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1 PSICOPATOLOGIA DAS PSICOSES PSICOPATOLOGIA DAS PSICOSES Uma Introdução sobre a Semiologia e a Neurociência Cognitiva dos Transtornos do Pensamento e da Sensopercepção Hélio Tonelli 2009 3 4 ÍNDICE Introdução 6 Conceito de Psicose 7 Sintomas psicóticos como um continuum entre a normalidade e a patologia 10 Esquizofrenia: um transtorno essencialmente psicótico 11 Dopamina e antipsicóticos 18 Sinais psicopatológicos das psicoses 19 Pensamento 20 Perturbações do fluxo do pensamento 20 Perturbações da forma do pensamento 20 Perturbações da linguagem 22 Algumas considerações adicionais sobre a estrutura da linguagem na esquizofrenia 23 Perturbações do conteúdo do pensamento 27 Síndromes de Falsa Identificação 29 Teorias cognitivas da formação dos delírios 32 Descarga Corolária 37 5 Modelos associados à cognição social 38 Desregulação da transmissão dopaminérgica e formação de delírios 42 Sensopercepção 43 Bases fisiológicas das alucinações 47 Conclusões 48 Bibliografia 50 6 Introdução O termo psicose é utilizado freqüentemente por profissionais de saúde mental. Mas, o que objetivamente estes profissionais estão querendo dizer quando resolvem usar o termo? Qual o significado das afirmações “este paciente encontra-se profundamente psicótico” e “se usar esta droga ilícita você pode desenvolver uma psicose”? Leigos, compreensivelmente, costumam associar a palavra psicose quase que exclusivamente a risco de comportamento violento – possivelmente por influência do famoso filme homônimo de Hitchcock – quando, na realidade, a violência nem sempre está presente nos quadros clínicos em que há psicose. Não obstante, quando a violência ocorre em indivíduos clinicamente psicóticos, costuma se caracterizar muito mais como uma reação defensiva a um ambiente ameaçador do que a comportamentos friamente arquitetados, típicos dos psicopatas (outro termo que gera confusão entre leigos, os quais acreditam que psicopatia é sinônimo de doença mental em geral, o que, também, não corresponde à realidade). Outra noção popular sobre o significado de psicose é mais próxima do conceito técnico: psicose é sinônimo de loucura. Em certos termos, isso é verdade, mas, o que as pessoas querem dizer quando usam a palavra loucura? Uma vez vi um atendente de enfermagem dizer, bem intencionadamente, a um paciente (psicótico) que o perguntara se o achava louco: “os loucos comem fezes e rasgam dinheiro, você não está fazendo nenhuma nem outra coisa, logo você não é louco...” Este técnico perdeu a oportunidade de educar o paciente a respeito de sua condição clínica e o fez por também não conhecer ao menos os rudimentos do conceito de psicose. O que fazem os loucos, além de, supostamente, rasgar dinheiro e comer fezes (se é que eles fazem mesmo isso)? As pessoas acometidas daquilo que vulgarmente se chama de loucura têm comportamentos desviantes da norma e estes comportamentos são determinados geralmente por fenômenos que acontecem em suas mentes e fazem com que elas se comportem de maneira peculiar: falam sozinhos, são assustadiços, assumem posturas estranhas, param de tomar banho diariamente, auto- mutilam-se, acreditam que estão sendo perseguidos, que familiares foram substituídos por impostores, que são controlados à distância, apresentam um discurso peculiar, etc. Alguns se tornam violentos, mas a maioria geralmente se isola ou foge do contato com as outras pessoas e o maior risco que oferecem é a si mesmas. Portanto, a primeira lição de quem pretende estudar psicopatologia das psicoses é ter em mente um conceito muito claro do termo psicose. A partir daí é possível descrever os fenômenos clínicos presentes em uma síndrome psicótica, a segunda etapa de nossa 7 empreitada. Por exemplo, uma maneira de se estar psicótico sem apresentar delírios de perseguição e alucinações do tipo vozes de comando é ter um comportamento desorganizado (o que não significa que não haja pacientes com comportamento desorganizado que apresentem concomitantemente delírios e/ou alucinações). A terceira lição será compreender quais são os fenômenos mentais subjacentes à presença destes comemorativos clínicos (atualmente a ciência cognitiva evoluiu bastante, de forma a possibilitar a explicação dos mesmos com base em falhas no processamento da informação, via déficits em filtros sensoriais ou processos de auto-monitoramento, por exemplo). Conceito de Psicose Parece irresistível à maioria daqueles que abordam o tema da psicose contrapor tal conceito com o de neurose; não optarei por outro caminho neste texto porque os dois conceitos caminharam juntos desde o princípio, mudando seu significado de acordo com a época. É importante, todavia, salientar que inicialmente o termo neurose referia-se a qualquer doença do sistema nervoso. Tanto era assim que, nos casos em que se suspeitava de forte componente psíquico do transtorno afetando o sistema nervoso, poder-se-ia usar uma expressão parecida com neurose psíquica, o que para aqueles acostumados com a nomina freudiana, poderia parecer uma hipérbole. Falaremos um pouco mais das neuroses nos próximos parágrafos. Na primeira vez que o termo psicose foi empregado, por Feuchtersleben em 1845, o mesmo referia-se à presença de psicopatologia comprometendo toda a personalidade e tendo como origens alterações tanto de processos físicos quanto de processos psíquicos. Portanto, a palavra designava a presença de transtornos mentais ou insanidade e assim permaneceu seu significado até a segunda metade do século dezenove. A tendência continuava sendo de associar o termo à presença de sintomas explicados por doenças no sistema nervoso central ou pela suposição de que transtornos acometendo o cérebro os estivessem causando, até que Moebius, em 1875, sugeriu a classificação das psicoses em endógenas e exógenas. Com este argumento alinharam-se Kraepelin e Jaspers, os quais chamavam de exógena toda a psicose com causa externa, fosse física, fosse psíquica. A expressão endógena – sob a qual eram definidos estados como melancolia, mania, paranóia e histeria – consagrou-se definitivamente com o trabalho de Schneider, como uma categoria para incluir estados clínicos em que não fora possível a obter a correlação anátomo-clínica ou demonstrar a etiologia neurológica, mas que a existência de um transtorno seria inequívoca em virtude da presença de sinais psicopatológicos. Mais tarde, Kraepelin e Bleuler propuseram a clássica subdivisão das psicoses endógenas em duas 8 categorias, psicose maníaco-depressiva e psicose esquizofrênica, baseando-se na evolução da doença. Esta proposta é até hoje muito popular e pode ser observada nos manuais de psiquiatria clínica, em que transtornos bipolares e esquizofrenia são estudados sob uma ótica kraepeliniana, que, resumidamente, assume que os transtornos do humor terão uma evolução favorável e que as esquizofrenias não. Qualquer psiquiatra com alguma experiência e bom senso concordará que isso objetivamente não acontece. Contrapondo-sea esta visão, houve outros pesquisadores que propunham um modelo de psicose unitária. O transtorno esquizoafetivo, uma categoria diagnóstica caracterizada pela presença simultânea de sintomas característicos de esquizofrenia e de psicose maníaco-depressiva, seria um bom argumento a favor deste modelo. Portanto, aqueles que inicialmente empregaram o termo psicose estavam interessados na descrição das manifestações psíquicas de quadros organomentais e, gradualmente, a visão pareceu se inverter até a situação observada na época de autores como Bleuler e Kraepelin, em que se assumia a existência de quadros psíquicos para os quais havia a necessidade de se estabelecer uma conexão física. De certa forma, o conceito mais moderno de psicose acabou convergindo para o conceito primordial de neurose. O progresso das técnicas de avaliação neuropatológica e a identificação de novas causas de doenças mentais, assim como o avanço da psicanálise, acabaram por restringir o conceito de neurose àquelas situações clínicas de causa psicogênica. Nesta época foram descritas as doenças de Alzheimer e de Pick, a esclerose múltipla, as doenças da tireóide e a neurossífilis. Em relação à psicanálise, a mesma colaborou para a dicotomia entre psicose e não-psicose (ou neurose), que permeou – ou permeia – a nosologia psiquiátrica contemporânea. Esta dicotomia interferiu nas maneiras de se conceber e de se tratar as psicoses e as neuroses. As primeiras continuaram sendo explicadas como resultantes de doenças somáticas – pudessem ou não ser demonstradas suas causas físicas – seriam, portanto, um processo; e as últimas, como tendo um caráter autobiográfico, eram vistas como algo cujo desenvolvimento teria a ver com a história de vida de cada paciente. Disso decorreria que as psicoses mereceriam uma explicação causal (seria possível descrever uma “cascata” de eventos levando à psicose) e as neuroses, uma compreensão psicológica (fortemente vinculada à história pessoal do indivíduo). Não obstante, explicações psicodinâmicas derivadas da psicanálise – que influenciou a psiquiatria norte-americana após a segunda grande guerra - aparecem nos textos das classificações psiquiátricas tradicionais, como o DSM-II e a CID-9, inclusive para quadros psicóticos, que são tratados 9 como reações psicológicas ou neuroses mais graves. Somente a partir da década de oitenta, com as tentativas de validação das categorias diagnósticas dos sistemas classificatórios, é que a dicotomia neurose-psicose é definitivamente abandonada e o termo psicose é utilizado apenas em referência aos transtornos psicóticos. Voltamos, então, à nossa pergunta inicial. O que é psicose? Como deve se apresentar um paciente para que possamos dizer seguramente que o mesmo encontra-se psicótico? Muitos autores respondem a esta questão afirmando que a psicose se caracteriza por um comprometimento da capacidade de testar a realidade. Isto é, alguma coisa acontece no discurso ou na atitude do indivíduo, que permite concluir que ele não está fazendo um juízo adequado da realidade. Portanto, ao avaliarmos um paciente que afirma ser o presidente do Brasil, poderemos concluir pelo prejuízo do teste da realidade se e apenas se: o indivíduo realmente não for o presidente do Brasil, se após algum tempo de entrevista pudermos concluir que o indivíduo não está simulando um sintoma psicótico ou caçoando o entrevistador e se, após algumas perguntas objetivas do tipo “mas, se você é o presidente, não deveria estar em seu gabinete no Palácio do Planalto?”, percebermos que o paciente realmente crê naquilo que diz (seja porque apresenta respostas mais ou menos organizadas para este tipo de pergunta, na tentativa de justificar as muitas contradições que surgem no exercício de sustentar sua crença, seja pelas possíveis reações emocionais que aparecerem em decorrência do confronto). O exemplo acima ilustra o caso de um paciente com quem se conversou e, através da entrevista, foi possível concluir pela presença de psicose. Alguém poderá argumentar se existiria alguma maneira de aferir a integridade do teste da realidade em alguém com quem, por algum motivo, não se possa estabelecer um contato verbal razoável? A resposta é sim, já que é possível avaliar o teste da realidade através das atitudes, apesar de não ser, nestes casos, possível dizer com detalhes quais seriam os pensamentos e crenças determinantes das atitudes apresentadas pelo paciente. Exemplos de casos como o tratado acima incluem pacientes em mutismo ou com comportamento desorganizado ou apresentando ecolalia e ecopraxia graves, pacientes em estupor ou furor catatônico ou com intenso afrouxamento das associações e pacientes com severa fuga de idéias, para enumerar apenas algumas possibilidades. Portanto, pode-se afirmar que o termo psicose abrange uma gama de estados mentais patológicos os quais se caracterizam pela presença de um ou mais fenômenos clínicos que, em última análise, são o reflexo de alterações mentais afetando a integridade de sistemas cerebrais ligados ao processamento do teste da realidade. Embora a discussão 10 de tais sistemas não seja o objetivo central deste estudo, é importante lembrar que uma importante função do cérebro é lidar com o processamento de informações ambientais de forma que possamos aperfeiçoar nossa sobrevivência no mundo da forma mais eficiente possível. Estes aperfeiçoamentos incluem a elaboração de um modelo de mundo do qual nossa realidade faz parte. A neurociência cognitiva, através de diferentes técnicas, tem identificado vários sistemas cerebrais envolvidos diretamente na construção das representações mentais do ambiente. Estes sistemas, quando avariados, podem resultar em problemas no processamento do teste da realidade. É o que será estudado um pouco mais adiante. Sintomas psicóticos como um continuum entre a normalidade e a patologia Fenômenos clínicos como as experiências delirantes e as alucinações podem ocorrer em um continuum com a normalidade. Em outras palavras, isto equivaleria a dizer que alguns indivíduos que nunca foram diagnosticados como portadores de qualquer transtorno psicótico (e que provavelmente nunca o serão) podem desenvolver experiências psicóticas em algum momento de suas vidas. Reforçando esta idéia, uma série de estudos examinou a prevalência de alucinações e de outros sintomas psicóticos na população geral, sugerindo que grande parte das experiências psicóticas seja transitória, desaparecendo com a passagem do tempo. Por exemplo, a taxa de prevalência de alucinações na população geral adulta parece variar entre dez a vinte e cinco por cento, além do que alguns estudos realizados com indivíduos universitários demonstraram que até setenta por cento deles já tiveram experiências alucinatórias do tipo ouvir vozes pelo menos uma vez em suas vidas. Uma crítica plausível a estes números envolve o fato de que muitos dos trabalhos de rastreamento de sintomas psicóticos são feitos através da administração de questionários auto-aplicáveis, permitindo uma razoável possibilidade de erro em virtude de má interpretação das perguntas destes instrumentos, já que nem todos os indivíduos avaliados têm treino psicopatológico, isto é, eles podem ter compreendido mal as questões que lhe foram apresentadas. Levando estas considerações em conta, consideremos a psicose como um fenótipo definível de forma mais ou menos liberal. Portanto, de maneira liberal, definiremos este fenótipo como um caminho (ou espectro) que se inicia nas experiências psicóticas na população geral, passando por formas progressivamente mais graves de psicose até chegar à expressão mais estreitamente definível de esquizofrenia. Ouentão, de maneira mais restritiva (e categorial), estipulemos que o fenótipo da psicose inclui apenas as formas mais 11 estreitamente definíveis de esquizofrenia. Quando estas diferentes considerações acerca do fenótipo da psicose são confrontadas e avaliadas suas ocorrências na comunidade, conclui- se que o fenótipo mais amplo (mais liberal) de psicose pode ser até cinquenta vezes mais comum que o mais estrito. De fato, a prática diária do diagnóstico e tratamento de síndromes psicóticas faz com que aprendamos a reconhecer diferentes apresentações clínicas de psicose, que variam desde indivíduos praticamente “normais” e que se nos apresentam com peculiaridades nos processos de pensamento ou relatos de experiências alucinatórias esporádicas ou subclínicas. O transtorno esquizotípico de personalidade é um exemplo de condição psiquiátrica em que algo como este quadro pode ocorrer. Este transtorno de personalidade é definido clinicamente no Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais, quarta edição (DSM-IV), como um padrão invasivo de déficits sociais e interpessoais, marcado por desconforto agudo e reduzida capacidade para relacionamentos íntimos, além de distorções cognitivas ou perceptivas e comportamento excêntrico, associados a traços esquizotípicos: idéias de referência, crenças bizarras ou pensamento mágico, experiências perceptivas incomuns, pensamento e discurso bizarros, desconfiança, ideação paranóide, inadequação ou contrição afetiva, aparência peculiar ou excêntrica e excessiva ansiedade social associada principalmente a temores paranóides, mais do que a auto-julgamentos negativos. Embora não possam ser diagnosticados como portadores de uma síndrome esquizofrênica, estes indivíduos parecem apresentar uma vulnerabilidade aumentada para o desenvolvimento de esquizofrenia e muitos deles realmente evoluem para psicoses esquizofrênicas francas. No entanto, nem todas as pessoas que, em algum momento de suas vidas, tiveram experiências alucinatórias ou deliróides ou delirantes preenchem critérios diagnósticos para um transtorno psiquiátrico, ou seja, nem todas poderão ser consideradas casos clínicos. Aliás, a difícil tarefa de examinar um paciente com sintomatologia psicótica subsindrômica e sem prejuízos severos no funcionamento sócio- ocupacional, visando um diagnóstico psiquiátrico – e consequentemente uma orientação terapêutica – exige experiência clínica, adquirida com anos de observação psicopatológica e estudo. Esquizofrenia: um transtorno essencialmente psicótico Uma vez que a esquizofrenia é o transtorno mental em que a psicose se manifesta por excelência, cabe aqui uma rápida discussão a seu respeito. 12 A esquizofrenia é uma condição clínica relativamente comum (sua taxa de risco ao longo da vida é de cerca de 0,7%, semelhante à da artrite reumatóide), caracterizada pelo acometimento de múltiplas funções mentais. Cognição, pensamento, senso-percepção, volição, controle de impulsos e juízo crítico da realidade costumam estar afetados. Ela tem um curso crônico, geralmente marcado por recaídas e remissões e costumeiramente se inicia no início da idade adulta. Por esta razão, trata-se de um transtorno para o qual a detecção e intervenção precoce são fundamentais, pois, depois de instalado o processo mórbido, todos os tratamentos disponíveis são paliativos. Desta forma, o estudo e o reconhecimento de pródromos têm sido uma importante atividade de pesquisa em esquizofrenia. Pródromo é um conceito retrospectivo, isto é, a não ser que haja uma doença psicótica estabelecida, é impossível defini-lo. Em esquizofrenia e outras doenças psicóticas o pródromo se refere ao período caracterizado por comemorativos clínicos que representam uma alteração do funcionamento pré-mórbido de um paciente imediatamente anterior ao início dos sintomas psicóticos francos. Cerca de oitenta a noventa por cento dos esquizofrênicos relatam uma gama de sintomas, que incluem mudanças nas percepções, crenças, cognição, humor e comportamento, antes de ficarem psicóticos. Os demais dez a vinte por cento desenvolvem quadros psicóticos agudos, sem sinais prodrômicos. De maneira geral, sintomas como apatia e isolamento social ou sinais inespecíficos são os primeiros a aparecer e são seguidos de sintomas positivos (os delírios e alucinações, que serão descritos adiante com mais detalhes) atenuados. É importante identificar quais as populações que, em um dado momento, estão manifestando supostos sintomas prodrômicos de esquizofrenia (e não desenvolveram um episódio psicótico completo até então) e que irão evoluir para um diagnóstico bem estabelecido de esquizofrenia. Indivíduos de alto risco são aqueles que têm um parente esquizofrênico em primeiro grau, mais frequentemente um dos pais ou irmãos. Recentemente tem sido valorizada a identificação de grupos de risco ultra-alto, separados por pesquisadores australianos em três categorias, de acordo com a síndrome identificada: indivíduos com síndrome psicótica atenuada, indivíduos com síndrome psicótica breve intermitente e indivíduos com uma síndrome de deterioração recente. Estas categorias são explicadas com mais detalhes abaixo. 13 Critérios para síndromes de risco ultra-alto para psicoses esquizofrênicas (Young e colaboradores, 1996) Síndrome de sintomas psicóticos atenuados • No último ano, sintomas positivos subclínicos ocorreram, mas não sintomas francamente psicóticos. • Os sintomas devem ter ocorrido no mínimo 1 vez por semana no último mês. Síndrome psicótica intermitente breve • Nos últimos três meses ocorreram sintomas psicóticos francos, que foram breves e auto-limitados. • Tais sintomas não preenchem critérios do DSM-IV para algum transtorno psicótico. • Os sintomas não são seriamente desagregadores ou perigosos. Síndrome de deterioração recente e risco genético • O indivíduo apresenta um transtorno esquizotípico de personalidade (já definido acima) ou um parente em primeiro grau com psicose. • No último ano, o funcionamento reduziu trinta pontos ou mais na Escala de Funcionamento Global, por no mínimo um mês. 14 Felizmente existem indivíduos falso-positivos para risco ultra-alto, ou seja, clinicamente são muito semelhantes aos indivíduos portadores de risco ultra-alto que desenvolvem sintomas psicóticos francos, mas com a diferença de que não são vulneráveis à psicose. Indivíduos com risco ultra-alto para o desenvolvimento de esquizofrenia apresentam chances de cerca de quarenta a sessenta por cento de apresentarem sintomas francamente psicóticos, uma taxa mais alta do que a dos que apresentam apenas um risco genético para esquizofrenia, que é de dez a vinte por cento. Existem programas estruturados especificamente para o atendimento desta população, a fim de que se evite que estes indivíduos passem, a qualquer momento, a preencher critérios para esquizofrenia. Contudo, muitas questões éticas ainda não foram resolvidas a respeito do tema: por exemplo, é ético prescrever antipsicóticos para indivíduos de risco que não têm esquizofrenia clínica? As manifestações psicopatológicas da esquizofrenia ocorrem em praticamente todas as esferas da vida mental do indivíduo e, embora sejam tradicionalmente descritas em separado, devem ser compreendidas como alterações que se relacionam mutuamente, comprometendo de forma grave o funcionamento psíquico. Várias tentativas de se classificar e sistematizar os sintomas da esquizofrenia já foram feitas e atualmente existe uma ampla aceitação de que a doença compreende três dimensões sintomáticas: negativa, positiva e desorganizada. Um modelo anterior, quedescreve os sintomas como pertencentes a apenas duas categorias, positiva e negativa, parece ser muito simplista, não refletindo suas conexões com outros fatores; os sintomas negativos parecem pertencer a um grupo de sintomas bastante homogêneos, que são definidos de maneira muito similar por vários autores. Já os sintomas positivos parecem demonstrar uma complexa heterogeneidade, o que, muitas vezes, resultou na subdivisão deste grupo em clusters sintomáticos menores. Alguns autores sugeriram a inclusão dos sintomas depressivos e déficits no ajustamento social pré-mórbido como uma parte integrante do processo esquizofrênico. Dimensão Negativa Anedonia e isolamento social, embotamento afetivo, pobreza do discurso, diminuição do interesse, falta de inflexões vocais, desatenção social, anergia, pobreza de gestos expressivos, diminuição de movimentos espontâneos, alogia, 15 não-responsividade afetiva, diminuição do interesse sexual, falta de persistência em atividades escolares ou laborativas, pobre contato visual, déficits atencionais, bloqueio do pensamento, retardamento psicomotor. Dimensão Positiva Alucinações (vozes comentando, somáticas, tácteis, vozes conversando entre si, olfativas), delírios (controle, inserção de pensamento, referência, irradiação de pensamento, persecutórios, somáticos, culpa, místicos). Dimensão Desorganizada Comportamento bizarro, transtorno formal do pensamento (tangencialidade, incoerência, circunstancialidade, afrouxamento, pressão pela fala, desorganização conceitual). Quais são as principais teorias sobre a fisiopatologia da esquizofrenia? A mais popular é a teoria dopaminérgica, que foi construída a partir da constatação de que os antipsicóticos bloqueiam a transmissão dopaminérgica cerebral. Discutiremos de maneira resumida os mecanismos de ação destes fármacos logo em seguida. A teoria dopaminérgica também se baseia na observação de que o abuso de estimulantes como a cocaína e anfetaminas – substâncias que, sabidamente alteram a concentração do neurotransmissor dopamina em áreas específicas do cérebro – pode levar a um estado psicótico semelhante ao observado na esquizofrenia. Além da dopamina, outros neurotransmissores foram sendo consecutivamente incluídos na lista de possíveis substâncias cerebrais cujo mau funcionamento pode estar relacionado ao aparecimento da esquizofrenia, dentre elas a serotonina e o glutamato. Atualmente, teorias cognitivas da esquizofrenia têm ampliado a compreensão sobre o aparecimento de sintomas positivos e negativos, com a vantagem de não descartarem as causas bioquímicas. São, portanto, complementações das teorias neuroquímicas. Funções cerebrais superiores como o pensamento e a linguagem têm seu “sítio anatômico” localizado no córtex associativo. O córtex associativo é dividido em três porções: córtex pré-frontal (envolvido com funções motoras), córtex límbico (envolvido com memória, emoção e aspectos motivacionais do comportamento) e córtex associativo parietotemporoccipital (envolvido com funções sensoriais e linguagem). 16 O córtex pré-frontal é a área que mais se desenvolveu no cérebro, do ponto de vista filogenético. De maneira geral, ele integra as informações dos meios externo e interno a fim de encontrar as respostas motoras apropriadas. Desta forma, esta área está estreitamente relacionada a funções cognitivas e planejamento de ações. O córtex pré-frontal recebe uma inervação dopaminérgica proeminente. Pacientes com lesões desta região podem, ao exame muito superficial, parecer normais. Contudo, por apresentarem comprometimento em uma área relacionada ao planejamento de ações, podem desenvolver desinibições comportamentais, bem como perseverações ou dificuldades para mudarem seus esquemas de ação (na medida em que pensamento e ação estão dissociados). Durante as últimas décadas o estudo dos mecanismos neurais da esquizofrenia passou rapidamente por três fases. Na primeira, tentou-se demonstrar que se tratava de uma doença do cérebro. Tal fase foi suportada por estudos de neuroimagem em que foram evidenciados achados difusos inespecíficos, como proeminência de sulcos cerebrais ou dilatação ventricular. A próxima fase tentou relacionar manifestações específicas da doença com determinadas regiões cerebrais. Progressos nesta fase incluíram as correlações do córtex pré-frontal com a sintomatologia negativa e a dos lobos temporais com as alucinações auditivas. A fase mais recente tenta compreender a esquizofrenia como um processo que afeta mecanismos cognitivos e determinados circuitos neurais, enfatizando modelos integrativos de processamento de informação e atenção, memória de trabalho e iniciativa. A esquizofrenia se apresenta clinicamente com uma diversidade de sintomas em múltiplos domínios psicológicos: percepção, inferência, formação de conceitos, linguagem, volição, atividade motora, interação social e emoção. O transtorno envolve algum tipo de alteração na recepção e processamento da informação oriunda do meio externo. Um modelo particularmente promissor assume que há um déficit em um sistema que coordena o processamento, priorização e expressão da informação. Tal sistema abrange as chamadas funções executivas, cujo sítio cerebral é o córtex pré-frontal. Contudo, autores postulam que estas funções não estejam circunscritas a esta região, distribuindo-se de forma mais complexa no SNC, compreendendo não apenas redes corticais, mas também sistemas neurais subcorticais. O termo dismetria cognitiva1 tem sido usado para nomear esta situação 1 Do ponto de vista neurológico o termo dismetria quer dizer alteração da coordenação da atividade motora. A disdiadococcinesia é uma alteração dismétrica. O termo dismetria deriva do grego e quer dizer “alteração da” (dis) moderação (metron). Por metron subentende-se a tomada de medida do tempo e do espaço, fazendo 17 de descompasso envolvendo tanto as funções executivas como as emoções, o controle motor, atenção e memória. Todos os seres humanos saudáveis psiquicamente têm um forte sentimento de controle voluntário de seu comportamento. Tal intuição sugere a existência de algum sistema executivo que organize e unifique nossos pensamentos e comportamento. A atenção conduz a seleção de inputs relevantes para que tarefas mentais sejam cumpridas de maneira coerente. O sistema da atenção deve ser suficientemente flexível para permitir que objetivos integrantes da tarefa sejam re-priorizados com base nas mudanças ocorridas no ambiente. Este sistema parece ser afetado por danos aos lobos frontais. A esquizofrenia é comumente vista por alguns autores como um transtorno de déficit atencional, e muitas das alterações apresentadas por esquizofrênicos na realização de tarefas cognitivas parecem corroborar esta idéia. Estes déficits talvez sejam muito mais específicos do que já foi pensado e não podem ser atribuídos a fatores gerais como falta de motivação ou habilidade para entender instruções. Como sintomas particulares e únicos da esquizofrenia, como alucinações e transtornos do pensamento, poderiam estar relacionados às funções executivas? As áreas relacionadas às funções executivas estão envolvidas com a seleção dentre o trabalho semântico, função esta que, quando alterada, promoveria uma falha no controle de idéias conflitantes. Pacientes esquizofrênicos não apresentam, grosso modo, alterações motoras; contudo o exame mais minucioso poderá revelar formas subclínicas de distúrbios motores em alguns indivíduos desta população. Um exemplo de alteração motora observada em esquizofrênicosé a lentificação, constantemente atribuída à terapêutica com antipsicóticos (principalmente os mais antigos, também denominados de primeira geração). Contudo, este sinal já era descrito em pacientes antes da era dos antipsicóticos. Recentemente, o termo sinais neurológicos leves (soft signs) tem sido usado para descrever estas alterações em pacientes que nunca receberam antipsicóticos. Não obstante, a expressão dismetria cognitiva abrange tanto processos motores como cognitivos, relativos ao processamento da informação e às respostas conferidas como conseqüência deste processamento. É razoável afirmar-se que processos como alucinações, alterações formais do pensamento, delírios, embotamento afetivo, distúrbios volitivos e déficits atencionais também possam ser decorrentes de dismetria cognitiva. Uma teoria inferências sobre interrelações entre tais grandezas em relação a outro(s), a objetos, memórias e conceitos; formulando respostas e experimentando sentimentos como conseqüências desta tomada de medida. 18 bastante interessante a respeito da fisiopatologia das alterações do pensamento baseia-se na tese de que o pensamento é a forma mais evoluída e sofisticada de atividade motora em humanos e como tal, poderá apresentar-se alterado em virtude do descompasso de estruturas envolvidas no processamento motor. Não se trata de uma metáfora, mas de um conceito que implica na participação de estruturas subcorticais como os gânglios da base e tálamo, bem como do próprio cerebelo no processamento do pensamento. De fato, os sintomas positivos da esquizofrenia são os mais difíceis de serem explicados e de se compreender, e muitos fatores estão por trás destas dificuldades: em primeiro lugar, embora muitas pessoas possam apresentar desorganização comportamental e falta de motivação, muitas dos sujeitos deste grupo jamais irão apresentar delírios ou alucinações. Em segundo lugar, embora seja relativamente menos complicado explicar porque determinadas condições clínicas cursam com perda da capacidade de ter sensações ou da habilidade de pensar, é muito mais difícil entender como o cérebro poderia “criar” experiências sensoriais e cognitivas novas e convincentes. A teoria ideal sobre a gênese de sintomas positivos deveria abranger três níveis explicativos: em primeiro lugar, identificaria processos físicos aberrantes acontecendo no tecido cerebral. Em segundo, conectaria tais processos com aberrações cognitivas acontecendo em nível psicológico e, em terceiro lugar, conciliar os dois primeiros níveis com o nível experiencial, isto é, fornecer uma explicação de como seria a experiência de ter delírios e alucinações. Dopamina e antipsicóticos A introdução da clorpromazina em 1950 inaugurou a era da moderna psicofarmacologia das psicoses e, desde então, diversas classes destas drogas foram lançadas. A partir de 1960, a idéia de que os antipsicóticos agem predominantemente no sistema dopaminérgico ficou estabelecida, o que foi definitivamente comprovado a partir da década de setenta, com o achado de que tais drogas agem em receptores dopaminérgicos do tipo D2. Apesar de várias tentativas de desenvolvimento de fármacos com propriedades antipsicóticas, mas que não agissem em sistemas dopaminérgicos, até hoje é aceito que o bloqueio dos receptores do tipo D2 permanece uma condição necessária para atividade antipsicótica. Portanto, sabemos que, do ponto de vista biológico, as psicoses parecem originar- se de problemas envolvendo a transmissão dopaminérgica, bem como que os antipsicóticos 19 exercem suas ações em sistemas dopaminérgicos. Todavia, ainda não conseguimos explicar as conexões entre estes achados biológicos e a natureza essencialmente fenomenológica da psicose em um nível mental. Kapur e colaboradores propuseram, em 2004, um modelo compreensivo de como deve acontecer tal conexão. Seu modelo baseia-se no papel da dopamina como um neurotransmissor relacionado a reforço comportamental, seja por mediar o prazer hedônico, seja por estar envolvida com eventos apetitivos e aversivos, seja por ser liberada por neurônios dopaminérgicos mesencefálicos quando há predição de prazer ou de gratificação. O sistema dopaminérgico é “colocado em ação” tanto quando um animal se depara com novos reforçadores ou gratificadores ambientais, tanto quando associações previamente aprendidas são violadas. Conseqüentemente, este neurotransmissor está também envolvido com o aprendizado. Hoje em dia sabemos que o bloqueio de receptores D2 proporcionado pelas drogas antipsicóticas é bastante eficiente contra os sintomas positivos da esquizofrenia, mas não contra os sintomas negativos. Além disso, o bloqueio destes receptores em vias dopaminérgicas específicas pode causar, em alguns pacientes, efeitos colaterais extrapiramidais, que se caracterizam de maneira geral por movimentos involuntários como tremores, discinesias ou contraturas musculares involuntárias. Sinais psicopatológicos das psicoses A partir de agora detalharemos as alterações psicopatológicas presentes nos quadros psicóticos. Iniciaremos por um estudo das alterações do pensamento passando, em seguida, às alterações sensoperceptivas. Cabe lembrar que boa parte dos fenômenos aqui descritos não ocorre exclusivamente na esquizofrenia, mas também em outras condições clínicas em que pode existir psicose. Entretanto, embora não existam sinais patognomônicos de esquizofrenia, muitos deles são fortemente sugestivos da presença do transtorno. Muitas dos modelos teóricos disponíveis – e descritos a seguir – para a explicação de algumas alterações do pensamento na esquizofrenia aplicam-se, de certa forma, à compreensão de alguns tipos de alucinações presentes neste transtorno. Isso reforça o fato de que a descrição dos processos perceptivos e de pensamento como fenômenos separados é uma estratégia puramente didática. 20 Pensamento O pensamento normal é uma atividade psíquica constituída basicamente por um fluxo de idéias, símbolos e associações iniciado por um problema qualquer e dirigido a um objetivo determinado, levando a conclusões baseadas na realidade. Bleuler lembrou de que é um erro conceber o pensamento como um simples processo associativo, como se o mesmo fosse apenas um encadeamento de representações, por mais diversos que sejam os mecanismos que definam este encadeamento. Ele afirmou que quando pensamos não juntamos apenas, também damos forma. A semiologia do pensamento propõe que o estudemos dividindo-o em diferentes partes: fluxo, forma, linguagem e conteúdo. O fluxo é a velocidade com que o pensamento se processa; a forma é constituída pelas capacidades de formular, organizar e expressar as idéias e o conteúdo diz respeito à informação propriamente dita da qual se preocupa o pensamento em veicular. Perturbações do fluxo do pensamento O fluxo (ou velocidade) do pensamento poderá estar aumentado ou diminuído. O aumento do fluxo do pensamento pode ocorrer normalmente em pessoas excitadas ou bem-humoradas, mas em maníacos o aumento do fluxo do pensamento pode interferir em sua forma, causando uma alteração chamada de fuga de idéias. A fuga de idéias é uma alteração formal do pensamento gerada por uma alteração do fluxo. Nos estados depressivos pode existir diminuição do fluxo do pensamento ou inibição do pensamento, que passa a se desenrolar de maneira lenta e difícil, com aumento do tempo de latência entre pergunta e resposta. Interessante é que, no aumento do fluxo há uma tendênciaà mudança do foco do pensamento, pois o estado de excitação pode fazer com que o indivíduo se impressione com qualquer estímulo novo que se apresente. Nos estados de lentificação o oposto pode ocorrer, isto é, uma condição na qual a temática não muda, estabelecendo-se o que psicopatologistas chamam de monoideísmo. O monoideísmo, da mesma forma que a fuga de idéias, é uma alteração formal do pensamento, presente em situações clínicas em que há grave diminuição da velocidade do pensamento. Perturbações da forma do pensamento Chama-se de empobrecimento do pensamento a presença de um pensamento exageradamente simplificado, caracterizado por uma quantidade pequena de recordações e 21 de representações mentais. Os indivíduos cujo pensamento é empobrecido não conseguem vincular afetos, memórias, representações e impressões, como é comum em um ato cognitivo saudável. O discurso é, então, vago e dá a impressão de que não acrescenta nenhuma informação, apesar das palavras. Trata-se de um sinal típico dos esquizofrênicos cronificados e dos portadores de quadros organomentais com patologia cerebral difusa. A perseveração é a persistência da resposta a uma pergunta, mesmo quando outra pergunta é apresentada ao paciente. Não há mudança de tópico frente às mudanças de perguntas. Por exemplo, ao interrogarmos o paciente a respeito de seu nome, ele responde, corretamente. Em seguida, perguntamos sua idade e ele diz seu nome e assim permanece fazendo, independentemente da pergunta. A perseveração é comum na esquizofrenia e em outros distúrbios mentais de etiologia orgânica. Prolixidade é a inclusão no discurso de itens desnecessários à sua compreensão e acontece por vários motivos. Em virtude do aumento do fluxo do pensamento, em que há superinclusão de temas pelo aumento da sensibilidade a estímulos ambientais; de déficit de inteligência (oligofrênicos muitas vezes não conseguem separar o que é essencial do que não é em sua comunicação verbal); de outros déficits cognitivos, por ocorrer perda da integridade de mecanismos de memória; em esquizofrênicos (graças ao afrouxamento associativo). A prolixidade pode expressar-se de duas formas: circunstancialidade e tangencialidade. O paciente circunstancial tem um pensamento prolixo, cujo discurso – ainda que muito superinclusivo – acaba por atingir um objetivo. O que acontece com o paciente tangencial é algo diferente: o discurso também é prolixo e superinclusivo e margeia o objetivo final, mas não o atinge. Bloqueio do pensamento se caracteriza pela parada súbita do fluxo do pensamento quando este vinha fluindo normalmente. Alguns pacientes, ao vivenciarem um bloqueio, poderão conferir-lhe uma interpretação delirante de roubo do pensamento. Incoerência do pensamento é a distorção gramatical completa e o desaparecimento da conexão lógica entre uma parte e outra da sentença e que pode ocorrer pó conta de intensa aceleração do pensamento (principalmente em pacientes maníacos), nos quadros organomentais (como o delirium) e na esquizofrenia, por conta de severo afrouxamento associativo. É sinônimo de desagregação ou desorganização do pensamento. Afrouxamento das associações é uma importante alteração formal do pensamento presente na esquizofrenia e que se distingue por um discurso no qual as idéias tendem a 22 mudar para temas não correlacionados, configurando um pensamento idiossincrático e potencialmente incompreensível. O afrouxamento pode ser observado em diferentes graus de severidade: em pacientes menos graves, percebe-se que as idéias não são ligadas de forma apropriada – embora possa ainda se entender aquilo que o paciente está falando – fazendo com que se tenha uma sensação de que as conexões lógicas são pobres ou até mesmo inexistentes. Em pacientes mais graves pode surgir incoerência ou desagregação do pensamento. Neologismo é a invenção de palavras, geralmente por condensação de outras palavras significativas para o paciente. Exemplo: Ao atender um paciente esquizofrênico em uma unidade de emergência, perguntei: “O que o traz aqui?”, ao que o paciente respondeu: “Amplictaz...” Pude observar que o acompanhante do paciente me mostrava naquele instante uma caixa de clorpromazina (Amplictil), medicação usada pelo paciente. Por condensação do nome do remédio com a palavra “traz” de minha pergunta, aquele paciente “montou” seu neologismo. Perturbações da linguagem A linguagem é considerada pela maioria dos psicopatologistas ilustres como o elo final da cadeia de processos que se iniciam com a percepção e terminam com a palavra falada ou escrita. As alterações da linguagem são classificadas quanto à sua origem em alterações orgânicas (resultantes de lesões de quaisquer dos órgãos que participam da elaboração, da emissão e da articulação das palavras) e funcionais (também denominadas alterações do comportamento verbal). As alterações orgânicas da linguagem incluem a disartria, a dislalia e as afasias. A disartria consiste na dificuldade de articulação das palavras e pode ter múltiplas causas, centrais ou periféricas. A dislalia é uma perturbação funcional da palavra, de etiologia orgânica, e seus sintomas incluem a omissão, substituição, deformação de fonemas e também podem ter causas centrais ou periféricas. As afasias abrangem transtornos da emissão verbal do pensamento e consistem na incapacidade de expressá-lo por meio da palavra oral ou escrita ou de compreender a palavra falada ou escrita. Na afasia motora o sintoma característico é a impossibilidade de pronunciar as palavras, com a compreensão daquilo que se ouve. Na verdade, a linguagem está prejudicada porque o paciente não pode falar por comprometimento de circuitos motores, embora a imagem mental das palavras esteja preservada. O paciente pode, portanto, escrever e ler. A afasia sensorial (ou afasia de Wernicke) consiste de um transtorno da recepção da linguagem onde há surdez e cegueira verbal, 23 comprometendo, portanto, a emissão espontânea da palavra, sua compreensão auditiva e escrita. Nesta afasia, existe perda dos símbolos previamente armazenados para as palavras. As alterações da linguagem de origem funcional poderiam ser compreendidas como alterações do comportamento verbal, freqüentemente observadas em pacientes psiquiátricos. Abrangem sinais como o mutismo, restrição da quantidade de discurso, logorréia (discurso incessante, muitas vezes feito em voz alta e sem que se deixe contestar, de conteúdo pobre ou inútil), verbigeração (repetição sem sentido da mesma palavra ou frase, geralmente em tom monótono ou declamatório, podendo durar de dias a meses), ecolalia (repetição de palavras, frases ou perguntas que chegam ao ouvido do paciente) e mussitação (expressão da linguagem em voz muito baixa, murmurante, com movimento automático dos lábios). Algumas considerações adicionais sobre a estrutura da linguagem na esquizofrenia Muitos indivíduos portadores de esquizofrenia apresentam alterações da linguagem, embora não todos. Caracterizar tais alterações exige bastante paciência, treino e gosto pela tarefa. Covington e colaboradores publicaram em 2005 uma interessante revisão sobre alterações da estrutura da linguagem na esquizofrenia do ponto de vista de um linguista, observando como este transtorno afeta a fonologia, a sintaxe e a semântica. Chaika foi uma linguista pioneira no estudo da linguagem de esquizofrênicos e observou que estes pacientes apresentavam (1) alterações na verbalização de itens lexicais pretendidos, (2) eram distraídos pelos sons ou pelos sentidos das palavras, de forma que seu discurso se parece mais com uma sequencia de palavras do que uma apresentação coerentede informação a ser conduzida e que (3) tais indivíduos muitas vezes tinham comprometimento sintático, além de (4) falta de uma consciência de seus déficits de verbalização. De tais anormalidades observadas por Chaika, a mais característica da esquizofrenia seria (2), enquanto (1) e (3) parecer-se-iam mais com erros comuns de discurso e (4) lembraria algumas formas de afasia. Embora se argumente que erros lexicais e sintáticos no discurso são bastante comuns em indivíduos normais – que podem ser induzidos a falhas tanto por sons quanto por sentidos recentemente verbalizados, sem se dar conta de seus erros - as alterações de discurso observadas na esquizofrenia não parecem ser puramente decorrentes de problemas de linguagem, mas a outros fatores não linguísticos. Além disso, os deslizes linguísticos cometidos por indivíduos saudáveis são muito mais frequentemente corrigidos do que aqueles que são cometidos por esquizofrênicos. 24 Chaika argumentou que estes pacientes poderiam ter perdido o controle voluntário da linguagem, em virtude de uma degradação da comunicação de subsistemas mentais associados, o que parece nos lembrar de uma das possíveis origens dos sintomas schneiderianos de passividade (que serão descritos mais detalhadamente adiante, mas que, resumidamente, abrangem as vivências de perda de controle do eu, nas quais pensamentos do próprio paciente podem ser experimentados como vindos “de fora”, como se fossem inseridos na mente do sujeito). Também veremos adiante que estes subsistemas podem ser os mesmos envolvidos no controle de retroalimentação inibitória importantes na regulação da produção de movimentos voluntários, designados como descarga corolária. Discutiremos estes sistemas com um pouco mais de detalhamento posteriormente. Em relação à comparação entre a linguagem dos esquizofrênicos e a afasia, algumas diferenciações foram sugeridas: os sintomas afasia-like observados em indivíduos esquizofrênicos ocorreriam episodicamente, enquanto as afasias produzidas por injúria cerebral seriam persistentes. Outro aspecto é que os pensamentos de pacientes afásicos por injúria cerebral são normais, ao passo que indivíduos diagnosticados com esquizofrenia podem ter pensamentos incomuns ou desorganizados. A linguagem em alguns pacientes esquizofrênicos já foi comparada à Afasia de Wernicke, um transtorno no qual o paciente apresenta um discurso fluente, mas ininteligível2. Em sua revisão, Covington e colaboradores citam mais algumas diferenças do discurso “esquizofásico” e do discurso afásico: esquizofrênicos costumam ter um tema ou uma preocupação preferencial, ao contrário dos afásicos. Além disso, aqueles indivíduos costumam pular de um assunto para outro de acordo com sons ou palavras que disseram (associações ressonantes ou glossomania), além do fato de que seu léxico inclui um vocabulário intacto – e muitas vezes vasto – o que não costuma ocorrer nos afásicos, que têm um vocabulário restrito. 2 Classicamente, duas regiões cerebrais foram relacionadas ao processamento da linguagem: a área de Wernicke e a área de Broca. A primeira parece estar relacionada ao processamento declarativo da linguagem e a segunda, ao processamento procedural, de forma que haveria diferentes manifestações clínicas de lesões específicas nestas áreas. Assim, um discurso parafásico e fluente seria observado nos pacientes com afasias de Wernicke, já que estes indivíduos não teriam problemas na geração dos aspectos automáticos da linguagem, como a fluência, mas em domínios que exigiriam habilidades de seleção das melhores palavras, por exemplo. Os portadores de afasia de Broca, embora possam escolher palavras adequadas e dispô-las de maneira gramaticalmente correta, perdem a “automaticidade” do discurso. 25 Nancy Andreasen também estudou a linguagem na esquizofrenia, elaborando um instrumento, a Thought, Language and Communication Scale (TLC) (Escala de Pensamento, Linguagem e Comunicação), utilizada em muitos estudos sobre o tema. A TLC abrange dezoito sintomas: pobreza do discurso, pobreza do conteúdo, pressão do discurso, distratibilidade, tangencialidade, perda do objetivo, desagregação (derailment), circunstancialidade, ilogicidade, incoerência, neologismos, aproximações (palavras substitutas para expressões pré-existentes, como “sapatos de mãos”, ao invés de “luvas”), perseveração, ecolalia, bloqueio, auto-referência, discurso excessivamente formal ou pomposo e associações ressonantes (clanging). Andreasen destacou que alguns dos sintomas classicamente considerados como “exclusivamente” esquizofrênicos, podem ocorrer em outros transtornos mentais, como a mania (em que podem acontecer associações ressonantes) e a depressão (que pode apresentar-se com pobreza do discurso, desagregação, perda do objetivo e bloqueio). Outros instrumentos utilizados no estudo de perturbações da linguagem na esquizofrenia incluem a escala Thought and Language Index (TLI) (Indice de Pensamento e Linguagem), de Liddle e colaboradores e a CLANG (Clinical Language Scale), de Chen e colaboradores. A linguagem pode ser estratificada em vários níveis. O léxico (ou vocabulário) nos informa que uma determinada sequencia de sons (fonologia) forma uma palavra; por exemplo, homem, que é um substantivo (sintaxe), singular (morfologia), que significa um ser humano do sexo masculino (semântica) e que pode ter conotações diferentes e dependentes de um estilo de comunicação (pragmática). Covington e colaboradores também revisaram o comprometimento destes diferentes níveis da linguagem na esquizofrenia. Em relação à fonética e fonologia, as alterações mais frequentemente encontradas em esquizofrênicos são a aprosódia ou embotamento tonal, que pode incluir um déficit da capacidade de compreender a musicalidade do discurso (prosódia) dos interlocutores, o que no fundo parece refletir o comprometimento destes pacientes na compreensão da expressão emocional através de variações tonais da voz. Além disso, o discurso de esquizofrênicos contém mais pausas e hesitações do que o de indivíduos normais. Alguns autores argumentam que, por ser possível reproduzir alterações semelhantes em indivíduos normais, ao expô-los à execução de tarefas como 26 recontar histórias nas quais um evento não relacionado e irrelevante é inserido, elas não sejam genuinamente alterações fonológicas, mas o reflexo de comprometimento semântico ou pragmático. Perturbações morfológicas do discurso incluiriam situações muitas vezes indistinguíveis de alterações sintáticas, em que os sujeitos usam palavras semanticamente corretas, mas sintaticamente inadequadas. São raramente observadas na esquizofrenia e, em um país como o Brasil, onde uma boa parcela da população não domina o português, podem ocorrer mesmo em indivíduos sem psicopatologia. A sintaxe também costuma estar preservada na esquizofrenia; até mesmo quando a organização do discurso está severamente comprometida, os elementos sintáticos da construção de frases mantém certa coerência. Por exemplo, ao dizer “se você realmente quer alimentar seu cachorro deve considerar elementos de física quântica e de presunção ardorosa, além de proficiência poética que o caracterizem como um ser politicamente generoso...”, um paciente respeita regras gramaticais apesar de nos apresentar um discurso ilógico, possivelmente à custa de prejuízo semântico. O prejuízo observado no fragmento do discurso acima descrito parece ser do tipo em que a organização das proposições parece refletir problemas no uso dos símbolos e de suas relações com os objetos a que se referem. Alguns autoressugerem que a origem de tal prejuízo seria a tendência de pacientes esquizofrênicos em impregnar seu ambiente com “significados especiais”. Por pragmática define-se a relação entre linguagem e contexto. Assim, figuras de linguagem como a metáfora, bem como o uso da comunicação na forma de ironia, por exemplo, são exemplos de situações em que se exige integridade dos sistemas relacionados ao processamento da linguagem pragmática. A pragmática parece estar obviamente comprometida na esquizofrenia. Um dos elementos fundamentais na elaboração da linguagem pragmática inclui a organização das verbalizações através do emprego de pronomes, conjunções, elipses, repetições e uso de sinônimos, a qual envolve o estabelecimento de referência no mundo externo, para que aquilo a respeito do que se fala possa ser compreendido sem excessiva repetição de palavras. Esta referencia deve ser mantida tanto por aquele que fala quanto por aquele que ouve. Tal uso de palavras respeitando referências externas é denominado coesão. A esquizofrenia parece comprometer a coesão, observável pela maior tendência destes pacientes de identificar referências não verbalmente (através de apontamentos, por 27 exemplo), assim como portadores deste transtorno podem ter maior dificuldade em compreender referências indiretas e informações presumidas, assim como tenderem a fazer referências obscuras e presumirem informação não contida no discurso de seus interlocutores. O discurso de indivíduos esquizofrênicos é frequentemente considerado incoerente, um termo que, via de regra, gera bastante confusão por não ser claramente definido. Um texto ou um discurso deve ser organizado de forma que proposições são organizadas de modo que duas proposições interconectadas devem se relacionar mutuamente, bem como que a proposição ramificada a partir de outra dependa da veracidade desta para ser consistente. Problemas nesta organização de proposições são considerados frequentes na esquizofrenia, onde pode ocorrer desestruturação do discurso, decorrente de falta de planejamento adequado do mesmo. Além destes problemas, tanto portadores de esquizofrenia quanto indivíduos vulneráveis (parentes em primeiro grau de esquizofrênicos e portadores de transtorno esquizotípico de personalidade) apresentam dificuldades na compreensão de ironias, metáforas, provérbios e “faux pas”, na medida em que podem ter alterações em circuitos cerebrais associados direta ou indiretamente na compreensão e no uso da linguagem pragmática. Perturbações do conteúdo do pensamento As principais alterações do conteúdo do pensamento são os delírios, que foram inicialmente conceituados por Bleuler como convicções errôneas e não corrigíveis mediante argumentação lógica. É importante esclarecer que nem toda convicção errônea é delirante, daí a importância de se realizar, durante a investigação do pensamento, uma avaliação conjunta de outras variáveis como o grau de instrução, religião e cultura do paciente. Além disso, há alterações do conteúdo do pensamento que não se constituem, em sua essência, de delírios propriamente ditos. Tais condições poderiam ser chamadas de idéias ou ideações deliróides porque falta a elas a força da resistência à argumentação característica dos delírios propriamente ditos. Dentre as idéias deliróides, as idéias supervalorizadas são bastante comuns e correspondem à centralização do conteúdo do pensamento em torno de uma idéia particular associada a uma acentuada tonalidade afetiva. A intensidade de uma idéia supervalorizada é menor que a de uma idéia delirante. Deve ser diferenciada de um pensamento obsessivo na medida em que este costuma ser ego- 28 distônico, isto é, as idéias supervalorizadas não costumam causar no paciente a sensação de serem absurdas bem como não fazem, à semelhança dos pensamentos obsessivos, com que os pacientes tendam a lutar contra elas. Idéias de referência são idéias menos firmemente mantidas que delírios, de que acontecimentos, objetos ou pessoas de seu ambiente têm um significado particular, incomum e relacionado especificamente ao paciente. Idéias de referência de culpabilidade são idéias muito semelhantes às idéias de referência, contudo, o indivíduo acredita estar sendo censurado por alguma ação ou atributo. Culpa patológica é a alteração do pensamento que acomete pessoas que se culpam exageradamente por pequenas falhas que a maioria das pessoas não consideraria como sérias. Embora o sujeito reconheça o exagero da intensidade da culpa, ele não consegue evitá-la. Existem muitas classificações para os delírios, algumas mais, outras menos úteis. Por exemplo, a classificação conforme a direção ou o tropismo, que aborda a posição do ego delirante com o mundo externo e propõe que os delírios sejam catalogados em delírios centrífugos - onde há um “transbordamento do eu”, tal qual ocorre nos delírios de grandeza e onipotência – e centrípetos – onde há uma “egossístole”, como nos delírios de culpa; parece- nos interessante apenas do ponto de vista histórico. A clássica e fundamental categorização dos delírios em primários e secundários é, todavia, ainda muito utilizada, à medida que se concentra especificamente na origem deste sintoma psicótico, embora tenha sido questionada por alguns psicólogos cognitivos (vide Strik & Dierks, 2008). Conseqüentemente, o delírio primário surge sem ter uma relação com um estado de humor que possa justificá-lo; para Jaspers ele tem um caráter de coisa imposta à consciência do paciente. Em última análise, o delírio primário é resultante de patologia do pensamento e não do comprometimento deste por transtorno de outra função mental, como o humor. O delírio secundário, por sua vez, é aquele que surge em conseqüência de um estado de humor comprometendo o pensamento. Delírios de grandeza e de ruína são delírios secundários, comuns, respectivamente, em pacientes maníacos e deprimidos. Quanto ao curso evolutivo, os delírios podem ser classificados em agudos e crônicos, episódicos ou recorrentes. A classificação mais interessante dos delírios é, contudo, a classificação quanto à temática, que, por ser fundamental do ponto de vista descritivo, merece atenção especial: Delírios paranóides: categoria em que se incluem os delírios de referência, de controle, de grandeza e persecutórios. 29 Os delírios de referência são caracterizados por uma crença de que o comportamento das outras pessoas ou os acontecimentos externos têm um significado peculiar, geralmente negativo e dirigido ao paciente. São os equivalentes delirantes das idéias de referência. Os delírios de controle são falsas crenças de que a vontade do paciente está submetida ao controle de alguma força ou agente externo desconhecido ou não. Esta categoria parece muito típica da esquizofrenia, existindo, inclusive, teorias cognitivas muito esclarecedoras do porque os mesmos ocorrem nestes pacientes. Uma vivência mental particular acontece em todos os indivíduos acometidos de delírios de controle, que são as vivências de influência, que se traduzem clinicamente na sensação da perda de controle do eu. Esta sensação pode motivar o aparecimento de diversas explicações delirantes da parte do paciente. O delírio de roubo do pensamento, a crença de que o pensamento foi roubado ou removido da cabeça, geralmente é seguido de um bloqueio do pensamento. Ao contrário, inserção do pensamento é o delírio de que pensamentos são adicionados à cabeça; trata-se de uma experiência mental de que os pensamentos não são próprios. A irradiação do pensamento consiste na crença de que os pensamentos parecem ressoar alto, de modo que alguém possa ouvi-los, assimcomo a vivência de que os pensamentos possam ser compartilhados por um grande número de pessoas. Os delírios de controle e as experiências de passividade foram descritos primeiramente por Kurt Schneider, o qual sugeriu que estes sintomas seriam patognomônicos da esquizofrenia. Hoje estes sinais clínicos são denominados sintomas schneiderianos da esquizofrenia. Os delírios de grandeza abrangem crenças acerca de uma concepção irreal e exagerada acerca da própria importância, poder e habilidades, bastante comuns nos estados maníacos. Nos delírios persecutórios, falsas crenças de que o paciente é perseguido, de que alguém tenta prejudicá-lo ou molestá-lo, denegrir sua imagem, causar-lhe algum mal físico ou deixá-lo louco, são os temas centrais. Outros delírios importantes (não paranóides) incluem os delírios de ciúme, erotomania (falsa convicção de que alguém que, em geral tem algum destaque social, está profundamente apaixonado pelo paciente), delírios somáticos (também chamados de delírios hipocondríacos, caracterizam-se pela falsa crença de que o corpo não é mais saudável, está doente ou, nos casos mais extremos, está apodrecendo), delírios de culpa e delírios relacionados à aparência (firme convicção de que existe algo errado com a aparência, por exemplo, com a dimensão de determinadas partes do corpo). 30 Síndromes de Falsa Identificação As síndromes delirantes de falsa identificação (SDFI) incluem condições clínicas como as síndromes de Capgras e Fregoli, a ilusão de intermetamorfose e a paramnésia reduplicativa. A primeira descrição de SDFI foi feita em 1923 por Capgras e Reboul-Lachaux, que reportaram o fenômeno da ilusão dos sósias (illusion des sosies), a partir da qual outras SDFI foram relatadas. Nas SDFI clássicas, o indivíduo identifica erroneamente alguém que lhe é familiar, ao passo que nos tipos “reversos” ele acredita que sua própria identidade foi alterada. Edelstyn e colaboradores (1996) acrescentam, ainda, que as SDFI não necessitam se restringir à falsa identificação de pessoas, mas também podem envolver objetos e lugares. A síndrome de Capgras é a crença delirante de que uma pessoa, comumente um parente próximo, foi substituída por um sósia. O paciente reconhece as características físicas da pessoa que está identificando erroneamente, contudo, não reconhece seus atributos psicológicos. A síndrome de Fregoli é caracterizada pela crença delirante de que uma pessoa consegue assumir formas físicas distintas e adotar a aparência de outra, embora sua identidade permaneça inalterada. O paciente apresentando um delírio de intermetamorfose acredita que outras pessoas são capazes de se transformar de forma radical, tanto física quanto emocionalmente, resultando em outras pessoas completamente diferentes das iniciais. A paramnésia reduplicativa, condição descrita pela primeira vez por Pick, em 1903, é uma condição delirante na qual os pacientes acreditam que existem réplicas de pessoas ou lugares conhecidos. Para Pisani e colaboradores (2000), a paramnésia reduplicativa é um transtorno específico da memória caracterizado pela crença de que uma pessoa, lugar ou evento foi duplicado. Baseando-se no conceito de paramnésia reduplicativa, Murai e colaboradores (1998) descreveram um fenômeno que chamaram de pluralização clonal da pessoa (PCP). Para estes autores, na PCP o falso reconhecimento não é o principal fenômeno, mas a pluralização da identidade de alguém, isto é, o paciente acredita que uma pessoa existe em número maior que um. 31 A prosopagnosia, um transtorno caracterizado pelo comprometimento da habilidade de reconhecer faces familiares associado a dano orgânico tem sido associada às SDFI e as bases anatômicas de ambas poderiam ser investigadas em pacientes com lesão cerebral, apesar de sua freqüente ocorrência em esquizofrênicos. De fato, existem vários estudos reportando déficits no reconhecimento de faces e suas expressões emocionais nestes pacientes. O hemisfério direito é considerado responsável pelo reconhecimento da identidade e da singularidade de alguém e danos a esta região explicariam a ocorrência de SDFI tanto em esquizofrênicos quanto em portadores de lesão cerebral. Estudos de neuroimagem identificaram ao menos duas áreas bilaterais do córtex visual que respondem mais a imagens de faces do que a objetos em humanos saudáveis, no giro fusiforme medial: a área facial fusiforme e a área facial occipital, com uma dominância do hemisfério direito, embora as interações entre estas regiões e se elas são necessárias para a percepção facial normal ainda são questões em aberto. Duas vias conectam o córtex visual, os lobos temporais e o sistema límbico: uma via ventral, que liga o córtex visual aos lobos temporais através do fascículo longitudinal inferior e uma via dorsal, interconectando através do lóbulo parietal inferior o córtex visual e o sistema límbico. Danos à primeira via, que inclui o giro fusiforme, ocorreriam na prosopagnosia, ao passo que injúrias na via dorsal, envolvida precisamente com o registro da resposta emocional às faces, relacionar-se-iam às SDFI. Desta forma, diferenças entre prosopagnosia e SDFI envolveriam predominantemente aspectos emocionais relativos à experiência visual de faces. Críticas a esta teoria de duas vias no processamento da informação relativa a faces baseiam-se no fato de que a principal evidência da mesma permanece no modelo do “reconhecimento eletrodérmico” (RE). Trata-se de um modelo desenhado por Bauer (1984, 1986), que identificou, através do estudo de um paciente prosopagnósico, dois padrões de resposta: o primeiro, a inabilidade em reconhecer faces quando figuras lhe eram apresentadas. O segundo, observado quando nomes corretos e incorretos eram lidos em voz alta simultaneamente à apresentação das figuras: havia aumento da condutância autonômica da pele quando os nomes corretos eram ditos. Esta seria uma evidência de um reconhecimento “inconsciente” das faces. Para estes autores, na medida em que o RE poderia não ser nada além de uma medida da excitação autonômica, sua interpretação em termos cognitivos estaria longe de ser óbvia. 32 Onitsuka e colaboradores (2003), compararando esquizofrênicos crônicos a controles, reportaram anormalidades neuroanatômicas envolvendo o giro fusiforme nos esquizofrênicos (redução de substância cinzenta relacionada significativamente à pior performance em testes envolvendo memória para faces). A grande quantidade de trabalhos correlacionando estas alterações psicopatológicas com circuitos cerebrais específicos, além de mostrar que muito há para ser explicado, propicia um estímulo à valorização da psicopatologia na avaliação psiquiátrica. Teorias cognitivas da formação dos delírios Os conhecimentos neurofisiológico e neurocognitivo atuais, associados às modernas técnicas de neuroimagem funcional, permitem uma compreensão muito mais completa sobre as origens dos sintomas psicóticos na esquizofrenia e em outros transtornos mentais. Boa parte dos mecanismos a serem discutidos a seguir, embora situada em uma sessão reservada aos sintomas delirantes, pode ser aplicada também à origem de alguns tipos de alucinações. É possível que os delírios surjam de transtornos nos processos mentais de retirada de conclusões a partir de informações disponíveis (disordered reasoning). Contudo, são poucas as evidências de que isso realmente ocorra, pois experimentos conduzidos utilizando tarefas cognitivas estandardizadas para a avaliação de tais processos não têm conseguido demonstrar alterações específicas. Delírios (e alucinações) podem ocorrer em outras condições clínicas e neurológicasalém de na esquizofrenia, contudo, parece existir um subgrupo de sintomas mais especificamente relacionado a este transtorno. Este subgrupo abrange sintomas tais como ouvir os próprios pensamentos, vozes comentando as atitudes do paciente ou discutindo entre si, passividade somática, roubo do pensamento, inserção do pensamento, transmissão do pensamento, sensações de que determinados sentimentos e impulsos são “construídos” ou “inseridos” e percepção delirante. Poderíamos afirmar que todos os sintomas deste subgrupo compartilhariam de uma sensação de passividade ou de estar sujeito ao controle de um agente externo. Conexões óbvias entre as experiências delirantes e alucinatórias sugerem que tais termos possam significar rótulos diferentes para experiências semelhantes. Por exemplo, às vezes pode ser muito difícil discernir entre a ocorrência de falsas percepções ou de falsas 33 crenças em indivíduos apresentando delírios de controle, porque, embora possamos classificar e descrever como delirante o relato objetivo de “ser controlado por um agente externo”, a vivência de passividade também pode perfeitamente ser descrita em termos de uma percepção distorcida, ao examinarmos como o paciente experimenta, subjetivamente, tal vivência. Cada vez mais surgem modelos teóricos explicando os delírios como sendo derivados de problemas no processamento cognitivo. Os modelos incluem desde problemas afetando o funcionamento executivo até déficits mais complexos, localizados em sistemas relacionados ao processamento de toda a informação ligada diretamente à presença de outras pessoas e à convivência em sociedade, um domínio cerebral chamado de cognição social. Atualmente existe um corpo robusto de informação derivada de pesquisa séria a respeito de possíveis alterações do processamento cognitivo social na gênese de delírios e outros sintomas em sujeitos esquizofrênicos. Discutiremos primeiramente os modelos baseados na cognição geral e, em seguida, abordarei alguns aspectos do papel da desregulação da cognição social na gênese de sintomas psicóticos. Um dos modelos cognitivos mais populares sobre a gênese de delírios é chamado de “jumping to conclusions” ou pulando às conclusões. Este modelo afirma que indivíduos delirantes chegam a falsas conclusões porque avaliam mais superficialmente as informações disponíveis e fazem suas análises baseados em menos evidências do que sujeitos saudáveis. Vieses atribucionais foram também muito estudados em esquizofrênicos, particularmente em relação ao seu papel na formação dos delírios persecutórios. Estes vieses dizem respeito ao estilo com que cada um de nós atribui (estilo atribucional) causas e responsabilidades por eventos ambientais. Alguns estudos conseguiram correlacionar a presença de tais vieses à ocorrência de delírios. Os dados não são, no entanto, inequívocos. Teorias cognitivas importantes incluem o papel da atenção na gênese da sintomatologia delirante de pacientes esquizofrênicos. Chama-se de inibição latente ao efeito no qual a pré-exposição a um estímulo compromete a resposta a outro estímulo. Muitos estudos demonstraram que a inibição latente está afetada nos estados psicóticos agudos. Este efeito parece estar também presente em indivíduos com altas pontuações em instrumentos que medem esquizotipia, o que é sugestivo de que tal comprometimento pode ser traço-dependente. Qual o significado deste “defeito” na inibição latente? De forma geral, não é recomendável sobrecarregar o sistema nervoso com uma avalanche de 34 estímulos desnecessários, por isso, a evolução configurou mecanismos regulatórios de priorização e seleção de estímulos, para que possamos prestar atenção somente naquilo que objetivamente importa. Se recebermos um estímulo específico prévio, nossa atenção a um segundo estímulo da mesma categoria tende a ser diferente da atenção mobilizada na ausência de um estímulo prévio. Ora, se há uma condição na qual ocorre um prejuízo neste mecanismo, poderíamos concluir que o mesmo acarretaria em sobrecarga sensorial e problemas no processamento adequado da informação oriunda do meio ambiente. Esta sobrecarga poderia aumentar o risco de desenvolvimento de sintomas psicóticos. Portanto, percepções anormais podem decorrer de maneiras aberrantes de lidar com os estímulos ambientais, não os selecionando adequadamente, por exemplo. Uma das teorias mais desenvolvidas envolvendo a gênese de sintomas psicóticos sugere que delírios podem ser gerados a partir de déficits de auto-monitoramento, ou seja, muitos dos sintomas da esquizofrenia poderiam ser provocados a partir de uma atribuição defeituosa de ações auto-geradas a terceiros. Indivíduos normais conseguem distinguir entre as ações que eles geram das ações geradas por outras pessoas, embora todo ato desenvolvido por alguém também inclua consequências sensoriais que poderiam ser decorrentes de uma causa externa. Portanto, devem existir mecanismos centrais responsáveis pelo não aparecimento de um “conflito” perceptual potencial surgido quando se faz algum movimento, de maneira tal que não haja risco de interpretarmos atos voluntários como involuntários. Discutiremos estes mecanismos mais adiante, ao falarmos de descarga corolária. Embora falhas em mecanismos de auto-monitoramento possam estar por trás das experiências de passividade já descritas, elas talvez não justifiquem de maneira adequada o surgimento de todos os tipos de delírios. Por exemplo, a súbita crença de um paciente de que seus familiares podem estar tentando envenená-lo não tem uma ligação obrigatória com uma percepção anômala, como nas vivências de passividade. Por este motivo acredita- se que, nestas situações, o problema envolva diretamente processos de formação das crenças, mais do que em percepções distorcidas favorecendo o aparecimento de delírios. Pacientes delirantes podem apresentar déficits em avaliações probabilísticas de situações. O modelo Bayesiano3 do estudo de formação de crenças nos diz que uma crença é uma probabilidade subjetiva de que uma proposição a respeito do mundo é verdadeira e 3 O termo “Bayesiano” deriva de Estimação Bayesiana, uma técnica de avaliação probabilística para se estimar uma probabilidade desconhecida através da atualização contínua de novas medidas. 35 que esta probabilidade é continuamente atualizada por novas evidências. Uma falsa crença poderia ocorrer quando as crenças não são adequadamente atualizadas com base nas novas evidências. Isso nada mais é do que o já citado jumping to conclusions. Previsibilidade é uma palavra chave quando se tenta entender a gênese tanto de percepções aberrantes quanto de falsas crenças. Em outras palavras, uma diferença significativa entre o impacto mental de ações auto-geradas e de algo que aconteça fora do controle do indivíduo é que atos voluntários possibilitam previsão do que vai acontecer em seguida. A capacidade de previsão acerca de algo que está por acontecer faz com que seja possível ignorar ou suprimir o registro de determinados eventos. Estes eventos podem ser subprodutos sensoriais de atos voluntários – de fato, a previsibilidade pode ser um importante marcador de ações geradas internamente –, contudo, podemos prever estímulos externos, também. O aprendizado acerca de onde e quando estímulos externos aparecerão facilita o caráter preditivo destes eventos, fazendo com que nossa percepção sobre ele não seja desconexa ou confusa. Este processo integrativo é realizado via atualização constante dos registros sensoriais e das probabilidades de que dois estímulos coincidam. Associar dois (ou mais)
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