenvolvimento de pesquisas e de proje- tos de extensão à comunidade, o que possibilitou discutir, elaborar e executar o projeto “Construindo a igualdade na escola: repensando conceitos e preconceitos de gênero”, no âmbito desse grupo de pes- quisas. Às autoras e aos autores deste livro, aos docentes do curso e demais colaboradores e colaboradores(as) do projeto. 19 nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande Às pessoas que participaram do curso, pelo enriquecimento dos debates, pela partilha de suas experiências e conhecimentos e pela de- monstração de vontade e potencial de transformação da realidade edu- cacional brasileira. A todos e todas que algum dia virão a ler este material, pela opor- tunidade de podermos apresentar reflexões sobre a realidade escolar e discutir propostas de uma escola sem preconceitos e discriminações. Desejamos que os ideais que incorporam este material sejam as- sumidos a cada dia por mais educadores e educadoras, para que a esco- la possa contribuir para a concretização do princípio da igualdade e para a construção de um mundo com justiça social. 21 marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato 1 GÊNERO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO Marília Gomes de Carvalho Cintia Souza Batista Tortato Introdução Gênero é uma palavra que necessariamente pede uma explicação a res- peito de seu signi�cado. Serve para classi�car fenômenos os mais di- versos tais como gêneros de literatura, de cinema, de música, dos seres vivos na escala biológica, en�m é um termo classi�catório. No contexto deste capítulo gênero será utilizado como uma pala- vra que serve para classi�car as pessoas na sociedade, de acordo com o sexo que possuem, ou seja, se são do sexo feminino e/ou do sexo mas- culino. No entanto, a construção social do gênero é muito mais comple- xa do que simplesmente uma classi�cação das pessoas em mulheres ou homens. No campo das Ciências Sociais a complexidade é ainda maior porque depende das diferentes correntes teóricas que interpretam o gênero (mulher/homem) de formas diversas, ora considerando-o dire- tamente relacionado ao sexo, ou seja sexo feminino = gênero feminino e sexo masculino = gênero masculino, ora desvinculando o gênero do sexo, sem que haja uma relação direta entre estes dois fenômenos. Para outras correntes há dois sexos, porém múltiplos gêneros O termo gênero possui portanto muitos signi�cados, de acordo com as diferentes abordagens que existem sobre o fenômeno da cons- trução social do masculino e do feminino pela sociedade e pela cultura. O conceito de gênero apresenta, diferentes concepções, diferentes fo- 22 gênero: considerações sobre o conceito cos de análise conforme as bases teóricas que lhe servem de susten- tação. Por esta razão, o principal objetivo deste capítulo é trazer uma discussão sobre estas diversas abordagens, enfatizando o conceito que norteia o conteúdo do livro que trata de várias dimensões da vida social, todas elas perpassadas pelo gênero. Nem sempre este foi um termo utilizado pelos cientistas da socie- dade que até recentemente (anos 60) não se preocupavam com a cons- truçãosocial de mulheres e homens. Na verdade, no mundo acadêmico, o termo gênero surgiu no momento em que pesquisadoras feministas buscavam, através dos chamados estudos sobre mulheres, desnaturali- zar a condição da mulher na sociedade (SIMIÃO, 2005). Foram os estudos feministas os que inicialmente tinham a inten- ção de desnaturalizar as condições das mulheres na sociedade, descons- truir a idéia de que tudo aquilo que se refere à mulher está na sua na- tureza feminina, ou seja, estes estudos problematizaram a idéia de que determinadas características são da essência feminina e outras são da essência masculina. Nessa linha de pensamento �ca entendido como natural e da sua essência que a mulher seja mãe, natural e da sua essên- cia que seja delicada, sensível, obediente, amorosa, afetiva, etc, como se tais características estivessem na carga genética, na biologia. Estas características eram desvalorizadas pela sociedade ocidental de merca- do, onde a competitividade e agressividade (características vistas como naturais e essencialmente masculinas) eram mais valorizadas. Assim, as desigualdades entre homens e mulheres foram interpretadas como naturais. Era interpretado como algo que não poderia ser modi�cado. Estava na carga genética dos homens, e na sua essência, serem seres superiores e, por outro lado, estava na carga genética das mulheres, por- tanto na sua essência, serem inferiores. Segundo Silva (2007, p. 253): No século XIX surgiram, particularmente no campo da antropologia física, teorias que explicaram a inferioridade feminina com base na biologia. Este campo explicativo tomou muita força na sociedade moderna pois teria o “aval” da ciência. Contrapondo-se a esta perspectiva, o movimento femi- nista problematizou e reconstruiu argumentos em torno da determinação biológica das hierarquias entre homens e mulheres, colocando em xeque as concepções relativas ao feminino e masculino na sociedade ocidental. 23 marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato Para Pedro (2005, p. 78): O uso da palavra “gênero”, como já dissemos, tem uma história que é tribu- tária de movimentos sociais de mulheres, feministas, gays e lésbicas. Tem uma trajetória que acompanha a luta por direitos civis, direitos humanos, en�m, igualdade e respeito. A naturalização das características femininas e masculinas des- considera que tanto mulheres como homens as adquirem e aprendem na vida social, (em nossa sociedade, hoje ainda antes do nascimento) através das expectativas criadas pelos pais e por todo o meio social, tão logo sabem o sexo do bebê que está para nascer. Essas expectativas, para a maioria das pessoas, traduzidas nas cores e brinquedos dos en- xovais, na decoração dos quartos, na escolha dos acessórios e até na forma como a mãe se comunica com o bebê em seu ventre, já carregam as formas de entender o que é ser homem e o que é ser mulher e conse- qüentemente o que será ensinado ao novo ser. Para Louro (1997, p. 21): O argumento de que homens e mulheres são biologicamente distintos e que a relação entre ambos decorre dessa distinção, que é complementar e na qual cada um deve desempenhar um papel determinado secularmente, acaba por ter o caráter de argumento final, irrecorrível. Seja no âmbito do senso comum, seja revestido por uma linguagem “científica”, a distinção se- xual serve para compreender - e justi�car – a desigualdade social. A relação direta entre as desigualdades sociais e a biologia, ex- plicando as diferenças como uma contingência da natureza, ainda é freqüente nas falas e atitudes das pessoas. Nos dias de hoje, ainda são comuns matérias de jornais ou revistas, enfocando as diferenças biológi- cas entre homens e mulheres, tamanho ou peso do cérebro, número de neurônios, capacidade intelectual para números ou habilidade natural para determinadas aprendizagens, como tentativas de “provar cienti�- camente o porquê das desigualdades entre o masculino e o feminino” (AUAD, 2006, p. 14). Citeli (2001, p. 132) complementa: ...desnaturalizar hierarquias de poder baseadas em diferenças de sexo tem sido um dos eixos centrais dos estudos de gênero. Estabelecer a distinção entre os componentes — natural/biológico em relação a sexo e social/ 24 gênero: considerações sobre o conceito cultural em relação a gênero — foi, e continua sendo,um recurso utilizado pelos estudos de gênero para destacar essencialismos de toda ordem que há séculos sustentam argumentos biologizantes para desquali�car as mu- lheres, corporal, intelectual e moralmente. Esta postura leva à posição de que é preciso distinguir sexo de gê- nero, pois não são a mesma coisa e devem ser vistos como fenômenos que nem sempre têm uma relação direta e determinista. Distinção entre sexo e gênero “Sexo” é um dado biológico e “gênero”, uma construção cultural. É pre- ciso descolar o sexo do gênero para entender as questões culturais que envolvem os comportamentos e características femininas e masculinas nas mais diferentes sociedades e culturas. Considerar o gênero como uma contingência do sexo biológico é uma postura reducionista, pois torna limitado o desenvolvimento total das pessoas, direcionando-as aos ditames da natureza, levando a interpretações universais que não cabem nos fatos próprios da cultura. Para Diniz; Vasconcelos e Miranda (2004, p. 27): “Diferentemente do sexo, o gênero é uma produção social, aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo de gerações.” Utilizando-nos da referência de Costa, 1994, que faz uma revisão de literatura sobre as formas com que o conceito de gênero foi enten- dido nos meios acadêmicos, podemos dizer que, diante da di�culdade de categorizar as questões de gênero com base nas diferenças sexuais, a autora explica que o meio acadêmico foi trilhando outros caminhos para construção do conceito de gênero. Buscando outras interpretações, tais como: “... papéis dicotomizados, gênero como uma variável psicológi- ca, como sistemas culturais e como relacional” (COSTA, 1994, p. 147), foi possível compreender que gênero e sexo não possuem uma relação unívoca, mas que a complexidade do fenômeno é bem maior. Gênero e as características binárias O gênero visto como a construção e a prática de papéis dicotomizados considera que as representações de masculino e feminino são aprendi- das através do desempenho de papéis determinados socialmente para homens e para, com características contrárias e opostas. Esta visão di- 25 marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato cotômica e binária da questão de gênero deixa de fora da análise as re- lações de gênero e poder, criando estereótipos de papéis de homem e de mulher. Essa visão também não explica como os papéis são de�nidos e quem os determina, ocultando a hierarquização e desigualdade en- tre papéis masculinos e femininos que existe na sociedade. De maneira geral as dicotomias entre o masculino e feminino seguem um raciocí- nio baseado em construções sociais de uma sociedade historicamente comandada e organizada sob a ótica masculina, onde “(...) a sociedade impõe certos papéis para os homens e outros para as mulheres e que vão determinar a forma como homens e mulheres se vêem e como se relacionam uns com os outros” (SIMIÃO, 2005, p.10) Gênero, então, pode referir-se à apreensão da diferença entre os sexos, apresentada de forma categórica, ou seja, a sociedade cria cate- gorias de homens e de mulheres para as diferenças de sexo. Essa cate- gorização acontece tanto para diferenças tidas como inatas como para aquelas tidas como construídas socialmente. Algumas das características baseadas em estereótipos atribuídos ao masculino e ao feminino estão representadas sinteticamente pela ta- bela abaixo: MASCULINO FEMININO Objetividade Senso Comum Universalidade LocalidadeRacionalidade Sensibilidade Neutralidade Emoção Dominação Passividade Cérebro Coração Controle Descontrole Conhecimento Natureza Civilizado Primitivo Público Privado A dualidade, além de limitar as características de cada gênero em seu próprio universo, torna invisível a interdependência entre o par. É 26 gênero: considerações sobre o conceito como se, a partir do nascimento, de acordo com o sexo biológico, mu- lheres e homens estivessem engessados em um rol de características destinadas, de�nitivas e previstas para cada sexo. Os estudos de gênero trazem à discussão o fato de que as carac- terísticas masculinas e femininas são entendidas como resultado de aprendizagem. Homens e mulheres aprendem a assumir determina- dos comportamentos, atitudes, características e sentimentos, de acor- do suas experiências de vida e com o contexto onde vivem. A dicoto- mia e a oposição entre as características de homens e de mulheres é, portanto inadequada, pois é perfeitamente possível que as mulheres assumam características de objetividade e racionalidade em certas situações da vida, que assim o exigem, e, em outras situações sejam amorosas e afetivas. Por outro lado, homens podem ser emotivos, sen- síveis e afetivos sem que com isto, sejam considerados mulheres. Essa aprendizagem dá aos seres humanos a possibilidade de transitarem entre as características mais comuns de cada gênero, sem que se confi- gure em um problema ou uma inadequação, do ponto de vista social. Gênero como uma variável psicológica Considerar o gênero como uma variável psicológica foi a opção de alguns pesquisadores ligados à área da psicologia que “optaram por conceituar gênero como uma orientação ou força da personalidade” (COSTA, 1994, p. 150). Com base em padrões de comportamento, ou “jeitos de ser” essa visão acaba por reforçar as diferenças entre o que é considerado feminino ou masculino e assim mantém as diferenças que seriam problematizadas (SIMIÃO, 2005, p. 11). Esta percepção do gênero mantém a visão binária, pois existem comportamentos que são considerados mais próprios de mulheres e outros, geralmente o seu oposto, para os homens. Não altera, portan- do a dicotomia. Gênero como Tradução de Sistemas Culturais Essa perspectiva entende o gênero como dois sistemas culturais distin- tos. De acordo com a perspectiva dicotômica já na infância, meninos e meninas são educados para agir e se comunicar de forma diferencia- da. A eles são ensinados direitos e deveres diferentes, criando assim 27 marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato as subculturas de gênero que se caracterizam por crenças, padrões de sociabilidade e maneiras de pensar opostas e divergentes e, quando tentam se comunicar entre si, geralmente são mal sucedidos (COSTA, 1994). Essa perspectiva vê as subculturas de gênero como sendo ho- mogêneas, como se todas as mulheres fossem iguais entre si, assim como todos os homens possuem as mesmas maneiras de ser, não le- vando em consideração diferenças de classe, raça, etnia, idade etc Gênero como Relacional Para Costa (1994) o ponto de partida para a compreensão das ques- tões de gênero numa visão relacional “não é o indivíduo, nem seus papéis, mas o sistema social de relacionamentos dentro dos quais os interlocutores se situam” (COSTA, 1994, p.158). A forma relacional de entender as questões de gênero, como o nome sugere, leva em consi- deração uma série de relações que circundam a questão, abandonan- do a visão dicotômica de gênero e da divisão de papéis, onde não se reconhece “uma essência masculina ou feminina, de caráter abstrato e universal (...)” (MORAES, 1998, p.100). Na visão relacional, o masculino e o feminino não são dois mundos à parte, as características podem va- riar, é a concepção de múltiplas masculinidades e feminilidades onde se privilegia a pluralidade. Segundo Louro (1997, p.22): O conceito passa a ser usado, então, com um forte apelo relacional – já que é no âmbito das relações sociais que se constroem os gêneros. Deste modo, ainda que os estudos continuem priorizando as análises sobre as mulheres, eles estarão agora, de forma muito mais explícita, referindo-se também aos homens. A visão relacional de gênero representa um avanço, pois leva em conta o contexto em que os indivíduos estão inseridos, as relações de poder, as crenças, as etnias, “o conceito passa a exigir que se pense de modo plural (...)” (LOURO, 1997, p. 23). Desta forma chama-se atenção para o fato de que não importa negar as diferenças, interessa a�rmar que as diferenças podem ser enfatizadas, negadas, interpretadas, es- tudadas, diminuídas ou atribuídas a diferentes fatores de acordo com as circunstâncias. 28 gênero: considerações sobre o conceito Considera-se, neste trabalho, o gênero como um sistema de sig- nificados atribuídos ao masculino e ao feminino e quando se fala em significados se fala em cultura no sentido antropológico. Daí a con- sideração de que muito do que diz respeito a gênero e suas constru- ções sociais vêm da cultura e não da biologia. É a partir da cultura que determinados signi�cados são imputados aos objetos, às atitudes, às crenças, aos costumes e aos comportamentos, é também a partir da cultura que são construídos os significados atribuídos ao masculino e ao feminino. Para Mariano (2008, p. 355): Gênero, como categoria analítica elaborada nos estudos feministas, tem a função de colocar luz sobre as diferentes posições ocupadas por homens e mulheres nos diversos espaços sociais, dando destaque ao modo como as diferenças construídas socialmente resultam em critérios de distribui- ção de poder, portanto, em como se constroem as relações de subordi- nação. Assim, o gênero também é considerado como constitutivo da vida social, está presente em todos os aspectos da vida social e assume conteúdos específicos em contextos particulares. Scott, uma das prin- cipais pesquisadoras da questão em nível internacional, afirma que “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” e “uma forma primária de dar signi�cado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p.86). Em determina- das culturas, por exemplo, pode ser observado como uma prática mais comum determinados tipos de trabalho serem executados por mulhe- res enquanto em outras , trabalhos semelhantes podem ser realizados por homens. São questões que podem mudar de sociedade para so- ciedade, con�rmando que os papéis de gênero desempenhados por homens e mulheres são construções sociais inseridas em certa cultura e seus signi�cados resultam dessa relação. A questão a ser destacada não é o fato de existirem trabalhos ou ações realizados mais comumente por homens ou por mulheres. O que se questiona é a hierarquização dessas ações e desses trabalhos, colocando os homens e as mulheres que os realizam em posições so- ciais desiguais, de dominação e subordinação. 29 marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato Conseqüências do uso da noção de gênero Ao abordar a questão de gênero como construção social passa-se a descon�ar dos dualismos universais, dualismos que colocam as carac- terísticas de homens e mulheres como fixas, diferentes e muitas vezes opostas, e ainda pretendem universalizar essas características como se as mulheres fossem todas iguais em toda parte do mundo ou até den- tro uma mesma sociedade, criando essencialismos universais tanto para elas, como para os homens. A partir da noção de gênero assumida neste trabalho, as dife- renças não são tomadas como inquestionáveis, não há uma predispo- sição para esse ou aquele comportamento ou características com base no sexo das pessoas. Não há características restritas ao feminino ou ao masculino, não há como considerar habilidadesou di�culdades pró- prias de mulheres ou de homens, as características são construídas ao longo da experiência vivida, independente do sexo. As diferenças tidas como inatas ou essenciais também passam a ser questionadas a partir desta noção de gênero, uma vez que a questão da construção social não embasa a idéia de que as diferenças estejam demarcadas pela natureza. Nesse sentido a célebre frase de Simone de Beauvior que diz que nin- guém nasce mulher, mas torna-se mulher ilustra adequadamente essa idéia. Toda e qualquer diferença deve ser entendida contextualmente. Assim, as diferenças intra-gêneros, aquelas que se referem ao um mes- mo gênero e as diferenças inter-gêneros, referindo-se a diferentes gêne- ros precisam ser consideradas e entendidas em seus próprios contextos, de modo a não cair em outros determinismos e outras desigualdades. Perpassando a questão de gênero é preciso considerar também as ques- tões de etnia, classe social e outras diferenças sociais. Ao limitar a conceituação de gênero nas diferenças sexuais es- tamos deixando à margem todo o contexto sócio-histórico-cultural em que os indivíduos estão inseridos. Na educação das crianças, o esforço em acalmar os ímpetos das meninas, comumente percebido nas escolas desde a educação infantil, onde a menina é educada para conter-se, controlar-se, sentar direito, fa- lar baixo, ser delicada, e comportar-se como uma menina. Na educação dos meninos já se observa o contrário, eles são incentivados desde cedo 30 gênero: considerações sobre o conceito a terem iniciativa, serem mais agressivos, colocarem suas opiniões e se expandirem muito mais. Mesmo na escola, faz parte das expectativas das professoras desde as séries iniciais, que os meninos sejam mais ati- vos e descontrolados em termos de comportamento do que as meninas. Quando acontece o inesperado é que surgem os problemas mais sérios, decorrentes das visões estereotipadas e preconceituosas de gênero. Na família, desde que a criança nasce essa forma de ensinar o controle do comportamento da menina e uma maior tolerância ou até incentivo quanto à falta de controle do comportamento dos meninos é uma observação muito comum em nossa sociedade. O que mais tarde vai ser evidenciado na escola já vem desde a vida em família, nas formas diferenciadas de educar meninos e meninas. 1 Inúmeras autoras que interpretaram o gênero sob diferentes óticas podem ser citadas. Dentre elas: Rosaldo e Lamphere (1979);, Chodorow (1979); Butler (2003); Nicholson (2000); Strathern (2006); Scott (1995); dentre as brasileiras Heilborn (1992); Grossi (2006); Corrêa (2001); Piscitelli (1997); Louro (1997); Bruschini (1994); Costa (1994); Citeli (2001); dentre ou- tras. Referências AUAD, Daniela. Educar meninos e meninas: relações de gênero na escola. São Paulo: Contexto, 2006. 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A partir da década de 1980 a escola passa a apresentar preo- cupações com a AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). A falta de informações a respeito dessa doença, o crescimento no nú- mero de contaminações e a associação com práticas sexuais revelou a necessidade de discutir a sexualidade, quebrando resistências. A inserção do tema, entretanto, ocorreu de forma bastante limitada e com ênfase na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. O tema sexualidade revela-se polêmico, envolvendo tabus, medos, questões religiosas, morais e éticas – o que dificulta a busca de consensos de como a educação formal deveria abordá-lo. Essa dificuldade muito se deve ao fato de que a sexualidade é vista de forma restrita, associada ao ato sexual, desconsiderando a relação com o corpo, o prazer e o desejo. Sexualidade não é sinônimo de sexo, é muito mais que isso: é energia que possibilita encontros, trocas e experiências; influencia pensamentos, sentimentos, açõese interações e, portanto, tem a ver com a saúde física e mental do ser humano. 34 sexualidade e gênero na escola De forma geral, fala-se muito em sexo e pouco em sexualidade. O sexo chega a ser banalizado em produções culturais – programas de TV e rádio, músicas, revistas – que constantemente apresentam o corpo como objeto de consumo. O erotismo, a nudez e cenas de sexo são utilizadas cotidianamente para vender produtos ou ganhar pontos numa verdadeira guerra de audiência e disputa de leitores e leitoras. Para Abreu (1996) a sexualidade – massivamente presente em nossa cultura – quase sempre se sujeita a limitações. Formas de humor, representações da mulher, roupas, intenções eróticas explí- citas na publicidade apontam obsessivamente em direção a práticas sexuais num contexto em que o modelo de mercado/consumo ab- sorve uma “nova moral”, e a representação transgressiva da sexuali- dade ganha formatos e padrões que a transforma em mercadoria. Se por um lado, o sexo é transformado em “mercadoria” que necessariamente deve ser massificada e “consumida” sem qualquer critério ético e moral, por outro, assistimos a um processo de re- sistência conservadora na qual se reforça a idéia de algo sujo, feio, proibido ou pecaminoso, e cuja “purificação” ocorreria por meio de relações “estáveis” e heterossexuais. É necessário desconstruir a amálgama entre sexo (ato sexu- al) e sexualidade, para que se possa considerar a sexualidade em uma dimensão ampla, contemplando seus diversos aspectos, e que, por sua relevância, receba atenção necessária nos processos edu- cacionais. A liberação sexual total e irrestrita ou a repressão geral parecem ser modelos que não contribuem para que as pessoas se cuidem, respeitem a si próprias, mantenham sua auto-estima e vi- vam sua sexualidade como um direito que, para se efetivar, também exige responsabilidade. Este texto apresenta parte das reflexões sobre gênero e sexua- lidade do Módulo I – Gênero e Sexualidade – do curso “Construindo a igualdade na escola: repensando conceitos e preconceitos de gê- nero”, no qual participaram 328 pessoas distribuídas em 06 turmas. Dessa forma, consiste num trabalho coletivo, pensado inicialmente pelas docentes do módulo – Nanci Stancki da Luz e Beatriz Maria Megias Ligmanovski Ferreria – mas que teve colaboração valiosa de todas as pessoas que participaram do curso. 35 beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz Sexualidade e gênero: conceitos em interação Abramovay (2004) de�ne sexualidade como uma das dimensões do ser humano que envolve gênero, identidade sexual, orientação sexual, ero- tismo, envolvimento emocional, amor e reprodução. É experimentada ou expressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, va- lores, atividades, práticas, papéis e relacionamentos. Os componentes socioculturais, dessa forma, revelam-se críticos para essa conceituação, que se refere tanto às capacidades reprodutivas quanto à questão do prazer. A sexualidade é algo complexo e não pode ser separada dos as- pectos social, político, cultural e econômico, tampouco associada ape- nas a determinadas fases da vida humana. Ela está presente desde a concepção até a morte. Quando ainda bebês, a sexualidade pode ser percebida no ato da amamentação, nos brinquedos, nas brincadeiras, nas roupas, no toque, no conhecimento do próprio corpo, no contato físico com a mãe ou pai, gerando sensação de bem-estar. Na puberdade ou na adolescência, as sensações de prazer são, em grande medida, voltadas para a região genital, por conta de uma maior produção de hormônios. É uma época de grandes transformações – fí- sicas, emocionais, culturais e sociais. As roupas, os relacionamentos e a masturbação são formas de manifestação da sexualidade desse perío- do. Na fase adulta, a sexualidade se expressa nas relações afetivas, nos relacionamentos sexuais, no casamento, no amor, na opção ou não de procriar. E, na terceira idade – não impeditiva para a vivência da sexu- alidade – ela também se expressa nas relações afetivas e sexuais e na relação com o próprio corpo. Vale destacar que não existe padrão ou uma relação biunívoca entre faixa etária e forma de vivência da sexualidade, pois ela difere de pessoa para pessoa. Entretanto algo é constante: sexualidade está sem- pre presente, pois, é a própria vida. Diversas áreas – Medicina, Psicologia, Psiquiatria, Biologia, Filoso- �a, Sociologia – buscaram explicar, com base em suas perspectivas, a sexualidade humana. Autores (Aries, 1981; Duarte, 1996; Giddens, 1992) apontam que, no �nal do século XIX, o conceito de sexualidade foi focado na individualidade e como parte de um projeto de sociedade capitalista. Dumont (1993) apud Heilborn (1999) argumenta que a individualidade, 36 sexualidade e gênero na escola por um lado, possibilitou a construção de um sujeito político, livre, por- tador de direitos de cidadania e, por outro, erigiu a subjetividade como tema central para a constituição da identidade. Nesse período a sexu- alidade desperta diferentes formas de saber e buscam problematizar um “novo individuo”, dando espaço para o surgimento de movimentos como o do médico-higienista, no qual o corpo é um objeto de estudo e intervenção. Nesta última perspectiva, diferentes áreas do saber busca- ram explicar o corpo, particularmente o das mulheres. Estudos de Freud se destacaram ao relacionar comportamentos à subjetividade, possibili- tando a organização e o controle dos corpos (FOUCAULT, 1984). Alguns eventos impulsionaram estudos a respeito da sexualida- de, entre os quais destacamos: • o desenvolvimento de métodos contraceptivos, rompendo a associação entre o exercício da sexualidade e a reprodução da es- pécie; • o surgimento de novas reflexões derivadas dos movimentos so- ciais organizados e de estudos advindos da academia. A ação dos movimentos sociais, com destaque para o feminista e o de gays e lésbicas, contribui para o avanço signi�cativo dos estudos nessa área. A emergência dos estudos de gênero deu visibilidade à com- plexidade da sexualidade, explicitando as dimensões sociais e políticas de um tema tratado mais no campo biológico. A relação entre sexuali- dade, gênero, saúde e cidadania possibilitou o surgimento de discus- sões sobre os direitos reprodutivos e direitos sexuais, contribuindo para a construção dos direitos individuais e coletivos. A forma como a sexualidade é percebida e vivida sofre interfe- rência de uma conjunção de fatores, destacando as relações de poder e, particularmente, as de gênero. Essas, tradicionalmente, trazem em seu âmago construções de masculino e de feminino nas quais a sexualidade é vista, ensinada e controlada de formas distintas quando se trata de homens e mulheres. Gênero é uma categoria que ajuda a entender o processo de construção social do masculino e do feminino, recolocando o debate no campo social: 37 beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz [...] pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações (desiguais) entre os sujeitos. As justi�cativas para as desigualdades precisariam ser buscadas não nas diferenças biológicas (se é que mesmo essas podem ser compreendidas fora de sua constituição social), mas sim nos arranjos so- ciais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representação (LOURO, 1997:22). Adotar essa perspectiva de análise para gênero e sexualidade permite entender que a sexualidade, assim como o que é percebi- do como masculino e feminino, está associada a contextos históri- cos, culturais, sociais e econômicos específicos que participam dessa construção. Nesse sentido, o espaço escolar é um espaço relevante e que produz, reproduz, rea�rma, desconstrói e legitima imagens e repre- sentações de gênero e sexualidade. Esse espaçoé, no entanto, con- traditório, pois, assim como pode reproduzir, pode também transfor- mar. Para Freire (2003) educar é construir, libertar homens e mulhe- res do determinismo, passando a reconhecer o seu papel na história, considerando a sua identidade cultural na sua dimensão individual e coletiva. Sem respeitar essa identidade, sem autonomia ou sem levar em conta as experiências vividas, o processo educativo será inoperan- te e constituirá somente um conjunto de meras palavras, despidas de signi�cação real. A escola, dessa forma, pode reproduzir papéis de gênero e modelos de sexualidade que oprimem, mas que também podem construir relações que libertem e nas quais a dignidade humana e a igualdade de direitos poderão ser princípios norteadores. A legisla- ção brasileira traz essa perspectiva, prevê a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres e estabelece entre os objetivos da República Federativa a promoção do bem de todas as pessoas, sem preconceitos ou qualquer outra forma de discriminação. A concreti- zação desse objetivo depende de reflexões sobre gênero e sexualida- de, para que essas categorias deixem de ser utilizadas para classi�car, discriminar e excluir e contribuam para a criação de novas formas de abordagem que desconstrua preconceitos e discriminações – ativida- des que pode ser assumida pela escola. 38 sexualidade e gênero na escola Sexualidade e gênero na escola A instituição escolar pode e deve contribuir para uma educação cida- dã e libertadora que contemple a dimensão sexual, a diversidade, os direitos humanos e a multiculturalidade. Todavia, para que isso ocorra é necessário a implementação de novas praticas pedagógicas. A sexualidade e o gênero – em constante construção – fazem parte das pessoas que compõe a comunidade escolar. Mesmo que a educação não assuma formalmente esse debate, ele está permeando as relações entre docentes e discentes. Para Louro (2007), a sexuali- dade não é apenas uma questão pessoal, mas social e política, sendo construída ao longo de toda uma vida, de muitos modos, por todos os sujeitos, particularmente, os envolvidos no processo educacional. Se é papel da escola tratar da sexualidade, como essa deve ser abordada? Docentes se sentem preparados para isso? Quais as di�cul- dades e obstáculos que estariam impedindo a inserção da temática “gênero e sexualidade” na escola? Relatos dos participantes do curso “Gênero e Sexualidade” con- �rmam a di�culdade em se trabalhar a temática sexualidade e gêne- ro: Existe di�culdade para se trabalhar o assunto sexualidade em sala de aula, por conta do preconceito, por falta de preparo e informação dos professores, questões religiosas, construção social. Não existe prepara- ção, cursos na academia sobre o tema. A sociedade é formada por insti- tuições que têm seus princípios construídos historicamente, que tendem a transformar a sexualidade em tabu. (PARTICIPANTE 1) Os participantes do curso apontaram dois fatores relevantes e que di�cultam o debate do tema: a) resistência familiar – pais e mães rejeitam a idéia de que seus �lhos e �lhas tenham informações a respeito, temendo que a sexualidade seja estimulada; b) professores não se sentem preparados, tanto para enfrentar as resistências ao tema quanto para abordá-lo, que acaba restri- to a docentes da área Biológica e, por conseqüência, também focado em aspectos biológicos. 39 beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz No que se refere à tolerância com a diversidade, a fala da Partici- pante 2 expressa um sentimento comum: Não [a escola não é tolerante]. É preciso enfrentar o sexismo, o machismo, a homofobia e racismo nas escolas, a partir da aquisição de conhecimentos, mudanças de posturas e da luta por políticas publicas educacionais que apóiem o trabalho pedagógico. (PARTICIPANTE 2) Para reverter a ausência de discussão sistematizada a respeito da sexualidade, bem como o tratamento preconceituoso que é dado ao tema, o protagonista dessa mudança – a professora ou professor – pre- cisa ter domínio sobre o assunto, refletir e problematizar essa questão, assumindo a importância desse debate para a formação de gerações futuras, bem como a relevância de uma educação calcada em valores humanos e no respeito aos direitos individuais e coletivos, eliminando qualquer tipo de discriminação do ambiente escolar. Para Whitaker (1989), o fato de educadores e educadoras não do- minarem a problemática de gênero contribui para a continuidade de velhas crenças impregnadas de ideologias desvalorizadoras do papel da mulher na “história”, o que se encontra nos currículos ou na forma como esses são apresentados, trazendo uma visão masculina do universo. Mais do que rever currículo escolares, há que se repensar na for- mação docente e enfrentar o preconceito e as violências de gênero que, muitas vezes, os próprios professores enfrentam no dia-a-dia de traba- lho. Urgente também repensar o masculino e o feminino frente a uma realidade social que não comporta mais modelos duais e discriminató- rios. A realidade tem exigido posturas educacionais abertas e que per- mitam o pleno desenvolvimento humano. Conforme artigo da UNICEF (1999), se a educação das meninas e adolescentes tiver como parâmetro apenas a maternidade e o casamento, di�cilmente, na fase adulta, elas emitirão suas opiniões na sociedade ou mesmo concorrerão a um cargo político, pois, tenderão a assimilar, por meio da socialização, que essas são ações para os homens. Estereótipos e preconceitos marcam a educação. A escola repro- duz muito do que a sociedade tem esperado de comportamentos mas- culinos e femininos. A delicadeza, a fragilidade, a discrição, a passividade, o pudor e a emoção são ensinados para as meninas. Em contrapartida, dos meninos, espera-se competitividade, agressividade, força física e ra- 40 sexualidade e gênero na escola cionalidade, sob a alegação de que são características masculinas. De ambos os sexos, espera-se relações heterossexuais, consideradas como forma “única” e “correta” de vivência da sexualidade. Constro- em-se dois mundos – o real e o imaginário – tão díspares que não ajudam a construir relações igualitárias numa realidade na qual ho- mens e mulheres vivem juntos e que nem sempre (ou quase nunca) se enquadram nesses padrões. Qual é o espaço das pessoas que não se enquadram nesses modelos? A escola pode desconsiderar que a realidade não comporta um modelo único? A sociedade tem imposto padrões de gênero e modelos de se- xualidade que impedem o desenvolvimento individual, social e po- lítico de muitas pessoas – particularmente daqueles indivíduos que não se “encaixam” no modelo hegemônico. A imposição de padrões fixos e a intolerância com a diversidade têm gerado discriminação, ódio, preconceito e violência – questões que não contribuem nem para o desenvolvimento humano, tampouco para o social de uma nação. As instituições educacionais em geral não têm apresentado preocupações com a diversidade, ocultando dos currículos: (...) a multiplicidade das diferenças culturais (em especial a dos gêneros e das sexualidades), bem como o não-reconhecimento pedagógico do caráter construído e político das identidades (hegemônicas e subordi- nadas) e de seus sujeitos. Além desses temas estarem esquecidos, são freqüentemente mal trabalhados, tanto pedagogicamente quanto nas relações sociais que se estabelecem na escola, a despeito das políticas educacionais que atualmente contemplam tanto a questão de gênero quanto à da sexualidade (FURLANI, 2005, p. 225-226). Furlani (2005) complementa que a escola é espaços estratégi- cos para a reflexão, para que sejam conferidos novos significados aos sujeitos e às práticas subordinadas. A educação deve romper com os padrões de identidade ditos como normaisem detrimento de outros, pois, como e quem tem poder para definir o que é normal ou não? Parece claro que as práticas sociais devem sofrer limitações, uma vez que a convivência humana depende de relações de respeito aos direitos de outras pessoas. O silêncio e os padrões pré-estabele- cidos de gênero e sexualidade presentes na escola, no entanto, não 41 beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz têm contribuído para que as pessoas percebam tais limites. A pedofi- lia, a violência sexual, a violência doméstica, a homofobia, o sexismo, o racismo, entre outras questões revelam que o silêncio sobre o tema não representa possibilidades de se viver em uma sociedade que res- peite as diferenças. O que tem imperado é individualismo, a indife- rença, o egoísmo, contribuindo para gerar relações que, em muitos casos, podem ser classificadas como patológicas e criminosas, como nos casos de abuso e de violência sexual e de gênero. Furlani (2005) contribui nessa discussão mostrando que a questão da identidade, da diferença e do outro é um problema pe- dagógico e curricular, especialmente, se o outro é o outro gênero, é a cor diferente, é a outra sexualidade, é a outra etnia, é a outra nacio- nalidade, é o corpo diferente. Problema maior ainda quando o outro não é aceito pela própria escola. Silva (2000) complementa, alertando que é imprescindível que o âmbito escolar mostre que o “outro” pode ser “eu’, ser “você”, en- fim, que o “outro” e o “eu” são as mesmas pessoas. Gênero e sexualidade: é possível iniciar o debate na escola? O conhecimento da realidade na qual a escola está inserida é con- dição preliminar de qualquer atividade docente envolvendo as te- máticas de gênero e sexualidade. Um bom diagnóstico indicará as demandas, sendo sempre necessário que se tenha cuidado com pro- postas prontas e milagrosas que possam afrontar diretamente a cul- tura local e gerar resistências, afastando qualquer possibilidade de atuação na área. Na sala de aula, notícias em revistas e jornais podem exemplifi- car violências contra mulheres, crianças, homossexuais, negros e po- bres. A consideração de que essas pessoas não são “outros”, mas que a violação de seus direitos é a violação do direito de todos, pode ser uma questão óbvia, mas que nem sempre é entendida. Uma socie- dade sem violência – desejo coletivo – exige que esse tipo de mani- festação não seja tolerado, independente da vítima. A reflexão sobre tais questões apontará caminhos, mostrando aos educandos, sejam esses meninos ou meninas, que violência, preconceito, sexismo, ho- mofobia, misoginia ou racismo não são naturais, sendo possível des- construí-los, contribuindo para a realização de uma sociedade com 42 sexualidade e gênero na escola novos parâmetros, entre os quais esteja a justiça social e o respeito à diversidade. O docente é o protagonista central da educação – uma vez que planeja, avalia, implementa propostas, educa, interfere sobre a realida- de –, o que sempre exigiu de sua postura pro�ssional profundos conhe- cimentos. Dessa forma, coloca-se a sua frente um novo desa�o: ensinar sobre conteúdos e temas que, numa perspectiva tradicional, não fazem parte da sua área de formação. Sabemos ser impossível ensinar aqui- lo que não conhecemos, por isso, a viabilidade do desenvolvimento de trabalho com as temáticas aqui abordadas só será possível com investi- mentos na formação de educadores. Destaca-se a importância dessa formação, pois, mudanças nas concepções e práticas escolares dependem, sobretudo, de preparação, de sensibilização docente. A inclusão de temas como gênero e sexua- lidade nos cursos regulares e de educação continuada oferecerá base teórica e metodológica para que o docente tenha segurança para apre- sentar e debater questões que, por sua relevância, não podem ser trata- das de qualquer maneira. Esse tipo de ação também possibilitará que os educadores enfrentem situações que aparecem no seu cotidiano e que exigem respostas educacionais: discriminações de gênero, homofobia, sexismo, gravidez na adolescência, doenças sexualmente transmissíveis, aborto, etc. A formação continuada deve ter como ponto de partida a reali- dade do trabalho docente. Pretender formar docentes, sem ouvir de- mandas ou conhecer a realidade educacional, é iniciar um trabalho com menores possibilidades de suprir expectativas e correr o risco de não atingir os reais objetivos de uma capacitação: preparar o professor e a professora para a intervenção pedagógica. Essa formação é desa�adora, abrindo possibilidades para que os docentes revejam suas práticas, suas formas de ensinar e aprender, inte- ragir e signi�car o conhecimento em todas as suas dimensões, integrar os conteúdos e associá-los à vida real. Isso contribuirá para o desenvolvi- mento de um trabalho amplo, não voltado apenas para o cumprimento de metas e conteúdos, mas para o desenvolvimento pessoal de cada discente e para o desenvolvimento social do país. Os temas se renovam a cada dia, exempli�camos alguns que po- dem ser trabalhados na escola: aborto; fetos anencefálicos; direito à vida 43 beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz (do feto; da mãe); autonomia sobre o corpo; controle de natalidade; mé- todos contraceptivos; saúde materna; mortalidade materna; câncer de útero, mama ou próstata; planejamento familiar; contracepção; concep- ção; adoção; início da vida; pesquisas com células-tronco; direitos sexu- ais e reprodutivos; violência de gênero, doméstica e contra a mulher; pedo�lia; parto natural; cesárea; barriga de aluguel; fertilização in vitro; bebê de proveta; início da vida sexual de homens e mulheres; desco- berta do corpo; cuidados com o corpo; união homoafetiva; mudança de sexo; maternidade responsável; paternidade responsável, etc. Para a educação não há “receitas prontas”, a realidade desvela- rá questões latentes e caberá aos docentes a de�nição do método que melhor se adapta ao assunto e à realidade de seu trabalho. Temas como gênero e sexualidade não pretendem e tampouco devem substituir os conteúdos “tradicionais” das disciplinas que compõe o currículo escolar. Uma das possibilidades consiste no tratamento como tema transversal, forma que possibilita a inserção dessas questões sociais presentes no dia-a-dia do estudante e em debate na sociedade, sem deixar “de lado” outros assuntos tão importantes quanto. Muitas dessas questões reve- lam preocupações da sociedade, exigem análise crítica e posicionamen- to do grupo discente, mas podem ser trabalhadas de forma articulada com outros temas já tratados nas disciplinas escolares. Se é primordial saber trabalhar gênero e sexualidade, pois, de- mandas sobre a temática surgirão, não sendo possível abster-se diante delas, também é necessário refletir a respeito do conhecimento que está sendo reproduzido e construído pela escola. O rompimento com qual- quer determinismo e com padrões e modelos hegemônicos, abrindo para a aceitação da diversidade é condição sine qua non para a conso- lidação de propostas pedagógicas que visem à interação das próprias dimensões humanas, dos sujeitos e a construção de uma sociedade hu- mana e justa. Considerações Finais A escola pode ser um espaço gerador de transformação de comporta- mentos e valores. Como parte do contexto social, essa instituição não �ca imune à reprodução de valores presentes na sociedade, sendo comum a propagação de discriminações e preconceitos, o que ocorre quando repassa uma visão androcêntrica de mundo e ensina às mulhe- 44 sexualidade e gênero na escola res a aceitarem uma suposta inferioridade pelo fato de serem mulheres. Os meninos, ao aprenderem e não questionarem tal visão, aceitam uma suposta superioridade pelo fato de serem homens. Assim, a escola vai consolidando a desigualdade e, sem problematizartais questões, conti- nua com suas práticas rotineiras, rea�rmando e reforçando valores dis- criminatórios. A inclusão das temáticas de gênero e sexualidade em cursos de formação docente contribuiria para essa problematização e para uma análise crítica do que é reproduzido pela instituição escolar. A formação cidadã não pode deixar de considerar que se vive numa sociedade desi- gual, e que tais questões são fatores que contribuem para a construção das desigualdades sociais. Esse reconhecimento é essencial para a inter- venção e a promoção de mudanças sociais. Nessa perspectiva, não há lugar para escolas que reproduzem o machismo, a homofobia e a inferioridade feminina. Vale lembrar que a categoria docente, em nosso país, é formada majoritariamente por mu- lheres, que precisam da valorização social da sua pro�ssão para que pos- sam contribuir para a valorização e desenvolvimento humano. Em espa- ço algum faz sentido o machismo, a discriminação e a violência contra a mulher, mas, menos ainda, numa pro�ssão composta majoritariamente por mulheres. A valorização do trabalho docente e o reconhecimento de que a escola pode interferir sobre a realidade, construindo a autonomia de seus alunos e alunas e seu desenvolvimento integral, contribuirá para a construção de uma sociedade que respeite as diferenças e que diga não às desigualdades. Educandos devem aprender a respeitar o ser hu- mano em sua diversidade, aprender a conviver com diferenças e ajudar a pensar um mundo sem preconceito, racismo, sexismo, homofobia ou qualquer outro tipo de violência. Referências ABRAMOVAY, Mirian. Juventudes e sexualidade. Brasília: UNESCO Brasil, 2004. ABREU, Nuno Cesar. O olhar pornô: a representação do obsceno no cinema e no vídeo. Campinas, SP: Mercado de letras, 1996. 45 beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz BRASIL. Constituições da República Federativa do Brasil e do Estado de São Paulo. Declaração universal dos direitos humanos. São Paulo: Imprensa O�cial, 2000. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9.394/1996. In: CURY, C. R. J. Legislação educacional brasileira. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Ensino e Educação com Igualda- de de Gênero na Infância e na Adolescência – Guia Prático para Educadores e Educadoras. USP-NEMGE/CECAE, Projeto USP/PRONAICA, 1996. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido versus pedagogia dos conteúdos. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias críticas do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. LOURO. Guacira Lopes. Um Corpo Educado: Pedagogia da Sexualidade. Belo Ho- rizonte: Autêntica, 2007. _____. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Pe- trópolis: Editora Vozes, 1997. SCOTT, Joan. Gênero: Uma categoria útil de análise histórica. 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A violência doméstica, uma das inúmeras formas de expressão dessa violência, por longo tempo foi tratada como algo da esfera fami- liar, o que afastava a intervenção do poder público e permitia que, na ausência de relações de afeto e proteção, imperasse a lei do mais “forte” em grande medida personi�cada em uma �gura masculina que, no uso arbitrário de sua força física, considerava-se com direitos de subjugar, humilhar ou mesmo agredir outros familiares. Relações de poder desiguais entre homens e mulheres e a inércia do Estado e da sociedade frente a essa realidade di�cultaram a efetiva- ção dos direitos fundamentais das mulheres vítimas de violência, entre os quais o direito à vida, à integridade física, emocional e psicológica, à liberdade de pensamento e de escolha, à saúde, à segurança, entre outros. A violência atinge homens e mulheres, entretanto, as suas formas de manifestação, em geral, distinguem-se quando se trata de um ou de outro gênero. Enquanto a violência contra os homens pode ser asso- 48 violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos ciada majoritariamente ao espaço público, grande parte da violência contra a mulher tem ocorrido no próprio lar e tem, em grande parte dos casos, como agressor o marido, companheiro ou namorado, ou ainda esses mesmos, mas na condição de ex-parceiros. Este texto discute a violência contra a mulher, apontando alguns elementos que contribuem para a sua construção e permanência social. Destaca as resistências frente a esse processo, bem como as conquistas da luta feminista na desconstrução da naturalização da violência contra a mulher e no combate à sua impunidade, contribuindo, dessa forma, para a efetivação dos direitos humanos que, sem as mulheres não se concretizam, pois metade da parcela que compõe a humanidade �ca excluída. A violência A violência é um fenômeno amplo e que inclui não apenas comporta- mentos entre indivíduos, mas também se refere a questões como de- sigualdades (sejam elas sociais, étnicas, de gênero ou classe), pobreza, desemprego, intensi�cação e precarização do trabalho, desvalorização pro�ssional e salarial, discriminação, falta de atendimento aos direitos básicos, abandono, etc. Para Ristum e Bastos (2004), é difícil abarcar a violência como um todo, devido a sua complexidade. O próprio conceito pode sofrer inter- ferência do julgamento social, di�cultando uma formulação consensual e ocultando formas de agressão. Embora a violência possa assumir di- versas formas, devido a uma visão reducionista, muitas vezes, �ca rela- cionada apenas com a criminalidade, deixando de incluir a dominação política, econômica e de gênero e todas as implicações dela decorren- tes. Herkenho� (2004) destaca a necessidade de se distinguir agressi- vidade de violência. A agressividade, cujo oposto é a passividade, tem aspectos construtivos e signi�ca dinamismo e energia vital. A violência, ao contrário, tem sempre implícita a destrutividade. Essa destrutivida- de, todavia, também pode ser libertadora quando, não havendo outra alternativa, é utilizada como forma de defesa e de a�rmação humana. No entanto, num sentido restrito, o termo violência explicita o conjunto de ocorrências que põem em perigo bens da vida e a integridade das pessoas. 49 nanci stancki da luz Diante da complexidade e extensão do tema, algumas de�nições e delimitações revelam-se necessárias. Consideramos a violência como uma construção histórica e social da qual faz parte as desigualdades de gênero. O fenômeno da violência, de acordo com Herkenho� (2004), pode se manifestar a partir de três níveis que mantém nítida conexão: 1) Violência institucionalizada, decorrente da estrutura socioeco- nômica vigente; 2) Violência privada, de indivíduos ou grupos, que se manifesta por meio de comportamentos considerados criminosos pelo sis- tema legal; 3) Violência o�cial, representada pela repressão policial e por aquela exercida pelo aparelho judiciário e prisional. Este texto considera a inter-relação entre esses três níveis, no entanto destaca a violência entre indivíduos e particularmente
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