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Autoras: Profa. Ivy Judensnaider Profa. Sonia de Deus Rodrigues Bercito Colaboradores: Prof. Vinícius Albuquerque Prof. Francisco Alves da Silva Teoria da História Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 Professoras conteudistas: Ivy Judensnaider/Sonia de Deus Rodrigues Bercito Ivy Judensnaider Economista pela Fundação Armando Álvares Penteado e mestra pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no Programa de Estudos Pós‑Graduados em História da Ciência e da Tecnologia. Atualmente, é professora da Universidade Paulista/UNIP, onde coordena o curso de Ciências Econômicas no campus Marquês (SP). Também atua no setor de publicações, sendo autora de inúmeros textos de divulgação científica publicados na web. Nos últimos dez anos tem trabalhado na elaboração de textos e de livros para o ensino a distância. Sonia de Deus Rodrigues Bercito Mestra em História Social e doutora em História Econômica pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Trabalhou como historiadora do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo – CONDEPHAAT nas décadas de 1980 e 1990. Foi professora do ensino básico e do Superior em várias instituições de ensino. Atualmente, é coordenadora pedagógica do Ensino Fundamental do Colégio Objetivo, atuando na coordenação da produção de material didático deste segmento. É professora do curso de especialização da PUC‑Cogeae História, sociedade e cultura na área de Historiografia. Na área de pesquisa desenvolveu trabalhos em História do Brasil, especialmente referentes às décadas de 1930 e 1940 e, recentemente, tem se dedicado à história do corpo. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) J92t Judensnaider, Ivy. Teoria da história. / Ivy Judensnaider, Sonia de Deus Rodrigues Bercito. – São Paulo: Editora Sol, 2015. 96 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXI, n. 2‑079/15, ISSN 1517‑9230. 1. Positivismo. 2. Cientificismo. 3. Historicismo. I. Bercito, Sonia de Deus Rodrigues . II. Título. CDU 93 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Carla Moro Virgínia Bilatto Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 Sumário Teoria da História APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 HISTÓRIA E MEMÓRIA ......................................................................................................................................9 1.1 Memória e História: dois conceitos diferentes......................................................................... 10 1.2 A memória coletiva numa perspectiva histórica ..................................................................... 12 1.3 Os “lugares de memória” ................................................................................................................... 15 1.4 A memória manipulada ..................................................................................................................... 16 2 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS ...................................................................................................................... 16 2.1 O que é História? .................................................................................................................................. 17 2.2 Para que serve a História?................................................................................................................. 20 2.3 O que é Teoria da História? .............................................................................................................. 22 2.4 Como se constrói o conhecimento histórico? .......................................................................... 23 Unidade II 3 A ESCOLA METÓDICA E O CONTEXTO DOS ANOS OITOCENTOS .................................................... 30 4 A ESCOLA METÓDICA E OS DISCURSOS SOBRE O MÉTODO: O POSITIVISMO, O CIENTIFICISMO E O HISTORICISMO .............................................................................................................. 38 Unidade III 5 O MARXISMO .................................................................................................................................................... 48 6 O MARXISMO E A PROPOSTA DE UMA TEORIA DA HISTÓRIA ....................................................... 52 6.1 O marxismo inglês................................................................................................................................ 56 Unidade IV 7 A ESCOLA DOS ANNALES E SEU IMPACTO NAS FORMAS DE CONCEBER A HISTÓRIA .................67 7.1 A Escola dos Annales .......................................................................................................................... 67 7.2 A fase de Braudel.................................................................................................................................. 69 7.3 A Nova História da terceira geração ............................................................................................. 71 7.4 Contribuições marcantes .................................................................................................................. 73 8 DISCUSSÕES RECENTES ................................................................................................................................ 75 8.1 A crise dos paradigmas científicos e o conhecimento histórico ....................................... 76 8.2 Uma História em migalhas ou plural? ......................................................................................... 77 8.3 Ainda sobre a natureza do conhecimento histórico .............................................................. 79 7 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 APRESENTAÇÃO Este livro‑texto tem como objetivo fornecer a fundamentação teórica da produção historiográfica. O estudo da Teoria da História é fundamental para a formação do historiador e para seu exercício profissional no âmbito da pesquisa e também da docência. A estratégia adotadafoi apresentar as características essenciais dos principais paradigmas teóricos disponíveis para os historiadores desde a configuração da História como área de conhecimento específico no século XIX, com as importantes contribuições e alargamento de perspectivas ocorridas no século XX. Dessa forma, estarão contemplados neste trabalho o positivismo, o historicismo e o marxismo como principais paradigmas teóricos. Serão vistos também o impacto da Nova História na produção historiográfica e as questões que têm preocupado mais recentemente os historiadores. A unidade I trata dos conceitos de História e memória, discutindo as relações existentes entre elas. Apresenta os pressupostos básicos da História como área de conhecimento e, em linhas gerais, como se dá a construção do conhecimento histórico. A unidade II apresenta os conceitos fundamentais e as propostas teóricas da história cientificista nos moldes como foi pensada no século XIX. O historicismo e o positivismo são os paradigmas estudados. A unidade III discute os principais pressupostos e conceitos do materialismo histórico, paradigma teórico que trouxe contribuições importantes para o entendimento do processo histórico. O papel social conferido à História e a função social atribuída ao historiador marcaram a visão que se tem sobre esses aspectos na atualidade. A unidade IV encerra o trabalho com as contribuições da Escola dos Annales e da Nova História para a produção historiográfica no século XX e com algumas discussões teóricas em curso no momento atual. INTRODUÇÃO O estudo do passado fascina os homens há séculos. A História é das mais antigas fontes de conhecimento humano. Muitas gerações de historiadores se sucederam procurando desvendar a trajetória da humanidade de seu surgimento até nossos dias. Inúmeras obras foram escritas para registrar as realizações dos homens e suas formas de viver e de pensar através do tempo. Entretanto, a História como área de conhecimento específico e com metodologia própria é mais recente. Esta disciplina, que vinha sendo praticada há séculos, de fins do século XVIII em diante foi assumindo os contornos da sua forma atual. O século XIX é momento marcante desse processo. De fato, é nele que se dá uma verdadeira “refundação” da História, que passa a aspirar ser reconhecida como ciência. O critério fundamental e a principal condição para qualquer tipo de conhecimento ser considerado válido era ser reconhecido como científico. Para assegurar sua participação no rol das ciências houve um esforço por parte dos historiadores na definição de princípios, métodos e procedimentos que, de lá para cá, vêm sendo aperfeiçoados. 8 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 No século XIX, o conhecimento histórico foi bastante celebrado. Houve a criação e a multiplicação dos arquivos históricos e museus, a publicação de livros e revistas sobre o assunto e o surgimento da noção da existência de um patrimônio histórico como herança da humanidade a ser preservada. A História conquistou um status acadêmico, deu‑se o surgimento de uma comunidade de historiadores profissionais e, com tudo isso, criaram‑se condições para História se afirmar como campo disciplinar entre as demais ciências surgidas na época. A discussão teórica empreendida pelos historiadores do século XIX estabeleceu balizas importantíssimas para o trabalho dos seus sucessores desde então. Com esse movimento, abriram‑se condições para a afirmação de uma Teoria da História. As questões nela tratadas foram colocadas em pauta pelos principais paradigmas teóricos construídos: o positivismo, o historicismo e o materialismo histórico. Essas questões foram enriquecidas no século XX com as contribuições oferecidas pela Escola dos Annales especialmente, mas não de forma exclusiva, que promoveram revisões e ampliações conceituais e metodológicas no campo da História. Podemos afirmar, utilizando as palavras de Marc Bloch, expoente da Escola dos Annales, que a História é uma “ciência em construção”. Ao reconhecermos isso, o estudo de suas proposições teóricas assume especial interesse. Contudo, antes de seguirmos adiante, é importante distinguir três áreas de estudo da História que, embora relacionadas, têm identidades específicas que devem ser consideradas. São elas: a Teoria da História, a Metodologia e a Historiografia, que devem ser tratadas de forma articulada, mas pensadas separadamente. Podemos considerar de forma bastante simplificada que na Teoria da História o interesse é o estudo dos modos de ver e pensar a História. A Metodologia diz respeito aos procedimentos e técnicas desenvolvidas pelos historiadores para a produção do conhecimento histórico. Já a Historiografia pode ser compreendida como a análise do conjunto das obras produzidas pelos historiadores e a reflexão sistemática sobre elas. O campo de discussões é vasto e nele os historiadores têm se lançado de forma intensa e muitas vezes apaixonada. Tratar de algumas questões fundamentais relativas à Teoria da História é o nosso principal objetivo. 9 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 TEORIA DA HISTÓRIA Unidade I 1 HISTÓRIA E MEMÓRIA A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens. Jacques le Goff Certamente você já ouviu frases que lamentam a pouca importância dada no país ao nosso passado, como as que se seguem: • O povo brasileiro não tem memória. • Somos um país sem memória. • O povo brasileiro não conhece sua História. • Somos um país sem passado. Frases como essas costumam ser acompanhadas de outras, com forte conteúdo de urgência, nas quais se ressalta a necessidade de reverter a situação apontada, tais como: • Precisamos valorizar a nossa História. • É preciso resgatar o passado. • Devemos recuperar nossa memória. • Precisamos preservar nosso patrimônio histórico. • É preciso defender a memória nacional. Embora nossa tendência seja a de concordar com elas, de início, examinando melhor cada uma, percebemos que é preciso ter cautela. Algumas questões precisam ser feitas: quando se fala de “nossa” História, trata‑se da História de quem? Da mesma forma, em um país com tanta diversidade e com expressiva desigualdade social, quem seria exatamente o “povo” brasileiro? Nessas formulações que remetem a uma visão da existência de apenas “uma História”, capaz de representar o passado de todos 10 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 Unidade I os brasileiros, desvia‑se a percepção das diferenças que existem em nossa sociedade. Apresenta‑se a História da nação como sendo de todos. Com isso, dissolvem‑se as desigualdades sociais, as diferenças de gênero, as particularidades regionais e a diversidade cultural. Afinal, contar a História do Brasil sem considerar tudo isso é esquecer como foram diferentes, em muitos aspectos, as histórias das diferentes regiões do país; de afrodescendentes, indígenas e brancos de origem europeia; de homens, mulheres e homossexuais; de camponeses, operários, industriais e profissionais liberais e tantos outros grupos que viveram e vivem em nosso país. Todavia, em outro nível, também, as frases apresentadas no início desta explicação podem ser discutidas. De fato, nelas, História, memória e passado parecem ter o mesmo significado. Na verdade, embora História e memória tenham como referência o passado, são conceitos diferentes, mas estreitamente interligados. As palavras das historiadoras Zilda Yokoi e Tereza Aline P. Queirozrevelam isso: Passado e memória dão conteúdo, identidade e espessura a todos os humanos. Por mais isolado que se encontre um grupo, uma comunidade ou mesmo um só indivíduo, todos estão imbuídos de um passado, de uma memória e de uma história (YOKOI; QUEIROZ, 1999, p. 7). 1.1 Memória e História: dois conceitos diferentes [...] um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois. Walter Benjamin Tanto História, quanto memória, dizem respeito ao passado. A História refere‑se àquilo que foi vivido, mas é também o estudo do passado. Para isso se vale de registros que são os chamados documentos históricos. A partir deles é que se escreve a História. Nesse sentido, a História se constitui como uma área de conhecimento em que o passado é reconstruído a partir de uma operação intelectual. Já a memória diz respeito à lembrança daquilo que aconteceu; está viva nos indivíduos e nos grupos sociais. Assim como uma pessoa não se recorda de tudo o que viveu, também nem todos os acontecimentos ficam na memória coletiva. Dessa forma, a memória compreende lembranças e esquecimentos. A memória coletiva ou social está viva na consciência do grupo. Quando não tem mais como suporte um grupo, quando não há lembranças vivas compartilhadas, ela acaba e dá lugar à História. Para ficar mais claro, suponha que um determinado grupo social, uma sociedade humana, desapareça. Não há mais a lembrança viva da experiência desse povo, pois não há mais indivíduos que tenham participado daquela sociedade para lembrar como ela era. Só se pode conhecê‑la a partir dos vestígios que deixou e que irão servir para a produção do registro de sua história. 11 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 TEORIA DA HISTÓRIA Saiba mais O sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877‑1945) cunhou o conceito de memória coletiva na década de 1920. Seu livro A memória coletiva (São Paulo: Vértice, 1990), com primeira edição publicada postumamente em 1950, é obra de referência para estudos sobre memória. Como área de conhecimento, a História tem múltiplas funções. À medida que faz o registro dos acontecimentos, garante a lembrança e constrói memórias. Ao possibilitar o conhecimento do passado estabelece meios de se compreender o presente, atribuindo‑lhe significado. Pode‑se dizer que o historiador transforma o passado em História e com isso contribui para a formação de uma memória coletiva, condição básica da construção das identidades sociais. O texto a seguir traz interessantes reflexões sobre o tempo vivido auxiliando a compreensão das relações entre a memória, o passado e a História: Os fatos de 30 anos atrás não são passado na minha vida. Para mim, meu passado não passou e minha história não envelhece. Minha memória pode alcançar os acontecimentos que vivi a qualquer momento, e posso revivê‑los como se ocorressem agora. Mas, se eu os narrar, quem me ouve não pode como eu vivenciá‑los. Por isso, para meus alunos, são contos o que para mim é vida. Mas é assim que corre o rio da vida dos homens, transformando em palavras o que hoje é ação. Se não forem narrados, os acontecimentos e os nossos feitos passam sem deixar rastros. Faladas ou escritas, são as palavras que salvam o já vivido e o conservam entre nós. Salvam os feitos e os acontecimentos da sua total desintegração no esquecimento. A memória do já vivido e a sua narração numa história é o que possibilita a construção da História e das nossas histórias pessoais. Só os feitos e os acontecimentos narrados em histórias são capazes de salvaguardar nossa existência e nossa identidade. Só conservados pela lembrança é que os feitos e os acontecimentos podem entrar no tempo e fazer parte de um passado. Recente ou antigo (CRITELLI, 2008). A questão da memória tem assumido especial relevância em nossos dias. A globalização, as novas tecnologias da informação e a condição efêmera das experiências sociais na sociedade contemporânea 12 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 Unidade I têm produzido efeitos devastadores no sentido da desintegração das identidades coletivas. Como resposta a isso, avulta a função identitária da memória. Garantir a preservação da memória coletiva é condição de afirmação da identidade dos diferentes grupos sociais. O direito à memória é também uma questão de cidadania. Leitura obrigatória Leia na biblioteca virtual sobre o termo História: SILVA, K. V.; SILVA, M. H. Dicionário de conceitos históricos. 3. ed. São Paulo: Ed. Contexto, 2007. p. 182‑185. Disponível em: <http://unip.bv3. digitalpages.com.br/users/publications/9788572442985/pages/183>. 1.2 A memória coletiva numa perspectiva histórica No âmbito da antropologia é possível considerar que a memória étnica atua na reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas. A aquisição da linguagem falada ampliou as possibilidades de reprodução de comportamentos sociais e de armazenamento da memória para além dos gestos e hábitos repetidos. Os registros pictóricos e a escrita tornaram possível que isso se desse em algo exterior aos indivíduos. A memória coletiva pode ser dividida de acordo com a existência, ou não, da escrita, embora não se possa fazê‑lo de forma absoluta. Os povos sem escrita ancoram sua memória basicamente na tradição oral. As sociedades letradas contam com mais suportes para armazenamento de memórias, mas nelas também subsiste a transmissão oral. Podemos identificar as seguintes fases considerando o nível de oralidade e de utilização da escrita como suporte para a memória ao longo do tempo: • oral: sociedades sem escrita; • oral → escrita: pré‑história/antiguidade; • oral/escrita: período medieval; • escrita: século XVI (imprensa); • eletrônica. Numa sociedade em que a oralidade é a principal forma de armazenamento da memória, quase todo o edifício cultural está fundado sobre a lembrança dos indivíduos. Nesse caso, a palavra não é apenas forma de comunicação entre as pessoas, mas exerce a função básica de gestão da memória social. “Saber de cor” é fator de sobrevivência cultural e os mais velhos, os “indivíduos memória”, são figuras de destaque na sociedade. 13 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 TEORIA DA HISTÓRIA Observação Ainda hoje, em alguns países da África Ocidental, há indivíduos‑memória, como os chamados griots, considerados guardiões da tradição oral de seu povo, de suas origens e de sua história. A memória pode ser evocada nos indivíduos de diversas maneiras. A memória afetiva, por exemplo, pode ser acionada pelos sentidos. Ao sentir um aroma ou o sabor de uma comida da infância é possível despertar nossa memória e lembrar acontecimentos a eles associados. Lembramos mais quando nos envolvemos emocionalmente com o fato, ou quando conseguimos estabelecer uma rede associativa – técnicas mnemônicas bastante utilizadas pelas sociedades que ancoram sua memória na tradição oral. Os mitos nas sociedades orais são narrativas carregadas de emoção muitas vezes dramatizadas, agradáveis de serem ouvidas com o uso de rimas, músicas e rituais diversos. Recursos utilizados para perpetuar a lembrança nos indivíduos e preservar a memória social. Observação Os mitos são narrativas próprias de uma dada cultura. Eles exercem a função de explicar a origem do seu povo e de seus costumes, fenômenos naturais ou eventos do seu passado, por meio da ação de personagens imaginários que podem ser homens comuns, deuses ou semideuses. O advento da escrita cria uma novasituação em que os relatos não precisam mais ser reproduzidos ao vivo: podem ser guardados para outras gerações, deslocados no tempo e no espaço. Podem estar fora do seu contexto de produção. O mito começa a ceder lugar para a História. A memória pode, agora, estar inscrita em suportes que armazenam as informações. Listas, ordenações, tabelas e sucessões de palavras começam a surgir como primeiros usos da escrita na Mesopotâmia relacionados à contabilidade e inventários dos templos para cobrança de impostos. Na sequência, o início do registro dos feitos dos reis estabelece uma fronteira tênue entre História e memória. Após o surgimento da escrita, e por muito tempo ainda, as sociedades humanas apoiaram‑se muito na manutenção da memória na oralidade. Ao tratar da questão da memória no período medieval, o historiador francês Jacques Le Goff revela alguns procedimentos usados para garantir a continuidade da memória em uma sociedade ainda não imersa totalmente na escrita: Nas sociedades chamadas feudais, o acesso à escrita era monopólio de alguns homens, os quais pertenciam todos à Igreja [...] Todos os outros homens, grandes e pequenos, viviam muito bem sem o texto escrito. Entre eles, as relações se baseavam na memória. Mas eles usavam outros 14 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 Unidade I meios para consolidá‑la. Primeiro, a cerimônia. Todo ato social de alguma importância devia ser público, realizar‑se diante de uma assembleia numerosa, cujos membros guardavam em depósito a lembrança e cuja confirmação esperava‑se que eles garantissem mais tarde, eventualmente, tanto daquilo que tinham visto como ouvido. Palavras, gestos, enfiados num ritual a fim de se imprimirem mais profundamente na memória do grupo para serem, no futuro, relatados. Ao envelhecer, as testemunhas se sentiam obrigadas a transmitir à sua descendência o que elas conservavam na memória, e essa herança de recordações deslizava assim de uma geração para outra. E para que ela não se deteriorasse demais, recorria‑se a alguns artifícios. Tomava‑se o cuidado, por exemplo, de introduzir na assistência crianças bem jovens e, às vezes, de bater‑lhes violentamente no momento principal da cerimônia, esperando que, ligando‑se a lembrança do espetáculo à lembrança da dor, elas esqueceriam menos rapidamente o que tinha se passado diante delas. Ou então conservava‑se cuidadosamente um certo objeto que, nos ritos de investidura, passara de uma mão a outra, sob o olhar do povo, para significar a transmissão de um direito – como esses ramos, essas facas, essas pedras que se encontram ainda, por vezes, nos arquivos, ligados a um pergaminho, a um documento que um escriba fora chamado para redigir, mas que não parecia oferecer garantia, parecendo o objeto bem melhor que o texto, aos olhos de tanta gente que não compreendia o latim. Gente que, para garantir o arranjo de todas as relações sociais, não confiava nos textos, mas na memória, nessa memória coletiva que era o “costume” – um código muito estrito, imperioso, embora não estivesse em parte alguma registrado (LE GOFF, 1989, p. 167‑168). Dessa época em diante, os suportes para a memória se ampliaram. O surgimento da imprensa no início da época moderna e a intensificação do uso da palavra impressa desde então têm nos tornado cada vez mais uma sociedade que depende de registros escritos para preservação da memória. Em nossos dias, a memória eletrônica tem ampliado de forma extraordinária a possibilidade de guardar informações em bancos de dados, sons, imagens e arquivos digitalizados em geral, com impacto crescente nas possibilidades de armazenamento da memória. Leitura obrigatória Leia na Biblioteca Virtual sobre memória: CARRETERO, M.; ROSA, A.; GONZÁLEZ, M. F. et al. Ensino da história e memória coletiva. São Paulo: ArtMed, 2007. p. 32‑55. Disponível em: <http://unip.bv3.digitalpages.com.br/users/publications/9788572442985/ pages/275>. 15 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 TEORIA DA HISTÓRIA 1.3 Os “lugares de memória” A memória se cristaliza nos objetos, nos artefatos, nas construções, nos gestos e nas imagens. É fácil comprovar que um objeto que teve algum significado para nós funciona como recordação do que vivemos. Mas, e objetos que pertenceram a épocas distantes de nós? Que tipo de memória eles conservam? Na verdade, uma ferramenta, um artefato ou um edifício, por exemplo, são locus de conservação da memória. Como componentes da cultura material, conservam inscritas as técnicas utilizadas em sua produção, as relações sociais envolvidas, o modo de vida de quem os usava, as formas de trabalho e muitas outras informações a serem decodificadas. O historiador francês Pierre Nora, da Nova História, pode nos ajudar a entender isso melhor. Ao estudar símbolos relacionados ao sentimento nacional francês, desenvolveu o conceito de “lugar de memória”. Os monumentos, medalhas, moedas comemorativas e demais símbolos então criados serviriam para cumprir a função de inscrever em objetos a memória desse evento que se queria perpetuar. A memória assim cristalizada assumiria um tom de celebração. As memórias podem se alojar em muitos objetos e lugares, mas nem todos são “lugares de memória”. Para isso, é preciso ter havido uma “vontade de memória”, uma dada intenção memorialista em sua concepção. Em Les Lieux des Memoires, ou Os Lugares de Memória, coleção de livros publicados na França entre 1984 e 1986, Nora considera que o ritmo das mudanças ocorridas com a sociedade industrial produziu uma sensação de aceleração da História e uma consciência de ruptura com o passado. As instituições que asseguravam a conservação e transmissão de valores, tais como a Igreja, a escola, a família e o Estado, estariam perdendo sua força. Nessa sociedade, marcada pela mudança e condenada ao esquecimento, haveria uma dissociação entre memória e História, criando a necessidade de se instituir locais que serviriam como refúgio para a memória. Os “lugares de memória” seriam necessários por não termos mais como ancorar a memória não mais espontânea. Uma sociedade marcada pelo signo da História, como a nossa, seria uma sociedade sem memória. Se habitássemos ainda nossa memória, não seria necessário haver os “lugares de memória”. Museus, arquivos, monumentos e símbolos comemorativos, para citar os exemplos mais evidentes, estariam ocupando o lugar da memória em uma sociedade vivendo integralmente sob o signo da História. Observação Pierre Nora promoveu de 1978 a 1981 um seminário na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris), com participação de vários intelectuais para discutir questões relacionadas à memória e à identidade nacional francesa, que resultou em um conjunto de sete volumes, Les Lieux des Memoires ou Os Lugares de Memória, publicados entre 1984 e 1986. 16 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 Unidade I As primeiras instituições criadas para “guardar memórias”, com o surgimento da escrita, foram as bibliotecas reais destinadas a abrigar os códigos e demais registros. Monumentos construídos para perpetuar a lembrança das vitórias dos imperadores romanos, tais como os “arcos do triunfo”, são outros “lugares de memória” da Antiguidade. Na Idade Média tivemos as bibliotecas de conventos, os livros e os primeiros arquivos. O século XVIII europeu produziu um sem número de moedas, selos e medalhas destinados a simbolizar e marcar a existência das monarquias europeias. Entretanto, foi no século XIX que proliferaram os “lugares de memória” relacionados à necessidade de afirmação dos estados nacionais. A memória em questãonesse momento não dizia mais respeito à celebração de feitos extraordinários dos reis e dos poderosos. Estava relacionada à configuração de uma memória coletiva que se queria identificada com uma memória nacional. O surgimento dos arquivos nacionais, das bibliotecas nacionais ou dos museus históricos nacionais está estreitamente vinculado a esse movimento. O caminho para a concepção da existência de um patrimônio histórico a ser preservado, como herança e garantia da preservação da memória, estava aberto. 1.4 A memória manipulada É preciso destacar que o acesso à memória é uma questão política. A memória coletiva está sujeita a esquecimentos e silêncios, pois pode ser manipulada e objeto de disputa de poder. Aqueles que se situam em posição de controle têm a possibilidade de ressaltar alguns aspectos do passado que lhes favoreçam e relegar outros ao esquecimento. A manipulação daquilo que vai ser lembrado é fonte de poder. Resulta que a memória assim tratada é artificial e excludente. As camadas sociais que não têm sua memória resguardada são relegadas ao esquecimento, como se sua história não tivesse acontecido. Dessa forma, o esforço de grupos sociais marginalizados ou excluídos em busca da preservação de sua memória e da sua história é um ato político na busca de afirmação de um direito e da sua própria identidade social. Cumpre destacar o quanto movimentos de negros, mulheres, homossexuais e defensores dos indígenas em nosso país têm procurado, nas últimas décadas, esquadrinhar o passado em busca dos vestígios de sua história e de sua memória. Nesse processo, avulta a concepção de que é preciso promover a democratização da memória. Saiba mais Uma Cidade Sem Passado, filme de Michael Verhoven, produzido em 1990, trata dos silêncios e esquecimentos, da manipulação e do acesso à memória como questões políticas em uma cidade alemã que renega sua vinculação com o nazismo. 2 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS A História como forma de conhecimento específico vem sendo sempre renovada em um processo contínuo. Ao longo do tempo variaram as concepções sobre seu objeto de estudo, a natureza do conhecimento produzido, as formas válidas de reconstruir o passado e de construir interpretações. 17 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 TEORIA DA HISTÓRIA Nesta parte, iremos tratar de algumas destas questões. Vamos começar procurando definir o nosso próprio objeto de estudo. 2.1 O que é História? Como já vimos, há uma coincidência do termo História que se aplica tanto à área de conhecimento quanto ao seu objeto de estudo. A História como área do conhecimento tem como objeto de estudo a história do tempo vivido. O homem em sua interação com a natureza e com os outros homens vive a História e a constrói. Essa História é um processo dinâmico no qual estamos todos inseridos e do qual somos parte ativa. Contudo, qual a natureza do conhecimento histórico? Seria a História uma ciência, com características específicas da área das humanidades, mas ainda assim uma ciência? Ou seria, antes de tudo, uma narrativa com destaque para sua dimensão literária e discursiva? A ideia de que se pode conhecer o passado por meio da investigação do que aconteceu está na essência daquilo que chamamos História. Um histor, na Grécia Antiga, era alguém que fazia um julgamento baseado em uma investigação. Foi ali que primeiro se usou o termo historia, investigação, para designar o que entendemos hoje como História. Atribui‑se o uso primeiro dessa palavra nesse sentido a Heródoto, considerado o pai da História. Seu objetivo era impedir que os grandes feitos dos seus conterrâneos, os gregos, se perdessem. Impedir que suas ações fossem esquecidas levou, assim, os homens a registrá‑las originando aquilo que hoje entendemos como História. Ainda que a origem da História nos leve para muitos séculos atrás, desde então ela sofreu alterações no seu significado. E, mais do que isso, sua constituição como área de conhecimento específico com um aporte teórico e metodológico a orientar determinado conjunto de práticas estabelecidas é muito mais recente. Com esse perfil, podemos situar sua emergência basicamente no século XIX, o “século da História”, com importantes contribuições e reformulações no século XX. Desde seu surgimento podem ser reconhecidas diferentes concepções da História mais ou menos divergentes. Todavia, há um terreno comum que as aproximam, constituindo o que se entende na atualidade como sendo o que é específico dessa área de conhecimento. A História trata do homem em sociedade na sua relação com o tempo. Nesse estudo há que se considerar também a importância do espaço. A isso se acrescenta o caráter de mudança que atravessa a história humana, sujeita a transformações no transcorrer do tempo. Vale lembrar que o tempo histórico não corresponde estritamente ao tempo cronológico, embora seja claro que calendários, periodizações e marcos de tempo são importantes. Contudo, a temporalidade histórica comporta referenciais de mudança mais amplas, com ritmos lentos ou mais acelerados de transformação. Essas considerações serão retomadas ao estudarmos as contribuições da Escola dos Annales para a historiografia. A vida humana em sociedade em sua temporalidade é o objeto de estudo da História. Mesmo quando trata das realizações individuais do homem, o interesse da História está nas suas imbricações com o 18 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 Unidade I contexto social em que vivia. A questão dos heróis, dos reis e governantes pode deixar isso mais claro. Por séculos a História enalteceu as realizações extraordinárias dos grandes personagens apresentados muitas vezes como heróis, até chegarmos à situação atual em que se busca um entendimento mais amplo do passado, considerando a multiplicidade de agentes sociais envolvidos no processo histórico. Mesmo naqueles momentos, o foco do historiador não deixava de apontar para a sociedade. Como afirmam Zilda Yokoi e Tereza Aline em obra já citada: Apesar de o indivíduo existir na história, não será ele o objeto principal do historiador. Mesmo em períodos em que se privilegiou uma história de heróis, foi impossível caracterizar a heroicidade isoladamente; o herói sempre precisou de um momento adequado para demonstrar sua habilidade e, principalmente, de uma identificação com um objetivo suprapessoal, com um grupo e com ideais por este concebidas. As relações interpessoais, a construção mental e física do mundo, o exercício do poder de uns sobre os outros, os encontros entre diferentes estão na base daquilo que Virginia Woolf definia como “fantasma imenso e coletivo, incapaz de ser exorcizado”, ou seja, o passado, ao qual o historiador dará forma para que ele se transforme em história (YOKOI; QUEIROZ, 1999, p. 8). O século XX trouxe reflexões importantes sobre o conhecimento histórico, encaminhando seu entendimento como resultante de um processo de construção. Walter Benjamin, para citar um representante destacado dessa ideia, defende para a História uma relação de construção com o passado. Em 1940, este filósofo alemão escreveu o livro Teses sobre o Conceito de História, um importante trabalho sobre o assunto. Para ele, a identificação com o passado remeteria a uma visão historicista, paradigma historiográfico que iremos estudar mais adiante, questionado por esse filósofo. Benjamin, a partir de um referencial teórico marxista, entende a História como palco de disputa entre as classes pelo poder, resultando desse embate “vencidos” e “vencedores”. Daí a existência de uma História dos vencidos X História dos vencedores. Esta última, construída de forma a ocultar a história dos vencidos e lhes retirar o direito à sua memória.Também Pierre Nora, já no contexto da historiografia da Nova História francesa, entende a História como uma reconstrução do passado, sempre problemática e incompleta daquilo que não é mais. Em sua reflexão sobre as diferenciações entre História e memória citada na parte anterior deste texto, aponta para o fato de que os historiadores se voltam para o passado para reconstruí‑lo a partir de fragmentos que chegam até nós, os chamados documentos históricos. Lembrete A História, ao estudar o passado, se vale da memória e, com um movimento circular, também a constrói. A memória é, portanto, matéria‑prima da história e também é por ela produzida. Outra questão deve ser considerada ao se refletir acerca das características do conhecimento histórico. Desde, pelo menos, as contribuições da historiografia produzida pela Escola dos Annales, objeto 19 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 TEORIA DA HISTÓRIA de estudo da quarta unidade deste livro‑texto, não é possível considerar uma objetividade absoluta na tarefa do historiador. Há que se levar em conta, sobretudo, as implicações na natureza da produção do conhecimento que conduzem à consideração das subjetividades existentes na produção historiográfica, assunto a ser abordado mais adiante. Benedetto Croce, em sua Teoria e Storia della Storiografia, obra de 1917, já apontava para a necessidade de se entender a História na sua relação com o tempo presente. Isso ficou mais evidenciado na Nova História francesa do século XX. Considera‑se, desde aí, que o estudo do passado se faz a partir de um mergulho feito pelo historiador no presente em que vive. Dessa forma, toda História é contemporânea, ou seja, está imersa no tempo histórico de sua produção. Dois expoentes da prestigiosa Escola dos Annales lapidaram a ideia de que há uma relação necessária entre o estudo da História e o presente, com frases que se tornaram célebres. Para Marc Bloch seria preciso “compreender o passado pelo presente”. E Lucien Febvre dizia que a História teria como função “organizar o passado em função do presente”. Não se trata de escrever sobre o presente, ainda que haja uma vertente historiográfica que tenha esse propósito, mas isso é outra questão. O que se destaca nas frases citadas é o fato de a História ser elaborada a partir das indagações, preocupações e necessidades contemporâneas ao historiador. A construção do conhecimento histórico parte sempre do presente. Por isso, o estudo do passado não se esgota. Ao contrário, há um retorno constante a um passado que nunca tem fim: Paradoxalmente, nesta condenação do historiador ao presente situa‑se a eternidade de um passado que nunca se esgota. Caso contrário, a história da Grécia, por exemplo, teria sido escrita por Heródoto e ponto final. No entanto, cada século reelaborou a história grega dentro de suas perspectivas e possibilidades. Nos limites entre a “consciência possível” e a “consciência real”, próprias de seu tempo, o historiador busca no passado a consciência de seu próprio tempo (YOKOI; QUEIROZ, 1999, p. 8). Sendo assim, a cada geração de historiadores, por assim dizer, há modificações na História. As transformações ocorridas no contexto histórico estabelecem novo repertório de preocupações e questões a serem feitas para o passado. As novas configurações da inserção social do historiador nesse novo contexto conduzem para a mesma direção. E, ainda, cada inflexão importante no quadro teórico metodológico ou alargamento do horizonte teórico da disciplina produz modificações na construção do conhecimento histórico. Tudo isso faz com que as versões sobre o passado disponíveis em um dado momento estejam sempre sujeitas a alterações, retificações, ampliações, avanços, retomadas e abandonos. Novas versões surgem substituindo ou complementando as anteriores. De qualquer forma, as versões se sucedem, ainda que a mais nova não substitua necessariamente as anteriores, o que também pode vir a ocorrer. Por isso, as interpretações da História e as versões que originam não são únicas nem definitivas. Uma interpretação histórica não significa um ponto final, também não abole necessariamente as anteriores. As versões podem ser antagônicas, complementares e até mesmo igualmente válidas, embora com pontos de vista diferentes. Isso faz com que seja importante 20 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 Unidade I considerar o quadro teórico metodológico utilizado no estabelecimento das referências fundamentais e dos contornos da interpretação construída. Em resumo, se o passado não pode ser alterado, o mesmo não acontece com a História. O historiador está sempre retornando ao passado em um trabalho contínuo e persistente. Para entender isso, será preciso estudar como se constrói o conhecimento histórico e como se realiza o trabalho do historiador, o que será tratado mais adiante. 2.2 Para que serve a História? Com muita frequência ouvimos a pergunta anterior, seja em sala de aula ou em conversas corriqueiras. Por que seria importante estudarmos um passado que já aconteceu e não pode ser alterado? Qual seria a finalidade de se conhecer o passado? Não seria mais útil nos dedicarmos a outras questões do presente? Essas perguntas já foram formuladas muitas vezes ao logo do tempo. O que nelas está em dúvida é a própria legitimidade da História, seja como disciplina acadêmica seja como conhecimento necessário para a vida. As respostas variam de acordo com as diferentes concepções de história correntes. A utilidade da história, sua finalidade, está sempre relacionada ao que se espera alcançar com seu conhecimento. Com os gregos, tem início a concepção de que a História seria ”mestra da vida”, ou seja, teria uma função de ensinamento na medida em que as gerações mais novas aprenderiam com os erros e acertos das que viveram no passado. Essa ideia alcança o senso comum e perdura até hoje, sobretudo em visões mais tradicionais da História. Entretanto, já aprendemos há tempos que o passado não se repete e as condições são sempre outras, limitando as possibilidades de aplicar lições vindas de outros tempos. Mas a comparação com fatos do passado, com outras formas de se viver e de pensar que existiram pode auxiliar a reflexão sobre acontecimentos atuais, ainda que não possa haver uma transferência imediata das experiências. Veja, por exemplo, trechos de um comentário de jornal português sobre a Primeira Guerra Mundial e conflitos recentes: No 1º de Janeiro, o Financial Times fez de 1914 o tema do seu editorial: “Reflexões sobre a Grande Guerra — o mundo pode ainda tirar as lições da catástrofe de 1914.” O diário da City pensa que “o mundo de 2014 não está à beira de um tal desastre histórico”. Mas o centenário é uma oportunidade para estudar algumas lições: “É uma loucura ir para a guerra na crença de que será curta e com consequências controláveis. Em 1914, alguns políticos e generais europeus, cuja visão fora moldada pelas guerras que unificaram a Alemanha e a Itália no século anterior, incorreram nesta ilusão. O mesmo fizeram Washington e Londres quando invadiram o Iraque em 2003. Quão errados estavam estes chefes de guerra em ambas as ocasiões [...] Em geral, os homens aprendem pouco com a História. Mesmo assim, 1914 ajuda a pensar 2014. “Penso que não podemos tirar lições claras da História. Mas podemos aprender a afastar algumas possibilidades perigosas”, diz 21 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 TEORIA DA HISTÓRIA MacMillan. Deixa um conselho mínimo: “Nunca devemos tomar a paz como garantida nem acreditar que somos demasiado civilizados para guerrear. Os europeus cometerameste erro em 1914 (FERNANDES, 2014). Outra forma recorrente de se entender a importância do conhecimento do passado refere‑se à possibilidade de se encontrar as nossas “origens”. Essa busca da gênese de povos, dinastias, conflitos atuais, instituições e várias outras tem sido perseguida desde o alvorecer das civilizações. Conhecer as nossas “origens” tem como finalidade compreender de que forma chegou‑se à situação presente e à sua configuração. Mas, tem servido também para justificar situações de hegemonia de umas nações sobre outras ou de grupos sociais específicos sobre o conjunto social. Ou seja, a busca das origens pode servir como recurso de legitimação da dominação social. Ainda nesse sentido, é importante destacar que durante o século XIX, quando a História como área de conhecimento específico em sua configuração recente foi forjada, a busca das origens significou construir a “biografia da Nação”. A História então pensada era a História nacional e construí‑la fazia parte da agenda dos projetos nacionais em curso. Vivia‑se um momento decisivo na consolidação dos estados nacionais europeus e o continente americano investia no processo de emancipação colonial. Construir a história dessas nações emergentes fez da História recurso valioso de legitimação dos processos em curso com suas especificidades quanto às forças políticas em disputa. A História da Nação surge a partir desse envolvimento com os projetos de construção nacional, marcando de forma profunda a historiografia de lá para cá. Somente nas últimas décadas isso começou a ser modificado com a ênfase conferida a outras abordagens historiográficas. Nos exemplos anteriores e em tantos outros, revela‑se a íntima relação existente entre História e poder. As versões da História podem servir para justificar poderes constituídos ou alavancar outros que aspiram a essa condição, oferecendo argumentos de legitimidade. Em direção oposta, o acesso ao conhecimento histórico pode significar o desvendamento de desigualdades construídas no passado, abrindo caminhos para sua superação. Quanto aos historiadores, ao longo do tempo sua atividade esteve bastante vinculada aos reis, governantes, grupos hegemônicos da sociedade e poderosos em geral. Por outro lado, especialmente no passado mais recente, com seu trabalho, revelaram situações de dominação e exploração responsáveis por condições sociais e políticas atuais. Nos dois casos, fica evidenciado o quanto há de implicações políticas no papel social do historiador. No âmbito das vinculações políticas da História, defende‑se também sua importância tendo em vista um projeto de transformação social. Nesse sentido, o conhecimento histórico seria necessário para fazer avançar projetos desse tipo; neste caso, a vertente marxista da historiografia. O conhecimento histórico seria recurso poderoso de conscientização política, possibilitaria o entendimento das desigualdades econômicas e sociais, assim como das condições políticas de dominação existentes. E, ainda, ao verificar as transformações ocorridas no transcurso do processo histórico, a realidade do tempo presente não seria vista como imutável. A possibilidade da mudança passaria a ser vista como possível. Atitudes de acomodação, ao serem substituídas por desejos de mudança, poderiam levar a ações concretas feitas nesse sentido. Nessa linha de raciocínio, o conhecimento sobre o passado se torna peça fundamental no projeto de transformações a serem conquistadas. Avulta o papel da História e do historiador nesse processo, concebidos como tendo importante função social. 22 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 Unidade I Em todos os casos, a História confere significação para o presente e dá conteúdo para nossa identidade social. Com o conhecimento do passado e o estudo das transformações e permanências de nossa trajetória histórica, nossa existência tem mais densidade e o presente adquire inteligibilidade. Leitura obrigatória Para saber mais leia na biblioteca virtual: BEZERRA, H. G. Ensino de História: conteúdos e conceitos básicos. In: KARNAL, L. (Org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2009. p. 37‑48. Disponível em: <http://unip.bv3. digitalpages.com.br/users/publications/9788572442169/pages/37>. 2.3 O que é Teoria da História? Tratar de Teoria da História significa buscar compreender as formas do pensamento histórico em sua base conceitual e científica. Isso nos permite perceber como se estabelecem os nexos entre as observações empíricas e como se constroem as interpretações. Pode‑se falar em Teoria da História apenas a partir dos investimentos feitos no século XIX, no sentido de sua afirmação da História como disciplina científica. Contudo, há especificidades na área das ciências humanas e sociais que as distinguem das outras ciências. Isso dificulta a transferência direta dos princípios básicos do método científico, tais como a experimentação e a possibilidade da repetição dos fenômenos para construir leis de causalidade. Com isso, assume‑se que o caráter científico da História tem particularidades que precisam ser consideradas. É preciso destacar, também, o caráter polissêmico da palavra teoria especialmente no âmbito das ciências sociais. Sobre isso nos diz Raymond Boudon: [...] a polissemia do termo teoria nas ciências sociais parece resultar, em larga escala, do fato de que as situações lógicas que as disciplinas encontram, quando se propõem explicar este ou aquele fenômeno social, são diversas e nem sempre se deixam reduzir ao modelo epistemológico saído das ciências da natureza e em particular das ciências físico‑químicas. De maneira que a atividade teórica assume formas diferentes conforme os contextos (BOUDON, 1976, p. 117). Em um sentido amplo, uma teoria é uma forma de ver o mundo. Quando surge uma nova teoria, ou novos paradigmas subsituem os existentes, as formas de ver o mundo se alteram, o horizonte teórico muda. Na História há teorias gerais ou aquelas dirigidas a acontecimentos, ou fenômenos mais particularizados. Em um arco amplo que abrange desde o que se entende por História até teorias mais 23 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 TEORIA DA HISTÓRIA ou menos generalizadoras, como o funcionamento dos regimes totalitários ou o nazismo em particular, situa‑se o campo teórico da História. Vale destacar que a Teoria da História é território de disputas e diálogos, não necessariamente de consensos. As teorias e modelos paradigmáticos oferecem orientações para os caminhos a serem percorridos pelos historiadores que nem sempre escolhem as mesmas direções. A riqueza do trabalho do historiador especialmente nos dias de hoje está na pluralidade de possibilidades. Não há necessidade de alinhamento exclusivo a tal ou qual orientação teórica ou modelo historiográfico. Entretanto, isso não significa pouco rigor. Ao contrário, exige um cuidado meticuloso quanto à metodologia e profundidade teórica em suas opções. Neste curso, em meio a discussões teóricas, trataremos de princípios básicos pertencentes às diferentes concepções de história que têm norteado a definição dos objetos de estudo, as metodologias e as explicações construídas para o estudo do passado. Leitura obrigatória Leia na Biblioteca Virtual sobre o termo teoria: SILVA, K. V.; SILVA, M. H. Dicionário de conceitos históricos. 3. ed. São Paulo: Ed. Contexto, 2007. p. 395. Disponível em: <http://unip.bv3. digitalpages.com.br/users/publications/9788572442985/pages/395>. Sobre o termo fonte histórica: SILVA, K. V.; SILVA, M. H. Dicionário de conceitos históricos. 3. ed. São Paulo: Ed. Contexto, 2007. p. 158. Disponível em: <http://unip.bv3. digitalpages.com.br/users/publications/9788572442985/pages/158>.2.4 Como se constrói o conhecimento histórico? A História, o tempo vivido, é o objeto do conhecimento histórico. Já se disse, o historiador transforma o passado em História. O conhecimento histórico resulta, pois, do trabalho dos historiadores. Mas como é esse trabalho? Ainda que obras escritas sobre a História tenham surgido há vários séculos, podemos falar em conhecimento histórico produzido de maneira sistemática em meados do século XIX. Nesse momento é que se organiza a História a partir de parâmetros de uma ordem científica e, também, uma comunidade de historiadores que estabelece os contornos dessa disciplina em formação, contribuindo para a definição de alguns pressupostos básicos do trabalho do historiador que chegam até nós. Iniciam‑se ali investimentos sistemáticos para a configuração de uma metodologia de trabalho para o historiador que desde então vem sendo aprimorada. 24 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 Unidade I O conhecimento histórico resulta de um processo de pesquisa, crítica documental, reconstituição, análise e interpretação. Os historiadores procuram, sobretudo, explicar o que aconteceu. A interpretação que fazem do passado comporta uma metodologia específica; nisso está a possibilidade de se construir conhecimento válido, a partir de interpretações controláveis para as quais a metodologia oferece parâmetros de produção. A validação pelos pares confere credibilidade às interpretações resultantes. Entretanto, é preciso destacar que há interferências importantes nesse processo a serem consideradas; de início, as condições de historicidade a que está sujeito o historiador, como já foi visto. Acrescente‑se a isso o grau de subjetividade que existe no seu trabalho e as opções teóricas que faz. Isso tudo interfere desde a própria escolha do tema a ser pesquisado e ocorre também na seleção de fatos vistos como relevantes, na seleção dos documentos e na interpretação final. Cumpre ressaltar que a interpretação dos fatos realizada pelo historiador está diretamente relacionada à sua visão de história expressa na teoria que baliza o seu trabalho. São os aspectos teóricos que oferecem um conjunto de conceitos que orientam a interpretação a ser feita de acordo com determinada forma de encarar o processo histórico. Por fim, é preciso alertar para o fato de que o conhecimento histórico está sujeito a manipulações mais ou menos inconscientes. As versões sobre o passado podem servir para justificar o poder ou para desvendá‑lo. Mas, ainda que o discurso histórico seja um campo fértil para reprodução de ideias e conceitos que reforçam e reproduzem situações de dominação e controle de poder, isso não se opera mecanicamente. Há uma mediação importante entre a obra de História e os mecanismos de poder que provêm das teorias, dos métodos e técnicas que funcionam para a obtenção de interpretações mais ou menos controladas, ainda que não se possa imaginar que o sejam de forma absoluta. Uma singularidade da História é o uso de fontes de variados tipos como material básico para o acesso ao passado. O historiador não tem acesso direto a seu objeto de estudo, não pode por ele mesmo constatar os fatos de que trata. Trabalha a partir de vestígios de um passado que não existe mais. Depende das informações conseguidas em fontes históricas para reconstituir o passado. A base do trabalho do historiador está nos documentos históricos. Saiba mais A característica de trabalhar com vestígios ou indícios e a impossibilidade de ter acesso direto a seu objeto de estudo foi abordado por Carlo Ginzburg em Mitos, Emblemas, Sinais (São Paulo: Companhia das Letras, 1990) como um “paradigma indiciário”. Esse paradigma investigativo estaria presente também na medicina e na investigação policial. 25 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 TEORIA DA HISTÓRIA A princípio, no âmbito da historiografia cientificista do século XIX, eram aceitos como legítimos apenas os documentos escritos e, mais ainda, somente aqueles provenientes de fontes oficiais. De lá para cá, o conceito de documento histórico se ampliou e são reconhecidos como tal todo e qualquer vestígio do passado. Na historiografia do século XIX, o documento histórico tinha estatuto de verdade, mas a noção de documento como prova inquestionável já está distante. Considera‑se atualmente que os registros, ou ainda, os vestígios que nos chegam do passado, têm caráter fragmentário e lacunar, como já foi apontado. Enfatiza‑se, também, que estão sujeitos à visão e aos interesses de quem os produziu, por mais neutro que os documentos possam parecer. Cabe ao historiador considerar essas interferências quando procura reconstituir o passado a partir das fontes documentais disponíveis. É preciso lembrar que apesar das suas limitações quanto ao entendimento do documento, os historiadores do século XIX ofereceram contribuições importantes para a crítica documental que alcançam nossos dias. Como lembrou Marc Bloch, em Apologia da História, trabalho publicado póstumo em 1949 (BLOCH, 2001, p. 79), os documentos precisam ser interrogados pelo historiador. Caso contrário, permanecerão mudos. Sua riqueza depende muito da qualidade das perguntas que são para eles lançadas. O historiador sempre parte de um questionamento que é feito no presente. Já dizia Fernand Braudel: “a História é filha do seu tempo”. Ainda que essa constatação lhe seja anterior, a Escola dos Annales enfatizou essa ideia com muita intensidade. E, mais do que isso, defendeu com ênfase que os questionamentos dirigidos para o passado deveriam ser feitos em consonância com a concepção de “história‑problema”, em que os interesses e os dilemas do presente seriam o ponto de partida para a investigação que o historiador desenvolveria. Vale lembrar que o historiador é também um ser social e histórico; exerce sua função situada historicamente. As perguntas que dirige ao passado são feitas a partir do contexto histórico em que vive, de sua condição de classe, dos métodos e técnicas de que dispõe, da sua formação, do seu pertencimento a determinadas instituições de ensino ou pesquisa, das teorias e das concepções da história em curso. A cada época, o repertório das perguntas a serem feitas para o passado se altera. Outra singularidade importante da História é a necessária consideração da temporalidade. Seu ponto de vista situa sempre os homens e suas realizações no tempo. Sua abordagem dispõe o objeto a ser estudado em condição de ser “historicizado”, enfocado na sua temporalidade. A importância das considerações temporais origina a necessidade de se proceder a marcações de tempo na reconstrução do passado. É o caso da cronologia, das convenções de contagem de tempo e da periodização. Em um nível, temos a periodização oficial constante nas definições de épocas históricas. A divisão em História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea, por exemplo, está neste caso. Ou ainda, Era Vargas, República Velha, Ditadura Militar são outros casos retirados da historiografia brasileira. Vale chamar a atenção para as limitações das periodizações em geral, e das oficiais em especial. Aquelas que dizem respeito à História em geral foram construídas a partir da história europeia, denunciando o 26 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 Unidade I quanto de eurocentrismo existe em nossa área de conhecimento. E no seu conjunto, as definições de períodos históricos o foram a partir de acontecimentos políticos que não são capazes de dar conta das transformações que se quer evidenciar. De toda a forma, a periodização em sua essência tem caráter explicativo e é parte integrantedo trabalho do historiador. Cada evento, cada acontecimento, cada processo, cada fenômeno histórico em estudo está referendado em uma periodização já existente e enseja a construção de uma periodização específica a ser definida pelo historiador de acordo com o seu tema de estudo. As discussões sobre temporalidade efetuadas no âmbito da Nova História marcaram a distinção entre o tempo histórico e o tempo cronológico. Observa‑se que há variações na maneira como se percebe a passagem do tempo e que o ritmo das mudanças não é o mesmo quando se consideram as instâncias econômicas, políticas, sociais e culturais. O historiador trabalha com os ”fatos históricos”, mas não apenas com esses marcos do passado que já foram o seu principal objeto de estudo. Cada vez mais se pretende alcançar a complexidade da vida humana em sua trajetória histórica abrangendo as formas de viver e de pensar que existiram em outras épocas. Nas últimas décadas, os interesses dos historiadores têm se voltado com frequência para abordagens históricas que visam a contemplar outros aspectos do passado para além dos eventos memoráveis que foram tão celebrados na historiografia tradicional. A atividade do historiador não se esgota em recolher as informações obtidas em registros e fontes documentais, organizá‑las e relacioná‑las. Seu exercício profissional implica construir interpretações capazes de reconstituir o passado e conferir‑lhe significado. Como já vimos, a História comporta a existência de diferentes versões e interpretações do passado. Consideramos que sendo produzida a partir de um presente que se altera, modificam‑se também as questões que são formuladas para o passado. O historiador está no presente e é a partir dele que lança as perguntas para o passado de forma a construir sua explicação. Há uma historicidade intrínseca nesse processo que se inicia na própria escolha dos temas a serem abordados. Contam para a escolha dos temas que conduzimos perguntas a serem feitas para o passado e a própria inserção social do historiador. Ainda que não seja uma determinação absoluta, a classe social à qual o historiador pertence, por exemplo, pode interferir no seu interesse sobre o passado. Como durante muito tempo os historiadores pertenceram a estratos sociais elitistas, em sua produção, na maioria das vezes, não contemplaram a história dos outros grupos sociais. A historiografia vem procurando corrigir isso nas últimas décadas. Entretanto, partindo do mesmo lugar histórico‑social, o historiador pode chegar a conclusões diferentes. Referenciais teóricos e metodológicos divergentes são capazes de produzir isso. Novos documentos descobertos também. Acesso a informações desconhecidas podem alterar radicalmente o que se pensava sobre um acontecimento ou alterar a visão que se tinha sobre o passado. 27 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 TEORIA DA HISTÓRIA Lembrete O trabalho do historiador se dá em meio a teorias muitas vezes divergentes, em um palco de tensões e conflitos no qual nem sempre há concordâncias. A metodologia e a consistência teórica são balizas importantes para a construção de interpretações válidas sobre o passado. Ainda que as versões construídas pelos historiadores sobre o passado possam ser diferentes, complementares em alguns casos, antagônicas ou excludentes em outros, em alguma medida o conhecimento histórico é cumulativo. O repertório de perguntas do historiador se ampliou, as pesquisas e os trabalhos produzidos se multiplicaram do século XX para cá, fazendo com que se saiba hoje sobre o passado muito mais do que se sabia em épocas anteriores. Leitura obrigatória Leia na Biblioteca Virtual: KARNAL, L.; TATSCH, F. G. Documento e história. A memória evanescente (p. 8 e seguintes). In: PINSKY, C. B.; DE LUCA, T. R. (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. Disponível em: <http://unip.bv3. digitalpages.com.br/users/publications/9788572444514/pages/9>. Resumo A História é a ciência que estuda o homem em sociedade no tempo. História e memória se referem ao passado, mas não são conceitos idênticos. A História reconstrói o passado a partir de vestígios e fragmentos deste que chegam até nós. Distingue‑se da memória da qual se alimenta, ao mesmo tempo em que a constrói, constituindo‑se em poderoso recurso de identidade social. Os “lugares de memória” são locais onde a memória se cristaliza quando não está mais viva nos grupos imersos nas sociedades que vivem sob a égide da História. Tanto a História quanto a memória estão sujeitas a controles e manipulações pelo poder, resultando em silêncios e esquecimentos. À História atribuíram‑se finalidades diferentes ao longo do tempo. Já foi considerada “mestra da vida” e com ela procurou‑se conhecer as origens de povos e nações. Seu conhecimento também já foi considerado instrumento de transformação social e, em todos os casos, destaca‑se sua função de conferir significado para o presente. 28 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 Unidade I A História reconstrói o passado a partir dos “documentos históricos”. Considera as mudanças e as transformações havidas no tempo e também as permanências. Sua abordagem é sempre social e imbricada com o presente. O estudo do passado nunca é definitivo, podendo haver versões diferentes sobre este. Contam para isso o lugar social do historiador e suas filiações teóricas e metodológicas. A afirmação da História como disciplina científica no século XIX ensejou a constituição da Teoria da História. Um conjunto de princípios e paradigmas teóricos tem se configurado desde então, engrossando o arcabouço teórico dessa disciplina que se caracteriza como um terreno de discussões e diálogos permanentes. Exercícios Questão 1. A História e a Memória adotam abordagens do passado de naturezas distintas. Assinale a alternativa que corresponde a essas abordagens: A) Enquanto a História se ocupa de padrões de continuidade ao longo do tempo, a Memória se ocupa de rupturas. B) A História, por se constituir em um jogo de narrativas, é pouco confiável, enquanto a Memória oferece bases neutras e seguras para a abordagem do passado. C) A História, compreendida como a “ciência do devir”, busca compreender imparcialmente as transformações ocorridas no passado, inclusive denunciando os usos políticos e ideológicos da Memória. D) A ciência da História é a única forma legítima de abordagem do passado, trabalho que deve ser monopolizado pelo historiador. A Memória, por ser uma abordagem insuficiente, não consegue concorrer com a História, desvanecendo‑se. E) Os historiadores nunca conseguem trabalhar com a memória, já que esta é sempre parcial. Resposta correta: alternativa C. Análise das alternativas A) Alternativa incorreta. Justificativa: é a Sociologia que se ocupa de padrões. A História como ciência ocupa‑se das rupturas, e não necessariamente a Memória. 29 Re vi sã o: C ar la - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 8/ 03 /1 4 TEORIA DA HISTÓRIA B) Alternativa incorreta. Justificativa: a Memória nunca é neutra ou fornece bases seguras, uma vez que, sendo produto de forças sociais e estando sujeita às limitações biológicas, sempre será parcial e se relacionará aos interesses de determinada classe. C) Alternativa correta. Justificativa: a História difere fundamentalmente da Memória por possuir um embasamento crítico, enquanto a Memória é o resultado de forças ideológicas, muitas vezes servindo à dominação de classe. D) Alternativa incorreta. Justificativa: os usos do passado não são de forma alguma monopólio do historiador. Ele oferece apenas uma visão,cientificamente orientada. Os produtores de Memória são, inclusive, mais numerosos e eficazes. E) Alternativa incorreta. Justificativa: os historiadores podem trabalhar com a Memória, desde que esta seja seu objeto de pesquisa. A construção da Memória é um dos temas mais abordados desde a década de 1970, inclusive, por influência de Jacques Le Goff. Questão 2. (Enade 2005) O texto abaixo refere‑se à memória sobre a Idade Média. A diferença entre o Renascimento e a Idade Média não foi uma diferença produzida por adição, mas por subtração. O Renascimento, tal qual nos foi descrito, não foi a Idade Média mais o homem, mas a Idade Média menos Deus, e o que houve aí de trágico, foi que, ao perder Deus, o Renascimento perdeu o próprio homem (Etienne Gilson, em 1932). A frase revela que o autor pretende: A) recuperar a visão romântica do século XIX sobre a Idade Média, a primeira a formular a ideia de uma ruptura entre os dois períodos. B) reabilitar a Idade Média, a expensas do Renascimento, mostrando uma superioridade espiritual da primeira sobre o segundo. C) repudiar a visão dominante, segundo a qual a Idade Média não havia sido capaz de produzir uma filosofia própria. D) retomar a concepção Iluminista do século XVIII, quando, pela primeira vez, a Idade Média passa a ser vista em pé de igualdade com o Renascimento. E) reavaliar as duas épocas históricas, numa perspectiva que nega a tradicional ruptura entre ambas. Resolução desta questão na plataforma.