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Mauro Berté Metodologia e Prática de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental Sumário 03 CAPÍTULO 1 – As Concepções de Linguagem Influenciam no Ensino e Aprendizagem da Língua Portuguesa? ............................................................................05 1.1 As diferentes concepções de linguagem .....................................................................05 1.1.1 A gramática tradicional e o estruturalismo .........................................................06 1.1.2 A linguística da enunciação .............................................................................07 1.2 O que dizem os PCN de Língua Portuguesa ...............................................................08 1.2.1 O que são os PCN ..........................................................................................08 1.2.2 Análise e reflexão sobre a língua ......................................................................10 1.3 Norma culta e variação linguística .............................................................................12 1.3.1 A variante padrão do Português brasileiro ..........................................................12 1.3.2 As outras variantes e o preconceito linguístico ....................................................14 1.4 O trabalho com a linguagem oral ..............................................................................16 1.4.1 Recomendações dos PCN ................................................................................16 1.4.2 Textos de circulação escolar para o trabalho com a linguagem oral ......................18 Síntese ..........................................................................................................................20 Referências Bibliográficas ................................................................................................21 Capítulo 1 05 Para que ensinamos Língua Portuguesa? Para que as crianças aprendem essa disciplina? Respon- der ao “para que” envolve tanto as escolhas por uma ou outra concepção de linguagem quanto a adoção de determinada postura relativamente à educação. Ambas se fazem presentes na arti- culação metodológica: qual conteúdo ensinar, sobre qual enfoque trabalhar, que estratégias de trabalho escolher, que bibliografia utilizar, por qual sistema de avaliação optar e por quais bases estabelecer o relacionamento com os alunos. Toda e qualquer metodologia de ensino articula uma opção política/teórica com os mecanismos empregados em sala de aula. A opção política diz respeito às escolhas de uma teoria de com- preensão e interpretação da realidade que, por sua vez, determina a postura do professor: quero que meu aluno seja um cidadão pensante e que tenha condições de formar uma opinião sobre afirmações de diversas naturezas? Neste estudo, você entenderá as diferentes concepções de linguagem; poderá relacioná-las às práticas vigentes de ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa no Ensino Fundamental I e compreender o enfoque interacionista das recomendações dos Parâmetros Curriculares Na- cionais (PCN) do Ensino Fundamental em questões como norma culta, variação linguística e o trabalho com a linguagem oral. 1.1 As diferentes concepções de linguagem Do mesmo modo que a postura do professor em relação à educação influencia sua prática pe- dagógica, a concepção de linguagem e de língua também alteram profundamente o modo de se estruturar o trabalho com a língua em sala de aula. Quais concepções tradicionalmente per- passam as práticas escolares? O que essas concepções fornecem ao ensino da língua? Qual a tendência atual? De um modo ou de outro, os educadores transitam entre diferentes concepções: a linguagem como representação do mundo e do pensamento; como instrumento de comunica- ção e; como lugar de ação e construção de interação. Esse tópico abordará as três principais correntes de pensamento e suas respectivas visões sobre a linguagem. As Concepções de Linguagem Influenciam no Ensino e Aprendizagem da Língua Portuguesa? 06 Laureate- International Universities Metodologia e Prática de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental Figura 1 – As concepções de linguagem têm influência direta sobre a metodologia de ensino e, consequentemente, na aprendizagem do aluno. Fonte: wavebreakmedia, Shutterstock, 2016. 1.1.1 A gramática tradicional e o estruturalismo Para os adeptos da gramática tradicional, cujo foco é a normatização e o domínio da nomen- clatura metalinguística, a linguagem é a expressão do pensamento. De acordo com Geraldi (1982; 2010), conceber a linguagem como tal, resulta em afirmações de que pessoas que não conseguem se expressar não pensam. Travaglia (1995) esclarece que, nessa concepção, o pensamento seria criado na mente do in- divíduo, e a exteriorização (produção de um enunciado) seria como uma tradução daquilo que se pensava, num processo sem reflexão. Portanto, nessa perspectiva, a língua é compreendida como homogênea e estática, e a constituição do texto (oral e escrito, espontâneo ou produzido), usado em cada situação de interação comunicativa, não dependeria em nada de quem se fala, em que situação se fala, como, quando e para quem se fala. Nessa visão da linguagem, o ensino privilegia apenas um único uso da língua. Segundo Travaglia (1995), essa concepção de ensino interfere nas habilidades linguísticas existentes, por dois motivos: primeiro, por ser exclusivamente prescritivo, em segundo, por apenas priorizar o trabalho com a variedade escrita culta da língua em sala de aula, tendo a correção formal da linguagem como um de seus objetos básicos. Essa concepção embasa os estudos tradicionais, para os quais a língua é um código e a escrita é o exercício de combinar palavras e frases para formar um texto. Observa-se essa vertente no ensino que prioriza as estruturas que compõem a língua (substantivos, verbos, pronomes, etc.) e seus usos corretos. Já segundo a corrente estruturalista, a linguagem é um instrumento de comunicação. Ligada à teoria da comunicação, essa concepção vê a língua como código (um conjunto de signos que se combinam segundo regras) capaz de transmitir ao receptor determinada mensagem. Segundo Tra- vaglia (1995), nesse viés, a linguagem é um meio objetivo para a comunicação, desse modo, para que a comunicação seja efetivada, considera-se que emissor e receptor devam dominar o código. Essa é uma tendência que se difundiu nos anos 1970, e que promoveu mudanças nas práticas es- colares. Com a linguagem deixando de ser entendida apenas como a expressão do pensamento, mas também como um instrumento de comunicação que envolve um interlocutor e uma mensa- gem a ser compreendida, os gêneros textuais/discursivos passaram a ser vistos como instrumen- tos de transmissão de mensagens. Assim, os alunos deveriam aprender as características de cada um dos gêneros para saber identificá-los e então reproduzi-los na escrita. Veja um exemplo de como essa perspectiva analisa e categoriza um gênero: 07 A: Olá pessoal, senti falta da presença de vocês ontem. A festa foi muito boa! B: Hallo Christoph, Schade, dass wir nicht mitfeiern können! Nos dois casos, uma pessoa (o emissor A) escreveu alguma coisa à outra (o destinatário B), dando uma informação (a mensagem) na ocasião de um aniversário (contexto). Para tal utilizou um aplicativo de mensagens instantâneas para Smartphones (canal) e transformou o que tinha a dizer em um código (a língua): o texto A, está em o Português; o texto B, em Alemão. Além disso, o emissor precisou selecionar um conjunto de vocábulos (ou de sinais) no código que escolheu. Nota-se que a teoria se concentra na melhor maneira do emissor codificar a informação. Nesse sentido, a informação não é considerada conteúdo, o que está em causa são os aspectos técni- cos, pois o importante é quea mensagem chegue ao receptor; a informação não é significado e por isso não diz respeito à interpretação, o importante é a quantidade/qualidade de informação transmitida. É essencial, portanto, seguir um padrão preestabelecido para os gêneros, do contrá- rio produz-se o ruído e a informação não é compreendida. Como objetiva apenas a transmissão de informações, essa concepção entende a língua como algo objetivo e externo à consciência individual. O resultado disso é uma limitação do estudo do fun- cionamento interno da língua e a desconsideração do uso desta em contextos sociais mais amplos. Os estudos sobre as teorias da comunicação iniciaram no século XX, a partir da ex- pansão dos meios de comunicação. Os estudos reúnem um conjunto de pesquisas de diversas áreas, estudos sociológicos, antropológicos, psicológicos, linguísticos e filo- sóficos cujo foco é a comunicação humana ou comunicação social, seja ela verbal ou não verbal (WOLF, 1995). VOCÊ SABIA? Geraldi (2010) aponta ainda que essa concepção é observada nos livros didáticos, nas instru- ções ao professor, nas introduções, nos títulos, embora geralmente seja deixada de lado nos exercícios gramaticais, quando o foco retorna à gramática tradicional. 1.1.2 A linguística da enunciação Na linguística da enunciação, a linguagem é entendida como uma forma de interação. Nessa con- cepção, segundo Geraldi (1982; 2010), mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor, a linguagem é vista como um lugar de interação humana. Por meio dela, o sujeito que fala pratica ações que não conseguiria realizar, a não ser falando. Com a lin- guagem o falante age sobre o ouvinte, criando vínculos e compromissos que não preexistiam à fala. Nos termos de Bakhtin (1992), é por intermédio da linguagem que os indivíduos praticam ações, que envolvem tanto a fala quanto a escrita, considerando o contexto sócio-histórico e ideológico em que estão inseridos no ato comunicativo, ou seja, para essa compreensão da linguagem, a língua é entendida como um conjunto de práticas sociais e cognitivas historicamente situadas, em diferentes esferas de comunicação da atividade humana. Nessa concepção, a linguagem, seja ela escrita ou oral, processa-se por meio de enunciados que se materializam em diversas interações. A enunciação, de acordo com Bakhtin (1992), é o produ- to da interação de dois indivíduos socialmente organizados. Para o autor, a palavra dirige-se a um interlocutor, não podendo haver interlocutor abstrato, de outro modo, não haveria linguagem comum com esse interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado. Bakhtin ainda reforça que a enunciação é produto da interação social, quer se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata, quer seja em contexto mais amplo de uma dada comunidade linguística. 08 Laureate- International Universities Metodologia e Prática de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental Na perspectiva apresentada por Bakhtin, a linguagem é situada como o lugar de constituição das relações sociais, ou seja, é na interação que se estabelecem e se concretizam discursos e não a simples comunicação. Mikhail Bakhtin (1895-1975), filósofo e teórico russo, apresentou a concepção enunciati- vo-discursiva da linguagem, segundo a qual o discurso é uma prática social e uma forma de interação. Algumas de suas noções são peças-chave na educação: a relação interpes- soal, o contexto de produção dos textos, as situações de comunicação, os gêneros discur- sivos, a polifonia e questões sobre a interpretação e a intenção do autor (BRAIT, 2005). VOCÊ O CONHECE? Esse novo paradigma sobre a compreensão da linguagem provocou mudanças no que concerne aos objetivos do ensino de língua materna na escola. A proposta interacionista é praticamente hegemônica na educação. Nessa atual tendência enfatiza-se que determinadas atividades sejam realizadas com os alunos de todos as séries para desenvolvimento das habilidades leitoras e escritoras. Nessas ações, o propósito maior é abordar a linguagem como uma interação. Essas atividades vão desde a leitura e escrita feita pelos próprios alunos e pelo professor para a turma, passando por práticas de comunicação oral a partir do convívio com diferentes gêneros discur- sivos e propostas diretivas do professor, até as atividades de análise e reflexão sobre a língua. No entanto, ainda que as discussões sobre linguagem e ensino de língua estejam pautadas na con- cepção da linguagem como forma de interação, nota-se no espaço escolar resquícios das outras perspectivas presentes, ou nos livros didáticos, ou na prática do professor de Língua Portuguesa. 1.2 O que dizem os PCN de Língua Portuguesa A compreensão sobre a linguagem enquanto interação provocou mudanças nos objetivos do ensino de língua materna na escola. Hoje, as discussões em torno da concepção interacionista da linguagem tomam a dianteira entre linguistas, pedagogos e estudiosos da área. Até mesmo as diretrizes governamentais passaram a adotar esse viés para pautar suas políticas educacionais, cujo objetivo prioritário tem sido o desenvolvimento da competência comunicativa do aluno, vide os Parâmetros Curriculares Nacionais, cuja origem e principais temas relacionados à linguagem serão analisados a seguir. 1.2.1 O que são os PCN Os Parâmetros Curriculares Nacionais são referenciais de qualidade elaboradas pelo Ministério da Educação e Governo Federal para nortear professores e equipes pedagógicas na execução de seus trabalhos. Os PCN foram criados em 1996, como reforço à LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação). As diretrizes do documento são voltadas para a estruturação e reestruturação dos currículos escola- res do País e são obrigatórias para a rede pública de ensino e opcionais para as instituições pri- vadas. O objetivo principal dos PCN é padronizar o ensino no país, estabelecendo fundamentos para guiar a educação formal assim como a própria relação da escola com a sociedade. Os PCN são divididos em disciplinas e entre Ensino Fundamental e Ensino Médio. O Ensino Fun- damental é dividido em dois: 1ª à 4ª séries, ou primeiro e segundo ciclos, e 5ª à 8ª séries, ou segundo e terceiro ciclos. No entanto, desde 2006, o Pré-primário da Educação Infantil passou 09 a fazer parte do Ensino Fundamental, tornando-se o 1o ano desse ciclo. O Ensino Fundamental então passou a ser organizado em Fundamental I e II, com cinco anos iniciais para crianças de 6 a 10 anos, e com quatro anos finais para adolescentes de 11 a 14 anos. Por isso, o 9o ano escolar do Ensino Fundamental II nada mais é que a antiga 8ª série. No caso dos PCN do Ensino Fundamental I, nosso foco, o documento é dividido nas seguintes disciplinas: Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Naturais, História e Geografia, Arte e Edu- cação Física. O documento ainda aborda temas transversais como ética, meio ambiente, saúde, pluralidade cultural e educação sexual. Desse modo, os PCN abrangem tanto práticas de organização de conteúdo quanto formas de abordagem das disciplinas e dos temas transversais com os alunos, auxiliando, por exemplo, na aplicação prática de lições e sugerindo a melhor conduta a ser adotada pelos educadores em diferentes situações. Figura 2 - Apesar de não obrigatório para as escolas particulares, os PCN são importantes documentos de refe- rência, fontes de consulta e objetos para reflexão e debate. Fonte: Monkey Business Image, Shutterstock, 2016. Os PCN dão atenção especial ao ensino de Língua Portuguesa. Já na introdução do documento procura-se enfatizar a relevância da área, mas também seus problemas relacionados ao de- sempenho insatisfatório dos estudantes na disciplina ou, em termos mais contundentes, como o fracasso escolar. Desde o início da década de 1980, segundo os PCN (BRASIL, 1998), o ensino de Língua Portuguesa na escola tem sido ocentro da discussão acerca da necessidade de me- lhorar a qualidade da educação no país. No Ensino Fundamental, o eixo da discussão tem sido a questão da leitura e da escrita. Para os PCN (BRASIL, 1998), os índices brasileiros de repetência nas séries iniciais estão dire- tamente ligados à dificuldade que a escola tem de ensinar a ler e a escrever, que claramente se expressam em dois momentos: no fim da 1ª série (ou mesmo das duas primeiras) e na 5ª série. Em nomenclatura atualizada, corresponde ao segundo e último anos do Ensino Fundamental I. No primeiro caso, a razão seria a dificuldade em alfabetizar; no segundo, a causa é não garantir o uso eficaz da linguagem, condição para que os alunos possam continuar a progredir até, pelo menos, o fim da 8ª série (9o ano). É partindo desse cenário que os PCN propõem uma análise e reflexão sobre a língua. Na concepção interacionista do documento, é fundamental para a participação social efetiva o domínio da língua, oral e escrita, pois por meio dela que o ser humano se comunica, tem acesso à informação, expressa e defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo e produz conhecimento. 10 Laureate- International Universities Metodologia e Prática de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental Os Parâmetros Curriculares Nacionais de 1a a 4a séries do Ensino Fundamental estão disponíveis no site do Ministério da Educação. O volume 2 trata especificamente da Lín- gua Portuguesa e se apresenta como apoio às discussões pedagógicas nas escolas. Para ler, acesse: <http://portal.mec.gov.br/par/195-secretarias-112877938/seb-educacao- -basica-2007048997/12640-parametros-curriculares-nacionais-1o-a-4o-series>. VOCÊ QUER LER? 1.2.2 Análise e reflexão sobre a língua A capacidade de analisar e pensar sobre os fenômenos da linguagem permite realizar práticas de reflexão metalinguística. Essas reflexões relacionam-se a um tipo de análise que prioriza a des- crição, ainda que por meio de categorização de elementos linguísticos. Nesse sentido, o objetivo principal do trabalho didático denominado “Análise e reflexão sobre a língua” dos PCN de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998), é melhorar a capacidade de compreensão e expressão dos alunos em situação de comunicação oral e escrita. São diretrizes de renovação do ensino gramatical por meio de atividades linguísticas e epilinguísticas. Você pode compreender como atividades linguísticas aquelas de nível oral e algumas atividades de escrita mais simples, como a repetição ou a transformação, baseadas na gramática interiori- zada do falante, sem que seja exigida uma reflexão por parte do aluno. Tratam-se de atividades aplicadas geralmente nos primeiros anos do ensino fundamental. Atividades epilinguísticas, por sua vez, provém de uma análise linguística e dizem respeito ao trabalho reflexivo e de transformação elaborado com a linguagem escrita. Essa análise pode ser compreendida como um estímulo ao exercício intelectual em que a atuação pedagógica contri- bui na potencialização do aluno à reflexão autônoma sobre sua prática linguística. Por exemplo, a observação dos efeitos provocados quando se amplia um sintagma, quando se transforma um sintagma nominal em verbal, quando se trocam conectivos etc. O professor pode começar a tra- balhar com essas atividades, desde as primeiras séries do ensino fundamental, de forma gradual, respeitando os níveis de dificuldade. De acordo com os PCN, a análise linguística não é uma invenção da escola, pois um indivíduo quando questiona outro no meio de um diálogo sobre alguma expressão ou pede que o interlo- cutor seja mais claro na sua fala, está realizando uma atividade epilinguística, em que a reflexão está voltada para o uso, no próprio interior da linguagem. Os PCN sugerem, então, para os primeiros anos escolares, a utilização de atividades epilinguísti- cas nas práticas didáticas, para que os estudantes reflitam sobre suas produções e interpretações textuais, tendo como objetivo o aperfeiçoamento da produção linguística. Desse modo, a meta- linguística (o uso de termos, conceitos e classificações teóricas) quando introduzida progressi- vamente, poderá ser mais significativa e compreensível quando o aluno sistematizar e classificar características específicas da língua. Para Rezende (2008), a realização de exercícios epilinguísticos permite que o aluno aprenda a avaliar, julgar, apreciar, ver o que é igual e o que é diferente, aproximar, distanciar ou remontar significados. Segundo a autora, na atividade epilinguística, ocorre a transformação e a adequa- ção de um texto (oral ou escrito), utilizando-se de dois mecanismos: realizar a fala ou a escrita de algo de um outro modo, denominado parafrasagem, e a equilibração ou adequação da lin- guagem, chamada desambiguização. No entanto, espera-se que a escola planeje didaticamente situações onde se busque a adequa- ção da fala e da escrita própria e a do próximo (colega) e que, essas atividades se constituam 11 como fonte de reflexão sobre a língua. Desse modo, a escola contribui para a formação de alu- nos sujeitos do seu conhecimento, capazes de ler e produzir textos orais e escritos de qualidade nos mais diversos contextos de uso. Os PCN (BRASIL, 1998) sugerem que tais atividades partam de projetos, por se constituirem em excelentes situações didáticas no processo de ensino-aprendizagem da língua. O trabalho com projetos é uma ação pedagógica em que textos orais e escritos são produzidos de forma contex- tualizada. O projeto geralmente envolve a produção de um produto final: um livro, um jornal, um blog, uma comunidade virtual, um vídeo, uma animação, folhetos informativos, um sarau, um recital de poesias, uma peça teatral, etc. E esse é um dos aspectos que mais mobilizam crianças e jovens. De acordo com o documento, a duração de um projeto em uma escola pode ser de curta ou média duração, mas dependerá dos objetivos traçados pelos componentes e, de preferência, podem envolver outras áreas do conhecimento, ou seja, o trabalho com a leitura e a escrita não deve ser apenas responsabilidade exclusiva do professor de Língua Portuguesa. E quais são as vantagens do trabalho com projetos? Os projetos tem valor pedagógico, pois segundo apontam os PCN (BRASIL, 1998), esse tipo de atividade: • propicia a necessidade de ler e analisar uma grande variedade de textos e portadores textuais do tipo que será produzido. Por exemplo, para a produção de um livro, é necessário que os alunos manuseiem diversos ouros exemplares e atentem para detalhes como título, nome do autor, nome da editora, capa, numeração das páginas, presença ou não de ilustrações, o gênero textual a que pertence a obra etc.; • motiva os alunos a apenderem a produzir textos escritos mais completos, de maior complexidade, em que a atenção, por exemplo à caligarfia legível, à ortografia, à coerência e coesão textuais é necessária para contribuir na compreensão do texto (material) que será lido e manuseado por outros; • possibilita um trabalho adequado com temas transversais, como: ética, meio ambiente, saúde, pluralidade cultural e orientação sexual; • favorece o compromisso do aluno com seu aprendizado e estimula o engajamento de todos os envolvidos para a boa execução do produto final. Figura 3 – Atividades de análise e reflexão da língua na sala de aula são parte essencial de uma concepção interacionista de linguagem em que saberes são constituídos e partilhados no espaço escolar. Fonte: Luisa Leal Photography, Shutterstock, 2016. 12 Laureate- International Universities Metodologia e Prática de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental Percebe-se que a discussão das metodologias do ensino de Língua Portuguesa nos PCN se situa no interior de uma concepção de linguagem interacionista, que implica uma postura educacional diferenciada, uma vez que situa a linguagem como o lugarde constituição de relações sociais, em que os falantes se tornam sujeitos. 1.3 Norma culta e variação linguística A perspectiva interacionista dos PCN reforça a tomada de posição em relação às variantes linguís- ticas no trabalho com a Língua Portuguesa em sala de aula. Com a democratização da escola, diferentes grupos sociais passaram a frequentar os bancos escolares, com suas características e diferenças dialetais e regionais. Como trabalhar nessa realidade? O primeiro passo é entender o que é a norma culta padrão e compreender a relevância do respeito e do estudo das variantes linguísticas para o ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa. 1.3.1 A variante padrão do Português brasileiro Para tratar de norma padrão e variantes, antes, você precisa entender a diferença entre língua, idioma e dialeto. O Inglês, o Espanhol e o Francês, tal como o Português, são exemplos de lín- guas. Por definição, a língua é um sistema composto de regras e valores presentes na mente dos falantes de uma determinada comunidade linguística, aprendido devido à constância do uso e contato com inúmeros atos de fala. O idioma por sua vez refere-se à língua usada oficialmente em uma nação ou estado político, existe para identificar um país em relação aos demais. No caso do basco, apesar de ser uma língua, não é um idioma, por não estar vinculado oficialmente à língua da Espanha, e não representar um Estado Nação. É uma questão de nomenclatura, uma não é inferior a outra. Sendo assim, o Espanhol é um idioma, enquanto o basco não. E o Português? O Português é uma língua e um idioma, mas não é um dialeto. Dialeto, cuja designação ainda é motivo de discussão, diz respeito às variedades linguísticas, que podem ser regionais ou sociais. Exemplos de variedades regionais são o Português falado no Rio Grande do Sul, o pomerânio falado na região alemã da Pomerânia, ou o champanhês falado na região fran- cesa de Champanhe, todos com seus sotaques característicos e suas expressões ou vocabulários particulares. Exemplos de variedades sociais no Português praticado são os jargões específicos de cada profissão. Os jornalistas, por exemplo, costumam falar de “furo” (dar notícia antes dos demais veículos) ou “jabá” (quando se presenteia o profissional para escrever sobre um determi- nado assunto ou opinião). Os juristas, por sua vez, produzem e manipulam textos cujo conteúdo é inacessível para a grande maioria da população devido ao grau de especificidade aplicado. Você sabe o que significa jus laboris ou “tramitação em segunda instância”? No caso do Brasil, quando o Português de classes menos favorecidas é comparado com o falado nos telejornais, tratam-se de variedades linguísticas sociais, que possuem valor na sociedade por diversas razões, que você verá na sequência. O Português é língua oficial (idioma) de oito países, a saber: Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Esse idio- ma está presente em todos os continentes, é a quinta língua mais falada no mundo, com cerca de 280 milhões de falantes. Ainda que incorporada de vocábulos nativos e de modificações gramaticais e fonéticas (pronúncia própria de cada país) a língua mantém uma unidade institucional com o idioma de Portugal (PIEL, 1989). VOCÊ SABIA? 13 Segundo Gnerre (1998), são fatos históricos, econômicos e políticos que determinam se uma forma de fala é elevada à categoria de padrão enquanto outra ganha o selo de “errada” ou “inadequada” para determinadas situações. Nesse sentido, o autor aponta alguns fatores que estão associados à transformação de uma variedade linguística em variedade “padrão”: • a variedade é relacionada à modalidade da escrita; • a variedade é relacionada à tradição gramatical; • os signos da variedade são dicionarizados; • a variedade tem o status de legitimadora de uma tradição cultural e de uma identidade nacional. Há um equívoco recorrente de se considerar a norma padrão escrita como índice de correção da oralidade. Perini (2010) defende a ideia de que no Brasil há duas línguas: a falada, o vernáculo; e a escrita, o Português. Na prática, uma língua não interfere na outra, pois cada uma tem seu domínio próprio. O vernáculo é usado em geral na fala informal, mas também em certos textos escritos, como peças de teatro, crônicas, piadas, situações em que o realismo se faz importante; o Português, por sua vez, é usado na escrita formal, e só é expresso oralmente em situações de extrema formalidade como discursos de posse, pronunciamentos oficiais ou formaturas etc. E vale ressaltar que nessas situações, na maioria dos casos, os textos são pré-elaborados e lidos, pois não são espontâneos. A gramática tradicional, no entanto, costuma estender as mesmas regras do “bem escrever” para a modalidade de expressão falada, que, na verdade, são domínios distintos. Figura 4– As regras para a norma padrão da escrita não são as mesmas que regem a fala do Português brasileiro. Fonte: d8nn, Shutterstock, 2016. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) afirmam que a escola, quando tratou a linguagem oral, a fez de maneira inadequada, tentando corrigir a fala “errada” dos alunos, pois seu modo de expressão não coincidia com a variante linguística de prestígio social (norma pa- drão). A escola acreditava que, dessa forma, evitaria que os educandos escrevessem errado. No entanto, segundo o documento, essa postura apenas reforçou o preconceito contra os que falam diferente da variedade linguística prestigiada, o que afetou de forma negativa a autoconfiança do aluno, condição básica para expressar-se oralmente. 14 Laureate- International Universities Metodologia e Prática de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental 1.3.2 As outras variantes e o preconceito linguístico Segundo os PCN de Língua Portuguesa, a variação é constitutiva das línguas humanas, e ocorre em todos os níveis. Independentemente de qualquer ação normativa ou prescritiva, a variação sempre existiu e continuará a existir. Por isso, quando se fala em “Língua Portuguesa” é uma referência à uma unidade que se constitui de muitas variedades. Em outro trecho, o documento ainda acrescenta: [...] A imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre ‘o que se deve e o que não se deve falar e escrever’, não se sustenta na análise empírica dos usos da língua (BRASIL, 1998, p. 29). Segundo Bagno (2007), embora a língua falada no Brasil pela maioria da população seja o Português, esse idioma apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade, por duas prin- cipais razões, extensão territorial e diferenças sociais. É nesse contexto que surge o preconceito linguístico, especialmente ligado à confusão que se criou historicamente entre língua e gramática normativa. Na apresentação de seu livro, Bagno (2007, p. 3) tece uma comparação que ajuda a compreender essa confusão: “Uma receita de bolo não é um bolo, o molde de um vestido não é um vestido, um mapa-múndi não é o mundo... Também a gramática não é a língua”. Ainda de acordo com o mesmo autor, vive-se uma tendência a lutar contra diversas formas de preconceito, sempre na tentativa de mostrar que esses não têm justificativa ou fundamento racio- nal, e que são, na maioria das vezes, resultado de desconhecimento, intolerância ou manipulação ideológica. No entanto, Bagno reconhece que essa tendência não tem atingido suficientemente o tipo mais comum de preconceito na sociedade brasileira: o linguístico. Para o autor, esse precon- ceito tem sido alimentado na mídia em geral e em livros e manuais que pregam o que é “certo” e o que é “errado”. No ambiente escolar, a gramática normativa e os livros didáticos também contribuiriam para essa cultura. PreconceitoLinguístico: o que é, como se faz, de Marcos Bagno (2007). Com mais de 50 reedições, esse é um dos livros de sociolinguística mais lido, comentado e polemiza- do na área. O autor apresenta oitos mitos sobre a língua que têm embasado o precon- ceito linguístico em nossa sociedade. Enunciados típicos como o “brasileiro não sabe Português” e “Português é muito difícil” são desconstruídos pelo autor para esclarecer a confusão que se faz entre língua e gramática normativa. VOCÊ QUER LER? Contudo, nota-se que a realidade linguística marcada pela diversidade não é ignorada pelas institui- ções oficiais responsáveis pelo planejamento da educação nacional. Os PCN reconhecem esse cená- rio e com base nele propõem políticas que modifiquem essa realidade a partir dos bancos escolares. Ao compreender que diferenças (linguísticas) são reveladoras de outras diferenças (sociais) e reconhecer que a língua padrão resulta de uma imposição social que desclassifica as demais variantes, qual a postura a ser adotada pelo professor? A forma de falar dos alunos, que provém de sua família, região ou grupo social, não pode ser alvo de depreciação em sala de aula. Diante da fala apresentada pelos alunos, o professor não pode assumir um comportamento preconceituoso. Cabe ao professor aceitar a variação linguís- tica e entende-la enquanto fato linguístico. 15 Figura 5 - A variante linguística do aluno, quando não tratada como fato linguístico, contribui para o preconceito no ambiente escolar, reproduzindo uma prática social condenável. Fonte: Dawn Shearer-Simonetti, Shutterstock, 2016. De acordo com Marcuschi (1998, p. 140), “[...] a língua é uma prática social que contribui para constituir, transmitir e preservar a própria memória dos feitos humanos”, ou seja, a língua, enquanto um fenômeno cultural é heterogênea e sofre constantes alterações de acordo com o momento histórico e seus falantes. Por meio da língua os indivíduos interagem, construindo sen- tidos e expressando sentimentos. Marcuschi (1998) também defende que os alunos dominam a língua, apesar de apresentarem dife- rentes dialetos, e por essa razão seus modos de falar devem ser respeitados e valorizados, ainda que o ensino do dialeto padrão seja preconizado. É na escola que o aluno compreenderá que, diante de algumas circunstâncias, sua variedade dará espaço a outra nas diferentes situações sociais de uso. Palavreado é a coluna on-line do linguista Sírio Possenti. Nessa edição, em particular, a partir de uma tirinha do personagem Chico Bento (Maurício de Sousa), o autor define as bases do preconceito linguístico, definindo sua natureza e questionando o sentido de “falar bem”. É igualmente válido acompanhar a discussão empreendida na sessão para os comentários dos internautas. Para ler, acesse: <http://cienciahoje.uol.com.br/ colunas/palavreado/preconceito-linguistico>. VOCÊ QUER LER? A postura de combate ao preconceito linguístico não significa abolir a variante padrão das aulas de Português. Compete ao professore mostrar que em nosso país há diferentes dialetos e que a sociedade historicamente atribui valores diferentes aos diferentes modos de falar. Partindo desse princípio, cabe ao professor de língua portuguesa oportunizar atividades de ensino que levem seus alunos ao domínio do dialeto padrão. Nessa perspectiva de ensino, articula-se o exercício da cidadania ao garantir que o aluno torne- -se um “poliglota” da sua própria língua. O que isso significa? A escola não condena a variante linguística do aluno, mas ensina, como base nessa concepção, o uso adequado da linguagem oral em diferentes situações comunicativas. 16 Laureate- International Universities Metodologia e Prática de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental 1.4 O trabalho com a linguagem oral Na sala de aula, o trabalho com a linguagem oral não se resume a deixar os alunos falarem, é preciso propor aos estudantes atividades sistemáticas e diversificadas, ou seja, é necessário que a oralidade seja um conteúdo de ensino, que faça parte de uma metodologia bem planejada que contextualize a fala, a escuta e a reflexão sobre a língua. Estudar a língua é detectar os compromissos que se criam por meio da fala e as condições que devem ser preenchidas por um falante para falar de certa forma em determinada situação concreta de interação. Esse tópico esclarece a ideia central dos PCN dentro dessa perspectiva e fornece alguns subsídios para o trabalho com a linguagem oral em sala de aula. 1.4.1 Recomendações dos PCN Não é função da escola ensinar o aluno a falar. Esse conhecimento e habilidade o aluno traz de seu convívio mesmo antes da idade de ingressar no Ensino Fundamental. Contudo, é papel da escola desenvolver a capacidade oral dos alunos, oferecendo um ambiente propício para o de- senvolvimento dessa habilidade. No ambiente escolar, todos devem ter direito à vez e à voz para se expressarem com a garantia de respeito às diferenças. Compete à escola ensinar aos alunos os usos da língua nos diferentes contextos comunicativos. Figura 6 – O trabalho com a expressão oral deve ser parte integrante das atividades pedagógicas de Língua Portuguesa. Fonte: michaeljung, Shutterstock, 2016. Os contextos ou situações de comunicação, segundo os PCN, diferenciam-se conforme o grau de formalidade que exigem. Essa diferenciação depende do assunto tratado, da relação entre os interlocutores e da intenção comunicativa. De acordo com o documento, a capacidade de uso da língua oral que as crianças possuem ao ingressar na escola foi adquirida no espaço privado: contextos comunicativos informais, coloquiais, familiares. Ainda que, de certa forma, boa parte dessas situações também tenha lugar no espaço escolar, não se trata de reproduzi-las para ensi- nar aos alunos o que já sabem. Considerar objeto de ensino escolar a língua que elas já falam requer, portanto, a explicitação do que se deve ensinar e de como fazê-lo (BRASIL, 1998, p. 39). Os PCN (BRASIL, 1998) também indicam que as atividades de reflexão sobre a língua devam envolver as demais áreas de conhecimento, além da área de Língua Portuguesa, e que sejam desenvolvidas dentro dos mais diversos projetos: 17 • atividades em grupo que envolvam planejamento e realização de pesquisas e requeiram a definição de temas, a tomada de decisões, a apresentação de resultados; • atividades de resolução de problemas que exijam estimativa, verbalização e confronto de procedimentos empregados; • atividades de produção oral e planejamento de um texto; • exposição oral sobre tema estudados; descrição do funcionamento de aparelhos e equipamentos em situações em que se faça necessário, entre outras. A exposição oral, segundo os PCN, ocorre tradicionalmente nas escolas a partir da quinta série, por meio das chamadas apresentações de trabalho, cuja finalidade é a exposição de temas estu- dados. Mas, em geral, o procedimento de expor oralmente em público não costuma ser ensina- do. Possivelmente por se imaginar que a boa exposição oral decorra de outros procedimentos já dominados (como falar e estudar). Contudo, tanto o texto expositivo oral como escrito são uma das maiores dificuldades dos estu- dantes, tanto ao produtor como ao destinatário. Por isso, os PCN recomendam que as situações de exposição oral façam parte dos projetos de estudo e sejam ensinadas desde as séries iniciais, intensificando-se posteriormente e não se limitando aos formatos tradicionais de exposição oral. Nesse sentido, os PCN (BRASIL, 1998) também recomendam alguns gêneros discursivos para o trabalho com a linguagem oral: • Contos, poemas, quadrinhos etc. • Entrevistas, notícias, relatos etc. • Seminários, palestras, discursos. Esses gêneros e possíveis atividades são discutidos no próximo item, antes, porém, vale uma reflexão: Se você retomar as concepções de linguagem expostas láno início do capítulo e as comparar às questões sobre variação linguística e trabalho com a linguagem oral, o que você pode depreender da postura teórica dos parâmetros curriculares de Língua Portuguesa? Muito além da mera classificação e nominação dos tipos de sentenças e das partes integrantes da lín- gua – como preconiza a gramática tradicional – a concepção interacionista dos PCN torna mais relevante estudar as relações constituídas entre os sujeitos no momento da fala, por isso a ênfase nas atividades de oralidade. No item a seguir você verá alguns casos de como mediar essas relações no uso de gêneros orais. VOCÊ QUER VER? Todo dia 200 milhões de pessoas vivem suas vidas em Português. Fazem negócios e escre- vem poemas. Brigam no trânsito, contam piadas e declaram amor: essa é a premissa do documentário Línguas – Vidas em Português (2002), dirigido por Victor Lopes. É uma produ- ção portuguesa e brasileira, da TV Zero, com a participação de José Saramago, Martinho da Vila e João Ubaldo Ribeiro, e é uma excelente visão da força expressiva de nossa língua. 18 Laureate- International Universities Metodologia e Prática de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental 1.4.2 Textos de circulação escolar para o trabalho com a linguagem oral Contos, poemas, canções e teatro são gêneros literários cuja função é evocar sentimentos e emoções, além de transmitirem valores sociais e culturais. Perceba, são gêneros escritos, mas destinados à oralização e podem variar, da variante mais formal à mais popular, em especial no caso das canções e do teatro, oportunizando discussões acerca desses diferentes registros. Veja os trechos dos dois poemas a seguir. O da coluna à direita é do poeta popular Zé da Luz (2011); o da esquerda é de Carlos Drummond de Andrade (1984; 2015). Numa primeira leitura, o que mais os distingue? Ai! Se sêsse!... Se um dia nós se gostasse; Se um dia nós se queresse; (...) Tarvez qui nós dois ficasse tarvez qui nós dois caísse e o céu furado arriasse e as virge tôdas fugisse!!! As sem-razões do amor Eu te amo porque te amo, Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. (...) Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor. A variante linguística é diferente nos dois textos, mas o valor literário é o mesmo. Retomando o tópico anterior, um exemplo de atividade epilinguística seria a conversão das variantes em ambos os poemas e a análise se essa transformação modificou questões como sonoridade, significado, ou metáforas originais. Questões mais formais como valor da pontuação, para diferenciar a narração do diálogo, no caso de contos, ou a organização em versos e estrofes, nas canções e poemas, são igualmente importantes, mas não devem figurar como foco dessas atividades. No caso de entrevistas, há um gênero midiático que ocorre por meio de um questionamento oral ou de uma conversa, em que um indivíduo é interrogado sobre sua atividade ou opinião. Nas atividades com a linguagem oral, dá-se ênfase à situação comunicacional de um jornalista, por exemplo: tema e entre- vistado são escolhidos; perguntas são previamente selecionadas; respostas são anotadas, filmadas ou gravadas; no último caso, a proposta pode envolver a transcrição das repostas, outra atividade que ren- de discussões sobre em quais situações deve-se fazer a correção da fala ou se manter a transcrição fiel. A notícia também deve ser abordada no seu gênero televisivo ou radiofônico. É mais um caso de oralização da escrita, de um texto preparado, lido no teleprompter do apresentador do telejornal ou pelo radialista no programa de notícias. Conteúdos como a estrutura do texto – o que, onde, quando, como, por quê e consequência – frases curtas e elementos estilísticos que despertam a atenção podem ser trabalhados na ela- boração da escrita e serem adequados para garantir uma “fala” mais compreensível ao ouvinte/ telespectador, afinal o aluno produzirá um texto para ser ouvido. 19 Os seminários e palestras, formato tradicional da escola, chamados de “apresentação” pelos alunos, podem se beneficiar das técnicas aprendidas e empreendidas nos outros gêneros orais. Especialmente no Ensino Fundamental, essa prática escolar deve ganhar contornos mais lúdicos e por isso o trabalho com os outros gêneros orais têm muito a contribuir. Mostrar resultados de uma pesquisa como se participasse de uma reunião de negócios pode ser mais produtivo do que o formato tradicional. O aluno que irá realizar esse tipo de atividade precisará ter consciência do quanto é importante a sua preparação para que possa manter os ouvintes (colegas) atentos. Figura 7– Atividades com gêneros discursivos orais é uma ação eficaz para trabalhar diferentes situações comunicativas. Fonte: Ermolaev Alexander, Shutterstock, 2016. Esse último item não esgota as possibilidades de uso de diferentes gêneros orais para o trabalho em sala de aula. Procura-se apontar algumas alternativas e instigar a outras. As atividades com a lin- guagem oral é um dos focos dos PCN na abordagem da Língua Portuguesa no Ensino Fundamental, dentro de uma perspectiva interacionista, e o professor é peça-chave na aplicação dessas diretrizes. Observe o exemplo a seguir. Caso prático Um aluno do 2o ano do Ensino Fundamental está sendo excluído pelos garotos. O menino veio transferido de outra escola, de outra região do país. Os colegas estranham seu modo de falar e se divertem com algumas expressões do novo aluno. Será por desconhecimento? Nessa faixa etária, a exclusão é uma grande causa de conflitos. São frequentes as mudanças nos grupos, por diversas razões, como ciúmes ou disputas, e nesse ambiente, os laços não se conservam e isola- mentos podem ser comuns. Os estudantes ainda têm dificuldade em perceber a perspectiva e os sentimentos do outro, e a ajuda do professor pode ser necessária nesse processo. O professor reconheceu nessa situação uma excelente oportunidade para trabalhar questões de linguagem oral e variantes linguísticas e uma exposição sobre os regionalismos foi a solução encontrada. O professor formou grupos e pediu que cada um pesquisasse e expusesse algumas palavras típicas do vocabulário de algumas regiões brasileiras (cearenses, amazonenses, gaúchos, cariocas). Para favorecer a interação, o professor lançou a ideia de que cada grupo conseguisse um re- presentante legítimo dessas regiões, para se apresentar à turma ou conceder uma entrevista. Em pouco tempo, o aluno antes excluído foi disputado pelos grupos para falar e dar exemplos do seu dialeto. Nesse processo, os sentimentos iniciais de antipatia ou rejeição se transformaram em simpatia e curiosidade. O projeto final foi um dicionário de termos regionais. O resultado foi a 20 Laureate- International Universities Síntese reflexão com os estudantes sobre a diversidade vocabular do Brasil, o entendimento sobre o que são dialetos, e o que significam as diferentes reações a esse fenômeno linguístico. Você concluiu os estudos da primeira etapa do conteúdo relativo à Metodologia de Ensino da Língua Portuguesa no Ensino Fundamental I. Agora, você já tem uma boa noção das proposições dos PCN de Língua Portuguesa e a base teórica em que elas se fundamentam. Neste capítulo, você ainda teve a oportunidade de: • entender as diferentes concepções de linguagem, a saber, expressão do pensamento, instrumento de comunicação e forma de interação, e suas respectivas correntes teóricas, a gramática tradicional, o estruturalismo e a linguística da enunciação; • compreender o papel orientador dos PCN no que concerne ao ensino de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental; • identificar as bases da concepção interacionista que fundamentam os PCN de Língua Portuguesa; • comparar norma culta evariação linguística a partir das orientações dos PCN sobre o trabalho com a oralidade em sala de aula; • entender que o trabalho com a linguagem oral não se trata de ensinar a falar ou a fala “correta”, mas sim as falas adequadas aos diferentes contextos de uso; • distinguir o domínio do vernáculo, usado em geral na fala informal, e do Português, usado na escrita formal, regido pelas normas da gramática tradicional; • entender a importância de questões como o preconceito linguístico, suas origens e efeitos sobre a aprendizagem dos alunos; • conhecer alguns gêneros discursivos adequados para o trabalho com a linguagem oral em sala de aula, como contos, poemas, canções, entrevistas, notícias, relatos, seminários e palestras. Síntese 21 Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Editora Loyola, 2007. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BRAIT, Beth. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. Disponível em:<portal. mec.gov.br/par/195-secretarias-112877938/seb-educacao-basica-2007048997/12640- parametros-curriculares-nacionais-1o-a-4o-series>. Acesso em: 12 maio 2016. GERALDI, João Wanderley. (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2010. ______. Possíveis alternativas para o ensino da Língua Portuguesa. Revista Ande, n. 4, 1982. GNERRE, Maurizio. Linguagem, poder e discriminação. In: Linguagem, escrita e poder. 4. ed., p. 5-34. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 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