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O princípio da soberania dos veredictos na Revisão Criminal ALICE GOMES DE ALMEIDA 1 Sumário Introdução..................................................................................................................... 2 Capítulo I – A Instituição do Tribunal do Júri.................................................. 4 1. Aspectos históricos.................................................................................................. 4 2. Conceitos gerais ......................................................................................................8 3. Panorama brasileiro ............................................................................................. 10 Capítulo II – Princípios constitucionais do Júri ............................................. 15 1. Considerações iniciais........................................................................................... 15 2. Competência.......................................................................................................... 16 3. Sigilo das votações ................................................................................................ 19 4. Plenitude de defesa................................................................................................22 5. Soberania dos veredictos...................................................................................... 25 Capítulo III – A Revisão Criminal ................................................................... 28 1. Aspectos principais ............................................................................................... 28 2. Hipóteses de cabimento ........................................................................................ 32 3. Revisão e decisão do Júri – da possibilidade de mitigação do princípio da soberania dos veredictos na ação revisional........................................................... 36 Conclusão.................................................................................................................... 52 Referências ................................................................................................................. 54 2 Introdução A escolha do tema do presente trabalho de conclusão de curso foi determinada pela complexidade da matéria e, igualmente, pelo receio de que o instrumento da revisão criminal, remédio jurídico capaz de quebrar a intangibilidade da coisa julgada em nome da justiça e da certeza em torno dos fatos, primando pela reparação do erro judiciário penal, seja utilizado de forma indiscriminada e descuidada, repercutindo em violação ao princípio da soberania dos veredictos, segundo o qual os juízes togados não podem substituir os jurados nas causas da competência originária do Tribunal do Júri. O que se pretende demonstrar é a fragilidade das premissas adotadas pela maioria doutrinária e jurisprudencial para justificar a possibilidade de o tribunal revisor ingressar novamente no mérito da causa, mormente em se tratando de ação revisional fundada em sentença condenatória contrária à evidência dos autos. O estudo tem como objetivo a análise preponderantemente descritiva, através do método indutivo, com o uso da técnica de pesquisa bibliográfica. A primeira etapa do trabalho foi desenvolvida com a pesquisa a respeito do surgimento e da evolução histórica do tribunal popular tanto no cenário mundial quanto no contexto específico da legislação brasileira. Da análise da atual regulação pátria em torno do assunto, traçou-se uma breve explanação acerca do Júri, no que diz respeito aos seus conceitos, sua composição, seu rito e suas peculiaridades. No segundo capítulo, discorreu-se acerca dos aspectos principais dos princípios constitucionalmente reconhecidos como essenciais ao Júri - a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, o sigilo das votações, a plenitude da defesa e a soberania dos veredictos -, bem como acerca das conseqüências práticas desse reconhecimento. 3 Em seguida, no terceiro capítulo, foram analisados os elementos característicos da revisão criminal, bem como as suas hipóteses de cabimento, relacionadas no art. 621 do Código de Processo Penal. Por fim, procedeu-se a uma análise crítica quanto à possibilidade de mitigação do princípio da soberania dos veredictos no caso de reconhecimento da procedência da ação, já que atualmente impera a orientação de que tanto o juízo rescindente, que constitui a anulação do julgamento, quanto o rescisório, que implica na reapreciação do mérito da causa, devem ser atribuídos ao tribunal revisor mesmo nas decisões de competência originária do Júri. Em suma, o que se intenta demonstrar nesse trabalho é que, conquanto seja a revisão criminal o meio adequado para reverter decisões condenatórias com trânsito em julgado, mesmo aquelas provenientes do Tribunal do Júri, ela não pode ser utilizada como instrumento para desvirtuar os princípios constitucionais da soberania dos veredictos e da competência privativa do Júri para apreciar e julgar os crimes dolosos contra a vida. 4 Capítulo I – A Instituição do Tribunal do Júri Inicialmente, antes da abordagem do tema propriamente dito, faz-se necessária uma análise sucinta acerca de aspectos gerais relativos ao Tribunal do Júri, inafastáveis ao propósito a que se destina esse trabalho. 1. Aspectos históricos Os autores contemporâneos divergem acerca das origens do Tribunal do Júri. Há quem aponte os povos antigos, principalmente da Grécia e de Roma, como o berço do tribunal popular. Outros entendem que o traço mais nítido de seu surgimento ocorreu na Inglaterra. O fato é que o julgamento pelos pares, até mesmo em função de sua simplicidade primitiva, remonta aos primórdios da humanidade, daí porque se afigura impossível tentar situar suas primeiras manifestações no tempo e no espaço. Neste sentido, CARLOS MAXIMILIANO (1954, p. 156) assevera que “as origens do instituto, vagas e indefinidas, perdem-se na noite dos tempos”. O que se pode afirmar com certeza é que a instituição só adquiriu sua feição moderna a partir de 1215, na Inglaterra, com a edição da Carta Magna. A partir daí, o Júri foi se consolidando e se propagando pelo mundo ocidental. Na Inglaterra, país ao qual se atribui a origem moderna do instituto, a concepção do Tribunal do Júri adveio da necessidade de conter as arbitrariedades do soberano e fazer prevalecer o direito consuetudinário, em consonância com a adoção do sistema do Common Law. Este modelo tem por concepção primordial que os costumes do povo devem se sobrepor à mecânica aplicação da legislação pelos juízes togados. À época, os magistrados se subordinavam à monarquia e, portanto, não dispunham da necessária independência para o pleno e livre 5 exercício de sua função jurisdicional. Daí porque, em consonância com a idéia de preservar os direitos individuais, surge o Tribunal do Júri, entendido como um símbolo de democracia. Assim, contra o absolutismo dos soberanos e como garantia de um julgamento imparcial, permitiu-se aos cidadãos julgar seus semelhantes segundo o bom senso e os costumes sociais. A Europa continental não ficou alheia a essas transformações. Com a eclosão da Revolução Francesa, em 1789, e com vistas a combater a subordinação dos magistrados do Antigo Regime, importou-se o instituto, o qual se propagou por todo o continente europeu. A idéia de julgamento do indivíduopor seus pares, naquele contexto, representava um símbolo da democracia. Gradativamente, porém, o Poder Judiciário foi adquirindo cada vez mais independência política, em benefício da própria segurança jurídica, e, por conseqüência, o Júri foi perdendo sua força, tendo sido abolido do sistema jurídico de muitos países. No Brasil, por influência das transformações legais sofridas por Portugal, país colonizador, também se acolheu a instituição do Júri, através de lei de 18 de junho de 1822, tendo sido atribuída a ele, inicialmente, a competência limitada para julgar os crimes de imprensa. Sob a égide da Constituição Imperial, em 25 de março de 1824, incluiu-se o Júri no título concernente ao Poder Judiciário, juntamente com os juízes e os tribunais de justiça. Só a partir da primeira Constituição republicana, em 1891, de cunho eminentemente federalista, é que se passou a elencar o júri no rol dos direitos e garantias individuais, na medida em que ele foi incluído na seção que tratava da declaração de direitos. Não obstante, a Carta Magna de 1934, tornou a inseri-lo no capítulo que tratava do Poder Judiciário, incumbindo ao legislador ordinário a fixação de suas atribuições e de sua organização, ou seja, a sua adequação às conveniências da justiça. 6 A Constituição de 1937, produzida no contexto de um Estado notadamente totalitário, o Estado Novo, e outorgada à Nação, silenciou-se quanto à instituição do Júri, embora houvesse em seu texto regra autorizadora para a sua implantação, o que gerou controvérsias acerca da sua extinção1. Essa controvérsia foi dirimida com o advento do Decreto-lei nº 167, de 5 de janeiro de 1938, o qual estabeleceu regras acerca da instituição do júri, delimitando sua competência e, portanto, evidenciado a sua subsistência no sistema normativo brasileiro. Todavia, esse decreto mitigou a soberania do tribunal popular, conferindo ao Tribunal de Apelação pleno poder de revisão quanto ao mérito das decisões que não encontrassem nenhum apoio nos autos. Com a restauração do regime democrático, o constituinte de 1946 houve por bem restabelecer a configuração do Júri, tornando a inseri-lo no rol dos direitos e garantias individuais e resgatando o sigilo das votações, a plenitude de defesa do réu e a soberania dos veredictos. Durante o regime militar a Constituição de 1967 manteve a configuração anterior do tribunal popular, restringindo sua competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Com a Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, deu-se novo tratamento à instituição, suprimindo-se a menção à soberania do Júri, em clara afronta à vontade popular no âmbito dos julgamentos do tribunal colegiado. Finalmente, redemocratizado o País, a Constituição de 1988 manteve o Júri em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, dentre diversos outros direitos e garantias fundamentais, e cingiu-se a fixar a sua competência mínima para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, bem como restabelecendo os princípios outrora consagrados na Carta de 1946: a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. 1 Segundo ARAMIS NASSIF, “mesmo sem referência expressa na Carta, a Instituição manteve seu status constitucional, de vez que não revogada (e tal foi legalmente reconhecida) a norma anterior – da Constituição de 1934 – que tratava de sua existência jurídica”. (2001, p. 20). 7 De todo o exposto, o que se depreende é que o Júri representa, no Brasil, uma instituição tradicional de caráter democrático que, ao alvedrio das nuances políticas pelas quais passou o país, sofreu modificações estruturais até assumir a sua atual conformação, que será melhor analisada oportunamente. Atualmente, quando o Poder Judiciário no Brasil tem maturidade institucional, da qual um de seus atributos é a imparcialidade, e na medida em que se adota o sistema do direito codificado, o qual sujeita os juízes tão-somente aos ditames da lei, fazendo com que o ato de julgar seja uma operação técnica e complexa, muitos juristas questionam acerca da necessidade de subsistência do tribunal popular, bem como das vantagens e desvantagens de sua manutenção, havendo até quem defenda o seu alijamento da ordem legislativa2. Relativamente a essa temática, não tem este trabalho o propósito de se aprofundar, sob pena de desvio de foco. Todavia, cumpre salientar que a manutenção do Júri na Carta constitucional traduz uma opção política do constituinte, em homenagem a toda uma história de evolução e consolidação democrática no país. Daí porque, uma vez inserido o Tribunal do Júri no rol de direitos e garantias fundamentais na Constituição Federal de 1988, mister se faz que se respeite a instituição dentro do contexto estatutário nacional3. 2 Vale lembrar a posição defendida por JOSÉ FREDERICO MARQUES, no sentido de que: “a participação popular nos julgamentos criminais tem sido preconizada como a melhor das formas de estruturação da justiça penal. De início, razões de ordem política serviam de base aos argumentos de seus pregoeiros e adeptos. Ao depois, motivos sentimentais, fantasiados com a indumentária da política criminal, foram desenvolvidos expostos para justificar a magistratura popular. O júri foi apontado, outrora, como instituição democrática destinada a substituir os magistrados profissionais das justiças régias do Ancien Regime, que se curvavam às ordens dos dinastas de que dependiam. No entanto, a independência dos juízes togados no Estado de Direito, e as transigências dos jurados com os senhores do dia em democracias de pouca vitalidade ou em regimes autoritários, mostram que no plano político não hã mais razão de ser para a manutenção do júri” (1961, p. 45). 3 A esse respeito, aduzem ROMUALDO FILHO e PAULO SAWAYA que “a instituição do Júri granjeou na legislação pátria larga tradição, merecendo sempre destaque, ora entre os órgãos que compõem o Poder Judiciário, ora entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão, obtendo, por isso, tanto num caso como noutro, sempre o prestígio do legislador constituinte, o qual não poderia ficar alheio a essa instituição mais que democrática, ínsita aos costumes e tradições do nosso povo”. 8 2. Conceitos gerais Antes de prosseguir com uma análise mais minuciosa acerca das peculiaridades do Tribunal do Júri no sistema jurídico brasileiro, é relevante examinar alguns conceitos gerais a esse respeito. Diversas são as definições já atribuídas ao Sinédrio Popular. Dentre elas, três são trazidas à colação, para melhor ilustração: Júri, assim, é a designação dada à instituição jurídica formada pelos homens de bem, a que se atribui o dever de julgar acerca dos fatos, levados ou trazidos a seu conhecimento. (MOSSIN, 1999, p. 211). Tenho defendido que o conceito de júri deve ser extraído de sua natureza constitucional, concluindo que ele é a garantia constitucional do cidadão ser julgado pelo povo, quando acusado da prática de fatos criminosos definidos na própria Constituição ou em lei infraconstitucional, com a participação do Poder Judiciário para a execução de atos jurisdicionais privativos. (NASSIF, 1996, p. 25). O Tribunal do Júri é um órgão colegiado heterogêneo e temporário, constituído por um juiz togado, que o preside, e de vinte e um cidadãos escolhidos por sorteio (CAPEZ, 2003, p. 561). Para NUCCI (1999, p. 55), o Tribunal do Júri representa, ao mesmo tempo, uma garantia formal do devido processo legal, para que os acusados da prática de crimes dolosos contraa vida sejam julgados pelo juízo natural, constitucionalmente estabelecido, obedecido o devido processo legal, e um direito individual, consistente na possibilidade de o cidadão participar, ativa e diretamente, da administração da justiça. Lançados esses conceitos iniciais, incumbe avaliar a repercussão da opção constituinte em inserir o Tribunal do Júri dentre os direitos e garantias individuais. A despeito do 9 que sustenta a doutrina minoritária4, o fato de a instituição não estar relacionada entre os órgãos do Poder Judiciário, constante do art. 92 da CF/88, não significa que se trata de órgão meramente político, como aduzem alguns. Ao contrário, o entendimento assente na doutrina é no sentido de que o Júri integra o Poder Judiciário e figura como um dos órgãos de primeira instância, ou de primeiro grau, da Justiça Comum, seja pela sua composição – Conselho de Sentença e juiz togado, presidente da sessão de julgamento, seja pela possibilidade de recurso ao Tribunal de Apelação (estadual ou federal) contra as decisões por ele proferidas e, ainda, pela aplicação das regras processuais penais nos seus julgamentos. Essa conclusão é, de certa forma, corroborada, pelo menos topicamente, pela redação do art. 78, inciso I, do Código de Processo Penal, ao dispor que: “no concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá a competência do júri”. Conquanto de natureza e constituição especiais, pode-se afirmar, sem dúvida razoável, que o Tribunal do Júri constitui um dos órgãos do Poder Judiciário. A localização do Tribunal do Júri no texto constitucional retrata, na realidade, a opção da vontade política do constituinte em elevá-lo à categoria de cláusula pétrea, junto com os demais direitos e garantias fundamentais5. A sua elevação à dignidade constitucional, todavia, não implica, de nenhuma forma, o seu afastamento da estrutura institucional do Poder Judiciário. 4 A obra de JAMES TUBENCLACK (1997, p. 9) expressa seu entendimento no sentido de que o júri é órgão político dissociado do Poder Judiciário, em que o povo, titular do poder político, exerce soberanamente o poder decisório, numa expressão da sua cidadania, tal qual acontece no direito ao sufrágio. 5 Neste sentido se manifesta FERNANDO CAPEZ (2003, p. 560): “Como direito e garantia individual, não pode ser suprimido nem por emenda constitucional, constituindo verdadeira cláusula pétrea (núcleo constitucional intangível). Tudo por força da limitação material explícita contida no art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal”. 10 3. Panorama brasileiro Neste tópico, discorre-se brevemente acerca do Júri no panorama brasileiro, sua composição, seu rito e suas peculiaridades. No Brasil, o Tribunal do Júri é o único órgão do Poder Judiciário que permite a participação popular na aplicação da lei ao caso concreto, ao fundamento de que o homem deve julgar e ser julgado pelos seus pares, daí decorrendo o entendimento segundo o qual ele representa um fator democrático de manifestação da vontade popular. Ao tribunal popular incumbe a função jurisdicional de dirimir as lides penais no âmbito dos crimes dolosos contra a vida. Para tanto, consolidou-se uma estrutura mista, composta por jurados, pessoas integrantes da comunidade, mesmo sem formação jurídica, e por um magistrado togado, um juiz de Direito, ao qual é atribuída a função de, analisando a pretensão punitiva deduzida na denúncia, proceder à pronúncia ou à impronúncia do réu, a partir da demonstração da materialidade do crime e de indícios suficientes de autoria, por provas diretas e indiretas produzidas na fase de formação da culpa; à sua absolvição sumária, por eventual incidência de causas excludentes de ilicitude ou de culpabilidade6; ou, ainda, à desclassificação do crime, para outro da competência do próprio Tribunal do Júri ou de juiz monocrático, para o qual devem ser remetidos os autos do processo, encerrando, em qualquer das hipóteses, a fase da judicium accusationis.7 6 A saber: legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal, exercício regular do direito, coação irresistível, descriminantes putativas, inimputabilidade e embriaguez fortuita. 7 Frise-se que o exame da admissibilidade da acusação pelo juiz, na fase de pronúncia, não configura invasão da competência do tribunal popular. Esse controle judiciário é importante, na medida em que filtra as causas que devem ser apreciadas pelos jurados, restringindo aquelas em que houver absoluta inviabilidade da condenação do acusado, seja por insuficiência de provas do fato delituoso, por inadequação da tipicidade, capaz de mitigar a competência do Júri, ou mesmo por inexistência de crime, porque a conduta foi lícita ou inculpável. Incidindo qualquer dessas hipóteses no caso concreto, portanto, deve o magistrado, em decisão contundente e devidamente fundamentada, 11 Além disso, é das atribuições do juiz togado dirigir os trabalhos durante a sessão de julgamento em plenário, realizando a inquirição das testemunhas e o interrogatório do réu, presidindo os debates entre defesa e acusação, elaborando o rol de quesitos, diligenciando a fim de esclarecer eventuais dúvidas manifestadas pelos jurados, resolvendo as questões de direito que porventura se apresentem no decurso do julgamento e assegurando a obediência ao rito próprio constante do Código de Processo Penal (arts. 406 a 497), bem como fixando, ao final, a pena ao caso concreto. Os jurados, por sua vez, são pessoas leigas, sorteadas de uma lista geral (art. 439 – CPP) na qual previamente se inscreveram ou à qual foram indicados. Seis são os requisitos legalmente exigidos para o alistamento como jurado: ter idade superior a 21 (vinte e um) anos, notória idoneidade,8 cidadania brasileira, ser alfabetizado, ter residência na comarca, bem como gozo perfeito das suas faculdades mentais e dos sentidos. Dispõe a lei, outrossim, que o serviço exercido perante o júri é obrigatório para todo cidadão com idade entre 21 (vinte e um) e 60 (sessenta) anos, ressalvadas as isenções legais (art. 436, parágrafo único – CPP). O exercício efetivo do encargo pelos jurados constitui serviço público9 relevante para a administração da justiça e fundamental para a formação do devido processo legal, daí porque a lei conferiu determinados benefícios em favor dos jurados, quais sejam: impedir a remessa dos autos à apreciação e julgamento pelo Tribunal do Júri, até mesmo porque afastada a sua competência. 8 Acerca da idoneidade, deve-se destacar que ela envolve caracteres de ordem moral, profissional, intelectual e familiar. Em outras palavras, o jurado deve ostentar, ao menos em tese, conduta moral escorreita. (MOSSIN, 1999, p. 93). Na prática, principalmente nos grandes conglomerados urbanos e até em função da quantidade de pessoas integrantes da lista de jurados, é praticamente impossível ao juiz colher indicações na forma recomendada pelo CPP, daí porque a seleção dos membros do corpo de jurados é feita ao acaso, dentro daquele universo limitado de pessoas alistadas, tomando-se a cautela de checar os antecedentes criminais dos indivíduos selecionados. 9 O art. 327 do Código Penal estatui que: “Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”. 12 presunção de idoneidademoral, preferência em concorrências públicas, prisão especial até o julgamento definitivo em caso de crime comum e garantia da integralidade dos vencimentos e do cômputo como tempo de serviço do período em que estiverem obrigados a atender à convocação do Júri (art. 437 – CPP). Os juízes leigos, assim como os juízes togados, são passíveis de responsabilização penal pelos crimes de concussão, corrupção e prevaricação porventura praticados durante o exercício de sua investidura. Todavia, não gozam eles das garantias asseguradas constitucionalmente aos Juízes de Direito. O número total de jurados deve ser proporcional ao número de habitantes da respectiva comarca. A essa lista deve ser dada ampla publicidade, a fim de que qualquer cidadão possa apontar eventuais vícios impeditivos acerca das pessoas que integrem o corpo de jurados, o que será analisado pelo juiz, que, posteriormente, publicará novamente a lista, acatando ou não as impugnações. Para a realização da sessão de julgamento, são sorteadas 21 (vinte e uma) pessoas dentre os alistados, das quais, expedido o edital de convocação, ao menos 15 (quinze) devem estar presentes para a abertura da sessão e, dentre elas, 7 (sete) comporão o Conselho de Sentença, órgão deliberativo que também se amolda mediante sorteio (art. 433 – CPP). O início dos trabalhos é o momento oportuno para que os interessados suscitem a suspeição ou o impedimento de algum jurado, com base nas hipóteses legalmente previstas (arts. 458, 462 e 254 – CPP), ou para que ele mesmo o faça, sob pena de preclusão. Tanto a defesa quanto a acusação têm o direito de recusar imotivadamente três jurados. É a chamada recusa peremptória, que se baseia em sentimento de ordem pessoal do órgão acusatório, do réu ou de seu defensor. Iniciados os trabalhos, os jurados ficam incomunicáveis, até mesmo durante os intervalos, circunstância da qual são alertados pelo juiz. Isso significa dizer que eles estão 13 impedidos de emitir suas impressões pessoais acerca da causa em julgamento, bem como de ter contato com o mundo exterior. Uma vez violada essa exigência, torna-se imperiosa a dissolução do Conselho e a anulação do julgamento. O Júri rege-se, essencialmente, pelo princípio da oralidade. Interroga-se o réu, o juiz realiza o relatório do processo e a leitura de peças, procede-se à produção da prova testemunhal, seguida pelos debates entre o órgão de acusação – o Ministério Público, na pessoa do Promotor de Justiça – e o defensor da causa, os quais sustentam suas respectivas teses. Encerrados os debates, deve o juiz presidente consultar os jurados se desejam mais algum esclarecimento ou se já estão habilitados ao julgamento. Estando eles habilitados, efetua-se a leitura dos quesitos10, os quais devem estar em consonância com o libelo-crime acusatório e com aquilo que foi defendido durante os debates. Após a leitura dos quesitos em plenário, os jurados são conduzidos à sala secreta, para onde também se dirigem o juiz e as partes, exceto o réu, onde poderão consultar novamente os autos e rever elementos de prova antes de emitirem seus votos em sigilo, em apreciação ao mérito da causa11. 10 No Brasil, o sistema de apreciação dos quesitos é legado do modelo francês de Júri, na medida em que ao Conselho de Sentença incumbe apreciar matéria de fato (daí advindo a denominação de juízes de fato aos integrantes do Conselho de Sentença), e não somente decidir pela condenação ou absolvição do réu, após análise de teses jurídicas, nos moldes do que estatui o sistema anglo-americano. No sistema pátrio, das respostas ao questionário é que se depreendem, de forma indireta, conseqüências jurídicas. A vantagem do sistema vigente é que se permite compreender de forma mais clara o modo e as razões que levaram o órgão colegiado a tomar esta ou aquela decisão, ou seja, qual foi o critério determinante para a configuração do veredicto, o que certamente torna mais fácil para as partes embasar seus recursos contra a decisão prolatada. 11 A respeito da decisão dos jurados, NUCCI (2006, p. 739) assevera que “o jurado deve examinar com imparcialidade a causa e decidir de acordo com a consciência e os ditames da justiça. Não se fala em decidir de acordo com os ditames legais, justamente porque os jurados são leigos e não têm qualquer obrigação de conhecer o ordenamento jurídico. Assim, o objetivo do Tribunal Popular é promover uma forma particular de justiça, aquela que brota da sensibilidade e da razão do homem comum, não letrado em Direito, disposto a respeitar o que a sua consciência, com imparcialidade, lhe dita. Por isso, mais uma vez deve-se ressaltar, não há cabimento para anular-se o julgamento, quando os jurados tomam decisões de bom senso, embora discordantes da jurisprudência predominante. Não tendo que basear seus veredictos na lei, descabe ingressar no mérito de seus julgados, mormente quando não coincidem com a posição dominante da magistratura togada”. 14 Encerrada a votação, cabe ao magistrado lavrar a sentença, em consonância com o soberano veredicto, que é tomado por maioria de votos. Em caso de decisão condenatória, proceder-se-á à dosimetria da pena, respeitado o sistema trifásico previsto no art. 68 do Código Penal, a fim de estabelecer, em concreto, a pena justa e adequada para a repressão do crime, segundo as suas circunstâncias elementares ou qualificativas, evidenciadas pela prova e confirmadas pela votação do colegiado popular. Uma vez lavrada a sentença, o juiz presidente realiza a sua leitura em plenário, à vista do público, momento em que se considera ela publicada. Todas as informações essenciais acerca dos trabalhos desenvolvidos durante a sessão de julgamento devem ser registrados na ata de julgamento, pelo escrivão, nos termos do que preceitua o art. 495 do Código de Processo Penal. Em suma, essa é a atual organização do Tribunal do Júri no sistema jurídico brasileiro. A inspiração em elementos típicos de modelos estrangeiros, associada à evolução histórica do instituto no panorama brasileiro, resultaram na sua consolidação nos moldes em que se encontra, sendo que até hoje desperta sentimentos os mais variados naqueles que sobre ele se debruçam. 15 Capítulo II – Princípios constitucionais do Júri 1. Considerações iniciais Todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos. No caso brasileiro, a Constituição de 1988, elaborada soberanamente por uma assembléia constituinte congressual, houve por bem elevar o tribunal popular ao patamar de matéria constitucional, quiçá para expressar a importância da instituição para o Regime Democrático de Direito, um dos elementos constitutivos do Estado brasileiro.12 Divergências à parte, é inegável que o Júri, mais do que um órgão especial do Poder Judiciário, traduz uma manifestação democrática da vontade popular, representando, concomitantemente, um direito e uma garantia, conforme já destacado. Por tais razões, e no intuito de assegurar a sua plena vigência, é que o constituinte elencou na Carta Política os princípios básicos que regem o seu funcionamento: a) a plenitude de defesa, b) o sigilo das votações, c) a soberania dos veredictos, d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Tais princípios são requisitos mínimos, essenciais ao bom desempenho do tribunal popular enquanto direito e garantia fundamental instituído pelo constituinte para reger 12 O regime político brasileiro da CF/88 baseia-se no princípio da democracia, essencialà estruturação no Estado Democrático de Direito. Nesse contexto, a efetivação da democracia ocorre por um modelo representativo, de acordo com a idéia de maioria, mas sem se olvidar dos direitos das minorias. Atrelado a esse modelo, há institutos no sistema constitucional brasileiro de participação direta dos cidadãos, entre os quais figuram o referendo, o plebiscito, a iniciativa popular e a participação no Júri. A democracia implica na livre participação na esfera pública de todos os componentes de uma sociedade em igualdade de condições e de acesso. Democracia repousa, portanto, em dois fundamentos primários: a soberania popular, segundo a qual o poder emana do povo, e a participação direta ou indireta do povo no poder, para que seja efetivada a expressão da vontade popular. Ademais, liberdade e igualdade também são valores integrantes da idéia de democracia, como meios de sua concretização. E um sistema de direitos fundamentais afigura-se essencial à estruturação de um Estado Democrático de Direito. 16 parte do processo penal brasileiro, no que diz respeito aos crimes dolosos contra a vida, nos quais o cidadão é julgado pelo seu semelhante, levando em conta critérios não necessariamente técnicos, porém ligados diretamente às circunstâncias humanas que se situam na base causal no delito. Ainda que, na prática, tais princípios possam não ser aplicados na pureza conceitual da sua inspiração democrática – os jurados, em muitos casos mal escolhidos, decidem por pressão política, da imprensa, ou por apelos emocionais da defesa –, não se pode negar a virtude da instituição do Júri, tendo-se em conta que, no caso concreto, os jurados podem decidir de forma soberana, apenas segundo suas consciências, valorando aspectos que o juiz togado, submisso à lei, não poderia fazer. Não obstante isso, é saudável o debate acerca dos princípios constitucionais que regem o Tribunal do Júri, uma vez que é a partir dele que se pode fomentar o crescimento de análises crítico-construtivas acerca do tribunal popular, com vistas ao seu aprimoramento ou até mesmo à sua gradual desvalorização no sistema jurídico nacional até o seu total cerceamento da ordem constitucional, desde que obedecidos os requisitos legalmente previstos para tanto. Portanto, dada a sua importância para a plena compreensão do Tribunal do Júri, passa-se ao exame dos princípios constitucionais que o regem. 2. Competência A Constituição brasileira, como já destacado, assegurou ao Júri a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, tentados ou consumados. Conforme entendimento da doutrina majoritária, essa competência ratione materiae, inserida em cláusula pétrea, é mínima e nada obsta a que haja uma ampliação pela legislação ordinária para outros gêneros de crimes, até porque a eleição daquela modalidade de crimes constitui decisão 17 meramente política e visa, tão-somente, impedir o esvaziamento da competência.13 A intenção do constituinte, ao estabelecer uma competência mínima obrigatória, foi manter a força do Júri enquanto instrumento democrático de participação popular no sistema judiciário, na medida em que demonstrada historicamente a forte tendência de gradual redução da participação do Júri naqueles países em que inexistente essa delimitação da competência. Assim, são crimes originariamente sujeitos à apreciação do órgão popular o homicídio doloso (art. 121 – CP), o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122 – CP), o infanticídio (art. 123 – CP) e o aborto, em todas as suas modalidades (arts. 124, 125, 126 e 127 – CP). Importante notar que a simples ocorrência da violação ao bem jurídico vida no contexto de um crime não é suficiente à inserção de um tipo penal na competência do Júri, sendo imprescindível, para tanto, que esse resultado seja o foco da ação, ou seja, o dolo do agente deve estar voltado à morte da vítima. Portanto, o entendimento consolidado é no sentido de que os delitos agravados pelo resultado morte, como a lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º - CP), o latrocínio (art. 157, § 3º - CP), o estupro seguido de morte (art. 213 c/c art. 223, parágrafo único - CP), a extorsão mediante seqüestro com resultado morte (art. 159, § 3º - CP) e a 13 Entendimento contrário é defendido por MOSSIN (1999, p. 216), que assim se pronuncia: “Segundo tradição não muito recente e como forma de garantia individual, o legislador estabeleceu que somente são de competência desse colegiado os crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados. Trata-se de numerus clausus, significando que o legislador ordinário não poderá aumentar ou diminuir seu elenco e menos ainda o intérprete pode dar àquele preceito alcance maior ou menor”. Não é esse o entendimento esposado pela maioria doutrinária atualmente. Vale citar, como exemplo jurisprudencial do reconhecimento dessa possibilidade de ampliação da competência, o recente julgado do STJ (REsp. nº 912060-DF, disponível em <www.stj.gov.br>) em que, por quatro votos a um, decidiu-se, de forma inédita, que o acusado pelo primeiro acidente de trânsito com morte da Ponte JK será julgado pelo Tribunal do Júri do Distrito Federal, eis que acolhida a denúncia de homicídio doloso (dolo eventual), qualificado pelo perigo comum.possibilidade de revisão da Constituição, acrescentando, modificando ou suprimindo normas constitucionais. Como a CF/88, é uma constituição rígida, nela está previsto, ainda que com algumas limitações, esse poder de revisão. Nessa possibilidade de o povo, por meio de seus representantes eleitos, rever a ordem constitucional é que reside o poder constituinte derivado, que também pode ser chamado de poder instituído, poder constituinte reformador, ou poder constituinte de segundo grau. Ele é exercido por meio do Congresso Nacional e possui limitações de diversas ordens, fixadas pela própria CF: temporal, circunstancial e material. 18 exposição ou abandono de recém-nascido com resultado morte (art. 134, § 2º - CP), por exemplo, não integram a competência do tribunal popular. Inobstante tais considerações, é admitida a possibilidade de ampliação da competência do Tribunal do Júri por norma infra-constitucional, sem que se configure afronta à Constituição. É importante acrescentar, outrossim, que o Tribunal do Júri pode exercer força atrativa (vis atractiva) sobre a competência de outros juízos, chamando para si a incumbência de julgar crimes unidos por conexão ou continência com aqueles de sua competência originária. Uma vez aferida a existência de conexão ou continência de causas em que uma delas seja afeta à apreciação do Júri, opera-se a junção dos processos e a prorrogação da competência, ou seja, o exercício excepcional da sua jurisdição além dos limites traçados em lei. Há que se ressaltar, contudo, que, em função da perpetuatio iurisdictionis, uma vez reunidos os processos por conexão ou continência, o fato de ser proferida pelo Júri sentença absolutória ou desclassificatória quanto ao crime da sua competência originária não mitiga a competência para decidir as causas penais conexas ou continentes.14 É o que se depreende do art. 81, caput e parágrafo único, do Código de Processo Penal. Outro ponto merecedor de destaque é que a própria Constituição excepcionou a competência do Júri nos casos de foro por prerrogativa de função, ao dispor sobre a competência do Supremo Tribunal Federal; do Superior Tribunal de Justiça; dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais de Justiça Estaduais e da Justiça Militar. Por outro lado, importa mencionar a figura processual do desaforamento, que é exclusivamente aplicadano procedimento especial do Júri. Com efeito, estabelece o Código de Processo Penal que, em caráter excepcional, e por determinação do Tribunal de Apelação, pode 14 O mesmo não se verifica quando, atribuída inicialmente a competência por conexão ou continência ao Júri, o juiz, em sede de pronúncia, desclassificar a infração ou impronunciar ou absolver o réu. Neste caso, excluída está a competência do Júri, incumbindo ao magistrado remeter o processo ao juízo competente. 19 ser operada modificação quanto à regra de competência de foro, transferindo-se a competência para julgamento da causa afeta ao Júri para igual tribunal de outra circunscrição territorial (art. 424 - CPP). Tal medida pode se dar por interesse de ordem pública, se houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou sobre a segurança pessoal do réu, ou, ainda, quando ocorrer demora injustificada do julgamento, sem que o acusado ou o seu defensor tenham dado causa para isso. Via de regra, o crime deve ser julgado na comarca onde houver sido praticado (art. 70 - CPP), daí porque o desaforamento deve ser medida excepcional, pois afasta o acusado de seu juízo natural. Neste sentido, assim se manifesta MOSSIN (1999, p. 229): A excepcionalidade predita também tem sido reconhecida pela jurisprudência, o que está escorreito, uma vez que somente pode ser subtraído da competência do juiz natural originário o julgamento da causa penal, transferindo-o para outro colegiado popular instalado em comarca diversa daquela em que o fato típico foi praticado, quando ficar demonstrada situação de anormalidade capaz de alterar os interesses da administração da justiça, que exige em seu âmago a eqüidade, a exemplo do que acontece com a imparcialidade do júri, e também por questão de ordem pública e da própria segurança do acusado. De qualquer maneira, deve restar transparente a exceção da medida derrogativa da regra de competência do foro. 3. Sigilo das votações O princípio da publicidade dos atos processuais, inerente a qualquer sistema judiciário democrático, apresenta como finalidade precípua garantir a fiscalização da regularidade do processo e da imparcialidade do julgamento, culminando na produção de uma decisão justa e ponderada. Como não poderia deixar de ser, a Carta Magna pátria consagra esse princípio fundamental, ressalvando que sua limitação cinge-se às hipóteses de exigência do interesse público e de defesa da intimidade (arts. 5º, inciso LX, e 93, inciso IX). 20 Pode causar estranheza, num primeiro momento, a constatação de que o sigilo das votações seja assegurado no contexto do Júri, embora o julgamento transcorra em sessão pública. Todavia, revela-se sábia a opção do constituinte, mormente quando se leva em consideração as peculiaridades do tribunal popular, sem falar que o julgamento em sessão pública não é incompatível com a votação secreta, para uma decisão livre dos jurados, segundo a consciência de cada qual, o que, por outro lado, não os sujeita a eventuais represálias ou juízos depreciativos da comunidade, da mídia ou dos parentes do acusado. Em primeiro lugar, é cediço que a opinião pública, principalmente quando veiculada pelos meios de comunicação de massa, exerce forte influência sobre as convicções individuais das pessoas. Não constitui surpresa que a mídia, ao divulgar os fatos da causa e retratar a imagem da pessoa do acusado, pugnando por uma linha de julgamento, acaba por interferir na apreciação dos fatos e da prova pelas pessoas, segundo suas íntimas convicções. Essa chamada publicidade opressiva, condenada em países civilizados, maltrata o princípio da imparcialidade, reduzindo a possibilidade de um julgamento justo e, até mesmo, o princípio constitucional da presunção de inocência. Em face da inexperiência e mesmo da falta de conhecimentos técnicos por parte dos jurados, forçoso é reconhecer que suas impressões pessoais sobre o caso concreto são facilmente influenciáveis, o que põe em risco a soberania do colegiado e pode repercutir negativamente na produção do veredicto quando do recolhimento à sala secreta, donde se conclui que a isenção prévia de ânimo do colegiado é fator a ser preservado com a máxima cautela, a fim de salvaguardar os jurados de qualquer influência ou mesmo de posteriores vinditas em função de suas respostas ao questionário. 21 É justamente neste sentido, da necessidade de assegurar que os jurados, juizes destituídos das garantias dos magistrados togados, sintam-se seguros para examinar as provas e votar, é que se atribui ao juiz de Direito o dever de coibir manifestações ostensivas de preferência, da parte do publico e da imprensa, ou mesmo afastar do recinto da sessão de julgamento pessoas que se comportem inadequadamente, comprometendo a lisura do julgamento. Destarte, figurando o princípio do sigilo das votações na essência da instituição do Júri, e sendo do interesse social a obtenção de um julgamento imparcial e justo, justifica-se a limitação do princípio da publicidade a fim de assegurar que o voto seja secreto. No ponto, vale reproduzir a lição de HERMÍNIO ALBERTO MARQUES PORTO (2005, p. 315): Tais cautelas da lei visam a assegurar aos jurados a livre formação de sua convicção e a livre manifestação de suas conclusões, afastando-se quaisquer circunstâncias que possam ser entendidas, pelos julgadores leigos, como fontes de constrangimento. Relevante é o interesse em resguardar a formação e a exteriorização da decisão.15 Há que se fazer uma ressalva ao sistema de votação de quesitos brasileiro no que diz respeito ao veredicto por unanimidade. Na prática, a garantia do sigilo dos veredictos no caso de decisão unânime não estaria plenamente protegida, na medida em que restariam evidenciados a opinião e o voto de cada um dos juízes leigos. O que alguns doutrinadores sugerem é que seja repensada a metodologia de aferição das respostas afirmativas e negativas, de forma que se elimine o sistema de escores de votação (7x0, 4x2, etc), cessando-se a contagem de votos tão logo alcançada a maioria suficiente à aprovação ou rejeição da tese inerente em cada quesito. Dessa forma, restaria, em tese, inviolado o princípio do sigilo das votações. 15 Em sentido oposto manifesta-se o magistrado JAMES TUBENCHLAK em seu livro sobre o Tribunal do Júri. (1997, p. 119). 22 4. Plenitude de defesa Um dos direitos fundamentais inerentes à condição humana é a liberdade, a qual é assegurada aos indivíduos desde o seu nascimento16. É da natureza da pessoa humana o desejo de ser livre. Justamente por isso, qualquer restrição ou privação da liberdade só pode ser considerada lícita se for reflexo do exercício do poder coativo do Estado, ou seja, em decorrência da aplicação de sanção institucionalmente cominada em represália ao cometimento de um ilícito e destinada a restabelecer a ordem pública. É a liberdade, portanto, direito fundamental, mas não absoluto. No contexto do Júri, esse aspecto resta sobejamente comprovado, na medida em que, se por um lado o que está em jogo é a liberdade do réu, por outro, igualmente situa-se o bem jurídico vida, afetado pela conduta criminosa imputada ao réu. Nesse contexto, o princípio do devido processo legal surge, de um lado, como uma garantia ao direito à liberdade individual da pessoa acusada da prática de um ilícito e também à contenção de excessos por parte do Estado e, de outro, como uma garantia à coletividade, no sentido de retirar do convívio social a pessoa cujo comportamento afronta os valoresfundamentais cultivados pela comunidade. Consectários do devido processo legal são os princípios do contraditório e da ampla defesa, os quais, assim como aquele, são direcionados aos ocupantes dos dois pólos da relação processual, com vistas à regularidade da instrução e à consolidação de um processo justo e regular.17 16 No direto romano, a liberdade é entendida como “a faculdade natural de fazer aquilo que se deseja, a não ser que seja proibido pela força ou pelo direito” (apud POLETTI, 1996, p. 78). Na filosofia, há várias concepções de liberdade, cada qual com suas peculiaridades. O certo é que não há um conceito rígido e universal acerca da temática. Contudo, a noção de liberdade certamente tem a ver com a ausência de submissão a alguma coisa, quer dizer, o poder de autodeterminação e independência do ser humano. 17 JOSÉ FREDERICO MARQUES (1955, p. 187) entende que os princípios do contraditório e da ampla defesa, embora inerentes ao devido processo legal, dão a este mais ênfase em se tratando de processo penal. 23 O princípio da ampla defesa diz respeito à possibilidade de o acusado produzir provas em seu favor e buscar demonstrar a sua inocência de forma irrestrita, sem interferências indevidas da parte contrária ou do próprio Estado-juiz. A seu turno, o princípio do contraditório guarda pertinência com o direito das partes serem comunicadas prévia e pormenorizadamente da acusação oficializada pelo Estado, bem como de participarem de todos os atos processuais nos quais é produzida a prova. A respeito deste último, vale conferir a seguinte lição: A garantia do contraditório não raro é definida como a ciência que se dá ao acusado da imputação, com seu conseqüente chamamento a juízo para defender- se, ou ainda, na conhecida definição de J. Canuto Mendes de Almeida, “a ciência bilateral dos atos e termos processuais e a possibilidade de contrariá- los”. Essas conceituações, no entanto, podem ser desdobradas e ampliadas, compreendendo outros importantes corolários do contraditório, tais como: (a) imparcialidade do julgador; (b) a igualdade processual e paridade de armas; (c) a ampla defesa, compreendendo o direito à produção das provas lícitas, o direito à autodefesa e defesa técnica, a motivação das decisões, a garantia do duplo grau da jurisdição, com o reexame das decisões; e (d) a obediência a determinado rito procedimental. (DEMERCIAN, 1999, pp. 36-37). Da leitura da Constituição, mais especificamente de seu art. 5º, extrai-se que a ampla defesa foi consagrada no inciso LV, juntamente com o contraditório, para todos os processos judiciais e administrativos. Mais adiante, no inciso XXXVIII, que trata especificamente da instituição do Júri, assegurou-se a “plenitude da defesa”. Isso evidencia que o constituinte pátrio, além de reconhecer de forma genérica o direito à ampla defesa em todos as modalidades de processos, ressaltou a plena defesa inerente aos casos da competência do colegiado popular, no sentido de que, mais do que a simples outorga de oportunidade defensiva, é imperativo o seu exercício pleno e eficiente, até mesmo em função de que os jurados decidem a causa por íntima convicção18, sem necessidade de fundamentação do veredicto. 18 A este respeito, NUCCI pontua que não se deve confundir íntima convicção com íntima justiça, uma vez que nesta os jurados seguiriam tão-somente seus critérios individuais e íntimos de justiça para o julgamento da causa, enquanto que, naquela, eles analisam a prova e os argumentos expendidos pelas partes, sopesando a interpretação dos fatos narrados à luz dos critérios legais de justiça. 24 De todo o exposto, advém a conclusão de que um Júri sem plenitude de defesa implicaria em julgamento injusto, em detrimento da sua concepção constitucional como uma garantia do cidadão. Decorrência da plenitude da defesa é o fato de que o Código de Processo Penal atribui ao juiz presidente a incumbência de nomear outro defensor ao réu, na hipótese de considerar o réu indefeso (art. 497, inc. V). Na realidade, defesas com teses contraditórias, bem como um defensor inapto, não familiarizado com os procedimentos do júri ou mesmo não plenamente comprometido com a causa que patrocina, são fatores que comprometem o princípio da ampla defesa. É fato, também, que o juiz presidente da sessão plenária muito pouco poderia fazer para sanar eventuais equívocos cometidos na sustentação oral do defensor durante os debates em plenário sem comprometer a sua necessária imparcialidade frente ao Conselho de Sentença. Sendo assim, não fosse esse dispositivo legal, a plenitude da defesa restaria flagrantemente violada nas hipóteses aventadas. Também em função desse princípio fundamental é que o magistrado deve levar em consideração as informações prestadas pelo réu durante o seu interrogatório e, se for o caso, inserir suas teses no questionário, ainda que referidas teses não sejam adotadas pela defesa técnica, ou seja, ainda que não tenham sido elas suscitadas nos debates. Por sua vez, a composição do corpo de jurados, que interessa fundamentalmente ao réu, também apresenta procedimento que condiz com a garantia da plenitude da defesa, qual seja, a recusa imotivada, que permite a formação de um Conselho de Sentença equilibrado, o qual procederá à apreciação da linha de defesa a ser sustentada. Quanto ao pedido de produção de provas julgadas imprescindíveis à defesa do réu, não se afigura razoável o seu indeferimento injustificado. Cabe ao magistrado apreciar com 25 cautela a solicitação, tendo em mente que a meta do julgamento é busca da verdade real. Por tal razão, faculta-se-lhe, por exemplo, se o julgar necessário, dissolver o Conselho de Sentença e adiar o julgamento para a produção de novas provas ou, ainda, determinar a inquirição das chamadas testemunhas do juízo, aquelas cuja oitiva interessa sobremaneira às partes, mas que se sobrepõem à cota máxima permitida para o julgamento (cinco testemunhas para cada parte), e, ainda, em caráter excepcionalíssimo, ampliar o tempo legalmente previsto para a exposição da defesa. Importante notar que a plenitude da defesa não significa o rompimento do equilíbrio entre as partes componentes da relação jurídico-processual. Cabe ao juiz exercer o controle da defesa eficiente idealizada pelo constituinte, essencial à distribuição de justiça, mas também é seu dever analisar com bom senso o caso concreto, coibindo abusos e primando pelo tratamento igualitário, na medida do possível, entre as partes. 5. Soberania dos veredictos O termo soberania tem origem historicamente política19 e o seu emprego, em princípio, visava adjetivar o poder supremo do Estado, sendo que só posteriormente é que esse conceito incorporou uma faceta jurídica. Quando o constituinte brasileiro resgatou da Carta de 1946 a referência à soberania dos veredictos do Júri, transladando-a para o texto constitucional de 1988, assim o fez para garantir àquela instituição, no âmbito de suas particulares atribuições, um caráter próprio de 19 Sobre a natureza da soberania, CRETELLA JÚNIOR (1992, p.137) observa que: “A ‘soberania’ é, realmente, fundamento do Estado, qualquer que seja sua forma, monárquica ou republicana, federativa ou unitária, porque Estado ‘é síntese dos poderes soberanos’. Soberania é a situação do Estado que não está submetido a outro e que, por isso, pode elaborar sua Constituição, ou seja, pode criar seu direito positivo no mais alto grau”. 26 estabilidade, independênciae plenitude, elemento diferencial das suas decisões com relação àquelas emanadas de outros órgãos da justiça comum. Mas, afinal, o que é a soberania no âmbito do Tribunal do Júri? Nesse contexto específico, a soberania dos veredictos representa a impossibilidade de reforma das decisões do colegiado popular diretamente pela magistratura togada, no pressuposto de que os juízes togados não podem substituir os jurados nas causas da competência originária do Júri20, subtraindo-lhes o poder exclusivo de julgamento da causa e ferindo a garantia democrática elevada ao patamar constitucional. Busca-se assegurar ao Júri a última palavra no que diz respeito ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida, o que expressa a idéia de independência da própria instituição do Júri. A decisão soberana não pode, todavia, significar decisão arbitrária e intangível, na medida em que não são os jurados onipotentes no exercício do direito de julgar seus pares e, obviamente, também eles podem cometer equívocos. A consagração deste princípio balizador do tribunal popular não implica impossibilidade de revisão do mérito da causa, afinal, se os juízes leigos se afastarem inequivocamente dos fatos e das provas que lhes foram apresentados, razão não existe para que se permita a perpetuação de um erro flagrante e injustificável. Isso não representa uma limitação da soberania, como entendem alguns doutrinadores, e sim a evidência da possibilidade de reapreciação de uma causa pelo mesmo Júri que outrora a julgara, embora reunido com composição distinta. A respeito dessa temática, vale conferir a lição de NUCCI (1999, p. 87), ao afirmar que: O constituinte desejou que o júri fosse soberano, ou seja, a última instância para decidir os crimes dolosos contra a vida, com supremacia e independência, embora não se tenha qualquer referência de que sua decisão precisa ser única. 20 Conceito extraído da lição de JOSÉ FREDERICO MARQUES, em sua obra Elementos de Direito Processual Penal (1997, p. 456). 27 Daí porque é perfeitamente admissível que, cometendo algum erro, o tribunal popular reúna-se novamente para reavaliar o caso. Assim, mais de um veredicto pode haver, desde que ambos sejam produto da apreciação da causa pelos jurados, sendo que o último prevalece sobre o primeiro, revogando-o. É o que ocorre, por exemplo, no caso de uma decisão prolatada em manifesta contrariedade à prova dos autos (art. 593, inc. III, alínea ‘d’ - CPP), da qual recorre uma das partes, interpondo recurso de apelação sob esse fundamento. Constatada a procedência do pleito pelos membros do Tribunal de Apelação, anula-se o veredicto anterior e determina-se a submissão do réu a um novo julgamento pelo Tribunal do Júri. O que não se pode aceitar é que a inafastabilidade de um controle judicial sobre as decisões do colegiado popular seja utilizada como pretexto para, imotivadamente, adaptá-las segundo as conveniências do entendimento jurisprudencial dominante, mediante a determinação de reapreciação de veredictos que, a bem da verdade, não comportariam qualquer espécie de alteração, de modo que se ignore sumariamente a avaliação pessoal do caso concreto pelos jurados. Essa temática será objeto de apreciação mais aprofundada em tópico específico, mais adiante, após um necessário estudo acerca da revisão criminal. 28 Capítulo III – A Revisão Criminal 1. Aspectos principais A revisão criminal, segundo CERONI (2005, p. 12), pode ser definida como “o meio de que se vale o condenado para desfazer injustiças e erros judiciários, relativamente consolidados por decisão transitada em julgado”. O pressuposto essencial, portanto, para o ajuizamento da revisão criminal é a coisa julgada. Esgotadas todas as vias recursais (res iudicata formal), encerra-se a fase de conhecimento, operando-se, subseqüentemente, os efeitos da coisa julgada sobre a sentença final de mérito (res iudicata material). A coisa julgada caracteriza-se pela imutabilidade da decisão e visa proporcionar segurança e estabilidade jurídicas. É falaciosa, todavia, a assertiva segundo a qual a coisa julgada representaria a absoluta intangibilidade da sentença, já que, uma vez evidenciada a injustiça desta em face do cometimento de um erro judiciário,21 a presunção de veracidade do julgado deve ceder ante os imperativos da verdade real.22 21 “A injustiça de uma decisão penal, ensejadora de sua desconstituição, pode se dar tanto por error in judicando (o erro no julgar o mérito da questão, ou má interpretação da prova), como por error in procedendo (erro no encaminhar o processo). Tanto a sentença que condena alguém que não praticou o crime, como aquela proferida num processo em que se desrespeitaram as regras, as formalidades e os atos processuais vigentes (ex.: inobservância do princípio da amplitude da defesa, o que, incontestavelmente, gera nulidade insanável), podem ensejar o pedido de revisão criminal”. (CERONI, op. cit., p. 29). A possibilidade de erro judiciário é um dos poucos argumentos válidos utilizados para fundamentar a opinião daqueles que são contrários à pena de morte, conforme relata Ronaldo Poletti, recordando os ensinamentos que recebeu durante a sua formação acadêmica. A irreversibilidade que pode assumir uma decisão é matéria a ser tratada com bastante cautela, já que a coisa julgada às vezes acaba por perpetuar injustiças, o que não quer dizer que o eminente professor seja favorável à tendência de relativização arbitrária da coisa julgada, muito pelo contrário. 22 A esse respeito, vale colacionar a virtuosa lição de JORGE ALBERTO ROMEIRO (apud MOSSIN, 1999, p. 548): “A conveniência social de haver uma certeza na solução dos litígios ou a de lhes ser posto um paradeiro, um fim, pois não poderão prolongar-se indefinidamente, senão em prejuízo da paz e da ordem, gerou a autoridade da coisa julgada, através da irrecorribilidade e da imutabilidade do decidido judicialmente. A decisão transitada em julgado não espelha, todavia, fruto que é da falível justiça humana, a verdade absoluta, real ou objetiva, uma verdade, uma 29 Assim, a revisão constitui verdadeiro remédio constitucional contra injustas condenações, tendo em vista que vulnera a autoridade da coisa julgada, tornando mutável uma sentença irrecorrível. Ela é a última oportunidade que tem o réu de ver reparados eventuais erros ou injustiças da decisão condenatória. FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO assevera que a revisão “visa, exclusivamente, a invalidar a entrega da prestação jurisdicional”. A competência originária para o julgamento da revisão é dos tribunais, não podendo ser processada e julgada, portanto, na primeira instância. Embora possa ela ser associada à ação rescisória do processo civil, pois ambas pressupõem sentenças de mérito passadas em julgado, elas, na realidade, não se confundem. Enquanto na rescisória o direito de propor a ação extingue-se no prazo de dois anos de decadência, contados do trânsito em julgado da decisão impugnada (art. 495 - CPP), não há prazo preclusivo para a propositura da ação revisional no processo penal, como resta patente do teor do art. 622 do Código de Processo Penal. No que tange à sua natureza jurídica, a doutrina ainda não chegou a um consenso, ora referindo-se à revisão criminal como ação, ora como recurso. Encontrando-se ela inserida entre os recursos em geral, no Código de Processo Penal, seria, por imposição legal, uma modalidade recursal, tanto mais que permite a reforma das decisões judiciais por órgãos da jurisdição superior.Contudo, o entendimento mais aceito é o de que a sua localização no Código de Processo Penal ocorre com uma impropriedade técnica, tendo-se presente que a revisão revela-se como verdadeira ação autônoma de impugnação de sentença transitada em julgado ou, ainda, como ação penal de conhecimento de natureza constitutiva destinada a combater decisão da qual certeza somente, a verdade relativa ou subjetiva, a verdade do juiz, em que, no fundo, se reduz a verdade judicial. Pode acontecer, contudo, e assim muito sucede, que a decisão transitada em julgado nada mais traduza do que um erro judiciário. Quando, entretanto, patenteado o erro da decisão transitada em julgado, a não-reparação das conseqüências se revela um mal maior que o da necessidade social da própria coisa julgada, a existência desta poderia periclitar sem aquela reparação”. 30 não caiba recurso. Está, dessa forma, sujeita às condições de procedibilidade impostas a toda ação, a saber, possibilidade jurídica do pedido, legitimação ad causam e interesse jurídico, para que possa ser admitida e conhecida. O certo é que a revisão assume os contornos de uma verdadeira garantia fundamental do indivíduo, pois apresenta como finalidade precípua desconstituir condenações injustas e corrigir erros judiciários, além de restaurar o seu status dignitatis, no magistério de JOSÉ FREDERICO MARQUES (1955, p. 152). O pressuposto da ação revisional, condição de sua admissibilidade, é, basicamente, a sentença condenatória definitiva. Mas existem outras hipóteses de seu cabimento, como é o caso da sentença absolutória imprópria (art. 386, parágrafo único, inc. III - CPP), que reconhece a inimputabilidade do acusado e restringe-lhe a liberdade mediante imposição de medida de segurança, e da sentença terminativa de mérito, que extingue o processo com julgamento de mérito, mitigando apenas a pretensão executória, como é o caso das decisões que extinguem a punibilidade pela concessão de indulto. O instrumento revisional objetiva beneficiar o condenado (revisão pro reo), promovendo a sua absolvição, a redução da pena imposta, a modificação da classificação do crime ou, ainda, a anulação do processo de conhecimento, não constando precedente de acolhimento da previsão de revisão de sentenças absolutórias, em favor dos interesses da sociedade (revisão pro societate)23. Esse entendimento encontra-se consagrado, inclusive, na Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San Jose da Costa Rica (1969), a qual dispõe que: “O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”. De forma que a revisão criminal não tem o poder de 23 Segundo ADA PELLEGRINI GRINOVER (2001, p. 307), “O fundamento da linha que advoga a utilização da revisão exclusivamente pro reo também é político: o drama do processo penal, que já é um castigo, os direitos da personalidade e da intimidade, o princípio do favor revisionis (desdobramento daquele do favor rei), tudo leva a concluir que o réu absolvido não pode ser submetido a novo julgamento”. 31 reavivar a persecutio criminis do Estado contra um indivíduo e, tampouco, de motivar o agravamento da reprimenda a ele cominada na decisão revista (princípio da ne reformatio in pejus). Não obstante ser a revisão instrumento em benefício do réu, constitui ônus exclusivo do peticionário instruí-la devidamente com a certidão do trânsito em julgado da sentença condenatória e com documentos e provas pré-constituídas, hábeis à confirmação dos fatos alegados, sob pena do não acolhimento do pleito24. Quanto à titularidade da ação, ela é privativa do réu condenado (art. 623 - CPP), o qual pode ser substituído por seu representante legal ou, em caso de morte, pelo seu cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. Diz-se que ela é uma ação penal sui generis, na medida em que não apresenta ocupante do pólo passivo da demanda, já que a atuação do Ministério Público no caso é apenas como custos legis, manifestando-se, caso o requerimento do autor não seja indeferido de pronto pelo relator por instrução insuficiente, a favor ou contra o cabimento do pedido, segundo seus critérios de avaliação independente e sob a forma de parecer, como se depreende do art. 625, § 5º do Código de Processo Penal. Julgada procedente a ação, são restaurados ao sujeito os direitos perdidos em virtude da anterior condenação, eliminando-se os efeitos da condenação, como, por exemplo, o registro na folha de antecedentes criminais, o confisco de produtos do crime, a perda de cargo, função ou mandato, a suspensão de direitos políticos, a formação de título executivo passível de embasar ação indenizatória no âmbito cível, dentre outros. 24 Aduz NUCCI (2006, p. 887) que “O encargo de demonstrar a sua inocência, buscando desconstituir decisão condenatória com trânsito em julgado é do sentenciado, pois já não vige o princípio do in dúbio pro reo, devendo o autor da ação revisional apresentar novos fatos e provas substancialmente novas, para que seu pedido possa ser acolhido. É a consagração, para a hipótese, da regra do in dúbio pro societate. Lembremos que a revisão criminal é uma exceção ao princípio do respeito à coisa julgada, não podendo ser banalizada, motivo pelo qual, tendo havido o devido processo legal para fundamentar a condenação do réu, cabe-lhe agora demonstrar a inexatidão do que foi realizado, apresentando as provas que possuir a respeito”. 32 É facultado ao interessado pleitear, perante o tribunal que vai julgar a procedência ou não da revisão, o reconhecimento do direto à indenização pelos danos perpetrados à sua liberdade individual de ir e vir, ou à sua honra e imagem, como estipulam os arts. 630, caput, do Código de Processo Penal, e 5º, inciso LXXV da Carta Política. Não opera a previsão indenizatória, todavia, quando o erro ou injustiça da condenação advier de falta atribuível ao próprio condenado, bem como quando a acusação tiver sido meramente privada (art. 630, § 2º, alíneas ‘a’ e ‘b’ – CPP), se bem que contra essa segunda hipótese insurge-se significativa parcela da doutrina, ao argumento de que, independentemente da titularidade da ação penal, o Estado é quem seria o responsável pelo cometimento do erro judiciário que gerou o dano. Contra a decisão prolatada na revisão criminal cabem embargos de declaração, recurso especial ou recurso extraordinário, a depender do caso concreto. No caso do despacho do relator, que rejeita liminarmente a revisão (art. 625, § 3º - CPP), a via recursal cabível é o agravo regimental. 2. Hipóteses de cabimento O art. 621 do Código de Processo Penal assim enumera as hipóteses de cabimento da revisão criminal: Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida: I – quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos; II – quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos; III – quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena. CARLOS ROBERTO CERONI (2005, pp. 71-72), entende que também devem ser admitidas como causas de pedir da revisão as nulidades relativas não convalidadas causadoras 33 de efetivo prejuízo, bem como as nulidades absolutas, por força do disposto no art. 626,caput, parte final, do Código de Processo Penal, questão ainda não pacificada. A delimitação das hipóteses de cabimento da ação revisional afigura-se necessária, até mesmo para a manutenção do seu caráter excepcional e, conseqüentemente, da segurança jurídica da coisa julgada. Nessa linha de entendimento, e com vistas a evitar um elastecimento descontrolado das possibilidades jurídicas do pedido, a maioria doutrinária e jurisprudencial entende que o rol constante do artigo supracitado é taxativo. A primeira hipótese – sentença condenatória contrariando texto expresso da lei penal – surge quando a decisão desvia-se de preceito legal da norma penal, quer desconsiderando os seus ditames, quer violando-os. Não se trata, portanto, de limitação da prerrogativa de interpretação da lei, conferida ao juiz, e sim de correção de erros graves e flagrantes no julgamento, por afronta ao texto nominal da lei penal. JOSÉ FREDERICO MARQUES (1955, pp. 87-88) afirma que é contrária à lei penal tanto uma decisão que considera crime uma conduta atípica, afrontando o dispositivo básico segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina” (art. 1º - CP), quanto uma que impõe sanção não prevista para o crime ou que extrapole o seu limite legal, contrariando a máxima “não há pena sem prévia cominação legal”. Outro exemplo bastante citado é o da decisão que leva em consideração a confissão do réu para formar a materialidade do crime que deixou somente vestígios, a teor do disposto no art. 158 do Código de Processo Penal. Não cabe revisão criminal, contudo, quando se busca a aplicação de entendimento jurisprudencial diverso daquele adotado pela decisão condenatória, quando o mandamento legal que embasou a condenação for de interpretação controvertida. Aplica-se à 34 espécie, por analogia, a Súmula 343 do STF: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda tiver se baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”. Contudo, NUCCI (2006. p. 624) faz uma ressalva nesse ponto, no sentido de que quando a jurisprudência houver firmado entendimento de que a lei deve ser interpretada de uma certa maneira e o magistrado optar por adotar posição diametralmente oposta à majoritária, cabe revisão criminal, com o que recomenda cautela na apreciação da admissibilidade da ação. A segunda hipótese – sentença condenatória contrária à evidência dos autos – fundamenta-se na inequívoca afronta da decisão ao conjunto probatório, ou seja, na falta de embasamento em qualquer elemento de convicção constante dos autos. A existência de um contingente mínimo de prova a corroborar a decisão rescindenda implica em sua manutenção.25 Em caso de dúvida, mantém-se a condenação, pois incumbe ao autor da ação o ônus de demonstrar cabalmente a alegada afronta ao ordenamento dada como a causa da injustiça, não bastando, portanto, o pleito de reexame das provas acostadas aos autos durante a instrução do processo de conhecimento ou de absolvição por insuficiência de provas, por exemplo. A respeito da crítica que se faz a essa hipótese específica de cabimento da ação revisional, serão tecidos mais à frente os comentários pertinentes. 25 À luz do princípio do livre convencimento do juiz, é inadmissível o deferimento se a decisão que se quer rescindir se fundou em algum ou alguns elementos de prova do processo fosse. A análise deve ser ainda mais cuidadosa quando a alegada decisão contrária à prova dos autos advier de decisão emanada de Tribunal de Júri, tendo em conta sua soberania constitucional (cf. artigo 5º, inciso XVIII da Constituição Federal). No particular caso do Conselho Popular de Sentença, só haverá a referida contrariedade caso se perceber que os Jurados não se valeram de nenhuma das versões. 35 Outra possibilidade legal de revisão criminal é a de sentença fundada em depoimentos, exames ou documentos falsos.26 Para tanto, é essencial a comprovação da não autenticidade da peça. Em tese, o próprio autor da ação, para instruir o seu pedido, deve previamente propor justificação, que é ação cautelar preparatória da revisão criminal, no juízo do foro da infração penal, a fim de garantir credibilidade e valor probante aos novos elementos que embasarão o seu pedido. Nada impede, todavia, que o relator da revisão, a pedido do condenado, e havendo fundadas razões para tanto, determine a produção de provas durante a tramitação da revisão, a fim de apurar o alegado falso. Uma vez julgada procedente a ação por esses fundamentos, procede-se à apuração criminal da falsidade. Um aspecto a ser suscitado é no sentido de que a alegação de prova falsa só bastará como motivo suficiente ao deferimento da revisão quando o decreto condenatório ora impugnado tiver se apoiado primordialmente naquela prova específica. Caso a sentença condenatória tenha fundamento também em outras provas, que permaneçam incontestadas, não se justifica a sua desconstituição, devendo ser julgado improcedente o pedido revisional. O surgimento de novas provas da inocência do acusado constitui a quinta hipótese de cabimento da ação revisional e justifica-se quando essas provas substancialmente novas evidenciarem decisiva e inescusavelmente que o condenado não praticou a infração penal pela qual fora condenado. A retratação da vítima pode ser citada como um exemplo adequado à espécie. Obviamente, esses novos elementos serão apreciados pelo tribunal revisor em conjunto com as antigas provas para a livre formação de sua convicção, não sendo suficiente, contudo, que 26 PIMENTA BUENO aduz que “é contudo fora de dúvida que desde que se demonstre que a prova em virtude da qual foi proferido o julgamento é falsa, torna-se manifesto que o juízo foi iludido e com ele a Justiça. O caráter moral da prova é quem deve ministrar a certeza do que se deduziu na questão, e certificar a verdade contestada. Conseqüentemente, a falsidade dela não deve prevalecer, e, portanto, nem a sentença, que é filha do erro, e que como tal perde o caráter de presumida justiça e demanda retificação” (apud CERONI, 2005, pp. 59-60). 36 eles meramente levantem dúvidas quanto ao acerto da condenação. Diversamente, devem eles ter densidade probatória o suficiente para desfazer o fundamento da condenação e, conseqüentemente, desconstituir o julgado. Por fim, a última hipótese de revisão criminal ocorre com o surgimento de circunstância que determine ou autorize diminuição de pena, que, assim como no caso anterior, diz respeito à descoberta de novos fatos, que, não ensejando a absolvição, têm a aptidão, contudo, para ensejar uma redução na pena imposta. É o que sucede, por exemplo, quando o laudo psiquiátrico atesta a semi-imputabilidade do condenado ou quando demonstrada a configuração de arrependimento posterior em crime de furto. 3. Revisão e decisão do Júri – da possibilidade de mitigação do princípio da soberania dos veredictos na ação revisional Como já exposto, o fundamento político da revisão criminal é o fato de que a atividade jurisdicional da persecução da pena, submissa a todas as contingências humanas, não está imune ao cometimento de equívocos, muito pelo contrário. Na insuficiência das medidas recursais para a obtenção da justiça material, têm os interessados à sua disposição o instrumento da revisão criminal, que, se de um lado relativiza a segurança jurídica da coisa julgada, por outro milita em prol da consecução do valor justiça. Neste sentido, patente a excepcionalidade da referida ação, por fulminar princípio
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