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CAPÍTULO II: HISTÓRIA DA TRADUÇÃO Poderíamos examinar, um a um, vários períodos na história da tradução: Antiguidade, Idade Média, Renascimento, os séculos XVII e XVIII, a época con temporânea. Uma abordagem desse tipo arrisca-se a mascarar as sobreposições que vinculam as épocas en tre si, de onde a necessidade de recorrer a uma apre sentação que seja mais temática que estritamente cro nológica. Os problemas de hoje são muito claramente os mesmos que se apresentaram ontem. As respostas é que variam. E daí é que vêm as diversas concepções da tradução que foi possível construir1. 1. O espírito e a letra Na tradição ocidental, geralmente distinguimos uma dupla origem para a problemática da tradução, que se encarna na realidade em uma única língua, o latim. Por um lado, a tradução dos textos religiosos, e da Bíblia em particular, que tem são Jerônimo como figura tutelar. Por outro, a tradução dos textos literá- 1 Ver Michel Ballard, De Cicéron à Benjamín (1992). Lille: PUL, 1995. HISTÓRIA DA TRADUÇÃO 31 rios, na Roma antiga, e aqui lembramos a advertência de Cícero, em seu Libellus de optimo genere oratorum (46 a.C.), segundo a qual não se deve traduzir “verbum pro verbo”, “palavra por palavra”, e que será retomada por Horácio em seu A rs poética (10 a.C.). Essas duas perspectivas estão ligadas: Cícero anuncia são Jerô- nimo. Percebemos isso quando são Jerônimo escreve, em De optimo genere interpretandi (395): “Sim, quan to a mim, não apenas o confesso, mas eu o professo sem nenhum incômodo em alta voz: quando traduzo os gregos — exceto nas Sagradas Escrituras, onde a ordem das palavras também é um mistério —, não é palavra por palavra, mas uma ideia por outra ideia que exprimo”2. A distinção introduzida por são Jerônimo é essencial: ela destaca a diferença entre textos religio sos e textos seculares no que diz respeito à tradução. No primeiro caso, deve-se preferentemente avançar palavra por palavra. Esse é o método preconizado por Fílon (13 a.C.-54), membro da comunidade judaica de Alexandria: unicamente a tradução literal seria capaz de não alterar os textos sacros. E em nome da tradução literal que são Jerônimo critica a tradução grega dos Setenta.: por ser muito livre, ela é julgada como infiel ao original hebraico. Mas uma tradução estritamente literal também é rejeitada por são Jerônimo, de onde a eventual adoção dos princípios ciceronianos, que ele esclarece na fórmula célebre: “Non verbum de verbo, sed sensum exprimere de sensu”. A distinção entre a tradução de textos religiosos e a tradução de textos Apud Valéry Larbaud, Sous l ’invocation de saint Jérôme. Pa ris: Gallimard, 1946, p. 15. 32 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS profanos não é, portanto, tão demarcada quanto pode ríamos achar à primeira vista. De fato, os inconvenientes de uma tradução mui to literal nunca foram negligenciados. As traduções efetuadas pelos romanos remontam ao século III a.C., com Lívio Andrônico, primeiro tradutor europeu co nhecido. Cícero inscreve-se, portanto, em uma longa tradição de prática da tradução, que ele perpetua e aperfeiçoa, especialmente no plano das considerações teóricas, praticamente inexistentes antes dele. A esse respeito, uma passagem capital é a seguinte, a respeito de suas próprias traduções: Eu não as fiz como simples tradutor (ut interpretes), mas como orador {sed ut orator), respeitando suas frases, com as figuras de palavras ou de pensamentos, às vezes usando termos adaptados a nossos costumes latinos. Por isso não considerei necessário verter toda palavra por uma palavra [verbo verhum reddere); contudo, naquilo que diz respeito ao gênio de todas as palavras e a seu valor, eu os conservei... Realmente, acreditei que aquilo que importava para o leitor era oferecer a ele não o mesmo número, mas, por assim di zer, o mesmo peso [Non enim adnumerare sed tanquam adpenderé)3. Dessa maneira, Cícero distingue duas formas de tradução: em primeiro lugar, aquilo que poderíamos chamar de a tradução propriamente dita, a que é fei ta pelo “interpres”; em segundo lugar, a do “orador”. 3 Tradução francesa de Henri Bornecque, apud Inês Oseki- -Déprè, Théories et pratiques de la traduction littéraire. Paris: Ar mand Colin, 1999, p. 19. HISTÓRIA DA TRADUÇÃO 33 Com isso, ele faz essa forma superior de tradução pas sar para o campo da retórica — e, mais exatamente, da im itatio. Traduzindo em termos modernos, diríamos hoje que se trata de adaptação, e não mais de tradução. Contudo, isso significaria abstrair a função de que a tradução estava investida em Roma, função radicalmente diferente daquela que ela podia ter no mundo grego. A partir da morte de Alexandre (323 a.C.), a irradiação da civilização helenística é tamanha que o grego se torna a língua dominante: a Setenta é traduzida em Alexandria muito naturalmente do he braico para o grego no século III; a pedra de Roseta, que permitirá a Champollion decodificar os hierógli fos, é uma tradução do egípcio para o grego, realizada em 196 a.C., no Egito ptolemaico; o Novo Testamento é redigido em grego, quando o Cristo se expressava em aramaico (o hebraico, língua da mesma família, não era mais de uso corrente)4. Roma não escapa a essa re gra: as elites são perfeitamente bilíngues e concedem o primeiro lugar, ao menos por um tempo, ao grego. Não tendo, de início, nada de comparável no do mínio dos textos filosóficos ou literários, o empreendi mento de tradução, massiva, dos escritos gregos para o latim está perfeitamente subordinado, em Roma, à emergência de uma língua capaz de rivalizar com seu modelo, até mesmo de ultrapassá-lo, processo que se estende por vários séculos, fazendo do latim a nova língua dominante no seio do Império, papel que se perpetuará durante toda a Idade Média, e até mesmo Ver Claude Hagège, Halte à la mortdes langues. Paris: Odile Jacob, 2002, cap. X, p. 255s. 34 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS para além dela. O termo “adaptação” pressupõe uma língua literária plenamente constituída, algo que, ini cialmente e em comparação com o grego, a língua la tina não era. Uma vez concluída essa gestação, o termo “bi- linguis”, é o que Claude Hagège destaca, torna-se um termo pejorativo, sentido que, por sinal, ele guarda em francês medieval5: o grego vai sendo, pouco a pouco, abandonado, em proveito exclusivo do latim. Um ciclo desses não se dá isoladamente: encontramos numero sos exemplos dele na história. Trata-se de um esque ma semelhante ao que vamos reencontrar no Renasci mento, quando, dessa vez, é o latim que se vê suplan tado pelas línguas vernaculares. Na França, vê-se uma multiplicação das traduções das línguas clássicas para o francês e de “imitações” dos modelos gregos e lati nos, até mesmo italianos, fenômeno amplificado pelo desenvolvimento da tipografia. Também vemos Joa chim du Bellay, em Defense et illustration de la lan gue française (1549), desenvolvendo um raciocínio que retoma o raciocínio de Cícero, aplicado à língua nacional: a imitação dos antigos não deve ser servil, ela deve ser feita a serviço da língua francesa, igual, quando não superior a todas as outras. A época que vê a instauração do francês como a única língua do reino (ordenança de Villers-Cotterêts, 1539) é a mes ma na qual, por meio da tradução, são feitos massivos empréstimos das línguas estrangeiras, isso quando não são obtidos por imitação direta, como, por sinal, Ibidem, p. 173-174. HISTORIA DA TRADUÇÃO 35 Ronsard não hesita em recomendar em seu Abbregé de l ’art poétique (1565): “Tu comporás palavras intrepi damente, à imitação dos gregos, e latinos”6. Esse terceiro aspecto da tradução, que não se contenta em “verter” palavra por palavra (“verbum de verbo”), ou sentido por sentido (“sensum exprimere de sensu”), mas ainda se permite transformar delibe radamente o texto original no quadro da “imitação”, não corresponde mais à ideia que habitualmente fa zemos da tradução hoje.E nesse sentido que Jacques Amyot, em sua célebre tradução das Vidas paralelas de Plutarco (1559), em vez de traduzir o grego “este- phanoi” pela tradução literal “adornados de flores”, prefere: “Com chapéus de flores em nossas cabeças”; em vez de se contentar com: “A alma está encerrada no corpo como em um moinho que roda sem cessar em torno da necessidade de alimento”, ele traduz: “A alma de muitos está escondida e contrafeita pelo medo de sofrer falta, dentro do corpo, como dentro de um moi nho, girando sempre em torno de uma mó depois de perseguir algum alimento”7. As transformações intro duzidas obedecem a uma lógica que Antoine Berman classifica como a “visada tradutória” do Renascimento — nesse caso preciso, “o esclarecimento e a adaptação apropriadora do original, considerado como um ‘tesou- Citado por Mireille Huchon, Le français de la Renaissance (1988). Paris: PUF, 1998, p. 73. Exemplos tomados de Antoine Berman, L’accentuation et le principe d’abondance en traduction, in: Palimpsestes, n° 5, editado por P. Bensimon, B. Vautherin. Paris: Presses de la Sorbonne Nou velle, 1991, p. 14. 36 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS ro’ que é preciso anexar à língua e à cultura nacionais”8. Para compreender a tradução em toda a sua diversida de, não basta opor as “palavras” aos “sentidos”. 2. As belas infiéis Nessa mesma época, na Inglaterra, a situação é semelhante, com uma diferença a ser notada: o fran cês, por sua irradiação, desfruta de um prestígio com parável ao do latim e do grego. A tradução a partir do francês constitui uma soma de obras considerável. Al gumas marcam época: é o caso da tradução dos Ensaios de Montaigne por John Florio em 1603. Ela é destacada pelo The Cambridge History o f English and Am erican Literature (CH EAL ) em 18 volumes9 (o volume IV, consagrado ao período elisabetano, começa dedicando dois longos capítulos à questão da tradução, tamanha é sua influência). As transformações introduzidas por John Florio no texto de Montaigne parecem-se com as que são introduzidas por Amyot em sua tradução de Plutarco. Para traduzir “je n ’y vauls rien” ele utiliza o equivalente “I am nothing w orth”, mas acrescenta: “and I never can fadge f = ‘do’] well”10; para “soufflet”, ele vai recorrer a “whirret [ = ‘blow’] in the ear”11, exemplificando assim a tendência da época à verbor- 8 Ibidem, p. 12. Ward e Trent et alii, The Cambridge History of English and American Literature. New York: Bartleby.com, 2000 < www.bar- tleby.com/cambridge >. “Et je ne peux jamais bien faire” (tradução do autor). 11 Exemplos dados por Charles Whibley, CHEAL, vol. IV, 1, p. 12. HISTÓRIA DA TRADUÇÃO 37 ragia (Florio também é conhecido por seu dicionário italiano-inglês de título evocativo, A World ofWordes, “um mundo de palavras”) preconizada por Erasmo em De copia (“Sobre a abundância”) 12. Contudo, a mais célebre das traduções elisabeta- nas não é essa: é, em todos os aspectos, a tradução de Plutarco feita por Thomas North, Lives o f the Noble Grecians and Romans (1579), na qual Shakespeare (que era acusado por seus detratores de não conhecer suficientemente o latim, muito menos o grego) se ins pirou para suas peças romanas {Júlio César, Antônio e Cleópatra, Coriolano) e Tímon de Atenas. Pelo fato de não dominar o grego, North faz sua tradução a par tir da tradução das Vidas paralelas de Plutarco feita para o francês por Amyot. Prática comum na época: em comparação com o latim e, com mais forte motivo, com o grego, o francês era de longe a língua que mais se sabia. O francês é, então, a “avenida” que terá per mitido aos clássicos penetrar na língua e na literatura da Inglaterra (“the avenue through which many of the classics passed into our language and our literature”) 13. Portanto, a tradução de Amyot serve de original para North. Por sinal, como enfatiza Montaigne, o texto de Amyot tem valor de modelo no que se refere à língua tradutora: “Eu dou com razão, me parece, a palma a Jacques Amyot, sobre todos os nossos escritores fran ceses [...]. Nós, outros ignorantes, estaríamos perdidos se esse livro não nos tivesse tirado do impasse; graças a Ver Antoine Berman, L’accentuation et le principe (l’nbondance en traduction, art. cit., p. 12. Charles Whibley, CHEAL, vol. IV, 1, p. 9. 38 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS ele, nós hoje ousamos falar e escrever: é nosso breviá rio” (Essais, livro II, cap. IV). A tradução de North também recebe o estatuto de obra literária, o que ex plica, sem dtivida, o fato de Shakespeare recorrer cons tantemente a ele em busca de suas próprias palavras. De modo mais genérico, nessa época, as barrei ras que estabelecemos hoje entre original e tradução, autor e tradutor, eram bem mais fluidas, para não di zer francamente abolidas. A “apropriação”14, concei to chave do Renascimento, pôde tomar na Inglaterra proporções tão extremas que parecem remeter ao espí rito de conquista de navegadores elisabetanos, como Drake ou Hawkins, mas também a seus bem pouco recomendáveis métodos. Dessa maneira, as pessoas se apoderavam sem o menor escrúpulo das obras de outros, seja para transformá-las segundo seu próprio arbítrio, não recuando diante de nenhuma infideli dade, seja apossando-se delas, fazendo-se passar por seu autor. O caso é tão frequente que Charles Wibley não hesita em dizer: “Não parece que os elisabetanos tenham considerado o plágio como um pecado odio so. Se o tivessem feito, quem não teria sido declarado culpado?”15 Bem ao contrário, eles justificam esse pro cedimento invocando o exemplo dos romanos. Ao fa lar de sua tradução do De Officiis de Cícero, Nicholas Grimald afirma que ela é para ele o que são para Te- rêncio e Piau to as comédias que eles fizeram a partir do grego (“made out of Greek”) 16. Grande número de Mireille Huchon, op. cit., p. 119. Charles Whibley, CHEAL, vol. IV, 1, p. 28. Ver Charles Whibley, CHEAL, vol. IV, 1, p. 28. HISTÓRIA DA TRADUÇÃO 39 sonetos elisabetanos foram “feitos” assim por Wyatt, Lodge, Spencer e tantos outros, sem que ninguém se opusesse: dessa maneira, era possível traduzir e trair na maior impunidade. O termo “plágio” só vai se tornar pejorativo no século XVIII, “isto é, no momento em que a originali dade passa a ser um valor literário”17. Com efeito, as fronteiras entre imitação, tradução e adaptação variam conforme as épocas. A “infidelidade” é, então, uma noção absolutamente relativa. Não que os tradutores nunca tenham criado para si regras a esse respeito, justo o contrário: um dos primeiros teóricos da tradu ção durante o Renascimento é Etienne Dolet (a quem devemos a palavra francesa “traduction”, surgida em 1540). Não que as traduções dessa época se equiva lham todas, sejam quais forem as liberdades tomadas em comparação com o original. Em contrapartida, se as medirmos pela “visada tradutória” (A. Berman) da época, elas têm a pretensão de se mostrar fiéis. E por isso que Chapman defende sua tradução da Ilíada e da Odisseia declarando: “If my countrey language were an usurer, hee would thanke me for enriching him ” (“Se a língua de meu país fosse um usurário, ele me agradeceria por tê-lo tornado mais rico”) 18. A exemplo do elogio feito por Montaigne a Amyot, Keats expri mirá sua admiração pela tradução de Chapman, que lhe abre o “domínio” (“demesne”) de Homero e “sua serena pureza” (“its pure serene”), no poema On first Sophie Rabau, Llntertextualité. Paris: Flammarion, 2002, p. 237. Apud Charles Whibley, CHEAL, vol. IV, 1, p. 26). 40 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS looking into Chapm an’s Homer (“vendo pela primeira vez o Homero de Chapman”), composto em 1816. Com efeito, o que vemos nas traduções da época é o inglês elisabetano se configurando diante de nossos olhos. Poderíamos dizer a mesma coisa das traduções na França, assim como nos outros países na época do Renascimento. Trata-se da consequência do princípio que Amyot enuncia nos seguintes termos:O ofício próprio de um tradutor [...] não está apenas em ver ter fielmente a sentença de seu autor, mas também em incor porar a forma de seu estilo e sua maneira de falar19. Não poderíamos exprimi-lo mais claramente: a “fidelidade”, necessária, não é suficiente. E indispen sável acrescentar-lhe a beleza, sem a qual a tradução estaria condenada à exclusão do campo das letras. O que vale para a linguagem literária vale tam bém para a língua como um todo. Efetivamente, a tra dução permite a compreensão de um número maior de pessoas: Erasmo é o primeiro a desejar ver os textos sagrados traduzidos, Lutero será seu primeiro grande artesão. Lutero afirma, com efeito: Não é às palavras da língua latina que devemos perguntar como se deve falar alemão, como fazem esses asnos; mas é à mãe em seu lar, às crianças nas ruas, ao homem do povo na praça do mercado que é preciso perguntar, lendo em seus lábios como eles falam, e é depois disso que se deve traduzir, Apucl Edmond Cary, Les grands traducteurs français. Génève: Georg, 1963, p. 17. HISTÓRIA DA TRADUÇÃO 41 porque assim eles compreenderão e se darão conta de que lhes estamos falando em alemão20. A tradução da Bíblia por Lutero foi além disso: ela representa o registro de nascimento da língua alemã, o mesmo que Dante representa para a língua italiana. Diferentemente de Dante, que defende a causa da expressão em “língua popular” em De vulgari elo- quentia (1303-1305) e no decorrer de sua obra, Lutero forja a língua alemã no decorrer da tradução: como se trata da Bíblia, é evidente que a parte de “invenção” pressuposta pela im itatio dos latinos não tem vez. Ninguém aventaria “transform ar” a palavra divina, algo que, à época, levava diretamente à fogueira, des tino reservado a Etienne Dolet, enforcado e queima do em 1546 na praça Maubert, em Paris. Poderíamos, consequentemente, pensar que a exigência de litera- lidade se situa acima de qualquer outra considera ção. Durante a maior parte da Idade Média, aliás, era essa a maneira mais difundida de traduzir os textos religiosos, mas também os textos seculares. O Renas cimento toma o partido contrário, por conta da falta de elegância das traduções feitas desse modo21. Como Lutero não desconhecia o preceito de são Paulo: “A letra mata, mas o espírito vivifica” (2 Coríntios 3,6), uma tradução “literal” não deveria se reduzir ao estri to palavra por palavra, como fazia são jerônim o. Com efeito, Lutero escreve em 1530: “Eu não me afastei Apiul Henri van Hoof, Histoire de la traduction en Occident. Paris: Duculot, 1991, p. 214. 21 Ver Inès Oseki-Dépré, Théoiïes et pratiques de la traduction littéraire. Paris: Armand Colin, 1999, p. 23. 42 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS muito deliberadamente das letras, antes tomei o maior cuidado, no exame de uma passagem, para ficar tão próximo quanto possível dessas letras, sem delas me afastar muito livremente. [...] preferi forçar a língua alemã, antes que me afastar da palavra”22. Aspectos semelhantes aos que se reencontram em língua inglesa na Authorized Version. Ela é publicada em 1611, mas, na realidade, é obra essencialmente de William Tyndale (enforcado e queimado por heresia em Antuérpia em 1536, onde se refugiara). Tanto quanto Lutero, ele tem a intenção de ser entendido por todos e, em vez de traduzir a partir da Vidgata, como Wyclif o fizera no caso da primeira Bíblia traduzida para o inglês e publicada em 1388, Tyndale consulta os textos originais hebraicos e gre gos. Tyndale considera que o grego está mais em har monia com o inglês do que com o latim (“The Greek tongue agreeth more with the English than with the Latin”); quanto ao hebraico, ele combina “mil vezes mais” com o inglês (“And the properties of the He brew tongue agreeth a thousand times more with the English than with the Latin”), apesar de que em “mil passagens” basta traduzi-lo “palavra por palavra” em inglês (“The m anner of speaking is both one, so that in a thousand places thou needest not but translate it into the English word for word”)23. O raio de influên cia da Authorized Version sobre a lingua e a literatura anglo-saxônicas é impressionante: Ver Michel Ballard, De Cicerón à Benjamin, op. cit., p. 143. Citado por Albert S. Cook, CHEAL, vol. IV, 2, p. 53. HISTÓRIA DA TRADUÇÃO 43 Sua ação sobre todo o povo é imensa. Sua prosa compacta, mais aproximada do estilo oral que dos escritos latinos, a riqueza de suas imagens, que um erro aqui e acolá transfor ma em singulares ou misteriosas, marcarão muitos produtos da imaginação em um país onde a vida será frequentemente ritmada por sua leitura cotidiana24. A conclusão é automática: a Bíblia “autorizada” pelo rei James I é um monumento da literatura de lín gua inglesa. Se olharmos para o Renascimento, até mesmo as traduções que precisaram ser mais fiéis têm a virtude de serem belas. Em matéria de tradução, os séculos XVII e XVIII porão as considerações estéticas em primeiro plano. Realmente, a relação com a língua não é mais a mesma: na França, é criada a Academia Francesa (1634) e, seguindo Malherbe, que sistematiza e apura o francês, Vaugelas define o que deve ser o “bom uso” do francês em suas Remarques sur la langue françai- se2\ Logo, ninguém se admirará ao ver as traduções se dobrarem ao gosto clássico e se transformarem em “Be las Infiéis”26. Desse modo, Nicolas Perrot dAblancourt, que entrou para a Academia em 1637, transforma auto res latinos, gregos ou espanhóis ao traduzi-los, mesmo que considere que aquilo que ele faz não é “propria André Maisonneuve, Littérature anglaise, in: Histoire des littératures, vol. II, editor: R. Queneau. Paris: Gallimard, 1968, p. :î74. Ver Claude Ilagège, Le Français, histoire d ’un combat. Paris: Le Livre de Poche, 1996, p. 57s. Ver Roger Zuber, Les Belles Infidèles et le goû t classique. Paris: Albin Michel, 1968. 44 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS mente tradução” porque “vale mais que a tradução, e os Antigos não traduziam de outro modo”27. Na época das Belas Infiéis, também existem de fensores da fidelidade ao texto. E o caso de Lemaistre, que estabelece a seguinte regra: A primeira coisa a que é preciso estar atento lia tradução francesa: é ser extremamente fiel e literal, isto é, exprimir em nossa língua tudo o que está em latim e vertê-lo tão bem que se, por exemplo, Cícero falasse nossa língua, ele teria falado do modo como o fazemos falar em nossa tradução28. A fidelidade e a literalidade estão subordinadas ao respeito ao estilo da língua clássica: não se trata mais de a tradução “enriquecer”, como no século ante rior, a língua francesa, que nessa época já fora promo vida à categoria de modelo insuperável do bom gosto. O fosso entre os adeptos da tradução literal e os adeptos da tradução “livre” irá se aprofundando, até che gar à polêmica que oporá, no século XVIII, Mme. Dacier e Antoine Houdar de la Motte, polêmica que posterior mente será chamada de segunda querela dos Antigos e dos Modernos29. Seria bastante difícil criticar Houdar de la Motte por seguir Homero ao pé da letra, nem na mais ampla escala: sua Illade en vers français (“Ilíada em versos franceses” — o canto I foi publicado em 1701, os outros em 1714) desbasta alegremente o texto homéri co, que passa de vinte e quatro para doze cantos, com 27 Citado por F. Horguelin, Anthologie de la manière de tradui re. Domaine français. Montreal: Linguatech, 1981, p. 94. 28 Citado por Inès Oseki-Dépré, op. cit., p. 33. Ver George Mounin, Les Belles Infidèles (1955). Lille: PUL, 1994. HISTÓRIA DA TRADUÇÃO 45 a supressão das passagens qualificadas de supérfluas ou inconvenientes. Ele também não hesita em introduzir comentários de sua própria lavra, ou até em modificar o conteúdo ou a trama dos episódios, entre outras coisas30. Houdar de la Motte distingue as traduções “literais”, como a que foi feita, em prosa, por Mme. Dacier (1711), e as “imitações elegantes”, que “ficam a meiocaminho en tre a tradução simples (literal) e a paráfrase”31. Homero situa-se, segundo ele, muito longe das normas clássicas para ser “traduzido” de outra maneira. Se, por comparação, a tradução de Mme. Dacier pode, sem grandes prejuízos, ser chamada de mais literal, falta muito para ela ser totalmente literal. Basta para isso cotejar a tradução de Leconte de Lisle (1967) de uma pas sagem do canto III (cena entre Páris e Helena) e a dela: Vem! Deitemo-nos e amemo-nos. O desejo nunca me fez arder assim, mesmo quando navegando ein minha nave rápida, depois de te ter tirado da feliz Lacedemônia, eu me uni em amor contigo na ilha de Kranaé, de tanto que amo agora e estou tomado de desejos. Ele falou assim e caminhou para seu leito, e a esposa o seguiu, e eles se deitaram no leito bem construído. Leconte de Lisle32 E só pensamos em prazeres... Na ilha de Kranaé, você voluntariamente consentiu me tomar como marido... E me falando assim, ele se levantou para ir a outro aposento, e Helena o seguiu. Mme. Dacier™ 30 Ver Gérard Genette, Palimpsestes. La littérature au second de gré. Paris: Le Seuil, 1982, p. 442s. 31 Apud Gérard Genette, ibidem, p. 443. 32 Apud Inès Oseki-Dépré, op. cit., p. 17. 33 Ibidem. 46 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS Se as transformações introduzidas por Mme. Da- cier hoje nos parecem tão estranhas e as de Houdar de la Motte tão extravagantes, é porque elas não seriam mais consideradas traduções propriamente ditas, e sim adaptações. A linha divisória entre esses dois campos deslocou-se posteriormente, tornando impensável que alguém busque, por meio da tradução, “embelezar” ou “corrigir” as faltas de estilo pretensamente presentes em Homero, porque isso passou a ser considerado como um atentado à obra em si. 3. A época contemporânea Em 1680, em seu prefácio às O vid’s Epistles34, Dryden dá uma definição decididamente moderna de tradução, em sua rejeição da imitação. Dryden distingue três formas de tradução: a primeira é a tradução literal (que ele chama de “me- táfrase”); a segunda é a tradução propriamente dita (inicialmente chamada de “paráfrase”, mas rebatiza- da simplesmente de “tradução” no prefácio de 1697 a suas traduções de Virgilio35); a terceira, a “imitação” (posteriormente chamada de “paráfrase”). A tradução literal é rechaçada por referência a Horácio e a seu “nec verbum curabis reddere, fidus 34 Dryden, Preface to Ovid’s Epistles, in: Dryden. A Selection, editado por John Conaghan. Londres: Methuen, 1978, p, 569-574. 35 Ver George Steiner, Après Babel. Une poétique du dire et de la traduction, trad.: Lucienne Lotringer. Paris: Albin Michel, 1978 (After Babel Aspects of Language and Translation. Oxford: OUP, 1975; ed. br.: Depois de Babel — Questões de linguagem e tradução, trad.: C. A. Faraco. Curitiba: Editora UFPR, 2005), p. 241. HISTÓRIA DA TRADUÇÃO 47 interpres”, que ele cita na tradução feita por Roscom mon (“Nor word for word too faithfully translate”), ela própria ilustração da melhor e única maneira ver dadeira de traduzir, a segunda, que consiste em se con centrar mais no sentido do que nas palavras. A imitação consiste em tomar a liberdade de não reproduzir nem as palavras, nem o sentido, mas “se autores [...] são tratados dessa maneira, não podemos mais dizer que ainda se trate de suas obras”, porque isso equivale a substituir o original “por algo de novo, que é quase a criação de algo diverso”36. Isso significa assinar a sentença de morte das Be las Infiéis. Uma reviravolta de perspectiva, na verdade, vai se operando progressivamente: A questão da pertinência do texto literário, a valorização da individualidade e da originalidade na criação artística são o resultado de uma estética romântica que remonta ao fim do século XVIII37. De imediato, a imitação, mesmo leve, surge como um travestimento, o que Montesquieu ridiculariza em suas Cartas persas: As traduções são como essas moedas de cobre que têm o mesmo valor de uma moeda de ouro [...] mas elas são sempre frágeis e de má qualidade38. Isso é a inversão da metáfora do enriquecimento usurário da língua pelo viés da tradução utilizada por Dryden, op. cit., p. 572 (nossa tradução). Sophie Rabau, op. cit., p. 145. Carta CXXVIII, citada por Inês Oseki-Dépré, op. cit., p. 35. 48 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS Chapman na época de Shakespeare: a depreciação do tex to traduzido em comparação com o “original” é evidente. O movimento de pêndulo no rumo da imitação estava concluído; ele passará a vir no rumo oposto no século XIX, o século das traduções literais. A mais marcante é a tradução de Paraíso perdido, de Milton, feita por Chateaubriand em 1836 e que em suas Ob servações indica sua recusa em efetuar uma tradução “elegante”, acrescentando imediatamente: E uma tradução literal na mais forte acepção do termo a que eu empreendi, uma tradução cujo texto uma criança ou um poeta poderão seguir, linha a linha, palavra a palavra, como um dicionário aberto diante de nossos olhos39. Ninguém conseguiria ser mais explícito. “Eu decalquei Milton num espelho”, diz ele em uma formulação marcante. Mas trata-se realmente, como pretende Chateaubriand, de uma tradução “pa lavra por palavra”? A resposta é não. Para convencer- -nos disso, basta comparar um extrato do original como His spear, to equal which the tallest pine, / Hewn on Norwe gian hills to be the mast / Of some great ammiral, were but a wand, / He walk’d with to support uneasy steps / Over the burning marie [...] com o texto de Chateaubriand: A lança de Satã (perto da qual o mais alto pinho cortado nas colinas da Noruega para ser o mastro de alguma grande nau Citado por Antoine Berman, Chateaubriand traducteur de Milton, in: A. Berman et alii, Les tours de Bahel. Mauvezin: Trans- -Europ-Repress, 1985, p. 115. HISTÓRIA DA TRADUÇÃO 49 almiranta não passaria de um junco) serve-lhe para firmar seus passos inseguros na marga ardente [...]40. Uma tradução palavra por palavra, ao alcance de qualquer pessoa munida de um dicionário, daria: Sua lança, para igualar a qual o mais alto pinho / cortado nas norueguesas colinas para ser o mastro / de alguma grande nau almiranta, não passaria de uma varinha, / Ele andava com ela para apoiar seus penosos passos / Pela marga ardente [...]. A tradução de Chateaubriand vai muito além de um palavra por palavra mecânico, como se vê na tradução da Ilíada e da Odisseia, realizada mais tar de por Leconte de Lisle, “graças à literalidade mais escrupulosa”41. Na verdade, o empreendimento de Chateaubriand aproxima-se da terceira modalidade de tradução, distinguida por Goethe no D ivã ocidental- -oriental (1819) e que ele considerava a mais superior. Na época dos românticos alemães, a tradução de sempenha um papel comparável ao que ela desempe nhou na Antiguidade em Roma ou no Renascimento no Ocidente42. Goethe distingue um ciclo de três tipos de tradução. O primeiro se limita a transm itir a obra tal como ela se encontra na língua original; é o que teria feito Lutero ao traduzir a Bíblia. O segundo apresenta a obra de tal maneira que ela parece ter sido composta na língua da cultura receptora, a exemplo das elegantes Citado por George Steiner, op. cit., p. 295-296. Citado por Robert Larose, Théories contemporaines de la tra duction. Sillery: Presses de l’Université du Quebéc, 1989, p. 9. Ver Antoine Berman, L’Epreuve de l ’étranger. Culture et tra duction dans l ’Allemagne romantique. Paris: Gallimard, 1984. 50 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS traduções à francesa, quando a tradução vem a subs tituir o original. Na Alemanha, Wieland é o perfeito exemplo disso. O terceiro tipo é uma síntese dos dois tipos anteriores. A tradução, nesse caso, não está mais “no lugar do” (“anstatt”) original, mas em seu lugar próprio (“an der Stelle”) no seio da língua tradutora, permitindo assim transferir o original de uma língua para outra. E quando se produz um cruzamento entreas duas línguas, um tertium quid. Chateaubriand pro cede assim. Ele traduz: “Many a row / Of starry lamps [...] yielded light / As from a sky” (livro I, 727-730) por: “Várias fileiras de lâmpadas estreladas... emanam a luz como um firmamento”43, sabendo pertinente mente que “um firmamento não emana a luz , a luz emana de um firmamento; mas traduza assim e o que se torna a imagem? Pelo menos o leitor penetra aqui no gênio da língua inglesa”44. Para Goethe, a tradução pode então ser “idêntica” ao original. A terceira modalidade de tradução é a melhor, segundo Goethe, mas é também aquela que encontra a maior resistência entre os leitores, que se aborrecem com expressões idiomáticas estrangeiras: as versões da Odisseia (1781) e da Ilíada (1793) efetuadas por Johann Heinrich Voss foram, de início, acolhidas com ceticismo, antes de passarem a ser consideradas como grandes traduções. E necessário acrescentar que as traduções, ainda mais literais, de Hõlderlin tiveram de esperar o século XX para serem reconhecidas por Citado por George Steiner, op. cit., p. 295. Citado por George Steiner, op. cit., p. 295. HISTÓRIA DA TRADUÇÃO 51 seu justo valor. Tanto quanto em Roma ou na época do Renascimento, a tradução “literal” era considerada como o meio de enriquecer a língua, a literatura e a cultura da Alemanha, permitindo assim “fecundar o Próprio pela mediação do Estrangeiro”45. Robert Larose fazia o balanço seguinte: Competirá ao século XX fazer a distinção entre o que Mou- nin chama os vidros coloridos (tradução literal) e os vidros transparentes (tradução livre). “A letra mata e o espírito vivifica”, dizia Voltaire. O século XX marca, com efeito, a vitória do espírito sobre o literalismo do século anterior46. E nos dias de hoje, o que ocorre? Essa afirmação vai ser ainda mais fortemente matizada. Primeiramente porque ainda encontramos no sé culo XX e no século XXI adeptos do “literalismo” na linha dos românticos alemães, como Antoine Berman, Henri Meschonnic ou Jacqueline Risset; depois porque tradutores (quase sempre teóricos) como Ezra Pound, Octavio Paz, Haroldo de Campos ou Efim Etkind, por considerarem a tradução como uma forma de “recria ção” literária, deveriam ser classificados na categoria da “imitação” no sentido em que Dryden a entendia. Se é que podemos falar de vitória, temos m ani festamente, se não prestarmos maior atenção, a vitória do “Próprio” sobre o “Estrangeiro”: a tradução repre senta apenas de 2 a 4 % das obras publicadas nos Esta dos Unidos ou na Grã-Bretanha, enquanto representa 45 Antoine Berman, L’Épreuve de l ’étranger, op. cit., p. 16. 46 Robert Larose, Théories contemporaines de la traduction, op. cit., p. 9. 52 TRADUÇÃO - HISTÓRIA, TEORIAS E MÉTODOS 8 a 12% na França, em torno de 14% na Alemanha, chegando a 25 % na Itália e a 39 % no Brasil. Contudo, o inglês é, desde o final da Segunda Guerra Mundial, a língua mais traduzida no mundo. O desequilíbrio é flagrante117, e é ainda mais agravado pelo fato de que a tradução no mundo anglo-saxônico (menos em outros lugares, mas essa é a tendência dominante) obedece a normas de legibilidade e de elegância que devem dar ao leitor a impressão de que aquilo que ele está lendo foi escrito diretamente na língua tradutora. Essa “transpa rência” reforça ainda mais o efeito uniformizador do etnocentrismo, em detrimento das demais culturas. A tradução é, nesses tempos de globalização, uma ques tão que não deveria deixar ninguém indiferente. Em contrapartida, existe uma vitória com a qual podemos nos alegrar: o século XX marca o surgimento das primeiras verdadeiras teorias da tradução, e sua influência só aumenta nos mais diversos países. Esta mos mais bem apetrechados para compreender a tra dução e seus desafios. Ver Lawrence Venuti, The Translator’s Invisibility. Londres: Routledge, 1995, p. 12-14.
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