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O Caso dos devoradores de ovelhas e Ônus da Prova

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O caso dos devoradores de ovelha e o ônus da prova
Da série “alguém me disse”, recordo-me de minha primeira causa como advogado na área cível. Era o início da década de 1980. Aceitei-a a pedido de meu professor de Antropologia no curso de pós-graduação em Sociedade e Cultura na América Latina, Sergio Alves Teixeira. Ele tinha uma fazendola no interior de Rio Pardo (RS) — município do qual sou cidadão emérito — e constatou que várias ovelhas tinham sido devoradas pelos enormes e famintos cachorros do fazendeiro vizinho. A prova não era boa. Mas tínhamos as carcaças, alguns buracos na cerca e a certeza de que os cada vez mais gordos cães do fazendeiro se banqueteavam, à noite, com os indefesos, porém apetitosos, ovinos.
Estudei a causa com afinco e descobri uma coisa óbvia: no caso de danos causados por animais, estava-se em face da exceção prevista no Código Civil de 1916, que, no artigo 1527 previa a inversão do ônus da prova. Lembro que, no dia da audiência, lá estava o advogado do fazendeiro, elegantemente vestido de branco, veterano causídico da Comarca, que, de forma irônica, advertia: “Doutor Lenio, que lástima; uma ação sem provas.” A segurança da ironia do Doutor quase acabou comigo. Será que algo me escapara? Meu cliente deve ter tido calafrios, pensando na minha propalada inépcia.
Abertos os trabalhos, o juiz de Direito, que depois veio a ser presidente do Tribunal de Justiça, deu a palavra às partes. O causídico “arrasou” comigo. Onde se viu buscar indenização e não provar que os cães de seu cliente tinham devorado as ovelhas do professor Alves Teixeira... Pois o bacharel foi pego no contrapé. Como não se desvencilhou da inversão do ônus da prova, sua derrota foi fragorosa. Na saída, verberava contra o Código Civil: “Que absurda essa lei.” Como ele, um veterano advogado que usava ternos bem cortados, não vira aquela pequena exceção no entremeio de mais de dois milhares de dispositivos?
O ÔNUS DA PROVA
Nunca mais esqueci esse julgamento. O ônus da prova. Que coisa é essa? A quem cabe provar a alegação? Seria a seara civil semelhante à área penal? Mais tarde, deparei-me, no segundo grau do TJ-RS, com várias causas em que se alegava no âmbito do processo penal uma espécie de “inversão do ônus da prova”. Uma famosa tese, muito utilizada no júri, era a do “álibi não provado, réu culpado”. Era difícil ao réu escapar. Isso sempre me preocupou. Basta que a acusação prove objetivamente o tipo, algo similar à prova que fiz “comprovando os danos causados” — no caso das ovelhas devoradas pelos famintos cachorros do fazendeiro de Rio Pardo? Ou, efetivamente, haveria (ou há) uma cisão entre Direito Civil e Direito Penal e entre processo civil e processo penal? E, ainda, quais seriam os limites dessa cisão ou diferença?
Vasculhando a dogmática processual penal, leio que Afrânio Silva Jardim, promotor de Justiça e professor importante do Rio de Janeiro, dizia, lá pelos idos de 2003, que se o crime é um todo indivisível, somente será legítima a pretensão punitiva do Estado quando provar que o réu praticou uma conduta típica, ilícita e culpável. Como fica, desse modo, essa questão do “ônus da prova” na confrontação com a presunção da inocência e de outros princípios garantidores? Meu antigo companheiro de ID (Instituto de Direito) diz que a acusação penal tem o ônus de alegar e provar o fato típico, tanto no seu aspecto objetivo quanto subjetivo, pois quem alega fatos no processo penal é a acusação, verbis: “O réu não formula qualquer pedido no processo penal, tratando-se de ação condenatória. Não manifesta qualquer pretensão própria. Apenas pode se opor à pretensão punitiva do Estado, procurando afastar o acolhimento do pedido do autor. (...) Repita-se: a defesa não manifesta uma verdadeira pretensão, mas apenas pode se opor à pretensão punitiva do autor. (...) Sob o prisma processual, somente a acusação é que alega fatos, atribuindo-os ao réu.” (Afrânio Silva Jardim, in Direito processual penal. 11. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 212-213).
Assim, por exemplo, se réu apresenta um álibi, dizendo que no dia e hora do crime se encontrava em lugar distante, não está alegando fato positivo diverso, mas apenas negando o que lhe é atribuído na denúncia. A dúvida sobre se ele estava ou não naquele lugar distante nada mais é do que a dúvida sobre se ele estava no lugar afirmado na denúncia ou queixa. É intuitivo. Desta maneira, ao sustentar tal álibi, o réu não assume o ônus de provar fato positivo que negue a acusação, permanecendo o autor com o ônus de provar aquilo que originalmente afirmou. (Ibid., p. 213). Por outro lado, é estreme de dúvidas que se o réu conseguir comprovar seu álibi ele extingue qualquer pretensão punitiva do Estado. Tal afirmação não pode conduzir ao equivocado entendimento de que se o réu não comprovar o álibi, a acusação ficaria desincumbida de provar suas alegações para fins de assegurar a punição do réu.
Sabe-se que o réu tem o direito de até mesmo nada dizer. O resultado disso nunca será uma absolvição com conteúdo explicitamente determinado, como por exemplo, o inciso I do artigo 386, do CPP. Mas, mesmo nada “provando” e a acusação não comprovar o alegado, a absolvição se encaminha para a famosa insuficiência de provas.
Mesmo que, nesta quadra da História, o Estado não mais seja “um inimigo do cidadão”, as questões relacionadas ao poder punitivo ainda devem ser tratadas de forma, digamos assim, iluminista. Ou seja, prova não é ordália. O monopólio da força estatal (legítima) não dispensa esse mesmo Estado — agora, como diz Dieter Grimm, “Amigo do Cidadão” (forma do Estado Democrático de Direito que tem o dever de proteger bens jurídicos — Schutzplicht) de provar, no processo criminal, o alegado. O meu “caso dos devoradores de ovelhas” viraria pó se fosse resolvido à luz do processo cível. Já se aplicássemos a “fórmula dos devoradores de ovelhas” ao processo penal, ninguém escaparia (ou muitos poucos escapariam) da condenação.
“À cause du soleil”
A questão talvez esteja em sabermos se os raciocínios, no tocante à produção da prova e ao respectivo ônus probandi, são teleológicos ou deontológicos. Ou seja, são esses raciocínios de âmbito finalístico ou funcionam a partir do código lícito-ilícito? Se eles são teleológicos, então a formalidade na produção da prova não assume tanta relevância. Mas, se eles — os raciocínios — são deontológicos, então, para usar uma frase muito batida, os fins não justificam os meios. A questão é saber se o processo penal é caminho ou um atalho para a decisão judicial.
É evidente que a versão de qualquer acusado não pode ser como no livro O Estrangeiro, de Camus, em que o personagem Meursault explica que matou “à cause du soleil” (por causa do sol). No entanto, uma fantasia qualquer não exime o Estado de mostrar que a vítima tenha sido morta por uma faca, em determinadas circunstâncias...
Enfim, se eu não apreendi muito naquela fria manhã em Rio Pardo, com certeza meu adversário apreendeu que, no caso de danos causados por animais, o ônus da prova é invertido, por mais bizarro que isso possa parecer. Algo do tipo “não sou eu quem tinha de provar que os cães do fazendeiro devoraram as ovelhas do Catedrático e, sim, era o fazendeiro quem tinha de provar que não foram os seus gordos e vorazes cães que se banquetearam com os indefesos ovinos do catedrático”.
Espalhada a notícia na cidade, arrumei novos clientes. Não nas mesmas circunstâncias, porque, a partir de então, os fazendeiros passaram a cuidar de seus grandes cachorros (no Rio Grande do Sul se costuma dizer que “cachorro que come ovelha, só matando” — na verdade, é um adágio politicamente incorreto, mas, é a voz do povo). As causas que arrumei eram quase todas criminais. Lá fiz meu primeiro júri, com meu terno novo, comprado em longas prestações. Fui indicado para a defesa já na fase da pronúncia. Coisa dura. Homicídio qualificado por recurso que impossibilitou a defesa da vítima. Meu cliente fora acusado de atacar a vítima à socapa e à sorrelfa, com umapedra na cabeça.
Espiolhei o processo de capa à capa. Aparentemente, não havia escapatória. A acusação era clara. Na estrada X, no interior do município de Rio Pardo, o acusado, utilizando-se de uma pedra, produzira na vítima os ferimentos que a levaram à morte. O réu, na fase policial, não negou o fato. Claro, sem advogado... Mas, pelo menos, alegou que batera na vítima em legítima defesa. Em juízo, negou o fato. Depois de muito folhear os autos do processo, descobri que, no laudo de necropsia, constava que os pulmões da vítima continham resíduos encontrados na água, como algas, etc. E como a vítima fora encontrada, deitada, afastada do açude, o processo teve uma viravolta. O laudo, não muito bem feito, deixava dúvida da causa mortis, se pela pedra na cabeça ou por afogamento.
Brandindo o laudo, sustentei que não estava provado que a vítima morrera em face da pedrada. Aliás, se houvera a pedrada, qual a razão, causa ou circunstância de a vítima aparecer com os pulmões repletos de substâncias que indicavam ter morrido de barriga para baixo, na rasa e suja água das calmas águas do açude mais próximo da estrada? Não teria havido uma terceira pessoa? Hein? Murmúrios na plateia da Câmara de Vereadores. Não esqueço a cara de espanto da acusação.
O promotor de Justiça, na réplica, “veio com tudo”. Alegou que a defesa não provara nada. E acrescentou: o que importa é que o Ministério Público provou que a vítima morreu e nas circunstâncias descritas na denúncia. Quem alega, prova, dizia Sua Excelência. Na tréplica, bati pé na tese de que a acusação não provara que o meu cliente dera cabo da indigitada vítima. O promotor me aparteou: “O jovem advogado quer negar a natureza das coisas.” E alfinetou: “Falta só o advogado dizer que a vítima não morreu.”Risos na plateia. Pensei: “Como posso convencer os jurados de que a prova era da acusação e não da defesa? E me veio a ideia (na verdade, uma epifania) de contar uma historinha para os jurados. E sabem qual foi a história? A das ovelhas do professor Sérgio. Mostrei para os jurados a diferença entre o ônus da prova no cível e o ônus da prova no crime. Isto é, não era eu quem tinha de provar que não fora o réu o culpado da morte da pobre da vítima e, sim, era o Doutor Promotor quem tinha de provar que o meu cliente matara a vítima e nas circunstâncias apontadas na denúncia. Meu cliente — dativo (pro bono) — foi absolvido por insuficiência de provas. Saí do júri “por cima da carne seca”, como se diz naqueles costados da Depressão Central gaúcha (mais tarde, por incrível que pareça, defendi o mesmo réu — de novo pro bono — por outro homicídio; desta vez foi mais fácil; de todo modo, ele, de novo, estava na hora errada no lugar errado).
Dias destes, rebuscando velhos papéis, deparei-me com minhas velhas colunas que escrevia, à época, para o Jornal de Rio Pardo (que ainda existe). E alguns apontamentos sobre o ônus da prova. Claro que isso aconteceu no início da década de 1980, bem antes da Constituição. Talvez por isso eu tenha me dedicado a estudar essa Constituição. Tendo, por vezes, acentuado o meu grau de misantropia, cada vez mais gosto da máxima de que “a Constituição é um remédio contra maiorias”. Como é bela essa máxima.
Quero dizer: no plano de uma teoria garantista, não há dúvidas de que o réu não tem o ônus da prova para demonstração de um álibi (ou de sua versão para os fatos que lhe são antepostos). Mas a sua versão — se optou por apresentar uma — deve, pelo menos, fazer sentido... Sob pena de ser engolido pelo “magma”. Algumas fantasias colocadas na boca do acusado podem ser “mortais”, como o argumento do matador no romance de Camus, embora, registre-se, ele tenha sido condenado por outra razão: a de ter ido ao enterro da mãe e não ter chorado (veja-se, novamente, a famosa “livre convicção” e quão perigosa ela é...!).
NO TJ-MG O MP NÃO PRECISA PROVAR ACUSAÇÃO; LÁ INVERTEM O ÔNUS DA PROVA
Na semana passada escrevi sobre as discrepâncias na interpretação e aplicação da teoria do bem jurídico em terrae brasilis. Mostrei como uma Portaria do Ministério da Fazenda descriminaliza sonegação fiscal. Trouxe à baila — por sofrer de LEER — a velha frase pela qual De La Torre Rangel denunciava as iniquidades da justiça na América Central: La ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos. Nosso Direito é pródigo nessas desproporcionalidades, bastando ver o tratamento dado ao crime de furto qualificado e à lavagem de dinheiro, sem contar a facilidade que é provar a qualificadora do furto e a dificuldade para comprovar o branqueamento de capitais. Qualquer laudo (sic) firmado por um marceneiro e um engenheiro vale. Quero ver fazer algo similar em crimes do colarinho branco...
Mas para quem achava que já víramos tudo, tomo conhecimento, por intermédio do conjurista Felipe Soares, de um conjunto de inconstitucionalidades que vem ocorrendo em Minas Gerais. Os leitores sabem de minha denuncia acerca do concurso público para o Ministério Público das Alterosas, em que o gabarito negava a existência do princípio da insignificância. Pois me deparo, agora, com dezenas de julgados — recentes — contendo teses das mais retrógradas em sede de direito penal e processual penal. Vejamos algumas:
"Presume-se a responsabilidade do acusado encontrado na posse da coisa subtraída,invertendo-se o ônus da prova, transferindo-se ao agente o encargo de comprovar a legitimidade da detenção da"res furtiva", mormente se não há prova da escusa apresentada." (Processo 1.0525.12.008540-8/001).
Há dezenas de julgados com essa mesma fundamentação, verbis:
“No crime de furto, presume-se a autoria se a coisa furtada é encontrada na posse injustificada do acusado, incumbindo ao possuidor demonstrar, de forma inequívoca, que a adquiriu legitimamente, a fim de elidir eventual delito” (10016130006501001 MG).
A pergunta que faço é: A Constituição não vale para aqueles lados? Inversão do ônus da prova no processo penal? Como assim?
Não há — e não pode haver — presunção de culpabilidade no direito penal. Além disso, o artigo 5º do Código de Processo Penal (CPP) ainda vale. E não há responsabilidade objetiva. Não há inversão do ônus prova. Nem mesmo é permitido usar a tese em direito penal de que álibi não provado, réu culpado. Quem deve provar a acusação é o Estado. O réu pode permanecer em silêncio. Esse silêncio não é imoral. Não é inconstitucional. A responsabilidade é só do Ministério Público. Mesmo que o sujeito seja pego com a mão na massa, isso não quer dizer que se inverta o ônus da prova. Aliás, se alguém é encontrado de posse da res furtivae, tal circunstância não passa de prova indiciária. Não há uma relação de causa e efeito inexorável. É como o sujeito que entra em uma sala molhado. E lá fora está chovendo. Isso quer dizer que ele veio da chuva? Provavelmente. Mas não prova que, por exemplo, não possa ter sido molhado de outro modo. Simples assim.
É lamentável que ainda hoje, no Brasil, queira-se aplicar no direito processual penal uma tese do, pasmem, direito do consumidor. Sim, no CDC existe a inversão do ônus da prova porque... Por que será? Ah, sim. Porque o consumidor é a parte mais fraca. Hipossuficiente. Pois é. Inverter o ônus da prova no direito penal-processual penal é o mesmo que dizer que, no confronto entre o Estado e o réu, a parte fraca... É o Estado. Dureza. Principalmente se o réu é um acusado de furto.
É tão incrível tudo isso que no processo 1.0701.13.04572300-01 o tribunal inverte também o ônus da prova testemunhal. Explico: segundo o julgado, cabe a defesa infirmar a credibilidade dos policiais depoentes, verbis:
“Para não se crer dos relatos extremamente coerentes dos policiais, civis ou militares, necessário seria a demonstração de seus interesses diretos na condenação do apelante, seja por inimizade ou qualquer outra forma de suspeição, pois, se de um lado o acusado tem razões óbvias de tentar se eximir da responsabilidade criminal, por outro, os policiais, assim como qualquer testemunha, não tem motivos para incriminarinocentes, a não ser que se prove o contrário, ônus que incumbe à Defesa”. (grifei)
Inacreditável. Será que existem professores que ensinam isso nas Faculdades de Minas Gerais? Será que tem algum compêndio jurídico que diz isso? Ou o judiciário das Alterosas tirou isso de um “grau zero de sentido”? Queria saber de onde tiraram que “É pacífico o entendimento jurisprudencial e doutrinário de que a apreensão de bens em poder do suspeito determina a inversão do ônus da prova, impondo ao acusado o dever cabal de explicar e provar os fatos que alega, com o intuito de elidir o delito ou demonstrar a aquisição daqueles”. Vou fazer um HDE (habeas data epistêmico): declinem-me em 24 horas os doutrinadores que sustentam isso.
Tem mais: No processo 1.0024.11.2829.84-1/001, o tribunal criou outra figura jurídica: a presunção do dolo, que, aliado à inversão do ônus da prova, torna impossível a absolvição de qualquer vivente, verbis:
"A posse da res furtiva, aliada às condições da prisão, mediante denúncia anônima, bem como diante da fragilidade da versão do agente e seu envolvimento com a criminalidade, faz presumir o dolo, conduzindo à inversão do ônus da prova, cabendo ao réu demonstrar o desconhecimento".
E a tese tem várias versões. Vejamos esta:
“Inverte o ônus probatório, a teor do disposto no art. 156 do CPP, o acusado que confessa o fato criminoso perante a autoridade policial, mas muda a versão dos mesmos fatos em juízo” (1.0456.06.04.7203-6/001).
No crime de recepção, o tribunal vai na mesma linha, verbis:
“Em se tratando de crime de receptação, em que o bem é apreendido na posse do réu, compete a este provar o desconhecimento quanto à origem ilícita.” (1.0103.13.002247-0/001).
Também para o crime de posse de arma a tese da inversão do ônus da prova vinga nas Alterosas:
“Tendo sido a ré surpreendida na posse da arma de fogo, inverte-se o ônus da prova.” (1.0024.11.283464.-3/001).1
No Processo 1.0342.13.018436.-5/001, além da inversão do ônus da prova, o tribunal nega a semântica mínima do CPP, verbis:
“A forma prevista no art. 226 do Código de Processo Penal, de que a pessoa reconhecida deva ser colocada ao lado de outras, embora aconselhável, não é reputada como essencial na fase judicial”.
Gostei do “embora aconselhável”. E qual é o critério do “desaconselhável”? Haveria um “aconselhavômetro para saber em que momento se deve obedecer o CPP?
O TJ-MG chega a dar efeito ex tunc à posse da res furtivae. Querem ver? Leiam:
"A demonstração da posse pretérita da res furtiva pelo réu induz à inversão do ônus probatório, fazendo-se presumir o dolo, cabendo a ele demonstrar a ignorância da origem ilícita do bem". (Processo 1.0713.09.101347-2/001).
Não satisfeito com o efeito ex tunc dado à posse da res, o tribunal arremeta, desautorizando o STF:
“O princípio da insignificância (bagatela) não foi recepcionado pelo ordenamento jurídico pátrio”. Bingo! Binguísimo!
O que dizer disso? Sem palavras. Os acórdãos que examinei — e foram muitos — são relatados por 11 desembargadores diferentes, o que significa que a tese está disseminada no TJ-MG. Não se trata de uma tese ou atitude voluntarista isolada. Já é uma postura, que, ao que tudo indica, tem o respaldo de pelo menos parte do Ministério Público de MG (basta ver o concurso que sufragou a tese da inexistência da insignificância) e parte do próprio tribunal. Não sei a posição da Defensoria Pública de Minas. Explicações para a coluna são bem vindas.
Portanto, nem é necessário dizer muito sobre essa jurisprudência jurássica sob comento. Inconstitucional. Mas o que impressiona nesse caso é o silêncio eloquente de quem deve fiscalizar a lei e o regime democrático: O Ministério Público. Espero que nos casos em que tal tese foi aplicada pelo TJ-MG, o Ministério Público, como guardião da Constituição, tenha se insurgido. Veementemente. E recorrido ao STJ em favor do acusado. Quando eu era membro do Ministério Público, agia desse modo. Recorria em favor do acusado quando lhe eram negados direitos constitucionais.
Um adendo: Em pequena pesquisa na internet, encontrei alguns artigos firmados por penalistas falando da possibilidade da inversão do ônus da prova, usando para tal a clássica frase de Malatesta (aquele que Mal-Atesta) de que o ordinário se presume e só o extraordinário de presume (sic). Seguramente quem sustenta isso não leu o que o Mal-atesta escreveu. Sim, porque tive a pachorra de ler o tal livro escrito no final do século XIX. De fato, reconheço que o-que-mal-atesta disse foi isso mesmo... Só que duas páginas depois ele se desdiz. Na verdade, o livro é um queijo suíço. Mas como em Pindorama se lê só a orelha, dá nisso (para quem duvida, leiam coluna minha sobre a AP 470, em que enfrento essa afirmação do N. Malatesta).
Observação: peço desculpas pela ironia, mas, do modo como se apresentam os tais julgados, o Ministério Público — pelo menos o que atua nessas Câmaras — deve ter sua vida facilitada nos processos criminais junto ao judiciário de Minas Gerais, mormente os de furto e estelionato. Não precisa provar nada. São os acusados que devem provar que não forem eles os autores! Se a moda pega... Ora, se é possível inverter o ônus da prova no crime, não precisamos mais de processo. Basta que esteja provado “o fato”. Se o acusado não conseguir provar o contrário, bingo! A “justiça” estará feita...! Mutatis, mutandis, isso não difere tanto assim daquilo que se chamava de ordálias ou “prova do demônio”. Aliás, poderíamos aprovar uma emenda ao CPP, dizendo: toda vez que a res furtivae é encontrada com alguém e este não provar que não é dele, estará dispensada a instrução criminal. Ou “se preteritamente o acusado esteve na posse da res, é ônus dele provar que não era produto de crime”. Talvez: “se o acusado disse algo no inquérito e depois muda a versão, é ônus só dele provar que aquilo que disse na delegacia não era verdadeiro” ou, ainda “cabe ao acusado infirmar a palavra dos policiais que efetuaram a apreensão da res furtivae; a presunção é de que os policiais falam a verdade”. “Nos crimes de furto, encontrado o acusado na posse da res, o juiz sentenciará de plano, não havendo o acusado demonstrado tese contrária no inquérito”. Boas sugestões para o novo CPP. Quem sabe também: “não cabe alegar insignificância”. Pouparíamos recursos da combalida Viúva.
Numa palavra final: não é implicância minha. Apenas defendo a Constituição. E tenho a mania de contar para todos aquilo que a maioria quer esquecer ou esconder (aqui parafraseio Hobsbawn sobre o papel do historiador). Por isso a Coluna se chama Senso Incomum.
Post Scriptum: para quem tem dúvida, o STF não admite a inversão do ônus da prova (HC 107448; HC 97.701; HC 70.274 e HC 88.344 — vale a pena a leitura desses acórdãos). Portanto, Minas está na contramão da Suprema Corte. Só falta avisar o TJ-MG (pelo menos parte dele).
FONTES PESQUISA:
http://www.conjur.com.br/2012-set-06/senso-incomum-devoradores-ovelhas-onus-prova
http://www.conjur.com.br/2015-fev-05/senso-incomum-tj-mg-mp-nao-provar-acusacao-la-invertem-onus-prova
REFERÊNCIAS:
1 Antes que leitores que usam epítetos esquisitos e que costumam fazerepistemic discourses of hatred (que são contra sempre o que o colunista escreve, independentemente do assunto e por isso estão se tornando extremamente chatos) venham com quatro pedra (sic — sem s) na mão, digo: não desconheço que noEREsp 961.863-RS (2010) o STJ entendeu que, para caracterizar a majorante prevista no roubo não é necessário periciar ou apreender a arma de fogo. Errou, mas o que fazer? (vejam o Post Scriputum desta coluna). Sim, sei também que há outros Estados da federação em que é comum, mormente nos casos de furto, adotar a tese da inversão do ônus da prova. Sim, sei também que somente em revisão criminal é que o ônus é do réu-autor-da-revisão (HC 68.437-STF). E sei muito bem que já em 1990 o ministro Assis Toledo (RHC 782-PE) dizia que não se podia presumir maus antecedentes contra o réu. Bingo! E há decisões peremptóriascontra o uso da tese, como esta: Apelação APL 15021220078260201 SP 0001502-12.2007.8.26.0201. (TJ-SP). Sei também que— infelizmente — até no TJ do Rio Grande do Sul existem decisões invertendo o ônus da prova no furto, como no processo 70060430394. E recomendo bons textos sobre o assunto, como a coluna de Alexandre Morais da Rosa, que cita a monografia de Gregório Camargo D’Ivanenko, apresentada no Cesusc, sob o título A inversão do ônus da prova no processo penal Brasileiro e sua incompatibilidade com a Constituição Federal (Florianópolis, 2012).

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