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Elementos Práticos e Teóricos para a Realização do Estado de Direito Por Dr Augusto Zimmermann, PhD* 1. Considerações Iniciais Embora o conceito de Estado de Direito esteja aberto a discussões, há, no entanto, um amplo reconhecimento de que este significa muito mais que uma mera coação por meio de lei positiva para cada ação governamental. Freqüentemente contraposto ao “governo dos homens”, o conceito de Estado de Direito implica em certa delimitação de funções governamentais. Ele implica, por exemplo, que autoridades exerçam seu poder de acordo com leis claras, imparciais e gerais, as quais sejam promulgadas antecipadamente e cuja execução possa ser impingida por um tribunal independente. O Estado de Direito já foi descrito como uma das maiores realizações da história humana no sentido do progresso da liberdade individual.1 Ele não concede ao Estado o direito de destruir, escravizar ou voluntariamente pauperizar os sujeitos.2 Ao invés disso, o ideal do Estado de Direito busca promover uma sociedade livre e na qual a supremacia da lei é observada como uma questão de significância moral. Tal significância, comenta o prominente jusfilósofo norte- americano Jeremy Waldron, vai além de qualquer preocupação técnica com a lógica e procedimentos da legalidade.3 Assim sendo, ele relaciona o Estado de Direito (‘rule of law’) com a postulação extralegal pela qual as questões de liberdade pessoal são consideradas como a única e verdadeira jurisdição do Estado de Direito. 2. Origem da Expressão Estado de Direito No tocante à sua origem, a filósofa francesa Simone Goyard-Fabre constata que certos autores procuram associar o Estado de Direito com as teses clássicas jusnaturalistas, segundo as quais o direito do Estado é submetido a um direito superior ou, em sua figura “clássica”, desejado por Deus e derivado da natureza das coisas ou, na sua versão “moderna”, ligado essencialmente à natureza do homem. 4 Por outro lado, não é raro encontrar aqueles que confundem o Estado de Direito com o mero Estado legal, ou meramente legislador, porque procuram as origens do Estado de Direito num sistema como o de Licurgo ou de Sólon, segundo o qual, é o próprio Estado que enuncia os preceitos jurídicos que todo governante, longe de ser solutus legibus, deve observar.5 * Bacharel e mestre em Direito (com louvor) pela PUC-Rio. Doutor (PhD) em Filosofia do Direito por Monash University (Austrália). Professor de Direito Constitucional e Sistema Jurídico Australiano em Murdoch University School of Law (Austrália). Ex- professor de Direito Constitucional, Teoria Geral do Estado e Direito Internacional da Universidade Estácio de Sá. 1 Dahrendorf, Ralf, Law and Order, p.142. 2 Locke, John, Second Treatise on Civil Government. Sec.135. 3 Does Law Promise Justice?, p.778. 4 Os Princípios Filosóficos do Direito Político Moderno, p. 314. 5 Idem Entendido em seu sentido moderno, contudo, o Estado de Direito que nós conhecemos é na realidade herdeiro das lutas revolucionárias dos séculos XVII e XVIII, quando foram consagrados os direitos naturais da pessoa humana. Por isso, muito embora represente um conceito jurídico, o Estado de Direito é primordialmente um postulado político-filosófico. A locução foi cunhada em 1813, quando o jurista alemão Welcker distinguiu três tipos distintos de governo: despotismo, teocracia e, finalmente, o Estado de Direito (Rechtsstaat). Somente em 1822, contudo, o conceito adquiriu uma certa forma científica, quando Robert von Mohl publicou Die Polizei-Wissenschaft nach den Grundsätzen des Rechtsstaates.6 Neste trabalho, o jurista alemão podera que o Estado de Direito perfaz uma autêntica contraposição ao Estado policial (Polizeistaat), como protetor e encorajador do desenvolvimento das forças naturais, mediante uma garantia para a liberdade dos indivíduos.7 Desde então, o ideal do Estado de Direito (Rechtsstaat) seria evocado para a caracterização do Estado onde o governo se limita por leis genéricas e protetoras dos direitos fundamentais. Segundo Norberto Bobbio, o surgimento desta visão de Estado de Direito permitiu o cambio do poder do príncipe para a ótica do cidadão, quando nascem os chamados direitos públicos subjetivos. Se no Estado despótico o indivíduo só teria deveres e não direitos, com o Estado de Direito o mesmo passava a adquirir, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos.8 3. O Rule of Law do Direito Anglo-Saxão Em equivalência ao Estado de Direito, os anglo-saxões cunharam o rule of law, que pode-se traduzir como o Estado onde o império da lei prevalece.9 Em 1885, A. V. Dicey definiu-o como uma concepção de absoluta supremacia ou predominância da lei ordinária sobre o poder governamental arbitrário, salientando que as regras gerais do Direito Constitucional inglês resultavam de decisões judiciais garantidoras de direitos individuais em casos particulares.10 Desse modo, de acordo com Dicey, a expressão adquire três significados distintos: a) a ausência de poder arbitrário por parte do governo para punir cidadãos ou cometer atos contra a vida e a propriedade; b) a sujeição de todo homem, independentemente de sua classe ou condição, à lei comum do reino e à jurisdição dos tribunais ordinários; e c) uma predominância do espírito legal nas 6 Em língua portuguesa: “A Ciência Policial segundo os Princípios do Estado de Direito”. 7 Goyard-Fabre, Simona, op. cit., p. 314. 8 A Era dos Direitos, p. 61. 9 Caenengem, R.C. van, An Historical Introduction to Western Constitutional Law, p. 16. 10 São palavras de Albert Venn Dicey: We mean, in the first place, that no man is punishable or can be lawfully made to suffer in body or goods except for a distinct breach of law established in the ordinary legal manner before the ordinary Courts of the land. In this sense the rule of law is contrasted with every system of government based on the exercise by persons in authority of wide, arbitrary, or discretionary powers of constraint… There remains yet a third and a different sense in which the rule of law or the predominance of the legal spirit may be described as a special attribute of English institutions. We may say that the constitution is pervaded by the rule of law on the ground that the general principles of the constitution (as for example the right for personal liberty, or the right of public meeting) are with us the result of judicial decisions determining the rights of private persons in particular cases brought before the Courts (The Law of the Constitution, pp. 110 e 115). instituições inglesas, em razão da qual os princípios gerais da Constituição inglesa são o resultado de decisões judiciais.11 4. Concepções Formais e Substantivas do Estado de Direito O debate contemporâneo acerca do Estado de Direito tem sido realizado por proponentes de concepções formais e substantivas. Enquanto defensores da concepção formal crêem que o Estado de Direito abarca unicamente atributos relativos à questão da legalidade formal – tais como que as normas legais normalmente sejam claras, gerais e de conhecimento público – proponentes da concepção substantiva vão além desta descrição formal de modo a incluir em sua análise do Estado de Direito uma discussão mais específica à proteção jurídica dos direitos fundamentais. 4.1. Concepções Formais Aqueles que sustentam a concepção formal associam o Estado de Direito a certos requisitos processuais e institucionais para a concretização de uma condição de governo sujeito à lei. Eles postulam, desta forma, um sentido mais literal para a expressão, referindo-se, por exemplo, à maneira segundo a qual asleis positivas são promulgadas, bem como outros aspectos formais das normas jurídicas. Porém, como Paul Craig explica, concepções formais do Estado de Direito não pretendem expressar-se sobre o conteúdo substantivo da norma legal em si. Eles não estão preocupados se a lei positiva seria, em última instância, uma lei boa ou má, desde que os preceitos formais do Estado de Direito sejam satisfeitos.12 Joseph Raz, um famoso propositor da concepção formal, é da opinião que o Estado de Direito abarca uma consideração exclusivamente processual da legalidade. Ele argumenta que o Estado de Direito refere-se à existência de um ordenamento jurídico em que as normas legais que sejam gerais, pré- estabelecidas, claras e relativamente estáveis. Ele também argumenta que em todos os sistemas caracterizados pelo Estado de Direito, juízes são independentes e devem promover princípios gerais de justiça natural, tais como prestações jurisdicionais justas e imparciais. Por fim, Raz postula que um sistema caracterizado pelo Estado de Direito implica na existência de um jurídico que opere a prestação jurisdicional sem grandes delongas, custos judiciais excessivos, e que seja acessível a qualquer indivíduo.13 Mas, conforme o anteriormente mencionado, concepções formais não realizam nenhuma associação entre o Estado de Direito e resultados substantivos. Aqueles que defendem uma concepção formal não levam em conta qualquer expectativa de justiça substantiva. Sendo assim, com exceção do fato elementar de que regras formais do Estado de Direito podem resultar em determinados princípios de imparcialidade procedimental, elevando a possibilidade de realização da autonomia individual, nenhuma promessa de justiça substantiva é feita. 4.2. Concepções Substantivas Propositores de concepções substantivas sustentam que a proteção de determinados direitos humanos seria fundamental para a concretização do Estado 11 Cf. Leone, Bruno, Liberdade e a Lei, p. 77. 12 Formal and Substantive Conceptions of the Rule of Law: An Analytical Framework. Public Law, p.467. 13 The Authority of Law – Essays on Law and Morality, p.228. de Direito. Uma concepção substantiva procurará distinguir entre as leis “boas”, que observem a proteção de tais direitos, e as leis “más”, que assim não o fazem. Ronald Dworkin, um proeminente defensor da concepção substantiva, qualifica o Estado de Direito como um ideal de “lei boa”, associando-o com direitos e deveres morais do indivíduo, assim como à proteção de seus direitos políticos contra o Estado de modo geral.14 Mesmo que não mencionados explicitamente pela lei positiva, Dworkin sugere que estes direitos e deveres morais ainda assim fazem parte do ideal do Estado de Direito, constituindo o esforço comunitário para captar os direitos morais. Como tal, ele conclui, o Estado de Direito pode ser definido como “o ideal de governo por meio de uma precisa concepção pública de direitos individuais”.15 A maioria daqueles que sustentam uma concepção substantiva do Estado de Direito baseiam seus argumentos na tradição liberal do constitucionalismo moderno. Esta tradição, tal como observa Samuel Huntington, é a mesma que forneceu as bases para a proteção dos direitos humanos contra o exercício de poder arbitrário.16 Assim sendo, alguém poderia então especular se tais direitos básicos poderiam ser efetivamente protegidos a menos que tal compreensão substantiva do Estado de Direito seja primeiramente alcançada. Segundo Brian Z. Tamanaha, a mera legalidade formal vai de encontro não apenas à tradição do constitucionalismo moderno, bem como a aspiração histórica pertencente à qual foi objetivada a redução da tirania por parte do poder governamental. Tal redução vai além da idéia de que o governo deve decretar e agir de acordo com leis que imponham regras corretas de direito formal, para assim incluir a compreensão de que existem determinadas coisas que o governo ou o soberano não podem fazer. A legalidade formal descarta esta orientação. De acordo com a legalidade formal, o governo poderá atuar como quiser, conquanto que seja capaz de agir em conformidade com regras formais (normas gerais, claras, precisas e públicas). Com isto em mente é correto concluir que a idéia de legalidade formal tem mais a ver com a concepão do ‘Estado legal’ do que com a verdadeira tradição histórica do Estado de Direito.17 5. Elementos Formais do Estado de Direito Em 1959, a cidade de Nova Deli foi sede de um Congresso Internacional de Juristas. Naquela ocasião, os juristas que compareceram a este importante congresso interpretaram o conceito do Estado de Direito de acordo com certos elementos, instituições e procedimentos nem sempre idênticos, embora geralmente similares. Para eles, a experiência constitucional de numerosos países haveriam de apontar para a necessidade de certos elementos, instituições e procedimentos para a realização do Estado de Direito. . O Estado de Direito implica que as leis forneçam uma determinada igualdade de tratamento entre os indivíduos. É afinal uma compreensão comum de que o sistema jurídico baseado no Estado de Direito não gera privilégios incabíveis. Privilégios são incabíveis se contradizem o postulado geral de que as pessoas devem, tanto quanto o possível, ser tratadas como (formalmente) iguais perante a lei. Em um sistema baseado no Estado de Direito, qualquer discriminação legal somente é aceitável se for amparada pela maioria dos indivíduos tanto interna quanto externamente ao grupo discriminado. Assim 14 Political Judges and the Rule of Law, p.262. 15 Idem 16 The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, p.70. 17 On the Rule of Law: History, Politics, Theory, p.96. sendo, a discriminação serviria ao melhor interesse da comunidade como um todo. Como regra geral, contudo, o ideal do Estado de Direito determina que a lei positiva trate a todos da mesma forma, independente de classe, raça, gênero e etc. Obviamente, o Estado de Direito não implica que as leis do Estado sejam sempre as mesmas para todos. “Discriminações positivas” devem ser sempre evitadas, mas podem eventualmente ser conduzidas de modo aceitável com a condição de que isto seja racionalmente compreendida como uma possibilidade de avanço do bem comum. Segundo o professor australiano Suri Ratnapala, o conceito de generalidade implícito no Estado de Direito não requer que todas as leis tenham aplicação universal. Ele não requer que crianças e adultos tenham a mesma capacidade contratual ou o mesmo nível de responsabilidade criminal, por exemplo.. Todavia, o Estado de Direito de fato requer um fundamento racional e não-arbitrário para tratamento diferencial de indivíduos e grupos.18 . Leis devem ser claras, precisas, tornadas públicas de forma adequada e, geralmente, prospectivas. Se as leis forem pouco claras, imprecisas, ou não forem tornadas públicas de maneira adequada, as pessoas não estarão aptas a conduzir os seus assuntos particulares com a devida liberdade e segurança, por não saberem o verdadeiro conteúdo de tais leis. Deste modo, o Estado de Direito também não aceita o poder do Estado de lidar arbitrariamente com o cidadão. Deste modo, não se deve admitir dentro das regras básicas do Estado de Direito a promulgação de leis demasiadamente vagas, que deleguem um excessivo poder discricionário à autoridades públicas, inclusive magistrados. Ademais, um sistema alicerçado no Estado de Direito proíbe legislação ex post facto, a não ser que a retroatividade em questão venha a ser aplicada para o benefício do sujeito atingido pela mesma. . As leis devem ser tão relativamente estáveis quanto o possível. O Estadode Direito não prospera se as leis positivas forem constantemente alteradas ou substancialmente modificadas. A multiplicação de leis resulta no automático descrédito do Estado de Direito, pois que alterações contínuas do ordenamento jurídico tornam muito difícil, quando não impossível, o reconhecimento de quais normas legais são válidas hoje, e quais amanhã assim continuarão a existir. Deste modo, a estabilidade jurídica é fundamental para que os cidadãos conheçam as leis sob as quais eles terão de agir, por que a multiplicação de leis inibe a habilidade de cada um para planejar sua vida pessoal. Por isso, apontou certa vez Sir Edward Coke, é uma servidão e escravidão desprezível quando a lei tem rumo incerto ou é imprecisa.19 . Os indivíduos devem ser protegidos pelo devido processo legal. Embora nunca se tenha chegado a um consenso definitivo entre os juristas sobre o significado da expressão “devido processo legal”, a maioria deles concorda que o termo envolve mecanismos procedimentais associados à proteção de indivíduos contra a arbitrariedade governamental. O fato de “devido processo legal” ser principio tão vago é na realidade a mais forte evidência de que a proteção assegurada é a mais ampla possível. A despeito de discordâncias em torno de variados elementos do devido processo legal, e de quando eles são requeridos, não há polêmica, contudo, no que se refere ao fato de que o devido processo legal, em essência, requer notificações adequadas das acusações ou denúncias feitas contra os indivíduos e uma oportunidade deste ser escutado para a defesa própria, em audiência que seja justa e não uma mera dissimulação. 18 Securing Constitutional Government, p.9. 19 I Institutes, p.212a. A primeira menção feita ao termo “devido processo legal” remete-nos ao ano 1344, quando o Parlamento Inglês compeliu o Rei Eduardo III a aceitar determinados estatutos que limitavam constitucionalmente o seu poder monárquico. O trecho é digno de menção: “Nenhum homem, qualquer que seja seu status ou condição, deverá ser alienado da lei ou vivenda, nem capturado ou aprisionado, nem deserdado ou condenado à morte sem ser trazido a responder em um devido processo legal”. A expressão também está devidamente consagrada na Quinta Emenda da Constituição dos EUA. Ela declara que ninguém “deverá ser privado da vida, liberdade ou propriedade sem responder a um devido processo legal”. Finalmente, disposição similar é encontrada na Décima Quarta Emenda desta mesma constituição, a qual se proíbe qualquer Estado-membro da Federação Norte-Americana de “privar qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem um devido processo legal, nem negar a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição uma igualitária proteção das leis”. . As Cortes devem ser acessíveis a qualquer um. Em um sistema baseado no Estado de Direito, todos devem ter o direito básico de submeter as suas reclamações legais perante um judiciário independente e imparcial. Isto envolve a proibição explícita da adoção de medidas tais como a prisão sem julgamento, o confisco de propriedade sem indenização, e a perseguição de adversários políticos. Obviamente, o acesso ao judiciário independente deve ser proporcionado sem longos atrasos judiciais, corrupção ou mesmo custos legais excessivos. A convicção de que a independência judicial é uma medida institucional necessária ao combate contra o poder exercido de modo arbitrário é central para o conceito de Estado de Direito. Se o poder é concentrado nas mãos de um indivíduo ou entidade política, o risco de arbitrariedade naturalmente se elevará. Um judiciário independente, em contrapartida, pode compelir um governo recalcitante a devidamente respeitar determinados limites de uma ordem constitucional baseada em princípios democráticos e de proteção dos direitos fundamentais. Embora a função julgadora dos magistrados venha sendo exercida desde a formação das primeiras coletividades humanas, este poder de julgar tem sido, na maior parte das vezes, submetido à interferência governamental. A sujeição de juizes aos governantes poderá muito facilmente minar as expectativas de uma administração imparcial da justiça. Somente no século dezoito, no Reino Unido, que juizes começariam a adquirir algumas poucas, muito embora extremamente importantes, garantias de independência em relação ao governante. Desta forma, em 1701, o Ato de Estabelecimento conferiu aos juizes ingleses o direito de permanecerem em seus cargos públicos quam diu se bene gesserint (enquanto agindo com diligência). Desde então, a remoção do cargo de juiz através do instrumento de impeachment requer o devido aval de ambas as Casas do Parlamento de Westminster. A compreensão do governo como um “mal necessário” justificou o estabelecimento de uma divisão de poderes entre os ramos legislativo, executivo e judiciário. O propósito desta divisão é exatamente a garantia de direitos e liberdades fundamentais do indivíduo. Segundo Brian. Z. Tamanaha, a liberdade individual é de fato aprimorada quando os poderes do governo são divididos em compartimentos separados – tipicamente o legislativo, o executivo e o judiciário (versão horizontal), e algumas vezes o municipal, o estadual ou regional, e o nacional (divisão vertical). Esta divisão de poderes promove a liberdade por prevenir a acumulação do poder total em uma única instituição (qualquer que seja), instalando uma forma de interdependência competitiva dentro do governo.20 A necessidade de se dividir o poder político estatal se mantêm como um elemento central em todo regime baseado no ideal do Estado de Direito, uma vez que, nas palavras de M.J.C. Vile, o exercício controlado deste poder é considerado “um aspecto crucial de um sistema de governo que aspire a combinar eficiência e o máximo exercício possível da liberdade pessoal”.21 Sem dúvida, a história veio a demonstrar que a instauração de eficientes mecanismos constitucionais de separação de poderes constitui elemento mais vantajoso à proteção dos direitos humanos do que uma mera declaração de direitos abstratos. De acordo com Sir Harry Gibbs, ex-presidente da Suprema Corte da Austrália, o modo mais efetivo para conter o poder político é dividi-lo. Uma Constituição Federal que produza uma divisão do poder de forma efetiva é, indubitavelmente, uma proteção muito mais vantajosa às liberdades políticas essenciais do que uma mera declaração abstrata de direitos, em que aqueles que têm poder de interpretá-la dizem o que ela realmente significa.22 De fato, um país como a Austrália, que muitos consideram extremamente avançado na proteção de direitos fundamentais, sequer possui uma declaração de direitos, muito embora alguns dos mais brutais violadores de direitos fundamentais, como Cuba, China, Ruanda e o Sudão, possuem lustrosas declarações de direitos fundamentais. Até mesmo a antiga União Soviética sob o domínio tirânico de Joseph Stalin possuía uma interessante declaração de direitos humanos. Conforme observa Gibbs, qualquer um que tenha visto o filme Os Gritos do Silêncio saberá que a República do Khmer (Camboja) tinha adotado uma declaração de direitos que não ajudou muito os habitantes daquele infeliz país. Estamos todos familiarizados com os abusos que ocorreram em Uganda, um país que tinha uma bela declaração de direitos nos moldes europeus, e juizes, que tentavam corajosamente fazê-la valer, mas que foram incapazes de resistir às forças do caos e da anarquia.23 6. Fundamentos Substantivos do Estado de Direito Como afirmamos anteriormente, o Estado de Direito não deve ser confundido com o mero Estado Legal. Se o Estado de Direito visa a impedir o abuso de poder, este último pode transformar a legislaçãoem mero instrumento de ambição pessoal ou coletiva, ao invés de ser usada como freio para reprimi-la.24 Nesse caso, a lei, sob a restrita ótica do Estado Legal, não mais serviria para garantir a liberdade ou a propriedade, mas apenas para reproduzir a fonte arbitrária do poder governamental. O Estado de Direito representa o impedimento ao governante de exercer o seu poder de maneira contrária ao “espírito da lei”, que exigiria a proteção judicial dos direitos fundamentais. Cônscio deste fato, Ralf Dahrendorf avalia a 20 Tamanaha, op. cit., p.35. 21 Vile, M.J.C., Constitutionalism and the Separation of Powers. p.261. 22 Gibbs, Harry, Courage in Constitutional Interpretation and its Consequences: One Example, p.325. 23 Gibbs, Harry, A Constitutional Bill of Rights?, p.40. 24 Conforme observou Fréderic Bastiat, legislador e economista francês do século XIX (Cf. A Lei, p. 10). grande importância do Poder Judiciário, para que o Estado de Direito seja mais do que o império de leis de todos os tipos. Segundo o pensador político, Estado de Direito não significa apenas possuir textos legais aos quais se referir, mas a substância efetiva desses textos. Em última análise, isto só pode ser garantido por um judiciário independente, considerado incorruptível e justo, e que inclui aqueles que são os guardiões da própria Constituição e seus princípios.25 Michel Miaille, aguçando ainda mais a questão, ao observar o sentido finalístico do Estado de Direito constata uma maior importância da palavra Direito sobre a palavra Estado. Ele assim enquadraria a expressão em uma dupla garantia de hierarquização jurídica e subordinação governamental às normas legalmente organizadas, assim como às suas sanções específicas. Sob esta perspectiva, a transcendência imperativa do Estado de Direito submete o poder político ao respeito às regras jurídicas não apenas compreendidas sob um aspecto meramente técnico, mas sobretudo moral.26 Se toda lei, conforme atestou Friederich von Hayek, restringe até certo ponto a liberdade individual, alterando os meios que cada um pode empregar na busca dos seus objetivos, sob o Estado de Direito impede-se que o governo anule os esforços individuais mediante ação “ad hoc”. Desde que aja em conformidade com as leis, que são as regras minimamente necessárias para a convivência harmônica dos membros da sociedade, o cidadão é livre para perseguir suas metas e desejos pessoais, tendo a certeza de que os poderes do governo não serão empregados no propósito deliberado de fazer malograr os seus esforços.27 Vê-se então que a liberdade surge, de início e essencialmente, como uma ausência de restrições à conduta pessoal. Afinal, é impossível forçar os homens a serem livres, conforme desejou Rousseau. Mesmo porque, em última análise, a liberdade de cada ser humano simplesmente representa o reconhecimento final do seu inegável direito à procura de uma experiência peculiar de vida. Nesse ponto, exporia Harold Lasky, sendo a experiência de cada homem, em última análise, única, somente ele pode apreciar, por si mesmo, a significação desta experiência. Jamais pode ele ser livre, se não estiver em condições de agir de acordo com o sentimento íntimo e pessoal que esta interpretação lhe inspira; para ele, opressão é a impossibilidade de realizar esta experiência, é a recusa, por parte da sociedade organizada, de lhe permitir que faça aquilo que ele considera como o ensinamento de sua vida.28 7. O Pós-Positivismo e Estado de Direito Compreende-se por pós-positivismo um movimento contemporâneo de crítica ao juspositivismo e o retorno à teoria racionalista kantiana, através do qual critica-se a pretensa objetividade científica do positivismo jurídico e sua ênfase na realidade observável e supostamente apartada de sua valoração moral.29 São 25 Reflexões sobre a Revolução na Europa, pp. 114-115. 26 Cf. “Le Retour de L’État de Droit”, in L’État de Droit – Travaux de la Mission sur la Modernasation de l’État, p. 242. 27 O Caminho da Servidão, p. 86. 28 A Liberdade, p. 121. 29 Observa-se, por outro lado, a existência de uma corrente doutrinária pós- modernista, que é anti-kantiana muito embora igualmente crítica do positivismo jurídico. Podemos qualificar o pensamento pós-positivista como anti-metafísico e profundamente subjetivista. Este movimento, alicerçado na doutrina de pensadores como Heiddeger e Derrida, propõe uma ‘re-fundamentação jurídica’ que alcance a ‘libertação’ do intérprete legal do ‘predomínio imposto pelos limites da razão’. Como exemplo de postulação teórica pós-modernista aplicada ao Direito, reproduzimos abaixo um trecho extraído de interessante livro do professor Cleyson de Moraes Mello, sobre hermenêutica ontológica- observados como famosos expoentes desta nova corrente teórica os jusfilósofos Chaim Perelman, John Rawls, Robert Alexy e Ronald Dworkin. Os horrores da 2ª Guerra Mundial inspiraram o pós-positivismo como movimento de reflexão ética acerca do Direito, mediante a discussão ético- jurídica de princípios e regras de Direito a serem aplicados para a proteção de direitos fundamentais. Daí volta-se o pós-positivismo para a normatividade dos princípios, com o retorno ao ‘mundo do Direito’ da discussão meta-jurídica acerca dos valores éticos e sócio-políticos. O intérprete da lei deve assim transcender a suposta legalidade formal e perfazer a leitura moral do Direito, sem contudo recorrer a quaisquer das categorias metafísicas do jusnaturalismo. Busca-se, portanto, a proteção jurídica de direitos fundamentais exclusivamente e o controle da discricionariedade legislativa e administrativa através de princípios abstratos como o princípio da razoabilidade.30 Outro princípio muito mencionado por pós-positivistas é o da proporcionalidade. Robert Alexy, por exemplo, argumenta que interpretar direitos fundamentais à luz do princípio da proporcionalidade é tratar tais direitos como mandados de otimização, ou seja, como princípios, não simplesmente como regras. Enquanto mandados de otimização, princípios são normas que exigem que algo seja realizado na máxima medida possível, diante das possibilidade fáticas e jurídicas.31 Por outro lado, a valorização excessiva de tal princípio, argumenta Daniel Sarmento, jamais deveria ser realizar ao preço do menoscabo existencialista: “O pensamento jurídico não pode ficar adstrito a um sistema de pretensão absoluta, isto é, à pretensão da lei de bastar à si mesma, de ser completa, fechada, de ter tudo. Isso quer dizer que o direito não pode ser explicado a partir de uma relação sujeito- objeto, em que se instaura a subjetividade do subjeito com a objetividade do objeto... Hoje em dia, o dizer o Direito nos chega por meio de um pensamento jurídico alienante e silente, pautado em um positivismo legalista... “Por isso, ao escutar no silêncio da inautenticidade do direito (reificação jurídica), o pensar originário açula o não saber. Sente-se, então, toda a sede e necessidade de procurar uma (re)fundamentação do pensamento jurídico... O ordenamento jurídico não pode ser visto como um objeto cognoscível, da mesmo forma que o julgador não será como um sujeito cognoscente passivo e desinteressado. “Angustiante por natureza, a busca desenfreada pela segurança jurídica torna-se cada vez mais limitadora da criatividade judicial e sufoca o pensar original. No momento da prestação jurisdicional, o homem, a sociedade, o mundo, os valores, a cultura, a historicidade e temporalidade não podem ser desconsiderados. “Um sistema jurídico axiologicamente neutro, a-temporal, a-históricojá representa um perigo a ser evitado e uma ameaça a ser controlada pelos juristas. Caso contrário, imperar-se-á por toda a parte uma atitude de subserviência ao texto legal, representando, assim, a inautenticidade do Direito, isto é, a reificação do direito, Isso representa uma prestação jurisdicional restrita às atividades lógicas, científicas, cuja visão objetivista dos entes está em distonia com o mais digno de ser pensado, qual seja: o pensar o ser e a verdade da faticidade do ser-aí”. (Hermenêutica e Direito, pp.168 e 172) 30 Luís Roberto Barroso: A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo neste paradigma em construção incluem-se a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana. (Neoconstitucionalismo e a Constitucionalização do Direito. Texto do livro A Constitucionalização do Direito, p.208) 31 A Theory of Constitutional Rights, p.47. em relação às regras. Por definirem com maior precisão tanto o seu campo de incidência como as conseqüências jurídicas de sua aplicação, princípios são extremamente importantes, não só porque salvaguardam a segurança jurídica do cidadão e coíbem o arbítrio do aplicador, como também porque permitem o funcionamento mais ágil e eficiente da ordem jurídica.32 De acordo com Sarmento, um grave problema para o Estado de Direito é que, em nome de uma suposta hermêutica pós-positivista, não são hoje incomuns as decisões judiciais que resolvem controvérsias apelando exclusivamente a princípios abstratos, ignorando solenemente as regras específicas incidentes. De fato, todo juiz tem o ônus argumentativo do juiz de muito claramente demonstrar o porquê de uma determinada regra ditada por legisladores democraticamente eleitos pelo povo não ser aplicada ao caso levado à sua apreciação judicial. Do contrário, abre-se uma perigosa porta ao arbítrio individual e decisionismo de certos juízes, obviamente em prejuízo da segurança jurídica e da democracia constitucional.33 8. Estado de Direito e Cultura de Legalidade Em termos práticos, um governo pode elaborar uma “excelente” declaração de direitos, mas essa por si só jamais assegurará que estes mesmos direitos sejam verdadeiramente respeitados. Na prática, tal declaração poderá valer não mais do que a folha de papel em que esses direitos estão mencionados. Parece- nos, portanto, que a efetiva garantia de direitos não requer apenas a introdução de uma declaração de direitos, mas que a mesma seja devidamente apoiada por um contexto sócio-político de respeito aos direitos básicos da pessoa humana; até porque, conforme observou Anthony P. Butcher, o bem-estar dos indivíduos depende menos da variedade de direitos embutidos dentro da lei estatal e muito mais do devido reconhecimento geral de conceitos básicos de justiça e tolerância.34 A história constitucional inglesa indica que o Estado de Direito (rule of law) depende não tanto de um determinado modelo de controle judicial de constitucionalidade, mas, acima de tudo, do próprio esforço da comunidade no sentido de se fornecer um ambiente sócio-político que seja propício para a supremacia constitucional e protetora de direitos e garantias fundamentais. Segundo a tradição jurídica inglesa, os direitos básicos do cidadão não são derivados de uma lista formal de direitos abstratamente enumerados pelo governo, mas, ao invés disso, eles são historicamente considerados como direitos inalienáveis do cidadão, e, portanto, colocados acima do poder estatal. Antes da entrada na União Européia e conseqüente incorporação da Convenção Européia dos Direitos Humanos ao Direito interno, o Reino Unido possuía o Estado de Direito apesar da completa ausência de uma separação rígida de poderes e controle judicial de consticionalidade. De fato, observa Brian Z. Tamanaha, o Estado de Direito existia naquela nação devido a uma crença difundida e não questionada na inviolabilidade de determinadas limitações legais fundamentais sobre o governo, e não no respeito a qualquer mecanismo formal específico. A resposta ao problema ancestral de como a lei pode limitar o poder arbitrário é de que ela, por si mesma, jamais o limitará: atitudes de respeito à legalidade é que fornecem tais limites. 32 Ubiqüidade Constitucional: Os Dois lados da Moeda. Texto do livro A Constitucionalização do Direito, p.146. 33 ob. cit., p.147. 34 Butcher, Anthony P., On a Proposed Bill of Rights, p.40. Por outro lado, declarações muito abstratas de direitos concedem ao judiciário o poder de imperativamente decidir sobre as mais importantes questões relativas à comunidade. Todavia, a experiência em países como os Estados Unidos revela-nos que a expectativa de moderação do judiciário é muitas vezes uma expectativa meramente ilusória. Ao invés disso, tal experiência revela-nos que o controle judicial sobre atos do legislador pode eventualmente agravar situações de arbitrariedade. Neste sentido, o professor Gabriël A. Moens observa que a possibilidade de atribuição de diferentes significados para os dispositivos de uma declaração abstrata de direitos cria a possibilidade dos juizes atribuírem um novo significado influenciado por seus próprios vieses e filosofias a tal documento, especialmente se os procedentes relevantes são, eles mesmos, mutuamente excludentes. De fato, na maioria das questões relativas aos direitos, as decisões relevantes são contraditórias. Por exemplo, sentenças sobre ações afirmativas, pornografia, “crimes de ódio”, sodomia homossexual, aborto, e a retirada de suporte a tratamento médico intensivo variam consideravelmente. Estas sentenças indicam que os juizes, ao interpretarem direitos abstratos, estão aptos a seleciona-los de uma maneira um tanto quanto arbitrária. Visto que uma declaração abstrata consiste normalmente de dispositivos ambíguos, os juizes podem, deliberada e cinicamente, atribuir-lhes significados que sejam completamente diferentes das intenções dos representantes do povo que aprovaram o projeto de lei.35 De fato, a interpretação judicial de uma declaração muito abstrata de direitos pode eventualmente tornar-se inconsistente com o direito democrático dos cidadãos de participar do processo de tomada de decisões da comunidade política. Segundo Jeremy Waldron, caso venhamos a defender a idéia de uma declaração constitucional de direitos, além de sua revisão por juizes, devemos também pensar que mesmo que o eleitor orquestre o apoio de uma grande quantidade de homens e mulheres com idéias afins e consiga a prevalência de sua idéia no legislativo, esta medida poderá ser eventualmente contestada e derrubada pelo judiciário, porque sua visão de quais direitos nós deveríamos possuir poderá não estar de acordo com o ponto de vista dos juizes.36 Independentemente de qual concepção – formal ou substantiva – do Estado de Direito que nós venhamos a pessoalmente adotar, parece bastante claro que este requer o auxílio de uma determinada culturade legalidade. Entendemos por tal cultura o desenvolvimento de um razoável nível de respeito à legalidade. A mera existência de uma “boa” estrutura constitucional, contudo, não será o suficiente para que se produza o Estado de Direito. Tal cultura de legalidade é fundamental para a sua adequada concretização. Em seu clássico Considerações Sobre o Governo Representativo (1861), John Stuart Mill especula se determinadas sociedades haveriam de ser culturalmente desqualificadas para aceitar todas as implicações morais de um governo de leis. Ele desenvolve o argumento de acordo com a pressuposição de que a realidade do governo representativo e sujeito à lei é invariavelmente determinada por circunstancias sociais. Mill explica que tais circunstâncias são maleáveis e eventualmente poderiam ser modificadas para melhor ou para pior. Mill acreditava que um povo poderia aprender a se comportar de maneira democrática e respeitosa às leis. Contudo, ele aqui insistirá que modelos de comportamento cultural são cruciais para o estabelecimento da democracia e do 35 Moens, Gabriël A., The Wrongs of a Constitutionally Entrenched Bill of Rights, p.236. 36 Waldron, Jeremy, A Rights-Based Critique of Constitutional Rights, pp.50-51. Estado de Direito., porque, conforme observa Mill, o povo para quem a forma de governo é planejada deve estar disposto a aceitá-la; ou ao menos não tão indisposto a ponto de contrapor um obstáculo insuperável ao seu estabelecimento... Um povo rude pode ser inapto a praticar o autocontrole que o governo representativo demanda: suas paixões podem ser demasiadamente violentas, ou seu orgulho pessoal muito aflorado para abrir mão de conflitos privados e deixar para a lei a tarefa de punir os crimes reais ou hipotéticos.37 Neste sentido, o professor australiano Martin Krygier merece ser congratulado por chamar a nossa atenção para correlações intrínsecas entre as condições sociológicas de uma determinada nação e a concretização pela mesma de princípios básicos do Estado de Direito. Assim sendo, ele postula que a concretização do Estado de Direito depende tanto das características de uma sociedade quanto da lei, assim como de suas interações.38 Para ele o Estado de Direito configura-se em um ideal de legalidade que vem a aceitar diferentes formas de configuração institucional, pois, como ele aponta, o objetivo maior de se consolidar um governo de lei de modo algum forneceria uma receita fechada em termos de delineamentos institucionais detalhados. Isso se daria porque a efetiva realização do Estado de Direito, nas palavras de outro eminente professor australiano, Geoffrey de Q. Walker, importa em uma atitude de moderação, conquanto ausência de coerção arbitrária por parte do governante ou outros indivíduos e grupos sociais.39 Este fato, por outro lado, ajudaria a explicar o insucesso de determinados povos em resistir ao exercício arbitrário do poder estatal sobre a vida, a liberdade e a propriedade do cidadão. Para concluir, o Estado de Direito configura-se como princípio dependente de realização tanto cultural (sócio-político) quanto jurídico-institucional. Nas palavras de Noel Reynolds, o Estado de Direito pouco fez em culturas onde ele não consta como a expectativa fundamental que um povo tem em relação a seu governo constitucional... Caso o povo não almeje a realização do Estado de Direito, ele é logo corrompido dentro de um curto espaço de tempo e substituído por um governo arbitrário. O Estado de Direito parece exigir esta capacidade de um povo de saber desfrutar de seus benefícios.40 9. Estado Democrático de Direito A expressão Estado Democrático de Direito foi criada pela Constituição Brasileira de 1988, estando inserida em seu Título I, referente aos Princípios Constitucionais Fundamentais. Desta forma, o seu sentido será detalhadamente analisado em unidade própria referente à temática. Trata-se da fusão de dois conceitos, o do Estado Democrático e o do Estado de Direito. Com o primeiro, nós temos o ideal de governo da maioria, ao passo que pelo segundo nós objetivamos a limitação do poder estatal. Assim sendo, a expressão Estado Democrático de Direito, almeja tanto o governo da maioria quanto a garantia dos direitos fundamentais e a preservação da separação dos poderes. Neste sentido, enfim, os direitos da minoria também hão de ser respeitados pelo Estado Democrático de Direito. 37 Mill, John Stuart, Considerations on Representative Government, p.29. 38 Krygier, Martin, False Dichotomies, True Perplexities, and the Rule of Law, p.11. 39 Walker, Geoffrey de Q., The Rule of Law: Foundations of Constitutional Democracy, p.2. 40 Reynolds, Noel B., Grounding the Rule of Law, p.7. Carlos Ari Sundfeld, buscando desvendar o significado desta nova expressão Estado Democrático de Direito, observa que superada a fase inicial, o Estado de Direito foi paulatinamente incorporando instrumentos democráticos, com a finalidade de permitir a participação do povo no exercício do poder – segundo ele de modo muito coerente, aliás, com o projeto inicial de controlar o Estado.41 No mesmo sentido, acrescenta Sundfeld, não há democracia sem normas jurídicas regulando o processo político. Correlacionando-se os ideais de democracia e limitação do poder estatal, a expressão Estado Democrático de Direito tem as seguintes características básicas: a) soberania popular, manifestada através de representantes políticos; b) sociedade política baseada numa Constituição escrita refletidora do contrato social estabelecido entre todos os membros da coletividade; c) respeito ao princípio da separação dos poderes, como instrumento de limitação do poder governamental; d) reconhecimento dos direitos fundamentais, que devem ser tratados como inalienáveis da pessoa humana; e) preocupação com o respeito aos direitos das minorias; f) igualdade de todos perante à lei, no que implica em completa ausência de privilégios de qualquer espécie; g) responsabilidade do governante, bem como temporalidade e eletividade deste cargo público; h) garantia de pluralidade partidária; i) “império da lei”, no sentido da legalidade que se sobrepõe à própria vontade governamental. Costuma-se alegar que o Estado de Direito, por si só, é o único princípio capaz de garantir e preservar as liberdades inerentes à verdadeira democracia moderna. Afinal, a experiência dos regimes totalitários, comunistas ou fascistas, demonstram a impossibilidade de haver um regime democrático onde não se promova a separação harmônica dos poderes, a limitação jurídica de atos governamentais, e, enfim, quando não existe uma segura proteção dos direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana. Por isso, Manoel Gonçalves Ferreira Filho refuta prontamente este conceito de Estado Democrático de Direito, concebendo-o como um mero “jargão marxista-leninista” que não significa outra coisa que transição para o socialismo. Aqui, o ilustre constitucionalista observa que a expressão foi primeiramente concebida pelo espanhol Elias Diaz, que no seu livro sobre a temática empregou-a num sentido de transição para o socialismo. Além disso, a Constituição Portuguesa de 1976, que criou a expressão Estado de Direito Democrático, postulava, na sua versão original já devidamente alterada, precisamente a transformação daquele país em “sociedade sem classes” (art. 1o), bem como a sua “transição para o socialismo” (art. 2o).42 Por outro lado, Celso Ribeiro Bastos, não tão inflexível, prefere ponderar a validade do acolhimento pela nossa Constituição Federal desta fusão de termos, democracia e direito, numa única expressão. Até porque, segundo ele, o princípio republicano, por si só,não tem demonstrado ser capaz de resguardar a soberania popular, a submissão do legislador à vontade da lei, em resumo, não tem conseguido preservar o princípio democrático nem o do Estado de Direito.43 41 Fundamentos de Direito Público, p. 50. 42 Constituição e Governabilidade – Ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira, p. 19. Em outro trabalho, Manoel G. Ferreira Filho observa que, de acordo com o ensinamento de J.J. Canotilho, deputado na Constituinte Portuguesa pelo Partido Comunista local, o Estado Democrático de Direito é aquele que prende o Poder político à realização do socialismo. Por isso, segundo Ferreira Filho, isto é, sem dúvida, uma concepção que repudia o formalismo do Estado Legal; está ela, no entanto, muito distante da idéia de Direito que inspirou o Estado de Direito clássico e que ainda prevalece nas democracias de derivação liberal (Estado de Direito e Constituição, p. 65). 43 Curso de Direito Constitucional, p. 146. Para J. J. Canotilho e Vital Moreira, na medida em que os direitos fundamentais devem estar necessariamente ligados ao Estado de direito democrático, o Estado de direito democrático pressupõe e garante os direitos fundamentais.44 Informam, ainda, a complexidade deste conceito, e as suas duas componentes – Estado de Direito e Estado democrático – que não podem ser separadas uma da outra. O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é de direito; o Estado democrático é de direito e só sendo-o é que é Estado de direito.45 Toda e qualquer forma de poder, inclusive o da maioria, para que não se torne arbitrário, necessita de estar submetido aos limites específicos e racionalmente expressos pela lei. Neste caso, é de mera sobrevivência a relação da realidade democrática com o Estado de Direito, porque a democracia somente pode ser efetivada através de um conjunto de regras gerais que exijam de todos o respeito às opiniões divergentes e a conseqüente liberdade de participação política. É destino inevitável e fatal, demonstrando-nos a simples verificação da história recente, que o desrespeito ao Estado de Direito não tarda em criar a ditadura das elites arrogantes ou a ditadura da vontade majoritária, quando neste último caso as minorias passam a não ser mais toleradas e o corpo social, homogêneo e intolerante, se lança ferozmente sobre elas, marginalizando-as, oprimindo-as, e, enfim, procurando efetivamente destruí-las. Fundamental à sobrevivência do sistema democrático, o Estado de Direito permite assegurar a defesa do cidadão e a efetiva representação popular nas diversas instâncias governamentais. Garante, enfim, que a sociedade controle os governantes e que os substituam pacificamente, quando isto vier a se tornar oportuno. Tanto a democracia quanto o Estado de Direito não permitem, todavia, é qualquer tentativa arbitrária de “absolutização” do poder, daqueles que utilizam a poderosa máquina estatal em favor de interesses particulares ou ideologicamente radicais. Nestes termos, a doutrina social da Igreja Católica vem, há tempos, procurando reafirmar a dignidade transcendente da pessoa humana e o respeito à liberdade individual, pronunciando de igual modo a absoluta imprescindibilidade do Estado de Direito. Por isso, a encíclica Centesimus Annus, publicada em 1991, manifesta-se literalmente pelo princípio da separação dos poderes e a aplicação de um princípio do Estado de Direito, no qual é soberana a lei, e não a vontade arbitrária dos homens. Ficaria então compreendido, ademais, o fato de que uma autêntica democracia só é possível num Estado de Direito e sobre a base de uma reta concepção da pessoa humana.46 44 Fundamentos da Constituição, p. 99. 45 Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, p. 73. 46 Importa-nos, neste caso, reproduzir algumas palavras do papa João Paulo II, em sua importante encíclica Centesimus Annus: ...numa passagem da ‘Rerum Novarum’, o papa Leão XIII apresenta a organização da sociedade segundo três Poderes – legislativo, executivo e judiciário – o que constituía, naquele tempo, uma novidade no ensinamento da Igreja, Tal ordenamento reflete uma visão realista da natureza do homem a qual exige uma legislação adequada para proteger a liberdade de todos. Para tal fim é preferível que cada poder seja equilibrado por outros poderes e outras esferas de competência que o mantenham no seu justo limite. Este é o princípio do Estado de Direito, no qual é soberana a lei, e não a vontade arbitrária dos homens... A Igreja encara com simpatia o sistema da democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos nas opções políticas e garante aos governados a possibilidade quer de escolher e controlar os próprios governantes, quer de os substituir pacificamente, quando tal se torne oportuno; ela não pode, portanto, Basicamente, o que esta nova expressão parece vir a denotar é a formação de um Estado de Direito instaurado com base nos valores fundantes da comunidade. Ao próprio entender de Miguel Reale, portanto, Estado Democrático de Direito equivaleria, em última análise, ao propósito constitucional de passar-se de um Estado de Direito, meramente formal, a um Estado de Direito e de Justiça Social.47 Neste sentido, em um Estado Democrático de Direito, o ordenamento jurídico está vinculado ao poder democrático de transformação da realidade social, muito embora a força transformadora do direito seja impedida de perfazer intervenções ilegítimas na esfera das liberdades públicas. Afinal, o compromisso da democracia com o Estado de Direito está pautado, para a sua própria sobrevivência, no respeito aos direitos negativos de primeira geração, onde os indivíduos se reconhecem precipuamente como livres e iguais em direitos fundamentais e responsabilidades cívicas. O Estado Democrático de Direito acredita na importância das normas jurídicas para a sólida construção de uma democracia legitimamente institucionalizada. Apoia-se, ademais, na idéia de autonomia individual e direitos sociais, onde os cidadãos exercitam ativamente os seus direitos de participação e comunicação. Por conseguinte, conclui-se então que o legislador constituinte buscou com esta nova expressão, Estado Democrático de Direito, restaurar a força do direito vinculando-o à necessidade de uma efetiva legitimação democrática das normas jurídicas. Fundamentalmente, enfim, a criação desta nova expressão denominada Estado Democrático de Direito se deve ao simples fato de nós termos atravessado duas décadas de um regime militar autoritário, onde tanto o valor Estado de Direito bem como o da democracia foram absolutamente desprezados. Agora, mais do nunca, parece que a força do direito associa-se ao processo de reconstrução democrática da sociedade política. Por isso, observa Gisele Cittadino, após duas décadas de autoritarismo e governos militares, a reconstrução do processo político democrático também significava a reconstrução do Estado de Direito.48 10. Estado Social de Direito Bastante em voga é a concepção do chamado Estado Social de Direito, objetivando um desempenho do governo que não se restrinja apenas aos limites da proteção à liberdade individual e à propriedade privada. Nesse caso, o Estado também passa a estar comprometido com a idéia do apoio solidário ao indivíduo, para que este alcance a maximização do seu livre desenvolvimento pessoal, sendo muitas vezes necessário que se possibilite um mínimo de condições materiais. favorecer a formação de grupos restritos de dirigentes, que usurpam o poder do Estado a favor dos seus interesses particularesou dos objetivos ideológicos. Uma autêntica democracia só é possível num Estado de Direito e sobre a base de um reta concepção da pessoa humana. Aquela exige que se verifiquem as condições necessárias à promoção quer dos indivíduos através da educação e da formação nos verdadeiros ideais, quer da ‘subjetividade’ da sociedade, mediante a criação de estruturas de participação e co- responsabilidade” (Cap. V, 44). 47 O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias, p. 2. 48 Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva – Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea, p. 234. Compromete-se, através do Estado Social de Direito, o Poder Público com esta idéia de apoio subsidiário ao indivíduo em seu desenvolvimento físico e espiritual. Eis, portanto, a razão maior deste reconhecimento, que nada mais é do que o respeito, e até mesmo o auxílio à sua persecução, dos direitos de cada um, mas que, por outro lado, exige uma certa dose de responsabilidade social do proprietário. No plano econômico, o Estado Social de Direito defende a economia de mercado como o instrumento mais eficaz para a promoção do desenvolvimento econômico da sociedade. Entende, contudo, que esta liberdade econômica deve se enquadrar num sólido contexto jurídico, donde possa vicejar um grau satisfatório de eticidade mínima, tendo-se por finalidade básica a atitude responsável do indivíduo diante de seus próprios bens. O conceito de Estado Social de Direito deve significar o alcance de um grau de desenvolvimento social que permita com que todos as pessoas tenham uma capacidade própria de decisão acerca de suas próprias concepções acerca da vida digna. É isto, aliás, o que procura afirmar John Rawls, ao formular este seguinte princípio básico de justiça: Cada pessoa tem igual direito a um esquema plenamente adequado de direitos e liberdades básicas iguais que seja compatível com um esquema semelhante de direitos e liberdades para todos; e neste esquema, as liberdades políticas iguais, e somente estas liberdades, têm que ser garantidas por seu justo valor. As desigualdades sociais e econômicas têm de satisfazer duas condições: primeira, devem se relacionar com postos e posições abertos para todos em condições de plena eqüidade e de igualdade de oportunidades; e segunda, devem redundar no maior benefício dos membros menos privilegiados da sociedade.49 11. Estado de Direito e o Espaço Público Democrático Esquecer que o Estado de Direito e a democracia não são conceitos antitéticos ou dissociáveis significa o mesmo que mascarar com o crivo da jurisdicidade casos extremos de perversão declarada do direito pelo Estado.50 Através do vínculo desses dois importantes valores políticos, o do Estado de Direito com o da democracia, nós verificamos o fato de ambos estarem enraizados em um ideal mais fundamental: o de que qualquer governo aceitável deve tratar as pessoas como iguais. Afinal, atesta-nos Ronald Dworkin, o Estado de Direito enriquece a democracia ao acrescentar um fórum independente, um fórum do princípio, e isso é importante, não apenas porque a justiça pode ser feita ali, mas porque o fórum confirma que a justiça, no fim, é uma questão de direito individual, não, isoladamente, uma questão de bem público.51 Assim sendo, a correlação entre democracia e Estado de Direito corresponde à fundamentação teórica quanto às regras e o processo de elaboração do ordenamento jurídico positivo, sobre “quem” e “como” se deve decidir num governo efetivamente democrático. Por isso, e perfazendo-se as condições substanciais de validade do sistema democrático, Sérgio Cadermatori afirma que, com o Estado de Direito, nenhuma maioria pode decidir a supressão (ou não decidir a proteção) de uma minoria ou tão sequer de um só cidadão. O Estado de Direito, entendido como sistema de limites substanciais impostos legalmente aos poderes públicos, visando à garantia dos direitos fundamentais, contrapõe-se ao estado absoluto, seja ele autocrático ou democrático. Nem sequer por 49 Idem, pp. 146-147. 50 Queiroz, Cristina, Os Atos Políticos no Estado de Direito – O Problema do Controle Jurídico do Poder, p. 57. 51 Uma Questão de Princípio, p. 39. unanimidade pode um povo decidir – ou consentir que se decida – que um homem morra ou seja privado de sua liberdade, que pense ou escreva, que se associe ou não a outros.52 Em sociedades democráticas, as liberdades públicas são consideradas fundamentais ao entendimento de uma vida adequada. Por isso, a democracia e o Estado de Direito se fundem no instante em que a lei confere a devida segurança ao indivíduo e sua propriedade. Mas, para além disso, observaria Dennis Lloyd, o indivíduo deve ter liberdade de expressar suas opiniões sem constrangimentos e associar-se a seus concidadãos; deve ter liberdade para ir e vir como lhe agrade e procurar emprego do tipo que quiser; deve ter o direito a usufruir dos benefícios do que passou a ser conhecido como o Império da Lei; e deve estar livre das inseguranças básicas decorrentes de privações e infortúnios.53 Ao que nos parece, ademais, a hodierna questão do espaço público, exige a presença do Estado de Direito, porque a participação autônoma dos membros da sociedade civil é dependente de um sistema político ao mesmo tempo democrático e preservador de direitos fundamentais. E, para tal fim, somente em um poder estatal definido por sólidas regras jurídicas será permitida a realização do anseio de plena participação política do cidadão comum. A postulação da presença de regras jurídicas mínimas, que são operacionalizáveis pelo Estado de Direito, tem por objetivo uma maior eficácia do controle social dos atos estatais, bem como a própria construção procedimental das regras de participação política mais direta de todos os indivíduos e grupos sociais. Por controle social, segundo as lições de Antônio C. Wolkmer, nós entenderíamos esta concreta participação dos cidadãos em poderes políticos autônomos em relação ao Estado, de forma a se impedir o vicejar de comportamentos autoritários ou meramente ilícitos dos governantes, e a ficar restabelecida a conformação destes últimos às leis gerais representantes dos legítimos interesses da maioria.54 A liberação das forças sociais proporcionadas pelo controle dos atos governamentais redunda no esforço teórico de constructo procedimental da soberania popular, de modo a serem repensadas as próprias fundamentações da teoria democrática. Neste ponto, Jürgen Habermas é quem postula a constituição de uma nova arena de discussão deliberativa, entre o Estado e a sociedade, onde a opinião pública se organize como livre portadora de opiniões racionais e diversificadas.55 E, uma vez compreendido o enorme esforço da empreitada teórica, nós acabamos por perceber que o Estado de Direito se constitui em um princípio basilar na defesa irrestrita dos direitos humanos e sua indivisibilidade, aqui considerados como universalmente reconhecidos no intercâmbio civil dos povos entre si. 52 Estado de Direito e Legitimidade, p. 159. 53 A Idéia de Lei, p. XI. 54 Neste sentido, Antônio Carlos Wolkmer observa que a implementação e o alargamento da sociedade democrática descentralizadora só se completa com a efetiva participação e controle por parte dos movimentos e grupos comunitários (Pluralismo Jurídico – Fundamentos de uma Nova Cultura no Direito, p. 226). 55 Habermas, podemos sustentar, defende o Estado de Direito, considerando-o como parte valiosa do projeto racionalista operado a partir do Iluminismo. Segundo ele, o Estado de Direito deve ser preservado e desenvolvido, por sê-lo ainda significativo para a nossa época, desde que entendido democraticamente, paraa formação de um ambiente livre e igualitário propício ao chamado agir comunicativo; isto é, o uso da linguagem livre de distorção e de censura, como fundamento de uma nova racionalidade comunicativa de operacionalidade democrática. Entendemos, portanto, que a categoria de espaço público destaca-se como ponto importante ao questionamento dos fundamentos democráticos do fenômeno jurídico. Contudo, José Ribas Vieira acrescenta que, no campo do Direito, tal quadro está materializado através do conceito de constituição aberta e das formas de interpretação dos direitos fundamentais.56 Neste caso, é que emerge a grande importância da consolidação jurídica do Estado de Direito. No tocante à “constituição aberta”, trata-se da visão de seu entendimento de procedimentos de discussão vinculados à sociedade civil. Dentro da própria dimensão do Estado de Direito, a teoria habermasiana identifica o papel emancipatório do espaço público, proporcionando esta abertura para uma maior intensificação da vida sócio-política, mediante a institucionalização de uma formação radical democrática da vontade, através do respeito às normas do discurso racional.57 Por outro lado, conforme vem a atestar Antonio Maia, dentro da ótica habermasiana, a emergência do Estado de bem- estar social, em fins do século XIX, foi quem acelerou o processo de degeneração do espaço público. Em síntese, a intervenção paternalista do Estado desmobilizou os cidadãos, que passaram a se relacionar em face do aparelho estatal mais como clientes, na busca da atenção de suas necessidades materiais mínimas, do que como cidadãos – no sentido de ativos partícipes na formação da vontade coletiva.58 Ademais, a busca do espaço público se fundamenta na teoria do agir comunicativo, razão pela qual Habermas adota uma base de fundamentação teórica alicerçada em autênticos pilares de eticidade kantiana, almejando a construção teórica do seu paradigma racionalista de modernidade. Tudo para que, conforme arguta observação de Ricardo Lobo Torres, este teórico da Escola de Frankfurt passe a explorar o conceito de “mundo da vida” (“Lebenswelt”), onde se dá a comunicação intersubjetiva sob as regras éticas do discurso, muito embora o Lebenswelt defronte-se com determinados subsistemas reguladores da economia e do Estado.59 De todo modo, o reconhecimento da importância da tomada de decisões pela sociedade civil acaba por limitar o escopo da autoridade estatal, ressaltando as inúmeras vantagens de se proporcionar uma miríade de fóruns para a discussão pública. Segundo Richard Bellamy, o processo de incremento da participação popular na política somente poderia advir através da descentralização das decisões políticas, bem como da participação e controle populares. Daí a necessidade de novas fiscalizações e controles efetivamente democráticos e processualmente mais realistas, para que a participação política possa educar os cidadãos em uma percepção da dependência de suas relações sociais e de sua autonomia grupal e individual às regras e às disposições coletivas, além de desencorajar o oportunismo de alguns e as formas destrutivas do interesse próprio.60 Entre nós, desafortunadamente, a associação do Estado de Direito com a ampliação do espaço público democrático é ainda um ideal a ser alcançado. Porque, conforme atesta Antônio Carlos Wolkmer, mais do que nunca, em 56 “A Perspectiva do Espaço Público na Compreensão Democrática do Direito”, in Direito, Estado e Sociedade, revista do Departamento de Direito da PUC-Rio no 7. 57 Antônio C. Maia “Espaço Público e Direitos Humanos: Considerações Acerca da Perspectiva Habermasiana”, in Direito, Estado e Sociedade, revista do Departamento de Direito da PUC-Rio no 11, p. 18. 58 Idem, p. 20. 59 “O Espaço Público e os Intérpretes da Constituição”, in Direito, Estado e Sociedade, revista do Departamento de Direito da PUC-Rio, no 7, p. 119. 60 Liberalismo e Sociedade Moderna, pp. 453-455. estruturas periféricas como a brasileira, marcadas por uma cultura autoritária, centralizadora e excludente, impõe-se identificar, como indissociável no processo de reordenação do espaço comunitário, a construção de uma verdadeira cidadania aliada ao desenvolvimento de uma democracia participativa de base que tenha como meta a descentralização administrativa, o controle comunitário do poder e dos recursos, o exercício dos mecanismos de co-gestão e autogestão local/setorial/municipal e o incremento das práticas de conselhos ou juntas consultivas, deliberativas e executivas.61 Em linhas gerais, os fundamentos do Estado de Direito, quando atrelados à perspectiva do espaço público democrático, significam a possibilidade de um alto grau de desenvolvimento social, permitindo-se que todos os indivíduos tenham capacidade de decisão política comunitária, assim como de igual modo acerca de suas próprias concepções de vida digna, sem a ocorrência abusiva e castradora de interferências governamentais. Trata-se, enfim, do esforço de legitimação da resistência à opressão governamental. Interligados, Estado de Direito e espaço público democrático fazem com que o poder político fique concebido de acordo com o prisma de uma soberania popular efetivamente autônoma, em que mesmo poderia se opor ao Estado quando isto se torne necessário. 12. Estado de Direito e Marxismo Por confrontar a idéia de liberdade e direitos individuais, a teoria marxista encontra-se em posição antagônica ao ideal do Estado de Direito.62 Na realidade, o uso sistemático da violência por regimes comunistas representa uma projeção natural da concepção marxista de Estado e de Direito, e, mais especificamente, da repulsa de Karl Marx em reconhecer a importânica da proteção constitucional de direitos individuais, por ele mesmo observados como mera ‘invenção burguesa’. Como qualquer cientista político conhecedor do pensamento de Marx seria capaz de confirmar, o que ele advogou não foi o Estado Democrático de Direito, mas a ‘ditadura do proletariado’. Marx acreditava que o advento de uma sociedade sem classes demandaria um primeiro período no qual o Estado não seja nada além de uma ditadura do proletariado.63 Segundo ele, esta seria a única maneira de se alcançar o ideal comunista. Isso ocorre, porque, como Lênin observou em palestra na Universidade de Moscou, em 1919, Marx considerou o Direito como simples instrumento de controle de classes.64 O resultado de tal premissa, sumarizada no famoso slogan do antigo regime soviético ‘Todo poder para os Soviets’, está igualmente revelada na seguinte passagem de um livro publicado em 1919 por comunistas ingleses: O estado comunista é uma organização da classe dominante (a classe dominante aqui é a proletária) para o emprego de violência contra a 61 Ob. cit., p. 226. 62 De fato, um sério problema à realização do Estado de Direito no Brasil é que muitos intelectuais e políticos neste país ainda são altamente marxistas. Por exemplo, o ministro e professor Marco Aurélio Garcia é um auto-intitulado ‘radical de esquerda’ que chega ao ponto de escrever artigos sobre o seu sonho de reconstituir o comunismo na América Latina: “A agenda é clara... Se esse novo horizonte buscado ainda se chama comunismo, está na hora de sua refundação” – Manifesto e a Refundação do Comunismo, São Paulo, Revista Teoria e Debate, n.36, Outubro de 1997 63 Karl Marx, Critique of the Gotha Programme. Apud: Maureen Cain e Alan Hunt, Marx and Egnels on Law, p.163. 64 Cf.: Hans Kelsen, The Communist Theory of Law. London: Stevens & Sons, 1955. burguesia, como meio de eliminação desta classe. Todo aquele teme o emprego da violência bruta não é um verdadeiro comunista.65Em todo e qualquer regime comunista a aplicação prática da teoria marxista não tolera a divisão de poderes governamentais. Na medida em que Marx considera o Direito como mero instrumento de dominação, a função básica de juízes comunistas é basicamente o de impor interesses supostamente ‘classistas’, perseguindo implacavelmente os inimigos do Estado proletário. Neste caso, a independência e a imparcialidade do judiciário são rejeitadas como ‘mitos burgueses’. Em seu clássico estudo sobre a Revolução Russa de 1917, Richard Pipes faz a seguinte descrição do judiciário daquele país durante os primeiros anos de regime soviético: O primeiro passo na sua introdução do terror em massa for o banimento da lei e sua substituição pela consciência revolucionária. Nada semelhante jamais existira. As autoridades soviéticas dispunham de qualquer indivíduo que estivesse no caminho, na prática, implementando a definição dada por Lênin à ditadura do proletariado, como governo não restringido pela lei. O decreto de 22 de novembro de 1917 dissolveu quase todas as cortes e acabou com as profissões associadas ao sistema judiciário... Em março de 1918, o regime substitui os tribunais locais por Cortes do Povo, responsáveis pelo julgamento de todos os tipos de crime, exceto aqueles de natureza política. Uma lei de novembro de 1918 proibia os juízes dessas cortes de se referirem a normas anteriores a outubro de 1917, liberando-os da observância de procedimentos formais. Seu único critério deveria ser o senso da justiça socialista. Crimes políticos eram tratados pelos Tribunais Revolucionários, instituídos em novembro de 1917... Essa categoria englobava uma ampla variedade de atividades econômicas consideradas prejudiciais aos interesses do Estado. Os juízes que os presidiam, com o poder de aplicar a pena de morte, precisavam apenas saber ler e escrever. Desde os primeiros dias do novo regime, milhões de russos vieram-se diante de uma situação historicamente sem precedente, já que mesmo nas sociedades primitivas os costumes eram reconhecidos e respeitados, desempenhando função equivalente à das leis. A Rússia soviética, de 1917 a 1922, teve cortes distintas, para crimes comuns e crimes contra o Estado, sem leis que as guiassem; os cidadãos eram julgados por juízes em qualificação profissional e por delitos que não estavam definidos em nenhum código. Os princípios orientadores da jurisprudência ocidental (e da Rússia, desde 1864) – não há crime sem lei e não há pena sem lei – nullum crimen sine lege e nulla poena sine lege – foram abolidos. O judiciário, encarregado da distribuição da justiça, transformou-se em uma agência do terror. Não era outra a intenção de Lênin; em 1922, quando a Rússia soviética finalmente ganhou o seu código penal, o Comissariado de Justiça foi instruído de que a tarefa do judiciário comunista consistia na justificativba do terror (...). A corte não é para eliminar o terror, mas para substanciá-lo e legitimá-l0 (...).66 Conforme observou Hans Kelsen em seu seminal Teoria Comunista do Direito (1955), a visão anti-normativa do fenômeno social é um elemento fundamental da teoria marxista em geral, e da teoria marxista do Direito em particular.67 Kelsen assim interpretou a ‘messiânica’ promessa marxista de constituição de sociedade sem leis e sem classes como uma perigosa ‘profecia utópica’. De fato, todos os mais destacados juristas da antiga União Soviética consideravam a mera existência de legalidade em seu sentido formal como fato teoricamente inconveniente.68 Como autênticos marxistas, tais juristas acreditavam no advento 65 N. Boukharin, Programme of the Communists. Apud: Kelsen, ob. cit. 66 Richard Pipes, História Concisa da Revolução Russa, p.217-218. 67 ob cit., p.181. 68 Igor Grazin, The Role of Ideas in Political Change, in G. Moens e S. Ratnapala (orgs.), Jurisprudence of Liberty, p.249. de uma futura sociedade sem classes na qual o Estado de Direito e todas as leis do Estado desapareceriam. 13. Estado de Direito e Democracia no Brasil No Brasil, conforme se dispôs a atestar José Murilo de Carvalho, nós verificamos a existência dos direitos políticos sem o prévio desenvolvimento de direitos civis, que é redundante de um exercício falho da cidadania política, assim como da falta de convicção cívica da liberdade individual e dos limites do poder do Estado.69 É bem verdade que a Constituição de 1988 possui o valoroso mérito de haver ampliado o rol dos direitos fundamentais, assim como os entes habilitados à ação direta de inconstitucionalidade. Em boa medida, a atual ampliação proporcionou uma igual abertura ao espaço público democrático, em nítida atenção dos representantes populares, agentes do Poder Constituinte nacional, ao método concretista da Constituição aberta. Refiro-me, aqui, à visão constitucional de Peter Häberle, jurista alemão que, nitidamente influenciado pela filosofia popperiana,70 objetiva a ampliação da interpretação constitucional pela sociedade pluralista, no destacar destes três pontos básicos: o alargamento do círculo de intérpretes da Constituição; o conceito de interpretação como um processo aberto e público; e, enfim, a referência desse conceito à Constituição mesma, conquanto realidade concreta e dinâmica.71 Na prática, conforme observa Fernando Machado da Silva Lima a respeito da realidade brasileira, a jurisdição constitucional não desempenha corretamente a sua missão, porque o nosso regime polítoc não é, na verdade, representativo, mas sim cooptativo e conseqüentemente a atuação do Governo é extraordinariamente determinada pelo clientelismo e pelo corporativismo, que ensejam a corrupção, a inefetividade da Constituição, o exercício discricionário do poder, a injustiça e a impunidade.72 Em outras palavras, a realidade do Estado de Direito ainda não foi devidamente concretizada no Brasil. 14. Conclusão Nosso principal objetivo com este artigo foi o de fornecer uma definição dos elementos práticos e teóricos de formação do Estado de Direito. Neste sentido, fornecemos também uma distinção conceitual entre as visões formais e substantivas do Estado de Direito. Sugerimos, finalmente, que o objetivo maior deste importante ideal de legalidade é a proteção dos direitos individuais. 69 “Pontos e Bordados”, in Escritos de História e Política, p. 281. 70 Fazemos aqui menção ao filósofo austríaco, naturalizado britânico, sir Karl Raimund Popper, autor de A Sociedade Aberta e seus Inimigos. Nesta prestigiosa obra de filosofia política, Popper compara a sociedade mágica, tribal ou coletivista, equivalente a um organismo denominado sociedade fechada, com a sociedade aberta, que põe em liberdade as faculdades críticas do ser humano. 71 Para Peter Härbele, a Constituição é a sociedade constituída ou a ordenação fundamental da sociedade e do Estado. Ela também tem, nesse sentido, a dupla função diretiva e reflexiva da realidade social. Muito por isso, a sua interpretação deve ser uma operação livre e mantida conservada, conquanto deva ser um processo aberto. Sua compreensão, nesta perspectiva, há de ser a mais dilatada possível, visto que esta ampliação serve de ponte de ligação entre o cidadão intérprete e o juiz, hermeneuta profissional. (cf. Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição). 72 Jurisdição Constitucional e Controle do Poder, p.264. Embora tenhamos aqui revelado elementos e instituições do Estado de Direito, este artigo postula que o Estado de Direito não oferece uma fórmula acabada em termos de delineamento jurídico-institucional. Assim sendo, devemos concluir com
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