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A falsa citação de Voltaire

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A falsa citação de Voltaire 
 
 
Investigação afirma que a mais famosa das frases atribuídas ao filósofo francês 
jamais foi escrita ou proferida pelo autor de Cândido, ou o Otimismo 
 
O pensamento filosófico - rico que é - já cunhou uma série de expressões que, bem empregadas ou não, 
tornaram-se largamente conhecidas. É o caso, para ficar em um só exemplo, da famosa máxima de 
Maquiavel: "os fins justificam os meios" (a qual figura no capítulo XVIII de suamagnum opus O príncipe). 
Nesta linha, no entanto, aparecem frases que, ainda tomadas como emblemáticas, não podem ser 
verdadeiramente creditadas aos supostos autores. É possível que existam diversas situações não 
esclarecidas em que isso ocorre - o que, diga-se de passagem, macula o estudo de Filosofia mais do que 
os próprios supostos autores. Mas há um caso ícone, o de François- Marie Arouet, mais conhecido pelo 
cognome Voltaire (1694-1778). 
Apesar de ser freqüentemente citada, inclusive em livros didáticos, como síntese de uma filosofia, a frase 
"Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo" (que pode 
aparecer escrita com algumas pequenas variações) não é fruto da sagaz pena de Voltaire. Todo um 
retrato do pensamento voltairiano foi construído em torno a essa citação, tomando o filósofo, a partir daí, 
como um iluminista plena e irresolutamente comprometido com a liberdade de expressão, cuja bandeira 
de luta seria a tal frase, assimilada como um lema. Uma busca pelos escritos de Voltaire, entretanto, 
planta a dúvida: onde está a afamada afirmação? A investigação por esse caminho é, contudo, vã, pois 
não há, em nenhum texto do filósofo, a preciosa frase. Algo tomado quase pacificamente como o resumo 
do pensamento voltairiano revelando-se apócrifo é mesmo o germe de uma pesquisa, e a investigação 
revela-se frutífera. 
Nota-se, portanto, que a expressão "Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até 
a morte o seu direito de dizê-lo" é uma daquelas frases que muitos leram, alguns citaram e quase 
ninguém pesquisou de onde verdadeiramente veio (e de quem é!). Há um grande risco na falta de 
precisão em casos assim, porque uma falsa atribuição nem sempre enobrece um autor. Na verdade, 
como pode-se verificar, a tão citada frase foi elaborada por uma biógrafa de Voltaire, em uma obra do 
início do século 20 - portanto, bem distante do período de vida e produção do filósofo francês. Em um livro 
de 1906 chamado Th e friends of Voltaire ("Os amigos de Voltaire" - tradução livre), publicado em Londres 
pela Smith, Elder & Co., a escritora Evelyn Beatrice Hall (1868-c. 1939) - que durante um tempo usou o 
pseudônimo S. G. Tallentyre - trata de dez figuras notáveis com quem seu biografado, de alguma forma, 
se relacionou. São eles: D'Alembert, Diderot, Galiani, Vauvenargues, D'Holbach, Grimm, Turgot, 
Beaumarchais, Condorcet e Helvétius. É na parte dedicada a este último que a biógrafa apresenta a 
frase "I disapprove of what you say, but I will defend to the death your right to say it" ("Eu discordo do que 
você diz, mas vou defender até a morte seu direito de o continuar dizendo", em tradução livre). 
Talvez por uma questão de estilo, Evelyn Hall colocou a frase entre aspas e a construiu em primeira 
pessoa, o que acabou gerando a confusão e a falsa atribuição. Mas, de fato, a intenção da escritora era 
resumir o posicionamento que Voltaire teria adotado com relação ao banimento de um livro de Claude-
Adrien Helvétius (1715-1771), outro filósofo francês com quem ele teve certo desacordo. Em 1758, 
 
 
Helvétius publicou o livro De l'espirit, o qual foi condenado pela Sorbonne, pelo Parlamento de Paris e até 
pelo Papa, chegando a ser queimado. Apesar do desacordo explícito com relação ao pensamento de 
Helvétius, Voltaire não acreditava que o banimento daquele livro fosse um ato correto. Foi a atitude de 
Voltaire frente a esta situação que Evelyn Hall tentou resumir com sua frase, inadvertidamente escrita 
entre aspas e em primeira pessoa. 
Em outro livro da mesma autora, chamado Voltaire in his letters ("Cartas de Voltaire" - tradução livre 
aproximada), publicado em 1919, aparece a mesma ideia, ora apresentado como um "princípio voltairiano" 
(embora ainda grafado entre aspas e em primeira pessoa), com uma mínima alteração de redação que 
não resulta em conteúdo diferente. Ainda ali, Hall encerra o "princípio" em um posicionamento de Voltaire 
para com Helvétius. 
UMA CONSTRUÇÃO TARDIA 
Nota-se, portanto, é que a famosa afirmação nem é de Voltaire nem configura um resumo de sua filosofia 
como um todo. Ela é, precisamente, uma construção tardia de uma biógrafa, e não faz mais do que 
retratar uma determinada posição adotada por Voltaire em uma situação muito específica com outro 
filósofo - e faz com que seu poder de frase-lema da liberdade de expressão seja consideravelmente 
reduzido. 
Essa confusão involuntária chegou a ser 
reconhecida pela biógrafa de Voltaire. Na revista Modern Language Notes, publicada pela The Johns 
Hopkins University Press, em sua edição de novembro de 1943, há um texto de Burdette Kinne sobre o 
assunto, intitulado Voltaire never said it! ("Voltaire nunca disse isso!", tradução livre), em que consta a 
reprodução de uma carta de Evelyn Hall, datada de 9 de maio de 1939, em que ela afirma ser de sua 
própria autoria a tal frase erroneamente atribuída ao filósofo francês do século 18, chegando a apresentar 
desculpas por seu texto permitir a interpretação de que a fala era de Voltaire, mesmo não sendo esta sua 
intenção. 
Ainda houve quem considerasse que Evelyn Hall teria, seja por acaso ou não, feito uma paráfrase de uma 
fala - esta sim - de Voltaire, menos conhecida, que se encontraria em uma carta endereçada a um 
certo Monsieur Le Riche, datada de 6 de fevereiro de 1770. Esse foi o caso de Norbert Guterman, editor 
do livro A book of french quotations ("Um livro de citações francesas", tradução livre), publicado na década 
de 1960. Segundo ele e os demais defensores desta linha, haveria na referida carta a frase "Monsieur 
l'abbé, je déteste ce que vous écrivez, mais je donnerai ma vie pour que vous puissiez continuer à écrire" 
("Senhor abade, eu detesto o que escreves, mas eu daria minha vida para que pudesses continuar a 
escrever", tradução livre), uma espécie de variação daquela mais famosa. Outra vez, porém, criou-se uma 
equivocada atribuição a Voltaire. Em suas obras completas, publicadas em Paris já entre os anos de 1817 
e 1819, sob o selo Chez Th. Desoer, há a coleção de correspondências do filósofo, em que figura a tal 
carta endereçada a Monsieur Le Riche, mas não é possível encontrar nada sequer parecido com a 
famigerada frase. Até grandes pensadores como Noam Chomsky se deixaram levar por essa "nova" 
falsa atribuição, como é possível observar em seu artigo do jornal The Nation, intitulado His right to say it, 
em 28 de fevereiro de 1981. 
Nota-se, portanto, que a expressão "Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte 
o seu direito de dizê-lo" é uma daquelas frases que muitos leram, alguns citaram e quase ninguém 
pesquisou de onde verdadeiramente veio (e de quem é!). Há um grande risco na falta de precisão em 
casos assim, porque uma falsa atribuição nem sempre enobrece um autor. Nesse caso, Voltaire passou a 
ser tomado como ícone da luta pela liberdade de expressão. Mas e quando a frase acaba por denegrir um 
 
 
pensador? É preciso rigor na investigação. Daqui por diante, fica como sugestão o princípio: "Eu posso 
não concordar com o que citas, e por isso requisitarei sempre suas fontes para poder checá-las".

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