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JNTRODUÇÂO AO CULTO CRISTÃO V- James F. White INTRODUÇÃO AO CULTO CRISTÃO SEMINÁPIO O í f^ÓRDIA São Le peido - 6 I 3 U ' ' T E G A - i S e m i n á r i o C o n e ó r d i a I E P G ßSinodal 1997 Traduzido do original Introduction to Christian Worship, edição revis- ta. © 1990 Abingdon Press, Nashville (TN), Estados Unidos da América. Os direitos para a lingua portuguesa pertencem à Editora Sinodal Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo - RS Tel.: (051) 590-2366 Fax: (051) 590-2664 Capa: Editora Sinodal Tradução: Walter O. Schlupp Revisão: Gabriela Kirst Nelson Kirst Luís M. Sander Coordenação editorial: Luís M. Sander Série: Teologia Prática - Auxílios Litúrgicos 1 Seminário Concórdia Biblioteca Sist. n , 96^99. Data tZ-lOr IO' Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações Teológicas/ MsSuto Ecumênico de Pós-Graduação (IEPG) da Escola Superior de Teologia (EST) da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). -_ Arte-finalização e impressão: Editora Sinodal CIP - BRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO Bibliotecária responsável: Rosemarie Bianchessi dos Santos CRB 10 797 W5851 White, James F. Introdução ao culto cristão / James F. White ; tradução de Walter Schlupp - São Leopoldo : Sinodal, 1997. 267 p. Tradução do original: Introduction to Christian Worship ISBN 85-233-0437-1 1. Teologia prática. I. Título. CDU 24 Sumário • Prefácio (Edição de 1990) 5 Prefácio (Edição de 1980) 7 Capítulo 1: Que Queremos Dizer com "Culto Cristão"? 11 O Fenômeno do Culto Cristão 12 Definições de Culto Cristão 14 O Linguajar Cristão sobre o Culto 19 Diversidade na Expressão do Culto Cristão 24 Constância nos Tipos de Manuais de Culto 30 Capítulo 2: A Linguagem do Tempo 37 A Configuração do Tempo Cristão 38 Teologia a partir do Ano Cristão 53 Funcionamento do Ano Cristão 56 Capítulo 3: A Linguagem do Espaço 66 As Funções do Espaço Litúrgico 68 História da Arquitetura Litúrgica 73 Música e Espaço Litúrgicos 83 Arte Litúrgica 89 Capítulo 4: Oração Pública Diária 95 Histórico da Oração Pública Diária 96 Reflexões Teológicas 107 Considerações Práticas 109 Capítulo 5: A Liturgia da Palavra 111 Histórico da Liturgia da Palavra 111 Teologia da Liturgia da Palavra 123 Questões Pastorais 126 Capítulo 6: O Amor de Deus Tornado Visível 131 O Desenvolvimento da Reflexão sobre os Sacramentos 133 Nova Compreensão dos Sacramentos 146 Capítulo 7: Iniciação Cristã 153 O Desenvolvimento da Iniciação Cristã 153 Teologia da Iniciação Cristã 165 Aspectos Pastorais da Iniciação Cristã 172 Capítulo 8: A Eucaristia O Desenvolvimento da Prática Eucarística . Compreensão de Eucaristia Ação Pastoral Capítulo 9: Jornadas e Passagens Reconciliação Ministério junto aos Enfermos Matrimônio Cristão Ordenação Profissão ou Comissionamento Religioso .. Sepultamento Cristão Notas Bibliografia Abreviaturas índice Remissivo Prefácio (Edição de 1990) Passada mais uma década em que lecionei culto cristão, fico estupe fato com quantas mudanças os últimos dez anos trouxeram para o mundo, para a igreja, para a ciência litúrgica e para as minhas próprias perspectivas. Uma nova edição parece necessária para que este livro continue atendendo adequadamente a seus leitores e suas leitoras. O próprio mundo aproximou-se mais daquilo que parece ser uma era de paz e um futuro de esperança. A igreja mudou em vários sentidos, e uma das mais importantes mudanças é a ampla aceitação de novas práticas no culto, as quais, em certas igrejas, acabaram sacramentadas pela inclusão em novos manuais de culto. Até mesmo os livros católicos romanos pós-Vaticano II estão sendo editados em novas versões, como o recente Ritual de Exéquias (1989); igualmente traduções dos últimos livros revisados (Ritual de Bênçãos, Cerimonial dos Bispos) finalmente saíram do prelo (1989). Outras igrejas produzi- ram novos manuais de culto, como The United Methodist Hymnal (1989) e The Preshyterian Hymnal (1990), que fazem com que livros anteriores fiquem obsoletos. A ciência litúrgica também não parou no tempo. Durante a última década fomos supridos com mais estudos acadêmicos sobre o culto do que em qualquer década anterior. Diversas editoras estão pela primeira vez apresentando títulos sobre culto em seus catálogos. Provavelmente há mais liturgistas nos Estados Unidos hoje do que na soma de todas as outras épocas da nossa história. A minha própria ótica a respeito de muitas coisas mudou na medida em que, após 23 anos de docência em seminário, passei a ensinar aqueles/as que estão agora lecionando em seminário ou brevemente passarão a fazê-lo. Aprendi muito com meus alunos e minhas alunas e fico feliz em constatar que suas contribuições para a igreja e para o mundo acadêmico se ampliam cada vez mais. Muito do que aprendi durante esses últimos dez anos acarretou as mudanças que se encontram nestas páginas. Fico maravilhado e ao mesmo tempo perplexo pelo sucesso deste livro, que superou em muito as minhas expectativas. Ao que parece, ele se tornou o compêndio sobre culto mais amplamente usado em seminá- rios americanos, tanto católicos romanos quanto protestantes, e até mesmo ortodoxos e carismáticos. Isto me intimida um pouco; eu não gostaria de alterar qualquer que seja a fonte do seu atrativo. Mas quero, sim, torná-lo mais útil para todos/as. Por isso tentei adaptá-lo mais aos católicos romanos e a uma gama mais diversificada de protestantes. Isto exigiu certas mudanças estruturais. Agora há mais material sobre culto e justiça, bem como capítulos à parte sobre a oração diária e sobre a liturgia da palavra. A seção sobre a reconciliação foi transferida do capítulo sobre a iniciação para o capítulo final, acrescentando-se ali mais material sobre o comissionamento ou profissão religiosa. Essas alterações, assim espero, farão com que o material seja mais fácil de acompanhar. No livro faço referência às edições atuais de cerca de 50 dos manuais de culto mais amplamente usados na América do Norte de fala inglesa e nas Ilhas Britânicas. Essas referências se encontram em tabelas ao final de cada seção em questão. Os cerca de 600 termos em negrito se revelaram úteis para estudantes ao recapitularem o vocabulário básico necessário para o estudo do culto. Cada termo é definido no contexto. Pensei em incluir ilustrações. Hesitei, entretanto, não só pelo que isto teria significado para o preço, mas também pelo fato de cada ilustração ser tão específica culturalmente, que ela tende a limitar a imaginação a si própria, quando em quase todos os casos eu gostaria de retratar uma grande variedade de possibilidades. Muitas vezes se pode fazê-lo mais facilmente sem fotografias do que com elas. Gostaria de agradecer a diversos/as estudantes por suas contribui- ções, particularmente a meus assistentes de pós-graduação, Michael Moriarty e Grant Sperry-White, que foram muito além de checar deta- lhes, apresentando sugestões concretas para importantes melhorias. Agradeço igualmente a Nancy Kegler, Sherry Reichold e Cheryl Reed por sua habilidade em produzir um manuscrito claro a partir de meu original desordenado. Por fim, tenho uma grande dívida para com minha esposa, Dr 8 Susan J. White, por sua habilidade acadêmica em melhorar o manuscrito e pela paciência com o autor tantas vezes preo- cupado. Que esta nova edição venha prestar um bom serviço às igrejas. Universidade de Notre Dame 18 de setembro de 1989 James F. White Prefácio (Edição de 1980) Depois de passar 20 anos lecionando, a gente necessariamente acaba por formar uma opinião sobre algumas questões. Daqui a duas décadas tenho certeza de que o meu juízo a respeito de certos assuntosestará mais maduro. Mas, a meio caminho andado, esta parece ser uma boa ocasião para reunir o que ensinei e antever aquilo que ainda preciso aprender. A experiência de escrever este livro é um maravilho- so exercício de condensar num único volume tudo que fiz ao longo de vários anos. Quando embarquei neste ministério, havia poucos que lecionavam culto cristão. Atualmente, nada me dá prazer maior do que ter tantos/as companheiros/as novos/as neste trabalho com os/as quais posso compartilhar os resultados do labor que desenvolvi até hoje e visualizar o futuro para onde eles/as irão. Espero que este livro lhes ajude em seu ensino, até que encontrem maneira melhor de interpretar o culto cristão. Com Pedro Lombardo posso dizer: "Se alguém conseguir explicar isto melhor, não ficarei com inveja." Tentei expor nestas páginas de forma tão sucinta quanto possível tudo aquilo que considero ser informações essenciais para munir al- guém dos elementos necessários para o ministério da liderança no culto. Tentei incluir tudo que realmente se precisa saber para planejar, preparar e conduzir um culto cristão, deixando fora os detalhes referen- tes aos costumes ou aos manuais de culto pertinentes à denominação de cada um/a. As informações contidas neste livro deveriam ser relevantes por igual tanto para pastores/as ou sacerdotes quanto para membros leigos de comissões de culto. Naturalmente terão que complementar este material com sua familiaridade com seus próprios costumes ou manuais de culto. Para facilitar essa tarefa, fiz referência neste livro aos manuais de culto mais amplamente usados, ou seja, àqueles usados pela maioria dos cristãos de língua inglesa nos Estados Unidos. Alusão freqüente é feita aos manuais católicos romanos revisados, particularmente o ritu- al, o sacramental e o pontifical. O novo Lutheran Book oí Worship foi publicado justamente quando estas páginas foram iniciadas, e é bem provável que o novo Book oí Common Prayer americano receba aprova- ção final pouco antes da publicação deste livro. Assim sendo, pude fazer referência a ambos. Como estou profundamente envolvido na edição do Supplemental Worship Resources da Igreja Metodista Unida, foi possí- vel fazer referência àqueles volumes já publicados e àqueles ainda por serem publicados, bem como ao Book of Worship de 1965. Remeto o/a leitor/a também ao Worshipbook presbiteriano de 1970 e ao Services of the Church (1969) e ao Hymnal (1974) da Igreja Unida de Cristo. A ocasião é adequada para se resumir o que foi realizado na onda de revisões litúrgicas pós-Vaticano II, quase completas atualmente. No túmulo do papa Martinho V estão gravadas as palavras: "Sua época foi de felicidade." Esta parece ser uma descrição apropriada da situação ecumênica do culto na nossa época. Podemos ver na última década e meia de revisão litúrgica um período de felicidade em que as igrejas do mundo se aproximaram mais compartilhando suas riquezas de culto umas com as outras. Não há evidência maior das conquistas ecumênicas do nosso tempo do que a reaproximação ocorrida no culto cristão nos anos 60 e 70. Assim sendo, é possível agora escrever uma introdução ao culto cristão que, assim espero, atenderá tanto a católicos romanos quanto a protestantes. O estudo do culto cristão pode oferecer a qualquer pesquisador/a interessado/a um recurso valioso para a compreensão do próprio cris- tianismo. Não há maneira melhor de se descobrir o cerne do cristianis- mo do que tornar-se mais ciente daquilo que os cristãos fazem quando se reúnem para o culto. Tanto a pessoa cristã quanto a não-cristã podem aprender muito sobre a tradição religiosa dominante na cultura ocidental ao incrementar seu conhecimento sobre o culto cristão. Este livro pretende ser uma introdução ao culto cristão. Mas é tam- bém uma interpretação do assunto. Não hesitei em arriscar novas percepções e interpretações a que eu próprio cheguei. Outras pessoas podem e hão de refutar algumas delas. Aquilo que for válido nessas interpretações permanecerá; o que não o for será substituído por al- guém mais perceptivo. Experimentei e aprimorei ao longo dos anos a organização básica do assunto e vários detalhes ao usá-los com minhas alunas e meus alunos. É estimulante antever que outras pessoas desen- volverão interpretações mais satisfatórias nos próximos anos. Muita pesquisa ainda precisa ser feita em estudos litúrgicos. Muitas áreas ainda são misteriosas, como as origens do culto sinagogal, as fontes do Dia de Reis (Epifania), os detalhes do ofício das catedrais, o cânone romano entre Hipólito e Ambrósio e a gênese do culto dominical normal usado nas tradições americana reformada, metodista e das igrejas li- vres. Se este livro puder induzir outras pessoas a ficar na expectativa prazerosa por pesquisa vindoura, terá sido uma bem-sucedida introdu- ção e interpretação. Embora boa parte do livro seja de natureza acadêmica, todo ele está direcionado para o aspecto pastoral no sentido de fortalecer a liderança de culto nas comunidades cristãs. Boa parte está formulada de maneira descritiva a fim de descrever o que foi e por que, porém a maioria dos capítulos são concluídos com uma seção normativa sobre o que deveria ser, e por que o deveria, nas igrejas hoje em dia. As seções descritivas fornecem o pano de fundo para as partes normativas. Qualquer pessoa encarregada de liderança no culto tem a responsabilidade de tomar muitas decisões. Entretanto, essas decisões só podem estar bem infor- madas quando se basearem em todos os fatores relevantes. Por isso em cada capítulo as informações históricas e teológicas precedem as se- ções pastorais. Quando normas pastorais para ações são enunciadas, isto sempre é feito em termos daquilo que os cristãos têm praticado e como têm refletido a respeito dessas práticas. O culto cristão, da mes- ma forma como a ética cristã, é um assunto tanto descritivo quanto normativo. Decisões específicas precisam ser tomadas localmente em função das pessoas e dos lugares, porém tentei esboçar normas amplas dentro das quais se possam tomar decisões pastorais. Não é fácil condensar toda uma disciplina nas páginas de um livro de modestas dimensões. Quase cada parágrafo representa material que poderia preencher um livro inteiro ou vários livros. Tive que reduzir livros a parágrafos, capítulos a frases, dando pouco espaço para funda- mentar afirmações. Essa frustração foi ligeiramente atenuada pela rela- ção da bibliografia afim ao final do livro e nas notas. Muitos livros essenciais estão citados nas notas, e essas referências não são repeti- das nas bibliografias. Tive que me concentrar em prioridades de interes- se mais amplo, eliminando todas as outras. Um número desproporcio- nalmente reduzido destas páginas discute o culto nas igrejas ortodoxas orientais, uma vez que a maioria de minhas leitoras e meus leitores representa a cristandade ocidental e terá interesse maior em sua pró- pria ascendência linear do que numa linha colateral. Pouco se encontra aqui sobre a liturgia do bispo, que interessa a uma minoria reduzida (e não oprimida). Também os interesses específicos de congregações mo- násticas receberam pouca atenção. Concentrei-me nas práticas e conceitos da igreja dos primeiros qua- tro séculos. Se se sabe quais foram as decisões tomadas pela igreja neste período e seu porquê, todo o resto é simples. Boa parte da cristan- dade hoje em dia se encontra num estágio de resgate das práticas e conceitos dos primórdios. O futuro é que julgará se romantizamos demais ou não o período inicial. Seja como for, o conhecimento das decisões tomadas no período inicial é essencial para se compreender todos os desdobramentos subseqüentes. A fim de facilitar o estudo, coloquei nomes e termos centrais e algu- mas datas em negrito. Boa parte da introdução a qualquer assunto consistena familiarização com o vocabulário básico. As palavras e expressões essenciais para os estudos litúrgicos são tornadas mais conspícuas, de modo que os/as estudantes possam fazer a recapitula- ção verificando sua familiaridade com tais termos. Hoje em dia estamos mais conscientes do que nunca de quão rapida- mente nossa linguagem está mudando. Isto é particularmente evidente no caso de termos que indicam identidade sexual. A resolução futura dessas mudanças ainda é incerta, e termos que usamos hoje ainda têm caráter provisório. Alguns dos que adotei indubitavelmente parecerão desconhe- cidos e duros. Mas a infelicidade é melhor do que a injustiça, e apenas o tempo dirá que termos virão a prevalecer no que se refere a Deus. Tenho que solicitar que meus leitores e minhas leitoras sejam indulgentes com termos provisórios enquanto evolui o uso no vernáculo. Este livro representa a contribuição de muitas pessoas que deram de si para torná-lo uma obra melhor. Sou grato às seguintes pessoas: Dr. Hoyt L. Hickman, Dr. Richard Eslinger e Elise Shoemaker, da Seção sobre Culto da Junta de Discipulado da Igreja Metodista Unida; meus colegas da Perkins School of Theology, professor H. Grady Hardin, professor Virgi l P. Howard e decano Joseph D. Quillian, Jr.; professor Don E. Saliers, da Candler School of Theology; Arlo Duba, do Princeton Theological Seminary; professor Will iam Crocket, da Vancouver School of Theology; Louise Shown e Irmã Nancy Swift, do St. John's Seminary, por lerem e comentarem com muita propriedade o manuscrito. Ainda estou aprendendo muito com meu professor de seminário Paul W. Hoon, que continuou a ensinar-me por meio de seus comentários e suas corre- ções a respeito destas páginas. O professor Decherd H. Turner, Jr., diretor da Bridwell Library, tem dado muito de si para ajudar muitas outras pessoas a abraçarem a carreira acadêmica. Reconheço sua cons- tante generosidade dedicando este livro a ele. Bonnie Jordan fez prodígios ao decifrar meu manuscrito a uma dis- tância de 1.900 milhas e transformá-lo em cópia limpa e ordenada. Minha esposa e filhos foram muito negligenciados durante esses dias em que mereciam mais da companhia que dediquei exclusivamente à máquina de escrever. Peço o seu perdão e espero ficar mais humano agora que estas páginas estão concluídas. Passumpsic, Vermont 5 de março de 1979 Capítulo 1 Que Queremos Dizer com "Culto Cristão"? Para se falar de modo inteligente sobre '!ciillQ_ cristão", é preciso decidir primeiro o que o termo significa exatamente. Não é uma expressão fácil de definir. Mas enquanto não se fizer uma reflexão sobre o que distingue o culto cristão autêntico, é fácil confundir esse culto com acréscimos irrelevantes de culturas atuais ou passadas em que os cristãos celebraram culto. Em primeiro lugar, a própria palavra "culto" já é exasperadoramente difícil de se definir. O que distingue o culto de outras atividades huma- nas, particularmente daquelas que se caracterizam por sua freqüente repetição? Por que o culto é uma atividade diferente das tarefas diárias ou de qualquer ato habitual? Mais especificamente, qual é a diferença entre o culto e outras atividades que se repetem na própria comunidade cristã? Por exemplo, o que distingue o culto da educação cristã ou de obras de caridade? Em segundo lugar, depois de resolver o que queremos dizer com "culto", como vamos determinar o que torna tal culto "cristão"? Nossa cultura está cheia de vários outros tipos de culto. Diversas re l ig iões orientais foram introduzidas em muitas comunidades. Muitas praticam culto, porém obviamente ele não é cristão. Quais características distintivas tornam "cr istão" este ou aquele culto? Aliás, será sempre "cr istão" todo culto celebrado pela comunidade cristã? Nenhuma dessas questões é fácil de se resolver, mas elas certamente precisam ser examinadas. E não são pura e simplesmente assunto especulativo de interesse apenas teórico. A definição do que caracteri- za especificamente o culto cristão é uma ferramenta prática vital para qualquer pessoa que tenha a responsabilidade de planejar, preparar ou conduzir o culto cristão. Em anos recentes, o aparecimento de muitas formas novas de culto fez com que este tipo de análise básica se tornas- se ainda mais crucial para as pessoas encarregadas do ministério do culto. Elas precisam constantemente participar de decisões ao servi- rem à comunidade cristã através da condução do culto. Quanto mais prática é a decisão, tanto mais necessária se torna muitas vezes a fundamentação teórica. Será determinado ato, como por exemplo o voto de lealdade à bandeira nacional, adequado dentro de um culto cristão? Ou estará fora de lugar? Deveriam outros atos, como a celebração da adoção de uma criança, que não temos habitualmente incluído no culto, ter um lugar na vida cultual da igreja? Ou é algo impróprio no culto cristão? Somente tendo uma definição funcional de "culto cristão" é que se pode enfrentar esse tipo de problema. Explorarei três métodos para esclarecer o que queremos dizer com "culto cristão". Tenho sentido cada vez mais que a abordagem mais adequada é a fenomenológica, a qual simplesmente relata e descreve o que os cristãos em geral fazem ao se reunir para o culto. Embora este possa parecer o método mais simples e direto, a observação cuidadosa é essencial se quisermos entender exatamente o que significam de fato as estruturas ou ofícios que os cristãos usam repetidas vezes para o culto. A maior parte deste livro se concentrará na descrição do desenvol- vimento, da teologia e do uso de estruturas ou ofícios que estão efetiva- mente em prática. Em segundo lugar convém explorar algumas defini- ções de maior abstração, as quais uma série de pensadores cristãos usaram para expor o que entendem ser o culto cristão. E um terceiro método consistirá em examinar algumas das palavras-chave que os cristãos escolhem com maior freqüência (em diversos idiomas) para v expressar o que experimentam como culto. Esses três métodos deve- riam forçar-nos a refletir sobre o que queremos dizer quando falamos de "culto cristão". E finalmente, antes de aceitarmos definições demasi- ado simples, precisamos considerar também alguns dos fatores que proporcionam tanto diversidade quanto constância ao. culto cristão. - O Fenômeno do Culto Cristão -- Uma das melhores maneiras de resolver o que queremos dizer com culto cristão é descrever as formas exteriores e visíveis através das quais os cristãos praticam culto. Esta abordagem encara todo o fenôme- no do culto cristão como ele poderia se apresentar a um observador desvinculado e alheio tentando entender o que é que os cristãos fazem ao se reunir. Isto fica mais fácil pelo fato de que, apesar de ocorrer em diferentes culturas e épocas históricas, o culto cristão tem utilizado formas nota- velmente estáveis e permanentes. Designaremos essas formas como estruturas (como um calendário para organizar o culto ao longo de um ano) ou ofícios (como a ceia do Senhor). Apesar de constantes adapta- „ções, elas têm demonstrado notável durabilidade. Uma maneira de des- crever o culto cristão é simplesmente alistar (como faremos agora) essas principais estruturas e ofícios. Não precisamos entrar em gran- des detalhes aqui, uma vez que a maior parte dos outros capítulos do livro o farão de forma bem mais aprofundada. Mesmo dentro do. Novo Testamento vemos indicações da existência de uma estrutura semanal do tempo. Essa estrutura foi elaborada cedo, em diversos calendários anuais para comemorar eventos na memória da comunidade cristã: a morte e ressurreição de Cristo, por exemplo, e atos em memória de diversos mártires locais. Posteriormente elabora- ram-se horários diários para a oração pública e particular. A programa- ção temporal diária, semanal e anual continuam sendocomponentes importantes do culto cristão; a sua utilização será estudada no capítulo 2. Mas, tendo em vista nosso objetivo imediato, já podemos dizer que o j3ulto cristão é um tipo de culto que se baseia fortemente na estruturação do tempo para cumprir seus objetivos. Da mesma forma como julgaram necessário estruturar o tempo, os cristãos sempre acharam conveniente organizar o espaço para abrigar B possibilitar seu culto. Embora diversas formas tenham sido experi- mentadas ao longo dos séculos e em diferentes culturas, as exigências em termos de espaço e mobiliário também têm sido notavelmente con- sistentes. A elas nos dedicaremos no capítulo 3. ' Antigo e contínuo é o uso de um pequeno número de tipos básicos de ofícios. Em primeiro lugar estão os ofícios de oração pública diária. Eles podem tomar várias formas (como veremos no capítulo 4), mas a função de oração e louvor faz deles um componente característico do culto cristão. Outro tipo de ofício tem seu foco na leitura e pregação da Escritura, sendo por isso muitas vezes denominado ' l iturgia da palavra". É conhe- cido como o culto dominical protestante habitual; também é a primeira parte da eucaristia ou ceia do Senhor. Examinaremos as formas deste tipo básico de ofício no capítulo 5. Ele constitui um tipo constante, que muitos cristãos identificariam como sua experiência primordial do que é culto cristão. Praticamente toda comunidade cristã tem meios de distinguir entre as pessoas que fazem parte dela e as estranhas. Em termos de culto, isto ocorre em várias cerimônias de iniciação cristã. O batismo é o mais amplamente conhecido desses ritos, porém a catequese, confirmação, primeira comunhão e várias formas de renovação, afirmação ou reafirmação do compromisso batismal também são partes importantes do processo ritual. Nos últimos anos a maioria das denominações cris- tãs teve que repensar sua teologia e prática para o preparo de um cristão, conforme veremos no capítulo 7. Desde os tempos do Novo Testamento temos testemunho de cristãos reunindo-se para celebrar o que Paulo chama de "ceia do Senhor" (1 Co 11.20). Para muitos cristãos esta é a forma arquetípica do culto cristão. Somente uma pequena minoria evita celebrá-la em formas exteriores. Em muitas igrejas ela é uma experiência semanal ou mesmo diária. O capítulo 8 se ocupará das formas e do significado da ceia do Senhor. Finalmente, existe uma variedade de ritos pastorais comuns, sob uma ou outra forma, a quase todas as comunidades cristãs cultuantes. Alguns deles assinalam etapas na jornada da vida que podemos ou não repetir: ofícios de perdão e reconciliação, ou ofícios de cura e bênção para os doentes e moribundos. Outros são ritos de passagem como casamentos, ordenações, profissão religiosa ou funerais. Muitos desses ritos pastorais são ofícios ocasionais celebrados apenas quando a oca- sião assim exige. Muitas etapas e experiências da vida são comuns a todas as pessoas, sejam elas cristãs ou não. Ofícios ocasionais para assinalar essas jornadas ou passagens encontraram lugar permanente no culto cristão. Exploraremos esses ritos pastorais no capítulo 9. Obviamente, essas sete estruturas e ofícios básicos não cobrem todas as possibilidades do culto cristão, mas descrevem efetivamente a vasta maioria de casos em que esse culto ocorre. Podem-se acrescentar a elas diversos encontros para oração, concertos sacros, reavivamentos, novenas e uma ampla gama de devoções. Mas na maior parte do cristianismo todos estes elementos são claramente subsidiários em relação aos sete mencionados e são até certo ponto dispensáveis. Conseqüentemente, nossa exposição neste livro se ocupará sobretudo das sete estruturas e ofícios básicos, mencionando ocasionalmente outras possibilidades. Assim, nossa primeira resposta para a pergunta: "Que é culto cris- tão?" é simplesmente relacionar e descrever as formas básicas que ele assume e dizer que estas são as que melhor o definem. Mas precisamos investigar também outras abordagens. Definições de Culto Cristão Nossa intenção ao examinar as várias maneiras como diferentes pensadores cristãos falam sobre o culto cristão não é fazer um estudo comparativo, mas estimular a reflexão. A melhor maneira de se enten- der o significado de qualquer termo é observá-lo em uso, ao invés de dar uma simples definição. Portanto, daremos uma olhada por sobre os ombros de pensadores protestantes, ortodoxos e católicos para ver como usam o termo. Nenhum dos seus variados usos do termo exclui outros. Freqüentemente eles se sobrepõem, mas cada uso acrescenta novas percepções e dimensões, complementando assim o resto. Este esforço de dizer o que queremos dar a entender e de dar a entender o que dizemos é um esforço contínuo, sujeito a revisão à medida que nossa compreensão do culto cristão amadurece e se aprofunda. O professor Paul W. Hoon deu uma grande contribuição para os estudos litúrgicos em seu importante livro The Integrity of Worship, publicado em 1971. Escrevendo a partir da tradição metodista, Hoon preocupa-se com "discernimento teológico bem como sensibilidade para culturas". Do princípio ao fim ele enfatiza o centro cristológico do culto cristão, o qual "por definição é cristológico, e a análise do significado do culto também precisa ser fundamentalmente cristológica" 1. Tal culto é profundamente encarnacional por ser governado por todo o evento de Jesus Cristo. Q-culto-cristão está vinculado diretamente aos eventos da história da salvação. Cada evento nesse culto está ligado diretamente ao tempo e à história enquanto cria pontes para eles e os traz para dentro do nosso presente. O "núcleo do culto", diz Hoon, "é Deus agindo para dar sua vida ao ser humano e para levar o ser humano a participar dessa vida". Por isso, tudo que fazemos como indivíduos ou como igreja é afetado pelo culto. A vida cristã, afirma Hoon, é uma vida litúrgica. Hoon sustenta que "o culto cristão é a auto-revelação de Deus em Jesus Cristo e a resposta do ser humano", ou uma ação dupla: a ação de "Deus para com a alma humana em Jesus Cristo e a ação responsiva do ser humano através de Jesus Cristo". Por meio de sua palavra, Deus "revela e comunica seu próprio ser ao ser humano". As palavras-chave na compreensão de Hoon a respeito do culto cristão parecem ser "reve- lação" e "resposta". No centro de ambas está Jesus Cristo, que revela Deus a nós e por meio do qual damos a nossa resposta. Trata-se de uma relação recíproca: Deus toma a iniciativa dirigindo-se a nós por meio de Jesus Cristo e nós respondemos por meio de Jesus Cristo, usando uma variedade de emoções, palavras e ações. O pensamento de Peter Brunner, teólogo luterano que lecionou por muitos anos na Universidade de Heidelberg, é paralelo ao de Hoon em muitos aspectos, porém ele se expressa em termos bastante diferentes em sua importante obra Worship in the Name of Jesus. Brunner desfruta da clara vantagem de usar o termo alemão para designar o culto, Gottesdienst, que tem tanto a conotação de serviço de Deus aos seres humanos quanto a de serviço dos seres humanos a Deus. Brunner apro- veita essa ambigüidade e fala da "dualidade" do culto. O cerne do livro consiste em dois capítulos intitulados "Culto como serviço de Deus à comunidade" e "Culto como serviço da comunidade perante Deus". Nes- ta dualidade vemos similaridades com os conceitos de revelação e respos- ta de Hoon, porém mais uma vez é necessário cautela, uma vez que Deus é atuante em ambas. Do início ao fim, é Deus sozinho que torna o culto possível: "A dádiva de Deus evoca a entrega humana a Deus."2 A autodoação de Deus ocorre tanto em eventos históricos passados quanto na atual "realidade-palavra do evento" no qual até mesmo a obra humana da proclamação é, a rigor, ação de Deus. O mesmo se aplica aos sacramentos, nosquais, por meio das nossas ações, é Deus que atua. Brunner cita Lutero, que declara, a respeito do culto, "que nele nenhu- ma outra coisa aconteça exceto que nosso amado Senhor ele próprio fale a nós por meio de sua santa palavra e que nós, por outro lado, falemos com ele por meio de oração e canto de louvor". Os seres huma- nos respondem aos atos divinos de revelação falando a Deus pela ora- ção e pelos hinos "como ato da nova obediência conferida pelo Espírito Santo". A oração, diz Brunner, "é a permissão que Deus dá a Seus filhos de juntar suas vozes à discussão das Suas questões". Assim sendo, a dualidade do culto, para Brunner, é encoberta por um foco único, que é a atividade de Deus tanto em se nos autodoar quanto em instigar nossa resposta às suas dádivas. Como nossos outros pensadores, o professor Jean-Jacques von Allmen afirma a base cristológica do culto cristão em seu importante livro O Culto Cristão: Teologia e Prática. Escrevendo dentro da tradição refor- mada, este ex-professor da Universidade de Neuchâtel na Suíça defende vigorosamente a compreensão do culto cristão como a recapitulação daquilo que Deus já fez. O culto, diz ele, "resume e confirma sempre de novo a história da salvação cujo ponto culminante se encontra na inter- venção encarnada do Cristo. Nesse resumo e confirmação reiterados, o Cristo continua sua obra salvadora por meio do Espírito Santo" 3. Tal culto está estreitamente ligado à crônica bíblica dos eventos salvíficos. Ele proporciona uma síntese renovada do que Deus fez e uma antecipa- ção renovada do que ainda virá a ser. A descrição de von Allmen acerca do culto da igreja apresenta outros aspectos importantes. Q culto é a "epifania da igreja", a qual, visto que resume a história da salvação, capacita a igreja a "tornar-se ela mesma, tomar consciência de si mesma e se confessar entidade específica". A igreja ganha sua identidade no culto na medida em que sua verdadeira natureza é tornada manifesta e ela é levada a confessar sua própria essência. Porém o mundo também é profundamente afeta- do pelo culto cristão. O culto é ao mesmo tempo ameaça de juízo e promessa de esperança para o próprio mundo, mesmo que a sociedade secular professe indiferença em relação àquilo que os cristãos fazem quando se reúnem. O culto cristão contesta a justiça humana e aponta para o dia em que todas as conquistas e fracassos serão julgados, oferecendo, porém, esperança e promessa pela afirmação de que, em última análise, tudo está nas mãos de Deus. Para von Allmen, o culto cristão tem três dimensões-chave: recapitulação, epifania e juízo. Escrevendo a partir da tradição anglo-católica, Evelyn Underhill pu- blicou seu clássico estudo Worship em 1936. Ela expressou uma série de concepções de que já tratamos, apresentando, porém, algumas per- cepções distintas. Seu livro principia com as palavras: "O culto, em todos os seus graus e tipos, é a resposta da criatura ao Eterno." O ritual p~eTò~qual se expressa todo culto público emerge, diz ela, "como uma emoção religiosa estilizada". O culto se caracteriza pela "concepção do cultuante a respeito de Deus e sua relação com Deus". O culto cristão se distingue por ser "sempre condicionado pela crença cristã; e particular- mente pela crença sobre a natureza e a ação de Deus, resumida nos grandes dogmas da trindade e da encarnação". Outra característica do culto cristão é seu "caráter profundamente social e orgânico", o que significa que ele nunca é um empreendimento solitário. Longe de ser culto em geral, "o culto cristão", declara ela, "é uma ação sobrenatural, uma vida sobrenatural" implicando "uma resposta bem definida a uma revelação bem definida". O culto cristão tem um caráter concreto, pois somente por meio do "movimento do Deus perma- nente em direção a sua criatura é dado o incentivo para o mais profun- do culto do ser humano e é feito o apelo para seu amor sacrificai (...) Oração e (...) ação são maneiras pelas quais ele responde a essa mani- festação da Palavra." 4 Idéias um tanto semelhantes são expressas a partir da perspectiva ortodoxa pelo falecido professor Georg Florovsky: "O culto cristão é a resposta dos seres humanos ao chamado divino, aos 'prodígios' de Deus, cuhiiinandono ato redentor de Cristo," 5 Florovsky faz questão de enfatizar a natureza comunitária desta resposta ao chamado de Deus: "A existência cristã é essencialmente comunitária; ser cristão significa estar na comunidade, na igreja." É nesta comunidade que Deus atua no culto, tanto quanto os próprios cultuadores. Como resposta à obra de Deus tanto no passado quanto em nosso meio, "o culto cristão é primor- dial e essencialmente um ato de louvor e adoração, que também implica grato reconhecimento pelo amor abrangente e bondade redentora de Deus" 6. Essas idéias são reforçadas por outro teólogo ortodoxo, _Niko.s_A.. Nissiotis, que enfatiza a presença e as ações da trindade no culto. Declara ele: "O culto não é primordialmente iniciativa do ser humano, mas ato redentor de Deus em Cristo por meio do seu Espírito." 7 Da mesma forma que Brunner, Nissiotis enfatiza a "absoluta prioridade de Deus e seu ato", que os seres humanos somente podem reconhecer. Pelo poder do Espírito Santo, a igreja como corpo de Cristo pode oferecer o culto que é agradável como ato tanto proveniente da trindade quanto direcionado para ela. Em círculos católicos romanos tem sido comum descrever o culto como "a glorificação de Deus e a santificação da humanidade". Esta expressão provém de um motu próprio clássico de 1903 sobre música na igreja, de autoria do papa Pio X, no qual ele falou do culto como sendo para "a glória de Deus e a santificação e edificação dos fiéis" 8. O papa Pio XII repetiu esta expressão em sua encíclica de 1947 sobre o culto, intitulada Mediator Dei. A mesma definição aparece com fre- qüência na Constituição sobre a Sagrada Liturgia do Vaticano II, de 1963, que "em mais de 20 passagens corrige a definição anterior de liturgia e fala primeiro da santificação do ser humano e então da glorificação de Deus" 9. Esta inversão de ordem lança a insistente per- gunta: o que tem precedência, a glorificação de Deus ou tornar santas as pessoas? Muitos dos debates sobre o culto em anos recentes têm girado em torno dessa questão, que é particularmente pertinente para os músi- cos de igreja. Deveria o culto ser a oferta dos nossos melhores talentos e artes a Deus, mesmo que em formas inusitadas ou mesmo incompreensíveis para as pessoas? Ou deveria, antes, articular-se em linguagem e estilos familiares de modo que o significado seja captado por todos, embora o resultado seja artisticamente menos impressionante? Felizmente essas alternativas são falsas. Glorificação e santificação formam uma unida- de. Ireneu nos diz que a glória de Deus é um ser humano plenamente vivo. Nada glorifica a Deus mais do que um ser humano tornado santo; nada tem maior probabilidade de tornar santa uma pessoa do que o desejo de glorificar a Deus. Tanto a glorificação de Deus quanto a santificação das pessoas caracterizam o culto cristão. Tensões aparen- tes entre elas são superficiais. O uso que Hoon faz dos conceitos de revelação e resposta lança luz sobre isto: é preciso abordar as pessoas em termos que elas possam compreender, e elas precisam expressar seu culto em formas que tenham integridade. Tanto a abordabilidade quanto a autenticidade fazem parte do culto. A lém disso, pessoas artis- ticamente ingênuas muitas vezes criaram arte elevada pela sinceridade de sua expressão. Outra maneira de se falar sobre o culto cristão tornou-se comum em anos recentes. Trata-se da tendência a descrever o culto cristão como "o mistério pascal". Boa parte da popularidade deste termo se deve aos escritos de Odo Casei, O.S.B., monge beneditino alemão falecido em 1948. As raízes desse termosão tão antigas quanto a igreja. O mistério pascal é o Cristo ressurreto presente e ativo em nosso culto. "Mistério" neste sentido é a auto-revelação divina daquilo que ultrapassa o enten- dimento humano, a revelação do até então oculto. O elemento "pascal" é o ato redentor central de Cristo em sua vida, ministério, sofrimento, morte, ressurreição e ascensão. Podemos falar do mistério pascal como a comunidade cristã compartilhando os atos redentores de Cristo ao celebrar culto. Casei discorre sobre a maneira em que os cristãos vivem, por meio do culto, "nossa própria história sagrada". Quando a igreja comemora os eventos da história da salvação, "o próprio Cristo está presente e age por meio da igreja, sua ecclesia, enquanto ela age com ele" 1 0 . Assim, esses mesmos atos de Cristo voltam a tornar-se presentes com todo o seu poder para salvar. O que Cristo realizou no passado volta a ser concedido à pessoa que presta culto, para que o experimente e aproprie no tempo atual. É uma forma de viver com o Senhor. A igreja apresenta o que Cristo realizou por meio da nova representação desses eventos pela comunidade cultuante. A pessoa participante do culto pode assim voltar a experienciá-los para sua própria salvação. Cada uma dessas diversas definições é apenas uma estação no trajeto do/a próprio/a leitor/a rumo a uma compreensão pessoal do culto cristão. É preciso ficar aberto para descobrir outras definições e chegar a uma compreensão mais profunda das mesmas, à medida que se continua a fazer experiências e refletir sobre o que define o culto cristão. O Linguajar Cristão sobre o Culto Outramaneira útil de esclarecer o que queremos dizer com "culto cristão" 6 verificar""algumas palâvras-chave que a comunidade cristã escolheu para falar sobre seu culto. Muitas vezes essas palavras eram de origem secular, mas foram escolhidas como o meio menos inadequa- do de expressar o que a comunidade reunida experimentava no culto. Há uma rica gama dessas palavras em uso no passado e na atualida- de. Cada palavra e cada idioma acrescentam nuanças de significado que complementam os outros. Um rápido apanhado dos termos mais ampla- mente usados com relação ao culto em diversas línguas ocidentais pode mostrar as realidades que estão sendo expressas. Já nos deparamos com uma palavra importante, o termo alemão GoÉüesdiensíwTrata-se de uma palavra da qual a língua inglesa poderia ter inveja. Para reproduzi-la, é necessário um punhado de palavras do vernáculo: "o serviço de Deus e nosso serviço para Deus". O equivalen- te a "Deus" (Gott) pode-se discernir, porém menos familiar é dienst. Pessoas viajadas a reconhecerão como a palavra que identifica postos de gasolina em terras germânicas. Serviço é o equivalente mais aproxi- mado, e é interessante que também em inglês esta palavra é usada tanto para referir-se a serviço no sentido de culto quanto a postos de gasolina. "Serviço" significa algo feito para outros, não importa se estamos falando de serviço doméstico, serviço municipal de água e esgoto ou serviço social. Ele reflete o trabalho prestado ao público, mesmo que geralmente a troco de ganho particular. Em última análise ele vem do termo latino servus, um escravo que era obrigado a servir outras pessoas. O termo oficio^ do latim officium, serviço ou tarefa, também é usado para designar um serviço de culto. GaUQsdienstrsSler. te um Deus que "eavaziourse a si mesme-e assumiu a-eondição de servn". (Fp 2.7), bem como nosso serviço para tal Deus. É pequena a distância entre este conceito e aquele expresso pelo nosso termo moderno liturgia. Com demasiada freqüência confundido com elementos cerimoniais, "liturgia", assim como "serviço", é de ori- gem secular. Provém do termo grego leitourgía, composto de palavras que designam trabalho (ergorí) e povo (laós). Na Grécia antiga a liturgia era um trabalho público, algo executado em prol da cidade ou do Estado. Seu sentido equivalia a pagar impostos, embora a liturgia pu- desse implicar tanto serviço doado quanto tributos. Paulo fala das autoridades romanas literalmente como "liturgos [leitourgoi] de Deus" (Rm 13.16), e de si próprio como "um liturgo [leitourgòn] de Cristo Jesus para os gentios" (Rm 15.16, tradução literal). Liturgia é, então, um trabalho executado pelas pessoas em benefício de outras. Em outras palavras, trata-se da quintessência do sacerdócio de todos os crentes compartilhado por toda a comunidade sacerdotal dos cristãos. Denominar "litúrgico" um ofício é indicar que ele foi concebido de modo que todas as pessoas que participam do culto to- mem parte ativa na oferta conjunta do seu culto. Isto poderia se aplicar tanto a um culto quacre quanto a uma missa católica romana, contanto que a comunidade participasse plenamente num ou noutro. Mas não poderia descrever um culto no qual a comunidade fosse meramente uma platéia passiva. Nas igrejas ortodoxas orientais, o termo "liturgia" é usado no sentido específico de eucaristia, porém os cristãos ociden- tais usam a qualificação "litúrgico" para designar todas as formas de culto público de natureza participativa. O conceito de serviço, então, é fundamental para entender o culto. Um conceito um tanto diferente se apresenta por trás do termo comum ao latim e às línguas românicas que é culto. No inglês, cult tende a sugerir algo bizarro ou um modismo, mas em línguas como o francês e o italiano ele tem uma função respeitada. Sua origem é o termo latino colere, termo agrícola que significa "cultivar". Tanto o francês le culte quanto o italiano il culto preservam esta palavra latina como o termo usual para designar o culto. É um termo rico, muito mais rico do que a palavra inglesa worship, uma vez que capta o caráter mútuo da respon- sabilidade entre o agricultor e sua terra ou animais. Se não dou ração e água para as minhas galinhas, sei que não haverá ovos; a menos que eu tire o inço da minha horta, não haverá verdura. É uma relação de dependência mútua, um engajamento vitalício com o cuidado e o atendi- mento à terra e aos animais, relação esta que quase se torna parte da essência do agricultor, particularmente daqueles cujas famílias cultiva- ram a mesma terra geração após geração. Trata-se de uma relação de dar e receber, certamente não em medida igual, mas pela vinculação recíproca. Infelizmente a língua inglesa não faz prontamente a conexão óbvia entre "cultivar" e "culto" que encontramos nas línguas românicas. Às vezes encontramos conteúdos mais ricos nas palavras de outras línguas, como domenica no italiano (dia do Senhor, domingo), Pasqua (Páscoa) ou crisma, do que em seus equivalentes ingleses. O termo inglês worship também tem raízes seculares. Ele vem do termo do inglês antigo weorthscipe - literalmente weorth ("worthy" [= "digno"]) e -scipe ("-ship" [-sufixo: "dade"]) -, significando a atribuição de valor ou respeito a alguém. Ele era e continua sendo usado como forma de tratamento para vários prefeitos de cidades importantes na Inglaterra. O ofício matrimonial da Igreja da Inglaterra contém desde 1549 aquele maravilhoso voto: "With my body I thee worship". O senti- do neste último caso está em respeitar ou apreciar outro ser com o próprio corpo. Infelizmente semelhante franqueza nos perturba, e o termo desapareceu dos ofícios matrimoniais americanos. Outros vocá- bulos do inglês como revere (reverenciar), venerate (venerar) e adore (adorar) derivam-se em última análise de termos latinos que designam medo, amor e oração. O Novo Testamento usa diversos termos para referir-se ao culto, sendo que a maioria deles também tem outros significados. Um dos mais comuns é latreía, muitas vezes traduzido para o inglês por service ou worship [ou "culto", em português]. Em Rm 9.4 e Hb 9.1 e 9.6 esse vocábulo refere-se ao culto judeu no templo, ou pode significar qualquer obrigaçãoreligiosa, como em Jo 16.2. Em Rm 12.1 ele costuma ser traduzido simplesmente por "worship", "culto", tendo significado seme- lhante em Fp 3.3. Uma percepção fascinante aparece no termo proskyneln, que tem a conotação física explícita de se prostrar em deferência ou submissão. Na narrativa da tentação (Mt 4.10; Lc 4.8), Jesus diz a Satã: "Está escrito: 'Ao Senhor teu Deus adorarás [proskynéseis] e só a ele presta- rás culto [latreúseis]''." Numa famosa passagem (Jo 4.23), Jesus diz à samaritana que chegou o tempo em que os verdadeiros "adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade". Sob várias formas proskyneln é usado repetidas vezes ao longo desta passagem. Numa passagem me- nos conhecida (Ap 5.9), os 24 anciãos "se prostraram e adoraram" (prosekynesan). Este verbo sublinha a realidade corpórea do culto. Dois termos interessantes, thysía e prosphorá, são ambos traduzidos por "sacrifício" ou "oferenda". Thysía é um termo importante no Novo Testamento e nos primeiros pais da igreja, embora seja utilizado para designar tanto o culto pagão, por exemplo "sacrifícios a demônios" (1 Co 10.20), quanto o culto cristão, como em "um sacrifício v ivo" (Rm 12.1) ou "sacrifício de louvor" (Hb 13.15). Prosphorá é literalmente o ato de ofere- cer ou levar diante de. Trata-se de um termo predileto em 1 Clemente, quer referindo-se à oferta de Isaque por Abraão, quer àquelas do clero ou de Cristo, "sumo sacerdote das nossas oferendas" (36.1). Hebreus 10.10 fala da "oferenda do corpo de Jesus Cristo, realizada uma vez por todas". Ambas as palavras desempenham um papel significativo, embora contro- verso, no desenvolvimento da teologia eucarística cristã. Termo bem menos proeminente na literatura neotestamentária é threskeía, que significa "culto" ou "ofício religioso" (como em At 26.5; Cl 2.18 e Tg 1.26). Sébein significa "prestar culto" (em Mt 15.9; Mc 7.7; At 18.3; 19.27). Em Atos, outro uso deste verbo designa os tementes a Deus, gentios que freqüentam o culto da sinagoga (13.50; 16.14; 17.4,17; e 18.7). Outro termo do Novo Testamento apresenta usos importantes na descrição do culto. Homologein tem uma variedade de significados, como confessar pecados (1 Jo 1.9), "se confessarmos nossos pecados", declarar ou professar publicamente (Rm 10.9), "se confessares com tua boca que Jesus é Senhor", ou louvar a Deus (Hb 13.15), "o tributo dos lábios que reconhecem o seu nome". Esses termos de outras l ínguas podem expandir a imagem unidimensional do termo "culto". Todos merecem ser ponderados para perceber o que outros experimentaram em diversos tempos e lugares. Alguns termos do vernáculo ligados ao culto precisam de certa elucidação. Precisamos fazer uma distinção clara entre dois tipos de culto: o culto em comum e devoções pessoais. O aspecto mais claro do culto em comuin_é_gjje_s^Jraía_d^_culto ofertado pela comunidade reunida, a assembléia cristã. Dificilmente se pode exagerar a importância do reu- nir-se. Por vezes o termo judaico "sinagoga" (reunir-se) também foi usado para referir-se à assembléia cristã (Tg 2.2), porém o termo princi- pal para designar a assembléia cristã é a igreja, a ekklesía, aqueles chamados para fora do mundo. Este termo, com a acepção de "assem- bléia", "congregar", "reunir", "encontrar-se" ou "ajuntar-se", é usado repetidamente ao longo do Novo Testamento para designar a igreja local ou universal. Um dos aspectos mais facilmente esquecidos do culto em comum é que ele começa com a reunião de cristãos espalhados em um lugar para formar a igreja em culto. Geralmente encaramos o ato de reunir-se como mera necessidade mecânica, mas ele é em si mesmo parte importante do culto em comum. Reunimo-nos para encontrar-nos com Deus bem como com nossos próximos. As devoções pessoais, por sua vez, geralmente, mas nem sempre, ocorrem em separado da presença física do restante do corpo de Cristo. De forma alguma isto quer dizer que não estejam ligadas ao culto de outros cristãos. Efetivamente, tanto as devoções pessoais quanto o culto em comum são plenamente comunitários, uma vez que ambos compartilham do culto da comunidade universal do corpo de Cristo. Porém o indivíduo que pratica devoções pessoais pode deter- minar seu próprio conteúdo e ritmo, mesmo ao seguir uma estrutura amplamente usada. Em contraposição a isso, para que o culto em comum seja possível, é preciso haver consenso sobre estrutura, pala- vras e ações, caso contrário o caos seria a conseqüência. Tais regras fundamentais não são necessárias em devoções onde o indivíduo esta- belece a disciplina. ("Devoção" vem de um termo latino que designa "voto".) A relação entre culto em comum e devoções pessoais é importante. Embora o tema do presente livro seja o culto em comum e pouco se diga a respeito de devoções pessoais, deveria ficar claro que o culto em comum e as devoções pessoais dependem um do outro. Como nos diz Evelyn Underhill: O culto [em comum] e o culto pessoal, embora na prática um geralmente tenda a ter precedência sobre o outro, deveriam se completar, reforçar e checar mutuamente. Apenas onde isto ocorre é que efetivamente encontra- remos a vida normal e equilibrada de devoção cristã plena em sua perfei- ção (...) Nenhuma alma - nem mesmo o maior dos santos - pode compre- ender plenamente tudo o que isto tem a nos revelar e exigir, ou alcançar com perfeição essa riqueza equilibrada de resposta. Esta resposta preci- sa ser obra da igreja inteira, dentro da qual as almas em sua infinita variedade desempenham cada qual um papel e contribuem com esta parte para a vida total do Corpo.11 O culto em comum precisa ser complementado pela individualidade das devoções pessoais; estas precisam ser equilibradas pelo culto em co- mum,. Um termo amplamente usado em anos recentes é celebração. Ele é freqüentemente usado em contextos seculares e parece ter desenvolvido certa vagueza que o torna um tanto sem sentido, a não ser que seja utilizado com um objetivo específico, de modo que se saiba o que está sendo celebrado. Ao se falar da celebração da eucaristia ou celebração do Natal, o conteúdo pode estar claro. Desde os anos 20 o termo tem sido associado a noções indefinidas do tipo celebração da vida, da alegria, de um novo dia ou outros objetos igualmente vagos. Parece melhor usá-lo para descrever o culto cristão somente quando o objeto está claro, de modo que haja conteúdo e forma definidos. O culto cristão está sujeito a normas pastorais, teológicas e históricas; muitos tipos de celebração facilmente escapam a todas elas. Ritual é um termo básico para descrever o culto cristão. Trata-se de um termo traiçoeiro, uma vez que significa coisas diferentes para pes- soas diferentes. Para muitos, ele com freqüência sugere vazio (daí a expressão "ritual vazio"), uma rotina de repetições sem sentido. Antro- pólogos usam o termo de modo sofisticado para descrever atos repeti- dos que são socialmente aprovados, como por exemplo uma cerimônia de naturalização, um potlatch *, ou costumes de sepultamento. Liturgos usam o termo para designar um livro de ritos. Para os católicos roma- nos o termo "ritual" se refere ao manual de ofícios pastorais de batis- mos, casamentos, funerais, etc. Na tradição metodista, "ritual" tem sido usado desde 1848 para referir-se a todas as cerimônias oficiais da igreja, incluindo a eucaristia e os ofícios de ordenação, além dos pasto- rais. Ritos são as palavras efetivamente pronunciadas ou cantadas num culto, embora às vezes este termo seja usado para designar todos os aspectos de um ofício. Também pode referir-se a grupos religiosos como os católicos de rito oriental, cujo culto segue um padrão distinto. Os ritos diferem do cerimonial, que são as ações executadas num culto. O cerimonial geralmente está explicitado nos manuais de culto por meio das rubricas, isto é, instruções paraexecução do culto. Embora atualmente também se empreguem outras cores, as rubricas muitas vezes são impressas em vermelho, como o indica o nome derivado do termo latino que designa a cor vermelha. Outro aspecto essencial é a estrutura de cada ofício, chamado ordo ou ordem (de culto). Ordem, rito e rubricas, isto é, a estrutura, as palavras e as instruções são os componentes básicos da maioria dos manuais de culto. Diversidade na Expressão do Culto Cristão — Até aqui abordamos os fatores comuns que nos permitem falar do culto cristão em termos genéricos. Certamente existe unidade básica suficiente para podermos fazer muitas afirmações gerais e esperar que elas se apliquem à maioria senão a todo culto de pessoas cristãs. Entre- tanto, precisamos equilibrar essas afirmações gerais de constância con- siderando a diversidade cultural e histórica que também é parte impor- tante do culto cristão. A constância, como já vimos, é enorme; a diversida- de é igualmente impressionante. O culto cristão é uma mistura fascinan- te de constância e diversidade. Basicamente usamos as mesmas estrutu- ras e ofícios por dois mil anos; entretanto, pessoas do outro lado da cidade também as praticam, mas à sua própria maneira característica. Em anos recentes nos tornamos muito mais sensíveis para a importân- cia dos fatores culturais e étnicos na compreensão do culto cristão. Emergiu daí uma forte preocupação com a ligação entre culto cristão e justiça. Em certo sentido, isto não é nada novo para alguns cristãos. Já desde o movimento quacre no séc. 17 tem havido uma forte consciência entre os membros da Sociedade dos Amigos de que o culto não deve marginalizar pessoa alguma por causa de sexo, cor ou mesmo servidão. Com efeito, a insistência quacre na igualdade humana deriva-se direta- mente da sua compreensão do que acontece na comunidade cultuante. Isto significa naturalmente que mulheres e escravos deviam falar no culto, o que até então fora prerrogativa exclusivamente masculina. O teólogo anglicano do séc. 19 Frederick Denison Maurice fez avançar nosso pensamento sobre culto e justiça da mesma forma como o fizeram em nosso século Percy Dearmer, William Temple, Walter Rauschenbusch e Virgil Michel. Porém apenas em anos recentes é que grande número de cristãos passou a observar o escândalo da injustiça das formas de culto que marginalizam amplos segmentos de freqüentadores do culto por causa do gênero ou outras distinções humanas. Isto resultou em esforços para mudar a linguagem de textos litúrgicos e hinos que tendiam a tornar invisíveis as mulheres, refazer prédios que excluíam as pessoas portadoras de deficiência e dar acesso a novas funções àquelas pessoas que anteriormente não eram bem-vindas para nelas servir. Estreitamente ligado a isto está o esforço para levar a sério a diversi- dade cultural e étnica existente na igreja em nível mundial. Isto implica respeito pelos dons e pela variedade de diferentes povos como expres- sões legítimas do culto cristão. O termo técnico para descrever este processo é inculturação; sua realidade é a aceitação da diversidade como uma das dádivas de Deus para a humanidade e a disposição de incorporar essa variedade às formas de culto. A música muitas vezes é um dos melhores indicadores da diversidade de expressão cultural. Quão limitados fomos nós ao enfatizar expressões européias de louvor cristão, quando o mundo inteiro canta a glória de Deus? Novos hinários tendem a refletir cada vez mais a diversidade cultural, porém a maior parte deles ainda tem um longo caminho a andar até ser um espelho da variedade de pessoas, mesmo numa única nação. A preocupação com o culto e a justiça tem assumido muitas formas, todas com um fator comum: enfatizar o valor individual de cada cultuante. Naqueles lugares em que alguns são negligenciados ou relegados a um status inferior por causa da idade, gênero, deficiência, raça ou origem lingüística, estas injustiças estão sendo reconhecidas e atenuadas. Mas é lento o processo de conscientizar-se de práticas discriminatórias para então tentar encontrar as maneiras mais equitativas de reformulá-las. O resultado é que o culto cristão se torna mais complexo e diversificado na medida em que tenta refletir uma comunidade mundial. Por isso, mesmo permanecendo válido o que dissemos a respeito da constância, as expressões culturais dessa constância estão se tornando cada vez mais diversificadas em nosso tempo. Na realidade, a diversidade não é nada novo no culto cristão, embora talvez seja uma importante inovação encará-la de modo positivo. Mes- mo nos primeiros textos litúrgicos enxergamos maneiras diferentes de afirmar as mesmas realidades, quer nos princípios teológicos, quer nas necessidades humanas. As diferenças são reflexos da variedade de povos e lugares. Os diferentes livros litúrgicos proporcionam rotas paralelas para cobrir a mesma jornada. Entretanto, eles variam em estilo e detalhes da mesma forma como pessoas diferentes em lugares variados diferem naqueles pontos que as tornam distintas, sua língua e história, por exemplo. Comparemos duas passagens com funções idênticas de duas das liturgias mais amplamente usadas no mundo. A primeira pertence á missa católica romana pré-Vaticano II, do prefácio comum da oração eucarística: Na verdade, é justo e necessário, é nosso dever e salvação dar-vos graças, sempre e em todo lugar, Senhor, Pai Santo, Deus eterno e todo-poderoso, por Cristo, Senhor nosso. A outra é a mesma passagem conforme consta na liturgia de São João Crisóstomo: E justo e digno celebrar-vos, bendizer-vos, dar-vos graças e adorar-vos em todos os lugares do vosso domínio. Porque vós sois um Deus inefável, incompreensível, invisível, inacessível, subsistindo eternamente, vós e o vosso unigénito Filho e o vosso Espírito Santo. Ambas dizem a mesma coisa, porém o estilo e o espírito são bastante diferentes. A linguagem da primeira foi comparada à retórica legal dos tribunais romanos, a da segunda, ao esplendor da corte dos imperado- res bizantinos. Claramente estamos lidando com dois estilos diferentes de expressão. Os liturgistas classificaram as várias liturgias eucarísticas antigas em famílias litúrgicas distintas. A semelhança das famílias humanas, elas apresentam características comuns. Algumas talvez pertençam à família alexandrina, denominada segundo Marcos, uma vez que colocam as intercessões no meio do segmento de abertura da oração eucarística. Outras, como o rito romano, usam palavras características para introdu- zir as palavras da instituição: "o qual, no dia antes de sofrer", ao passo que outras famílias, como aquela denominada segundo João Crisóstomo, preferem a expressão "na noite em que foi entregue". Assim como se podem reconhecer os filhos e filhas ou irmãos e irmãs de determinada pessoa pelas semelhanças faciais, pode-se aprender também a identificar a família litúrgica da qual provém determinado texto. Diferentes povos e lugares em torno do mundo mediterrâneo e na Europa setentrional deram suas próprias características lingüísticas ao culto cristão. Algumas características desapareceram, muitas vezes por causa da estereotipação que o processo de impressão tornou possível no séc. 16. Mas uma grande variedade ainda persiste, particularmente na ortodoxia oriental, e até mesmo dentro do catolicismo romano, embora isoladamente em lugares como Milão, na Itália, ou Toledo, na Espanha, ou nas igrejas católicas de rito oriental. Nesses ritos díspares temos um reconhecimento franco da verdadeira catolicidade, isto é, universalidade da igreja. Aquelas que poderiam parecer sobreviventes curiosas e singu- lares são na verdade vozes de diferentes povos e lugares acrescentando sua própria contribuição característica ao louvor a Deus. É comum identificar sete famílias litúrgicas clássicasoriundas de diversas áreas do mundo antigo. Cada uma dessas famílias usa os mesmos ofícios de culto e os mesmos tipos de manuais de culto, mas cada qual mostra peculiaridades individuais de estilo e expressão. Elas exemplificam a diversidade dentro da constância. É mais fácil dar a volta ao redor do mundo mediterrâneo em sentido anti-horário (diagrama 1), aqui apenas para uma breve enumeração des- sas famílias, uma vez que voltaremos a elas em maior detalhe no capítulo 8. A primeira família encontramos centralizada em Alexandria, no Egito, sendo que o exemplo mais notável é conhecido como a de São Marcos. Hoje em dia ela tem sobreviventes coptas e etíopes no Egito e na Etiópia. A Síria Ocidental incluía os centros eclesiásticos de Jerusalém e Antioquia. Uma liturgia que provavelmente funde aquelas usadas nessas cidades preserva o nome tradicional de São Tiago, primeiro bispo de Jerusalém. Os padrões litúrgicos da Armênia preservam muitas características dos primeiros tempos e provavelmente derivam-se em última análise desta família da Síria Ocidental e a ela pertencem. A Síria Oriental ao redor de Edessa foi o antigo centro de uma família muito característica cujo principal exemplo é o rito denominado segundo os Santos Addai e Mari. Cesaréia, na Ásia Menor, era o domicílio de São Basilio, e a liturgia denominada segundo ele (com uma versão alexandrina anterior) deriva- se do padrão sírio-ocidental. Igualmente de origem sírio-ocidental é a assim chamada liturgia bizantina ou liturgia de São João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla no séc. 4. A partir de Constantinopla ela se espalhou por boa parte do Império Bizantino e da Rússia. Somente o rito romano, outrora conhecido como rito de São Pedro, se encontra em uso mais amplo. Ele é o rito dominante do catolicismo romano. Uma grande e misteriosa família, agálica, compreende o sétimo clã, o clã ocidental não- romano com quatro ramos da árvore familial: o milanês ou ambrosiano, o moçárabe, o céltico e o galicano. A persistência dessa diversidade nos mundos ortodoxo e católico romano até os dias de hoje, apesar de ocasionais esforços de supressão e padronização, é um triunfo para as diferenças étnicas e nacionais. Ela representa a capacidade das pessoas de preservar expressões e formas de pensamento que lhes são caras e naturais. A diversidade caracterizou o culto protestante desde o início. O culto protestante pode ser dividido em nove tradições litúrgicas protestan- tes. Não é tão fácil distingui-las com base nos textos de liturgias eucarísticas como é o caso das famílias litúrgicas católica romana e ortodoxa, embora certas tradições protestantes possam ser facilmente definidas em termos de manuais de culto. Alguns grupos, como os quacres, não têm liturgias. Mas podemos falar de tradições litúrgicas distintas, isto é, de hábitos e suposições sobre o culto herdadas e passadas de geração em geração. Em cada caso certas caraterísticas dominantes apresentam coerência suficiente, o que nos permite distin- guir uma tradição específica 1 2. Não é fácil diferenciar essas tradições geograficamente, uma vez que elas se sobrepõem em grau considerável. Os puritanos, anglicanos e quacres viveram lado a lado, embora não muito alegremente, na Ingla- terra do séc. 17. Podemos mapear as nove tradições do culto protestan- te no diagrama 2: A s TRADIÇÕES PROTESTANTES DE CULTO Ala esquerda Centro Direita Séc. 16 Anabatista Reformada Anglicana Luterana Séc. 17 Quacre Puritana Séc. 18 Metodista Séc. 19 Fronteira Séc. 20 Pentecostal Diagrama 2 As rupturas mais radicais com o culto medieval tardio estão indicadas por grupos na coluna da ala esquerda; os grupos mais conservadores da Reforma, em termos de preservação da continuidade, aparecem na ala direita; os grupos centrais são mais moderados. O culto luterano, originado em Wittenberg, floresceu nos países germânicos e escandinavos no séc. 16, expandindo-se desde então por todo o mundo. O culto reformado teve sua gênese na Suíça (Zurique e Genebra) e França (Estrasburgo), mas espalhou-se rapidamente pelos Países Baixos, pela França, Escócia, Hungria e Inglaterra. Os anabatistas começaram na Suíça por volta de 1520. O culto anglicano, como indica o nome, era o culto da igreja nacional da Inglaterra e representava muitos dos acordos políticos necessários para uma igreja nacional. A tradição puritana (e separatista) foi um protesto contra acordos que pareciam contrários à vontade de Deus revelada na Escritura. A tradição mais radical foi o movimento quacre do séc. 17. A silencio- sa espera dos quacres por Deus sem auxílio de sermões, cânticos ou escrituras realizou uma ruptura drástica com o passado. O metodismo, no séc. 18, combinou muitas vertentes, tanto antigas quanto da Refor- ma, tomando empréstimo particularmente das tradições anglicana e puritana. A fronteira americana fez surgir outra tradição, especialmen- te desenvolvendo formas de culto para os que haviam perdido o contato com a igreja. Essa tradição da fronteira é a que predomina hoje no protestantismo americano e é particularmente conspícua no evangelismo televisivo. Os Estados Unidos também foram o berço da tradição pentecostal no séc. 20. Negros e mulheres estavam entre os primeiros líderes a fomentar esta tradição. A coexistência de diversas tradições permitiu às pessoas buscarem as formas de expressão para o culto que achassem mais naturais. Na Inglaterra do séc. 18, aqueles que se sentiam demasiadamente restritos pelo Livro de Oração Comum afluíam aos atos religiosos celebrados improvisadamente na tradição puritana. E aqueles que achavam esse culto demasiadamente clerical podiam encontrar um tipo diferente de liberdade entre os quacres. Outros eram atraídos pelos hinos fervoro- sos e pela vida sacramental calorosa dos primeiros metodistas. Pessoas diferentes podiam encontrar um canal para suas diversidades de ex- pressão escolhendo a tradição que lhes parecesse mais conveniente. A o mesmo tempo, porém, um alto grau de constância existia ao longo de gerações dentro de cada tradição. Constância nos Tipos de Manuais de Culto Boa parte do estudo do culto cristão gira em torno do estudo dos diversos manuais de culto usados por certas igrejas. Como as necessi- dades são muito semelhantes, certos tipos de manuais de culto se repetem em muitas famílias e tradições litúrgicas diferentes. É tenta- dor, porém perigoso, identificar o culto com livros. Livros efetivamente são usados para muitos cultos, talvez para a maioria deles, e por certo são a evidência de culto mais fácil de ser estudada e analisada. Porém boa parte do culto está baseada na espontaneidade, que é o elemento mais difícil de ser estudado. Vários tipos de culto contêm diferentes proporções tanto de fórmulas fixas para palavra e ação encontradas em livros quanto da espontaneidade que aumenta e diminui conforme atua o Espírito e que não está sujeita ao meio impresso. Embora pouco venhamos a dizer sobre a espontaneidade, ela é um ingrediente impor- tante no culto de hoje em muitas igrejas ocidentais. Onde o movimento carismático atingiu as pessoas, entre os pentecostais clássicos, e em muitas igrejas negras, exclamações espontâneas são parte vital do culto. O culto quacre é a própria espontaneidade, embora exemplifique a necessidade de uma liberdade autodisciplinada para que a espontaneidade possa trazer seu melhor fruto. A espontaneidade não é simplesmente soltar as pessoas para a introspecção individual ou para falar. Trata-se de usar os diversos dons de diferentes pessoas para o benefício de toda a comunidade reunida. As palavras de Paulo sobre o culto espontâneo seguem-se imediatamente a seu capítulo sobre o amor (1 Co 13) e visam um único objetivo: edificar a igreja (1 Co 14.26). Os dons recebidos pelos cristãos são concedidospara ser compartilhados na comunidade, não para ser mantidos no isolamento. O culto cristão dos primeiros tempos parece ter implicado certa espontaneidade. A maior parte dessa espontaneidade havia aparente- mente desaparecido por volta do fim do séc. 4, tendo ressurgido apenas em algumas tradições da Reforma. O culto pentecostal no séc. 20 enfatizou as inesperadas possibilidades do culto espontâneo. A ausên- cia de manuais de culto ou de folhetos impressos em algumas igrejas de forma alguma garante espontaneidade. Em muitas congregações, a repetição estabeleceu firmemente uma estrutura de culto que é seguida com alto grau de previsibilidade. Por outro lado, tradições que usam manuais de culto dão espaço cada vez maior hoje em dia a elementos de espontaneidade, particularmente em intercessões. Se falamos pouco, no presente livro, sobre a espontaneidade no culto, não é porque ela seja de pouca importância, mas simplesmente porque, sendo tão efêmero seu testemunho, torna-se exasperadoramente difícil relatá-la. Mas deveria estar claro que culto e manuais de culto de forma alguma são sinônimos. Os manuais de culto somente podem oferecer fórmulas-padrão. É preciso haver um equilíbrio sadio entre tais fórmu- las e os elementos não-escritos e não-planejados que somente a esponta- neidade pode oferecer. Com este alerta, vejamos o que os manuais de culto podem dizer-nos sobre a constância no culto cristão. Praticamente todo culto utiliza a Bíblia, a qual inclui ela própria muitas partes escritas para fins cultuais. Os quacres são uma exceção neste tocante, porém o conhecimento bíblico entre eles compensa a sua falta de efetiva leitura da Bíblia no culto público. A maioria dos protestantes e católicos romanos também utilizam um hinário. A lém disso, os católicos romanos e diversas tradi- ções de culto protestantes empregam, freqüentemente ou sempre, um manual de culto. Em suma, um ou mais livros são considerados requisi- tos para o culto na maior parte da cristandade. Os livros que examinaremos são manuais de culto. Eles dão uma visão vívida da constância no culto cristão. Muito embora eles variem entre si, os conteúdos apresentam semelhanças notáveis. Apesar de haver diferenças em famílias e tradições, necessidades comuns e recur- sos semelhantes para atender a essas necessidades são perceptíveis. Na igreja antiga, uma variedade de livros eram usados por diversas pessoas que exerciam ministérios de liderança num mesmo culto. Tan- to os leigos quanto os clérigos tinham ministérios reconhecidos para exercer, assim como livros adequados para capacitá-los a desempenhar seus papéis específicos no culto. A idéia de colocar tudo em um livro e este apenas nas mãos do clero é um produto medieval que pouco tem a seu favor. Atualmente há uma inversão da mentalidade do livro único e uma volta ao uso de vários livros para leitores, comentadores, líderes de canto, líderes de oração e sacerdotes ou pastores. Existe, afinal de contas, uma diversidade de papéis ministeriais na condução do culto, papéis que podem ser compartilhados entre várias pessoas quando livros adequados estão à disposição. A invenção da impressão criou uma situação antes desconhecida, a possibilidade de padronização litúrgica. Nos inícios do séc. 16 havia cerca de 200 variedades de missais em uso nas paróquias e ordens religiosas européias. Tanto os catóücos romanos quanto muitos protestantes se con- venceram de que a uniformidade htúrgica representava um avanço. Assim sendo, o primeiro livro de orações anglicano de 1549 decretava que "doravante toda a região deverá ter apenas um uso". Efetivamente a mes- ma coisa foi feita ao se padronizar os livros católicos romanos até a última vírgula, com exceções permitidas apenas para algumas poucas dioceses e ordens religiosas 1 3. Essa tendência de padronização em Roma reprimiu os manuais de culto em chinês no séc. 17 e outras adaptações à cultura nativa que poderiam ter fortalecido enormemente a missão na China e alterado de modo drástico a história posterior. Hoje em dia tanto os protestantes quanto os católicos romanos consi- deram a padronização um objetivo falso. O que pode ter sido libertador no séc. 16 parece restritivo no séc. 20. Esforços feitos em nosso tempo estão tentando desfazer a clericalização medieval, que comprimiu todos os livros litúrgicos em documentos clericais, e a padronização do séc. 16, que tornou todos os livros idênticos, seja para o clero, seja para os leigos. Uma variedade de ministérios em várias culturas exige uma abordagem muito mais pluralista dos livros litúrgicos. Hoje já podemos constatar um genuíno pluralismo litúrgico com diversas rotas alternati- vas de autoridade equivalente disponíveis na mesma denominação reli- giosa. Assim sendo, o número de livros litúrgicos está se proliferando e podemos mencionar apenas alguns típicos. O principal livro para a estrutura temporal é naturalmente o calen- dário. Sua brevidade não deveria ocultar sua importância. Ele governa aqueles elementos que mudam com os dias ou com as épocas do ano eclesiástico na oração pública diária e na eucaristia, aparecendo em breviários e missais. A lgo semelhante é o martirológio, um livro com os atos dos mártires e outros santos, arranjados na seqüência do calen- dário de acordo com o dia da sua morte. Os atos religiosos que giram em torno da oração pública diária fizeram surgir toda uma coleção de livros, especialmente aqueles elabo- rados no culto monástico. Diversos tipos de livros permitiam original- mente que pessoas diferentes exercessem suas funções individuais. O mais importante era o saltério, com salmos e cânticos arranjados de diversas maneiras em edições diferentes. Alguns estavam estruturados de acordo com a recitação semanal dos salmos, ou de acordo com festas, ou para cada ofício das horas. Partes musicais apareciam no antifonario e no hinário. Um lecionário continha, por fim, coletâneas das leituras da Escritura 1 4. Tudo isso parece complicado, e realmente era, mas cada pessoa precisava dominar só certas partes, encontradas no livro adequado. Tudo isso mudou com o tempo, muito embora não até que tivessem se passado muitos séculos. Então começaram a ter sucesso os esforços para reunir toda essa biblioteca num único livro, o breviário. O advento das ordens franciscana e dominicana no séc. 13, as quais precisavam estar constantemente a caminho, disseminou o uso do breviário, atra- vés do qual um indivíduo isolado podia ler todos os ofícios diários. Isto também foi estimulado pelas necessidades da vida na cúria romana. Porém o breviário representa uma perda tremenda no tocante à varieda- de de ministérios e ao culto em comunidade. A Liturgia das Horas de 1971, que substituiu o breviário romano de 1568, procura devolver esses ofícios tanto ao uso leigo quanto ao clerical. A Reforma, por sua vez, comprimiu o breviário ainda mais nos dois ofícios diários de Lutero ou naqueles que constam no Livro de Oração Comum. Saltério, calendário, lecionário e oração matutina e vespertina passaram a compartilhar o espaço com outros tipos de culto. Estas medidas fizeram com que todos os tipos de culto se tornassem acessí- veis à pessoa sentada no banco da igreja, porém significaram uma drástica redução na oferta de opções. A história dos livros para a iniciação e para os ritos de passagem é bem diferente. Originalmente muitos deles apareciam no sacramentário, livro do sacerdote para celebrar a eucaristia e outros sacramentos. Ele continha todas as orações apropriadas para várias ocasiões e épocas. O batismo e a confirmação, por exemplo, ocorriam na Vigília Pascal nos livros mais antigos, e as ordenações tendiam a acontecer durante a Quaresma. Ao longo do tempo, o batismo e outros ritos foram retirados aos poucos dos sacraméntanos, elaborando-se livros separados para
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