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Rafael Soares Golçalves A construção jurídica das favelas do Rio de Janeiro 
 
 
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IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO 
SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006 
A construção jurídica das favelas do Rio de Janeiro : 
das origens ao Código de obras de 1937. 
 
Rafael Soares Golçalves1 
 
As favelas são uma das realidades mais marcantes da história e da estrutura urbana da cidade do 
Rio de Janeiro. E difícil de estabelecer uma data precisa para a formação dos primeiros 
aglomerados, mas, certamente, estes já fazem parte do cenário urbano carioca desde a segunda 
metade do século XIX. A “invenção das favelas,” como pondera Valladares, é um processo 
histórico e as representações atuais das favelas devem muito as primeiras representações que 
lhes foram impostas, que “podem ser consideradas organizadoras de um mito fundador da 
representação social das favela” (VALLADARES, 2005: 22). Neste sentido, observamos que a 
idéia de precariedade jurídica, tanto urbanística e/ou fundiária, foi uma constante no 
desenvolvimento das favelas, sobretudo a partir das disposições impostas pelo Código de Obras 
de 1937. O artigo 349 deste código, primeiro texto jurídico a empregar o termo ‘favela’, consolidou 
a associação sistemática entre favelas e ilegalidade, influenciando profundamente as políticas 
urbanas em relação a estas, durante décadas. Como vamos analisar abaixo, mais do que 
condenar expressamente as favelas, este decreto estabeleceu um modus vivendi : as favelas 
estavam condenadas a ser uma realidade provisória e só existiriam graças à tolerância dos 
poderes públicos. O referido decreto aprofundou a dualidade favela versus cidade, 
impossibilitando sistematicamente o investimento público nestes espaços, já que estes não 
existiam oficialmente. 
A ‘exclusão’ das favelas do campo jurídico e, consequentemente, da cidade ‘formal’ permitiu a 
manutenção de um padrão específico de reprodução do capital, conforme nos demonstra a noção 
de dupla espoliação urbana sofrida pelas classes populares (KOWARICK, 1993). A moradia na 
favela permitia muitas vezes a redução dos elementos ‘transporte’ e ‘moradia’ na reprodução da 
mão–de–obra, o que permitia reforçar a espoliação das classes populares no âmbito das relações 
de trabalho propriamente ditas. Esta espoliação se manifestava também na constituição de um 
espaço urbano que negava a estas classes o acesso aos bens de consumo coletivos. Neste 
sentido, o direito teve um papel importante, porque, mantendo a natureza ilegal das favelas, 
legitimava a falta de investimentos públicos nestes espaços. Este processo foi responsável pela 
 
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 Universidade Paris VII – Denis Diderot/ Laboratório SEDET. 
e-mail : rafaelsgoncalves@yahoo.com.br 
 
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construção de uma cidadania problemática, já que os favelados não tinham acesso aos mesmos 
serviços públicos e não gozavam dos mesmos direitos que os demais cariocas. 
Assim, uma espécie de duplicidade de mundos começa a se manifestar na cidade onde a 
população e o próprio poder e seus representantes admitiam a necessidade de se conviver com “a 
desordem, ou com uma ordem distinta da prevista.” Uma grande parte da população não tinha 
acesso à justiça e as tensões e conflitos sociais só extrapolavam os limites deste ‘pacto informal’, 
quando se queria aplicar a lei literalmente, violando a “constituição não-escrita” (CARVALHO, 
2004: 159). Entretanto, mesmo se uma lei não é aplicada, a força simbólica do seu conteúdo 
permanece incrustada nas relações sociais. Neste sentido, é preciso compreender que as leis não 
se limitam a organizar as estruturas do poder ou coibir e desencorajar certas atitudes na 
sociedade, elas possuem uma função ideológica importante, ocultando as contradições da 
sociedade e legitimando um certo padrão específico de dominação política. Este poder simbólico 
do direito nomeia as diferentes realidades sociais, conferindo a estas uma classificação específíca 
dentro da estrutura social. Neste contexto, pretendemos reconstituir, neste trabalho, a construção 
jurídica do objeto ‘favela’ do final do século XIX até ao Código de Obras, procurando compreender 
o processo que permitiu a associação sistemática entre favelas e ilegalidade urbana. Uma 
releitura sociopolítica do direito, através de uma lógica dialética, contribuirá para melhor 
compreender como a realidade social constrói o direito e como este produz valores e modelos que 
repercutem também no plano social. 
Desta forma, examinaremos, primeiramente, o período de formação das primeiras favelas, entre o 
final do século XIX e a primeira década do século passado, procurando estabelecer as primeiras 
referências da legislação a esta nova realidade urbana. Em seguida, estudaremos o 
desenvolvimento das favelas nas décadas de 10 e 20, tendo como objetivo compreender a 
evolução do conceito de favelas na legislação, assim como estabelecer de que maneira esta 
legislação influenciou a expansão inicial destes espaços na cidade do Rio de Janeiro e, por fim, 
analisaremos o período anterior ao código de obras, onde as favelas se tornam, definitivamente, o 
grande problema carioca. 
 
1° capítulo : Favelas: solução ou novo problema ? 
E extremamente difícil estabelecer com precisão quando e onde se originaram realmente as 
primeiras favelas.2 Vários morros da cidade já eram ocupados nesta época, inclusive o Morro do 
 
2
 Com a devida permissao dos poderes públicos, soldados que voltavam de Canudos (1897) vão se estabelecer no aglomerado de 
casebres que já vinha se formando no Morro da Providência. Este morro vai se transformar rapidamente no Morro da Favella, 
provavelmente em alusão a uma colina existente no povoado de Canudos e/ou por causa de uma planta que aparentemente brotava 
nos dois morros. A representação social da favela vai sofrer uma profunda influência simbólica da história de Canudos, imortalizada 
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Castelo, berço histórico do Rio de Janeiro e que seria arrasado na década de 1920. Da mesma 
forma, é dificil estabelecer quando os primeiros barracos esparsos começaram a ser considerados 
como favelas. Compreendendo as favelas como uma conseqüência direta do combate aos 
cortiços, Lilian Vaz afirma que uma espécie de forma intermediária vai se formar. Para ela, o mais 
conhecido dos cortiços, o cabeça de Porco, seria uma espécie de germe das primeiras favelas, já 
que apresentava certas características que posteriormente seriam utilizadas para identificar as 
favelas.3 Da mesma forma, a autora afirma que os primeiros casebres em morros seriam “formas 
embrionárias de favelas”, apresentando uma grande semelhança com os cortiços4 e que não 
podiam ainda ser considerados favelas, pois lhes faltavam alguns atributos, tais como: “a 
conotação de adensamento, ilegalidade, insalubridade, desordem, autoconstrução e falta de 
serviços e infra-estrutura urbana” (VAZ, 2002: 48-50). Observamos que a legislação urbana já 
fazia referências a estas “formas embrionárias de favelas” o que nos leva, dentro da lógica de 
Vaz, a afirmar que este processo de transição já se refletia na legislação urbana e, de uma certa 
maneira, foi incentivadopor esta. Desta forma, procuraremos pesquisar sucintamente, em um 
primeiro momento, o conteúdo da legislação urbana em relação aos cortiços no final do século 
XIX e, posteriormente, abordar o conteúdo destas primeiras referências. 
A cidade do Rio de Janeiro vinha sofrendo profundas modificações a partir da segunda metade do 
século XIX, mormente após a Guerra do Paraguai (1865-1870). Observa-se um certo surto 
manufatureiro, um investimento importante em transportes com as primeiras linhas de bondes e a 
expansão da rede ferroviária e, enfim, um grande crescimento populacional.5 Além dos imigrantes 
estrangeiros que chegavam em massa para ‘embraquecer’ a população brasileira, um grande 
número de escravos alforriados,6 junto com aqueles que viviam ‘sobre si’7 e os fugitivos, 
engrossavam a população residente nos cortiços que se espalhavam pelo centro da cidade. Em 
1890, a população dos cortiços já era de aproximadamente 100.000 habitantes (LOBO, 1989: 28). 
As condições de vida nestes locais eram frequentemente deploráveis e rapidamente estes foram 
alçados em inimigo principal da higiene pública e a causa dos diferentes focos de epidemias que 
castigavam a cidade. Estas epidemias eram extremamante prejudiciais para a economia, visto que 
 
pela obra de Euclides da Cunha Os sertões (1902). A favela vai ser constantemente associada a este conflito onde vai retirar além do 
próprio termo ‘favela’ muitos dos estereótipos que lhe foram impostos, sobretudo a transposição da dualidade “litoral versus sertão” 
para a dualidade “cidade versus favela” (VALLADARES, 2005: 23). 
3
 “O cabeça de porco não apresentava o aspecto, monótono da sequência habitual das casinhas, mas uma (des) ordem resultante da 
mistura de um grande número de térreos, sobrados, correres de casas, casebres e puxados que abrigavam moradia e trabalho.” (VAZ, 
2002: 35) 
4
 Muitas vezes as atividades dos proprietários dos cortiços eram transferidas para os terrenos situados nos morros. E o caso, por 
exemplo, de uma das proprietárias do Cabeça de Porco que, após a destruição deste cortiço (1893), continua suas atividades nos 
terrenos que possuía no morro da providência. Este mesmo processo vai se repetir em outros locais e muitas favelas vão adquirir o 
nome de antigos proprietários de cortiços que se tornaram posteriormente ‘exploradores de favelas’. 
5
 A populaçao saltava de 274.972 habitantes em 1872 para 552.651 em 1890. 
6
 Os escravos que lutavam pelo Império escravagista no Paraguai obtinham a liberdade. 
7
 Escravos que trabalhavam para os seus senhores, mas que gozavam de uma certa liberdade, já que não viviam na casa senhorial e 
podiam exercer outras atividades paralelas. 
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atingiam diretamente a força de trabalho e geravam uma péssima reputação internacional à 
cidade, o que prejudicava as atividades comerciais do maior porto do país na época.8 Neste 
sentido, era necessário atacar diretamente o problema, destruindo as habitações anti-higiênicas 
que contaminavam a cidade. Observamos, assim, a constituição de uma legislação que dificultava 
a construção e a reforma dos cortiços existentes o que colaborou para aumentar ainda mais as 
condições precárias destes estabelecimentos. Esta legislação procurava aumentar tanto o 
perímetro de proibição de cortiços no centro da cidade como também o próprio conceito de 
cortiço, de maneira que este pudesse abranger toda e qualquer construção precária, onde se 
alugassem cômodos à população mais pobre da cidade. Como nos mostra Chalhoub, esta 
primeira legislação se constitui a partir de pressupostos higienistas. Esta espécie de ideologia 
despolitiza as intervenções públicas e constrói um consenso através de um discurso científico, 
que deveria estar supostamente acima de todo e qualquer interesse particular e dos diferentes 
conflitos sociais (CHALHOUB, 2004: 35). Entretanto, durante a vigência do império, o pacto liberal 
de defesa da propriedade privada impedia o aprofundamento das medidas higienistas contra os 
cortiços, estas deverão esperar a proclamação da república para produzirem efeitos mais visíveis 
na constituição do espaço urbano da cidade. 
Certos textos legislativos já começavam a fazer referências às construções precárias nos morros 
da cidade. O decreto n° 1187, de 04.06.1853, por exemplo, assinado pelo senador do Império 
Francisco Gonçalves Martins, mandando aplicar as disposições do decreto n° 353, de 10.07.1845, 
sobre o desmoronamento do Morro de Santo Antônio, faz referência expressa às construções 
‘pouco sólidas’ neste morro: 
“ Contento outrossim que várias ruas se projectão no mencionado morro de Santo Antônio, e 
nellas edificações de prédios que sem dúvida augmentarão excepcionalmente o custo do útil 
senão necessário desmoronamento; tornando-se a edificação da cidade por esta forma não só 
mais defeituosa, como ameaçadora a sua população com construções pouco sólidas, pondo 
em risco, por ocasião das grandes chuvas, a segurança dos habitantes de taes prédios, e 
causando grave incoveniente aos que habitam nos terrenos contiguos.”9 (grifos nossos) 
Assim, nota-se que, desde a metade do século XIX, estas construções ‘pouco sólidas’ nos morros 
ja eram suficientemente perceptíveis para causar ‘grave incoveniente aos que habitam nos 
terrenos contíguos.”10 Se, por um lado, já se cogitava o arrasamento de vários morros do centro 
 
8
 “E é deste modo, que no velho mundo ecoa a fama de que o Rio de Janeiro é um país pestífero” Dr. Carlos Frederico dos Santos 
Xavuer Azevedo in CONSELHO SUPERIOR DE SAUDE PUBLICA, 1886, Pareceres sobre os meios de melhorar as condiçoes das 
habitaçoes destinadas às classes pobres, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, p.3. 
9
 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ). Codice : 46-3-48. 
10
 Podemos citar também um trecho do texto de Costa, datado de 1865, e citado por Vaz “... há uma parte de nossa população pobre, 
que, fugindo do centro da cidade (velha) onde as casas são mais caras, vai habitar os arrabaldes ou mesmo as montanhas situadas no 
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da cidade para melhorar a circulação do ar e, certamente, expandir o espaço construtÍvel, por 
outro lado, estes morros eram vistos também como uma possível solução ao problema 
habitacional. Nos diferentes pareceres apresentados pelos membros do Conselho Superior de 
Saúde Pública, na sessão de 8 de julho de 1886, já se notava a inquietação social suscitada pela 
falta de moradias. O conselheiro Dr. Carlos Frederico dos Santos Xavier Azevedo propôs que a 
construção de casas populares e de material mais precário só deveria ser permitida “fora do 
centro da cidade, em pontos por onde passem os trens de ferro, ou bonds ou no cume dos morros 
de Santo Antônio, Castello, Senado, Paula Mattos ou outros.”11 Este parecer nos indica as 
modificações urbanas que a cidade sofreria nos anos posteriores à proclamação da república. 
Diante do recrudescimento da política higienista12 e a ausência de uma política pública de 
produção de moradias populares, a população expulsa dos cortiços encontra abrigo justamente 
nas novas fronteiras da cidade, traçadas pelas linhas de treme dos bondes e na ocupação dos 
morros que circundavam o centro histórico da cidade. 
A legislação urbana teve um papel decisivo neste processo, assegurando tanto a política de 
destruição de cortiços como impulsionando a ocupação dos subúrbios e dos morros. Assim, o 
decreto n° 762, de 01.06.1900, reforça as proibições “de divisões de casas de vasta dimensão em 
cubículos de madeira” (artigo 24) e estabelece que as habitações, coletivas só poderiam ser 
construídas nas “frequezias da Gavea, Engenho Velho, Engenho Novo, São Christovão, Inhauma 
e Iraja ...” (artigo 23), isto é, fora da região central da cidade e dos novos arrebaldes chiques que 
começavam a se formar no litoral Sul, e, por fim, o artigo 33 determina que “os barracões toscos 
não serão permitidos, seja qual for o pretexto de que se lance mão para obtenção da licença, 
salvo nos morros que ainda nao tiverem habitações.” Ressalte-se que o supracitado artigo permite 
a construção de tais ‘barracos toscos’ somente nos morros que ainda não tivessem habitações, o 
que nos leva a concluir que a ocupação dos morros já era um fato conhecido e bem difundido.13 
Esta ocupação permitiu o prosseguimento da política de destruição dos cortiços e a liberação 
progressiva dos terrenos por eles ocupados, mantendo, contudo, a população próxima do 
mercado de trabalho. Desta forma, assegurou-se a nova divisão sócio-espacial que se queria 
implementar na cidade, com uma divisão mais nítida entre trabalho e moradia e em um 
distanciamento mais claro entre as classes sociais, sem onerar os custos da produção. Além 
disso, este artigo confirmou uma certa tolerância que vinha sendo aplicada em relação a estas 
 
coração da cidade...” Antonio Correa de Souza Costa, 1865, Qual a alimentação que usa a classe pobre do Rio de Janeiro e sua 
influência sobre a mesma classe, Rio de Janeiro, Typographia Perseverança (VAZ, 2002 : 38). 
11
 CONSELHO SUPERIOR DE SAUDE PUBLICA, 1886, Pareceres sobre os meios de melhorar as condiçoes das habitaçoes 
destinadas às classes pobres, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, p.15. 
12
 O maior exemplo desta politica higienista foi a apoteotiva destruição do cortiço Cabeça de Porco em janeiro de 1993. 
13
 O artigo 36 do decreto n° 391 de 10.02.1903 vai confirmar o conteúdo deste decreto estabelecendo que “Os barracões toscos não 
serão permittidos, seja qual for o pretexto de que se lance mão para obtenção da licença, salvo nos morros que ainda não tiverem 
habitações e mediante licença.” 
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“formas embrionárias de favelas”. A última década do século XIX foi um período conturbado da 
história republicana (encilhamento, revolta da armada, revolta de Canudos, primeiras greves). A 
tolerância da ocupação dos morros, como os de Santo Antônio e da Providência, era uma 
concessão importante para os soldados e para as populações pobres da cidade que podiam, 
diante do aumento dos aluguéis e da escassez de moradias, permanecer próximos ao mercado de 
trabalho. E o que nos revela, por exemplo, a representação do comandante do 7 batalhão de 
Infantaria, datado de 14.02.1898, contra as pretensões da prefeitura em demolir os casebres 
existentes no morro de Santo Antônio : 
 “(...) tenho a informar-vos que effectivamente existem alguns casebres de madeira 
construídos por praças deste batalhão que declaram ter para isso obtido licença do fallecido 
Coronel Antonio Moreira Cesar e outros antecessores. Esses casebres, porém, conquanto 
desprovidos de esgotos conservam-se em tal estado de asseio que me parece nao causar 
perigo à saude pública nem à vida de seus moradores. Attento ao grande número de praças 
casados neste batalhão e a deficiência de casas nas proximidades deste quartel em 
condições de serem por ellas habitadas, pois que todas são de elevados preços e ainda à 
conveniência ao serviço e à disciplina, me parece, podem ser tolerados os ditos casebres e 
nesse sentido peço a vossa intervenção, certo de que além de poupado grande sacrifício 
pecuniário às praças que os ocupam, evitareis prejuízos à saúde dos mesmos que se verão 
obrigados a procurar estalagens, onde não pode este comando intervir no asseio que devem 
observar.”14 (grifos nossos) 
Este texto demonstra que as primeiras favelas ja eram percebidas como uma realidade provisória, 
que deveriam ser ‘toleradas’, dado que apresentavam “conveniências ao serviço e à disciplina.” 
Como expõe Abreu, esta política garantiu uma certa estabilidade social, fundamental para o 
processo de acumulação. Além deste aspecto econômico, Abreu acrescenta que a chancela 
militar e a natureza provisória das favelas explicam a tolerância inicial da Saúde Pública em 
relação às construções precárias situadas nos morros da cidade (ABREU, 1994: 38-41). Observa-
se, ainda, a construção de um certo discurso relativizando o aspecto anti-higiênico destas 
construções e legitimando esta política ambígua. Everardo Backheuser vai afirmar que “os 
operários laboriosos” buscam esses lugares altos, “onde se goza de uma barateza relativa e de 
uma suave viração que sopra continuamente, dulcidificando a dureza da habitação.” Entretanto, o 
autor prossegue afirmando que “o illustre Dr. Passos (...) já tem suas vistas de arguto 
administrador voltadas para a favella e em breve providências serão dadas, de accordo com as 
leis municipaes, para acabar com esses casebres” (BACKHEUSER, 1906: 111). 
 
14
 AGCRJ Códice 46-3-55. 
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A reforma urbana do ‘ilustre’ Dr. Pereira Passos (1902-1906) consolidou a nova divisão espacial 
da cidade. A abertura de novas ruas, o recuo progressivo das casas do centro da cidade para o 
alargamento de aproximadamente 80 casas15 e a especulação imobiliária advinda da reforma 
reforçaram a política que vinha sendo implementada contra os cortiços.16 Os subsídios para a 
construção de vilas operárias não eram suficientes17 e os mais pobres estavam se concentrando 
nos cortiços remanescentes, situados sobretudo na região da cidade nova, ou sendo expulsos 
para os subúrbios e as favelas. Não cabe analisar neste texto as causas da revolta da vacina, 
mas, certamente, a reforma urbana e o autoritarismo das medidas higienistas que suscitaram um 
profundo descontentamento popular, o que facillitou a manipulação das massas emergentes18 e a 
deflagração da mais violenta revolta do início do século. Neste contexto, Backeuser afirma que o 
decreto n° 391, de 10.02.1903, que proibia qualquer conserto nos cortiços foi revogado 
temporariamente, a pedido do Dr. Osvaldo Cruz, para que se pudesse “ordenar pequenos 
consertos de saneamento.” Esta certa relativização na aplicação do decreto não queria satisfazer 
somente às necessidades higiênicas da população, já que este decreto, segundo o autor, era 
benéfico, “pois em pouco tempo todos elles [cortiços] teriam ruídos.” (BACKEUSER, 1906: 107). 
Na verdade, o abrandamento da aplicação estrita do direito contra os cortiços, a tolerância da 
ocupação dos morros e o aumento da oferta de trabalho, por causa da reforma urbana, foi um 
meio eficaz de controlar a insatisfação da população sem prejudicar, ao menos em um primeiro 
momento, a acumulação do capital.Entretanto, esta política de tolerância - e mesmo de estímulo - à expansão das favelas nas áreas 
centrais e nos subúrbios era extremamente ambígua, visto que, por exemplo, a cêntrica favela de 
Santo Antônio sofreu várias ameaças e foi ao menos parcialmente removida em duas ocasiões, 
nesta primeira década do século passado. Da mesma forma, ‘a picareta demolidora’19 não 
permitia favelas nos novos bairros chiques como Copacabana. O crescimento das favelas20 ja 
começava a modificar a postura da municipalidade, face ao problema de moradia popular. Ao 
invés de estimular estas construções, tenta-se aplicar os mesmos princípios higienistas utilizados 
contra os cortiços. Entretanto, como vamos verificar abaixo, além da formulação de críticas mais 
 
15
 Implementação dos projetos de alinhamento (PA’s) que exigindo o recuo sistemático e a renovação progressiva das construções, 
permitiu o proseguimento da política contra os cortiços e manteve aquecida a oferta de terrenos para o mercado imobiliario. 
16
 “Derrubaram-se casas de pobres para se venderem os terrenos aos ricos que construíram casas para rendas avultadas,” afirma 
Alcindo Guanabara em 1905. (LOBO, 1989: .80). 
17
 A única intervenção direta da municipalidade no âmbito da moradia popular veio pelo decreto n° 1.042 de 1905, que autorizou a 
municipalidade a utilizar as sobras do terrenos resultantes da desapropriação para a abertura da Avenida Salvador de Sá, em vista de 
construírem casas populares. 
18
 Uma grande parte da elite era contrária às reformas de Pereira Passos, sobretudo os proprietários e senhores de casas coletivas. 
19
 “Agora a picareta demolidora tenta imigrar para estas plagas em declarada guerra de morte aos barracões de madeira, onde vivem 
os que não podem viver em bonitos palacetes de custosa cantaria...” Jornal « O Copacabana », ano I, n°2, 15.06.1907 (ABREU, 1984: 
58/59). 
20
 « Existindo n’este lugar [morro de Santo Antonio] cerca de 1.314 barracões de madeira em péssimas condições, com uma população 
de 4.000 habitantes...] Oficio de Oscar Pompeo Onofre d’Almeida ao prefeito do distrito federal, datado de 17.12.1910. (AGCRJ, 
Codice :46-3-55) 
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contundentes ao “despotismo sanitário”21 que rompia definitivamente a imagem de consenso 
‘apolítico’, a aplicação da legislação contra os cortiços nas favelas se mostrou rapidamente 
inadequada. O informe de um agente fiscal da prefeitura, analisando o ofício que fora enviado à 
municipalidade pelo zelador dos próprios nacionais no Morro de Santo Antônio, “pedindo o 
fechamento de vinte e tantos botequins e pequenas tavernas que funcionam até às 3 horas da 
madrugada sem licença, dando lugar constantemente a graves conflictos e assasinatos”, revela 
que a complexidade das favelas suscitava novos questionamentos aos poderes públicos : 
“Refiro-me com a especialidade à parte do presente offício que trata de botequins e tavernas 
por parecer-me que somente com relação a elles que cabe-me providenciar, visto que, com 
relação ao mau estado das barracas, a meu ver, a reclamação deve ser endereçada à 
Directoria de Saúde Pública, que de passagem convém seja dicto ja julgou-se impotente 
para agir. 
Quanto à existência de tão elevado número de cozinhas que attentam com a estética, o 
asseio, a segurança e a hygiene, se existem, é porque assim o permitte o Sr. Zelador dos 
próprios nacionaes. Nada mais simples do que fazer valer os direitos de proprietários de 
cujos poderes se acha investido. 
Porém, Exmo Sr. General Prefeito, a verdade é esta a Directoria de Saúde Pública, a polícia 
e o Zelador dos próprios nacionaes, terem sido impotentes para de prompto jugular, vicios e 
irregularidades, que se amontoam de longa data, cujas fineses são diversas. Basta dizer que 
o Sr. Zelador ja teve necessidade de pedir garantias de vida a autoridade competente.” 
22(grifos nossos) 
Assim, como observamos acima, a estrutura institucional já se mostrava incapaz de responder aos 
complexos problemas suscitados pelo crescimento das favelas. As intervenções públicas 
deveriam abordar não somente a natureza anti-higiênica das construções e a pressuposta 
marginalidade destes espaços, mas também outras questões como a ilegalidade fundiária e 
urbanística das glebas, a informalidade do comércio e das transações imobiliárias e a total 
ausência de serviços públicos. Assim, de solução provisória, as favelas se consolidavam pouco a 
pouco como um grande problema urbano da cidade. 
 
 
21
 « Tivemos ensejo de chamar a atenção do atual Sr. Presidente da Republica para a urgente necessidade de respeitar enfim os 
príncipios republicanos, abolindo-se o despotismo sanitário. Hoje, temos de voltar ao mesmo assunto, à vista da notícia sobre a tirânica 
espulsão dos proletários moradores no morro de Santo Antônio. Nas basta, de fato, impedir que esse atentado se realize. E 
indispensável que a fraternidade, e a liberdade consequente, substituão a crueza e a violência na organização da higiene pública.” 
Raimundo T. Mendes, R. T., 1910, “Ainda o despotismo sanitario e a politica republicana a proposito da projetada espulsao tirânica dos 
proletarios moradores no Morro de Santo Antonio”, Igreja e Apostolado Pozitivista do Brazil, n°295. 
22
 Ofício datado de 27.12.1910. (AGCRJ Codice 46.3.55). 
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2° capitulo : O que fazer com as favelas? 
A falta de uma política habitacional coerente, o aumento das exigências da prefeitura para 
construir no subúrbio, aliado a um processo de especulação imobiliária impulsionou a ocupação, 
com fins de moradia, primeiramente das terras mais distantes do centro, já que a fiscalização 
pública não era tão efetiva nestes locais e o preço das mesmas era mais acessível à população. A 
ocupação progressiva das terras mais afastadas conduziu, consequentemente, a uma forte 
valorização daquelas situadas mais próximas do centro. Esta retenção deliberada de terras 
impediu, assim, uma ocupação mais efetiva dos subúrbios e resultou em custos sociais altíssimos 
o que incentivou o aumento da ocupação dos cortiços remanescentes e das favelas. Estas se 
tornavam um elemento importante do cenário urbano tanto pelo crescimento interno da 
população23 como pela expansão de novos núcleos em outros bairros da cidade (São Carlos, Vila 
Rica, Mangueira, Pasmado, Babilônia...). As favelas já não se encontravam mais circunscritas ao 
cume dos morros, inacessíveis ao resto da população e somente “exploradas” por jornalistas e 
escritores corajosos e desejosos em expor a vida curiosa dos que aí habitavam.24 A expansão das 
favelas era notória e já suscitava uma forte crítica das elites da cidade : 
 “Os abaixo assignados, moradores em Santa Thereza, vêm perante o Ilmo Conselho 
representar sobre a necessidade de reforma das posturas no que dizem respeito ao côrte 
das arvores nos terrenos particulares e na via pública (...)ficando da nossa famosa grandeza 
florestal o esqueleto desnudado das montanhas que reverberam o sol das seis horas da 
manha às seis da tarde. O pouco que ainda resta vai-se embora com a instalação contínua 
das favellas.”25 
Observamos, no texto acima, que o termo ‘favela’ começa a ser empregado no plural e passa a 
designar toda e qualquer construção precária situadanos morros e que são semelhantes às 
construções existentes no Morro da Favella. Este abaixo-assinado revela também uma 
insatisfação crescente em relação à ‘instalação contínua’ das favelas e o início da formulação de 
reivindicações contra a expansão das mesmas e a destruição da ‘grandeza florestal’ da cidade. 
No mesmo ano (1914) que o referido abaixo-assinado foi redigido, o intendente Leite Ribeiro 
propõe um projeto legislativo para o estabelecimento de fontes no local mais conveniente para o 
fornecimento de água potável à população do Morro de Santo Antônio. Se o objetivo do projeto 
parece nobre e interessante, as justificativas do intendente nos revelam outros elementos que nos 
 
23
 Em 1913, denuncia o diretor da Saúde Pública, ja existiam 219 barracos no Morro da Favella e 450 no de Santo Antônio, 
compreendendo perto de 5000 almas. Nos 7 distritos urbanos ja seriam 2.564 barracos, compreendendo 13.601 pessoas (ABREU, 
1994: 38). 
24
 “Vi, então, que eles se metiam por uma espécie de corredor encoberto pela erva alta e por algum arvoredo. Acompanhei-os, e dei 
num outro mundo. A iluminação desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da cidade” Texto de João do Rio sobre a sua visita 
ao Morro de Santo Antônio, “Os livres acampamentos da miséria”, publicado em 1917 in (ALVITO, 2004: 17) 
25
 CAMARA DO DISTRICTO FEDERAL, 1914, Annaes do Conselho municipal do Districto Federal, n° 21, Oficinas Gráphicas do Paiz, 
p.165. 
Rafael Soares Golçalves A construção jurídica das favelas do Rio de Janeiro 
 
 
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SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006 
permitem compreender os verdadeiros objetivos do referido projeto, assim como vislumbrar as 
diferentes reações que as favelas vinham suscitanto nas elites cariocas. 
“(...) presos no nosso viver como os tentáculos do polvo ao corpo que lhe é presa, costumes 
anachronicos, dignos de Benguela e Moçambique nao propios de uma cidade civilizada e 
sim de uma aldeia, mas aldeia sem governo, de populacho sem cultura, de multidão semi-
selvagem. 
“As infectas pocilgas dos morros de Santo Antonio, Favella, Babylonia e outros, talvez 
inferiores às cubatas dos cafres da Zululândia; a récua de individuos que, esfarrapada, 
mulambenta, semi-nua, a todas as horas do dia e da noite busca água, em velhas latas à 
cabeça no chafariz da Carroça, situado este a poucos metros de distância da nossa principal 
artéria, bem defronte do maior do maior dos nossos hotéis, onde pousa grande número de 
forasteiros que visitam esta cidade.26 
Através das menções geográficas evocadas pelo intendente, observa-se, primeiramente, que as 
favelas abrigavam uma grande população de ex-escravos. Estes espaços eram representados 
como um espaço selvagem, excluído da cidade civilizada, sem governo. Apesar de o intendente 
confessar, algumas linhas depois do texto acima transcrito, que o seu projeto não resolveria 
definitivamente a questão das favelas, mas melhoraria e muito a saúde da população, pois 
“segundo fui informado é altamente nociva à saude a água colhida no chafariz da Carioca,”27 o 
projeto satisfazia sobretudo aos interesses dos que ali não viviam. A imagem de “mulambentas”, 
subindo e descendo o morro com velhas latas na cabeça, a poucos passos da bela Avenida 
Central e do maior hotel da cidade, era extremamente prejudicial à reputação da civilizada Rio de 
Janeiro. O texto final e aprovado do referido projeto (Decreto n° 2636 de 30.09.1914) autorizava o 
prefeito a entrar em contato com os poderes federais para o estabelecimento, nos fundos do 
Theatro Lyrico, na ladeira que começa na Rua Senador Dantas, de fontes de água potável à 
população desse mesmo morro, devendo ser totalmente extinto o funcionamento das torneiras do 
chafariz do Largo da Carioca para utilização pública. Observamos que o objetivo principal do 
referido decreto era manter invisível e excluída do espaço urbano à população do Morro de Santo 
Antônio. Mais do que prover o acesso à àgua potàvel a esta populaçâo, o decreto procurava 
ocultar as contradiçôes da sociedade carioca, impondo e reforçando os limites simbólicos entra a 
favela, “aldeia sem governo,” e a “cidade civilizada”. 
No entanto, este decreto demonstra uma mudança efetiva da política urbana frente à favela. 
Primeiramente, o referido decreto aborda o problema de maneira mais global, a favela não é mais 
 
26
 Ibid, p. 169. 
27
 Ibid, p. 171. 
Rafael Soares Golçalves A construção jurídica das favelas do Rio de Janeiro 
 
 
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um mero conjunto de barracos anti-higiênicos. O que está em jogo não são as condições de 
habitabilidade das casas, mas a oferta de um serviço a todo um grupo de indivíduos. Não se trata 
mais de um problema ligado somente à forma de habitat (casebres de madeira), mas sim ao 
espaço de habitação.28 Em segundo lugar, observamos a instituição da mesma política ambígua - 
que será uma constante durante todo o século XX - de realizar concessões e melhorias pontuais 
nas favelas, sempre mantendo a natureza provisória e precária das mesmas, de maneira que a 
análise dos problemas de fundo é sistematicamente contornada. O intendente Leite Ribeiro já 
demonstrava uma fina compreensão da questão da moradia popular, afirmando que a destruição 
das favelas era contraproducente e a única maneira de “debellar o mal, é sim construindo cidades, 
verdadeiramente proletárias, em pontos apropriados, sem o luxo das villas sunptuosas, com casas 
de sobrado.”29 Contudo, face às dificuldades de se obterem recursos para se construir tais cidades 
proletárias (e certamente a falta de interesse político), era necessário estabelecer uma maneira de 
se conviver com as favelas, através de concessões esporádicas. Tal política não visava à 
integração destes espaços à cidade, o que permitia, quando necessário, a erradicação das 
favelas, mediante métodos frequentemente violentos, como foi o caso do suspeito incêndio no 
Morro de Santo Antônio em 1916.30 
Durante os anos de guerra, inicia-se um processo de industrialização mais acelerado na cidade, 
processo que se intensificou durante os anos de 1920. Apesar do desenvolvimento dos 
transportes, as indústrias continuavam concentradas nos bairros mais centrais. Segundo Lobo, em 
1921, 11.990 estabelecimentos de comércio e indústria estavam localizados na zona urbana, 
3.716 na suburbana e 2.222 na rural (LOBO, 1978: 537) o que concentrava também a população 
favelada nesta área.31 Nesta época, a cidade passava por um novo processo de reforma urbana. 
Os prefeitos Paulo de Frontin (janeiro a julho de 1919) e Carlos Sampaio (1920-1922) realizaram 
profundas modificações na estrutura urbana da cidade. Este último, incumbido de preparar a 
cidade para as comemorações do centenário da independência, arrasou o morro do Castelo, onde 
moravam aproximadamente 5000 pessoas. Além disso, várias favelas foram ‘embelezadas’ 
durante a administração deste prefeito, o que resultou na expulsão de um grande número de 
habitantes. As justificativas ao projeto n°86, de 1920, de autoria do intendente Artur Menezes, 
 
28
 Abreu trabalha esta transformação da questao da moradia popular, centrada primeiramente no problema da forma do habitat (cortiço, 
vila operária), para o espaço da habitação (loteamento, subúrbio, periferia) (ABREU, 1984). 
29
 CAMARA DO DISTRICTO FEDERAL, op.cit., p.171. 
30
 “Ha meses, publicando alguns aspectos da Zincopolis do morrode Santo Antonio, a Revista da Semana mostrava a necessidade de 
remover do centro urbano do Rio, esse bairro, adventicio da miséria, limpando-o dessa chaga, mas nao esquecia a referência 
necessaria ao problema que se impunha resolver do abrigo a dar à populaçao miserrisima do morro. Quando, finalmente, chegou a vez 
da açao das autoridades, que a bem da hygiene e do decoro, promoveram a desapropriaçao judicial dos moradores, o espetaculo de 
tanta miseria emperrou as engrenagens judiciarias. A soluçao do problema ia soffrer adiamentos sucessivos. Era impossivel deixar 
sem tecto tantos infelizes. De repente, na noite de quinta-feira, 25 de maio, o fogo rompeu na acropole de Zinco e devorou-a. Quem 
ateou o incêndio? Ate hoje nao foi posivel descobri-lo.” Revista da Semana, n° 17, ano XVII, 1916. 
31
 A migração da indústria para os subúrbios se reforça a partir dos anos 1930/1940 o que vai aumentar também o número de favelas 
no subúrbio. 
Rafael Soares Golçalves A construção jurídica das favelas do Rio de Janeiro 
 
 
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autorizando o referido prefeito a realizar as obras necessárias para o embelezamento do Morro da 
Favella, nos revela a representação social extremamente negativa da favela, sendo os seus 
moradores considerados como a ‘escória social’ da cidade: 
“O ‘Morro da Favella’ tem o seu nome celebrizado pelos crimes mais repugnantes, porquanto 
foi elle preferido, para residência pela escória social. Realmente, nenhum outro ponto do 
Districto Federal, actualmente, carece mais do que elle das vistas dos poderes públicos, afim 
de lhe serem modificadas não só as condições de esthética, como também as que dizem 
respeito à hygiene, à segurança, à ordem e à moral. Assim, attendendo a tão necessário 
melhoramento devemos libertar a nossa bella metrópole daquella vergonha que tanto 
deprime os nossos costumes, a nossa cultura e civilisação. (...) Considerando, finalmente, 
que todos os melhoramentos devem ser levados à execução, afim de que no ‘sete de 
setembro de 1922’, a cidade do Rio de Janeiro apresente o mais deslumbrante 
aspecto.”32(grifos nossos) 
Neste sentido, a intervenção da municipalidade no Morro da Favella era necessária não somente 
no aspecto higiênico, mas também pela estética e sobretudo pela moral. O amorfoseamento do 
Morro consistia, assim, na possibilidade de se exercer um controle mais efetivo da população que 
ali vivia. Preparar a cidade para o centenário da independência significava, portanto, libertar a 
metrópole da ‘vergonha que tanto deprime os costumes, a cultura e a civilisação brasileira’. A lei 
não estipulava que tipos de obras seriam necessárias para melhorar as condições do Morro da 
Favella. Apesar do relatório elaborado pela Comissão de Legislação e Justiça da Câmara opinar 
pela adoção do referido projeto, pois “o seu autor o elaborando, teve em vista beneficiar uma 
grande parte da nossa população,” podemos afirmar, novamente, que o referido projeto atendia 
sobretudo aos interesses dos que ali nao moravam. A Favella nao fazia parte do “deslumbrante 
aspecto” que a cidade devia apresentar nos cem anos de independência. 
Tendo em vista a expansão acelerada das favelas na década de 1920, a lei 2.087, de 19.01.1925, 
procurou controlar tal expansão e acrescentou novos elementos neste processo de construção 
jurídica das favelas : 
“Art 203: A construção de casas de madeira só será permittida na quarta zona, e nos morros 
situados fora da primeira zona, não o sendo, entretanto, nos morros de Santa Teresa, da 
Glória, da Viúva, do Pasmado e de Santa Maria. 
Art 205 : Os galpões, nas primeira e segunda zonas, quando não ficarem occultos por outras 
edificações, que os tornem invísiveis dos logradouros públicos, só poderão ser construídos 
 
32
 CAMARA DO DISTRICTO FEDERAL, 1922, Annaes do Conselho municipal do Districto Federal, Typologia do Jornal do Commercio, 
Rio de Janeiro, p.548. 
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com um afastamento de vinte metros do alinhamento, sendo exigido, além disso, quando os 
respectivos terrenos tenham testada para logradouros dotados de calçamento aperfeiçoado, 
ou percorridos por linha de bondes, que se construa, no alinhamento, muro sufficientemente 
alto para que esses galpões não sejam visiveis.” (grifos nossos) 
Esta lei mantém a mesma poliítica de tolerância da ocupação dos morros. No entanto, o 
legislador, repetindo a mesma lógica utilizada contra os cortiços, procura incentivar a ocupação 
dos morros fora da primeira zona (centro da cidade). A proibição de construção de casas de 
madeira, nos morros citados no artigo 203, situados estes fora na segunda zona (essencialmente 
os bairros burgueses da zona sul atual), revela que o processo de favelização estava se 
espalhando rapidamente para outras áreas da cidade e já não se restringia às áreas centrais. A 
indicação dessas exceções visa estabelecer um maior controle sobre a expansão das favelas, 
buscando conduzi-las para os subúrbios. 
O artigo 205 insere definitivamente, no debate sobre as favelas, a questão da estética que já tinha 
sido evocada no decreto analisado acima. Os barracos existentes nas primeiras e segundas 
zonas eram tolerados, mas deveriam ser construídos de tal forma que permanecessem ocultos 
aos transeuntes dos logradouros públicos. Os habitantes destes barracos deveriam mesmo, se 
necessário, construir muros suficientemente altos, para que as construções não fossem visíveis. O 
fato que as favelas, situadas nas áreas mais ricas da cidade, deveriam permanecer invisíveis à 
cidade é simbolicamente expressivo. As favelas se tornavam, assim, um problema estético que 
poderia prejudicar a expansão do mercado imobiliário. Uma nova divisão espacial, que eliminasse 
definitivamente esta “lepra da estética”33 dos bairros burgueses, se fazia necessária. Como vamos 
ponderar a seguir, estas idéias serão evocadas e desenvolvidas sobretudo pelo rotariano Mattos 
Pimenta e pelo arquiteto Alfred Agache. 
Enfim, o relato abaixo, sobre os preparativos da visita do poeta futurista Marineti34 ao Morro da 
Favella, ilustra claramente a idéia que as favelas estavam se constituindo em um espaço, onde a 
influência dos poderes públicos e do direito formal era relativa. Segundo Abreu, os chefões locais 
enviaram representantes à Delegacia mais próxima para receberem o visitante ilustre e guia-lo no 
Morro da Favella (ABREU, 1994: 43). 
A polícia não poderia permanecer em pelotões no morro. Veio uma perfeita situação de 
entente-cordiale com os mais prestigiados dungas. As autoridades da zona tacitamente 
delegavam poderes a esses obedecidos homens fortes, que passaram oficiosamente a agir 
 
33
 Mattos Pimenta, Correio da Manhã, 18.11.1926. 
34
 Graças ao convite de modernistas, o intelectual fascista decidiu visitar o Morro da Favella. A corrente modernista no Brasil procurou 
resgatar a imagem das favelas, alçando-as à simbolo da cultura nacional. 
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como representantes do comissário. Só assim se resolveu o problema da pacificação lenta 
da Favela.35(grifos nossos) 
As favelas seconsolidavam como espaços com leis e poderes próprios, quase autônomos, onde a 
influência dos poderes públicos era mais do que relativa. Entretanto, observa-se que esta 
“privatização do direito,” que vai ganhar contornos mais agudos nas últimas décadas do século 
XX, é fruto desta espécie de “entente-cordiale.” Este processo se deu, portanto, com o aval dos 
poderes públicos, visto que “só assim se resolveu o problema da pacificação lenta da Favela.” 
Benjamin Costallat reforça esta idéia de privatização do direito quando ele escreve, em 1924, que 
“encravada no Rio de Janeiro, a Favella é uma cidade dentro da cidade. Perfeitamente diversa e 
absolutamente autônoma. Não tingida pelos regulamentos da prefeitura e longe das vistas da 
polícia (...) Na Favella não se fazem contratos. Não há inquilinos, nem senhorios. Não há 
despejos. Se o inquilino for mais forte do que o senhorio, o aluguel nunca é pago. Se o senhorio é 
o mais valente, então, sim, a casa é paga pontualmente, todos os começos de mês. É a lei do 
inquilinato da Favella.” (ZYLBERBERG, 1992: 117). Nos meados da década de 1920, a ocupação 
dos morros da cidade já não é mais percebida como uma solução provisória ao problema de 
moradia popular. O que era provisório se expandiu e se consolidou na paisagem urbana da cidade 
como um problema sanitário, moral, estético, jurídico, de legitimidade estatal e de segurança 
pública. Como vamos pesquisar, a seguir, esta “problematização das favelas” exigiu um 
reconhecimento formal das mesmas e provocou, consequentemente, uma profunda modificação 
da política urbana. 
 
3°capitulo: Remover ou integrar ? 
A populacão favelada cresceu enormemente durante os anos de 1920,36 desencadeando um 
aumento generalizado das ocupações de terrenos, o que multiplicou as remoções em 
cumprimento a ordens judiciais de reintegração de posse. Apesar da violência das remoções,37 os 
morros voltavam a ser ocupados. O rotariano Mattos Pimenta, representante dos interesses do 
emergente setor imobiliário, organizou uma campanha contra as favelas no final dos anos de 
1920, dando ênfase à questão da estética e propondo a construção de casas populares, para que 
os habitantes das favelas pudessem ter acesso à propriedade privada. Estas medidas permitiriam 
impulsionar o setor de construção civil, assim como possibilitariam a remoção das favelas situadas 
nas áreas mais valorizadas da cidade. Mattos Pimenta afirmava que remover favelas, sem 
 
35
 Correio da Manhã, 19.05.1926. 
36Eulalia Lobo afirma que, em 1929, a população favelada já atingia 200.000 pessoas (LOBO, 1989: 118). 
37
 O prefeito Prado Junior ordenou a derrubada de várias centenas de barracos em 1928, sem oferecer outros locais de moradia 
(CONNIF, 1981 : 33). 
Rafael Soares Golçalves A construção jurídica das favelas do Rio de Janeiro 
 
 
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oferecer uma outra alternativa, só reforçaria a ‘dansa das favelas’, dado que as pessoas 
removidas seriam forçadas a se estabelecer em outras favelas. Observamos, assim, uma sensível 
transformação da reflexão sobre a cidade. Um olhar mais sistêmico sobre a questão urbana se 
impunha quanto à visão higienista (PECHMAN, 1996: 340). A emergência do pensamento 
urbanista se materializaria definitivamente no Rio de Janeiro, com o convite feito pelos poderes 
públicos ao arquiteto francês Alfred Agache, sob o apoio de Mattos Pimenta, para elaborar um 
plano urbanístico para a cidade. 
Este plano procurou estabelecer, de forma segregacionista, uma divisão mais clara entre as 
classes sociais. Agache introduziu, a idéia de zoning, procurou repensar a circulação e a 
mobilidade urbana, refletiu sobre a questão da moradia às diferentes classes sociais e insistiu 
sobre a necessidade de se estabelecer uma política de construção, a partir da aplicação de 
regulamentos de edificação (REZENDE, 1982: 43/44). O plano abordou detalhadamente o 
problema das favelas. Segundo Agache, estas eram uma espécie de “cidade satéllite de formação 
espontânea, que escolheu, de preferência, o alto dos morros, composta, porém, de uma 
população meio nômade, avessa a toda e qualquer regra de hygiene” (AGACHE, 1930: 20 
Estabeleceu, ainda, uma análise detalhada das causas que permitiram a formação desses 
aglomerados, assim como já citava a emergência de um mercado imobiliário informal, afirmando 
que os “pequenos proprietários capitalistas que se installaram repentinamente em terrenos que 
não lhes pertenciam, os quaes ficariam surprehendidos e se lhes demonstrasse que não podem, 
em caso nenhum, reinvindicar direitos de possessão.” (AGACHE, 1930: 189 Apesar de constatar a 
complexidade da estrutura interna das favelas, o arquiteto sustentava que, sendo “as favellas uma 
das chagas do Rio de Janeiro”, a única solução seria “num dia muito próximo, levar-lhe o ferro 
cauterisador” (AGACHE, 1930: 239). Examinando os projetos de leis sociais (anexo C do plano), 
pode-se supor, no âmbito juridico, de que maneira Agache contava abordar o problema das 
favelas. pode-se supor, no plano jurídico, de que maneira Agache contava abordar o problema 
das favelas. Ele as reconhecia como um espaço diferenciado do resto da cidade. O conjunto de 
casas das favelas deveria ser sempre considerado como insalubre e passível de demolição. Nota-
se que a condenação de insalubridade recaía sobre o espaço ‘favela’ e não sobre as casas 
isoladamente. O plano determinava ainda que, “antes de destruir os immóveis ou os bairros 
insalubres, a Municipalidade será obrigada a achar ou mandar construir habitações 
correspondentes para os inquilinos expulsos.” (AGACHE, 1930: 83). E, enfim, estipulava várias 
disposições que tinham por objetivo incentivar a ”construcção de casas salubres e módicas, que 
favoreçam as pessoas de restrictos rendimentos (...) ” (AGACHE, 1930: 83). O plano reforçou que 
as favelas deveriam ser necessariamente erradicadas, porém revelava uma fina compreensão do 
mecanismo evocado por Mattos Pimenta da “dança das favelas,” já que afirmava a necessidade 
Rafael Soares Golçalves A construção jurídica das favelas do Rio de Janeiro 
 
 
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de se construir habitações a preços módicos ou totalmente subvencionados pelo Estado para 
atender às necessidades de moradia popular. As mudanças políticas implementadas pela 
revolução de 1930 impossibilitaram a aplicação deste plano e os projetos legislativos supracitados 
jamais se converteram em lei. 
O Plano Agache é um produto do contexto político brasileiro do final dos anos de 1920. Segundo o 
presidente da época, Washington Luis (1926-1930), “a agitação operária é uma questão que 
interessa mais à ordem pública que à ordem social,” (REZENDE, 1982: 39) o que nos revela o 
grau de participação política das camadas médias e populares na sociedade brasileira. Em uma 
sociedade essencialmente agrária, a ordem jurídica vigente pautava a reflexão urbana na noção 
da propriedade privada individual e irrestrita que expressava, assim, a ideologia do legalismo 
liberal. Esta ordem jurídica se mostrou completamente ineficaz durante o processo acelerado de 
urbanização que o país vinha sofrendo desde o início dos anos de 1920. Neste contexto, a 
revolução de 1930 representou uma profunda modificação das estruturas políticas e repercutiu 
profundamente na reflexão sobre o direito urbanístico. Tanto a constituição de 1934 como a do 
Estado Novo de 1937 sustentaram o princípio da função social da propriedade, o que gerou vários 
conflitos jurídicos,pois tal princípio ia de encontro ao princípio liberal da propriedade privada 
evocado pelo Código Civil de 1916.38 
No âmbito da política local, a indicação à prefeitura do Distrito Federal de Pedro Ernesto modificou 
sensivelmente a relação entre os poderes públicos e a população favelada. Em contraste ao 
modelo de prefeito técnico e ‘tocador de obras,’ Pedro Ernesto inaugurou um modelo mais político, 
centrado nas questões sociais e sem a preocupação de deixar sua ‘marca’ através de obras 
suntuosas. Esta politização da esfera local visava elevar as massas, de maneira que estas, sob o 
controle do estado, adquirissem a plena cidadania. Neste contexto, a inovação de sua abordagem, 
em relação às favelas, consistia no reconhecimento do papel político dos favelados na esfera local 
e no reconhecimento que as favelas podiam ser uma resposta concreta ao problema de moradia. 
Apesar da ausência de mudanças significativas na legislação urbana em relação às favelas, o 
reconhecimento de fato destas pelos poderes públicos repercutiu sensivelmente no quotidiano dos 
favelados. Esta nova abordagem das favelas legitimou a política social da prefeitura e ajudou a 
forjar a imagem extremamente popular de Pedro Ernesto. 
O prefeito visitou frequentemente as favelas, acolhendo as reinvidicações formuladas pelos 
‘centros de melhoramentos’ que se formavam em várias delas, nesta época. Duas medidas 
implementadas por esta administração são ricas de simbolismo e revelam a profunda mudança da 
política pública em relação às favelas. Primeiramente, foi a instalação de certos serviços e 
 
38
 O Código Civil de 1916 teve um papel decisivo na consolidação desta ordem jurídica e só foi substituído recentemente, em 2002. 
Rafael Soares Golçalves A construção jurídica das favelas do Rio de Janeiro 
 
 
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equipamentos no interior de algumas favelas. Esta medida tanto aceitava como legítimas as 
reinvidicações desta população como reconhecia oficialmente as favelas como partes integrantes 
da cidade. A célebre reforma educacional, implementada pela prefeitura, abriu o sistema 
educacional para os favelados, construindo inúmeras escolas públicas perto das favelas e, pela 
primeira vez, construindo uma dentro de uma favela, a Escola Pública Humberto de Campos, no 
Morro da Mangueira (CONNIF, 1981: 118/119). Em segundo lugar, a prefeitura procurou intervir 
nos diversos conflitos fundiários, evitando remoções e despejos impetrados contra os favelados e 
abolindo as remoções violentas de anos anteriores. Observamos, assim, uma conjuntura social 
favorável ao reconhecimento das demandas da população favelada. Apesar da ausência de 
instrumentos jurídicos eficazes contra as remoções, os favelados ja demonstravam um pleno 
conhecimento das engrenagens jurídico-políticas. Sem descartar os meios legais e judiciais, os 
favelados procuravam frequentemente o apoio da imprensa, evocando as consequências sociais 
nefastas que uma possível remoção provocaria. Diante do dilema de se aplicar a lei literalmente 
ou reconhecer as reivindicações sociais dos favelados, o juiz normalmente recorria ao poder 
executivo na esperança da promulgação de um decreto de desapropriação, que ‘congelaria’ assim 
a disputa. Estas negociações políticas permitiam a permanência precária dos favelados, já que 
muitos desses processos vão se arrastar por anos e décadas.39 
Desta forma, as ações de Pedro Ernesto resultaram em um reconhecimento oficial das favelas, 
obtendo o apoio popular à sua gestão. De aliado de Getúlio Vargas, o ‘médico bondoso’ tornou-se 
um possível rival, o que levou ao seu afastamento em 1936. A pioneira política de Pedro Ernesto 
se converteu, em certos aspectos, em modelo para a política populista que já vinha sendo 
aplicada pelo “pai dos pobres.” 
Enfim, o código de obras (decreto n° 6000 de 1.07.1937) consolidou as favelas no espaço urbano 
e político da cidade do Rio de Janeiro. As disposições deste código influenciaram várias 
prefeituras e mantiveram-se em vigor no Rio de Janeiro ate 1970. O artigo 349 do código foi o 
primeiro texto jurídico a empregar expressamente o termo ‘favelas,’ estabelecendo uma definição 
oficial para estas: 
Artigo 349 : A formação de favelas, isto é, de conglomerados de dois ou mais casebres 
regularmente dispostos ou em desordem, construídos com materiais improvisados e em 
desacordo com as disposições desde Decreto, não será absolutamente permitida. 
§ 1° - Nas favelas existentes é absolutamente proibido levantar ou construir novos casebres, 
executar qualquer obra nos que existem ou fazer qualquer construção. 
 
39
 Silva afirma que quando a situação jurídica era nitidamente mais favorável ao postulante, os favelados estabeleciam vínculos com os 
donos da terra através do pagamento de aluguéis o que conferia um caráter mais formal às favelas (SILVA, 2005: 121). 
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§ 2° – A prefeitura providenciará (...) por todos os meios ao seu alcance para impedir a 
formação de novas favelas ou para a ampliação e a execução de qualquer obra nas 
existentes, mandando proceder sumariamente à demoliçao dos novos casebres, daqueles 
em que for realizada qualquer obra e de qualquer construção que seja feita nas favelas. 
§ 3° - Verificada pelas Delegacias Fiscais ou pela Diretoria de Engenharia, a infração ao 
presente artigo, deverá o fato ser levado com urgência ao conhecimento da Diretoria de 
Engenharia que, depois de obtida a necessária autorização do Secretário Geral de Viação e 
Obras Públicas, mandará proceder à demolição sumária, independentemente de intimação e 
apenas mediante aviso prévio dado com 24 horas de antecedência. 
§ 5° - Tratando-se de favela formada ou construída em terreno de propriedade particular, 
será o respectivo proprietário passível (...) da aplicação da multa correspondente à execução 
de obra sem licença e com desrespeito ao zoneamento. 
§ 7° - Quando a prefeitura verificar que existe exploração de favela pela cobrança de aluguel 
de casebres ou pelo arrendamento ou aluguel do solo, as multas serão aplicadas em dobro 
(...) 
§ 8° - A construção ou armação de casebres destinados à habitação, nos terrenos, pateos 
ou quintais dos prédios, fica sujeita às disposições deste artigo. 
§ 9° - A Prefeitura providenciará como estabelece o Titulo IV do Capítulo deste Decreto para 
a extinção das favelas e a formação, para substituí-las, de núcleos de habitação de tipo 
mínimo.” (grifos nossos) 
Nao cabe aqui analisar todas as conseqüências - que foram muitas - deste artigo nas políticas 
públicas em relaçao às favelas, mas de inserir o seu conteudo no processo histórico de 
construção jurídica das favelas. A influência de Agache e Mattos Pimenta é clara na medida que 
estabelece que a formação de favelas não será “absolutamente permitida”, prevendo que as 
remoções deviam ser precedidas pela construço de “nucleos de habitaçao de tipo minimo.”40 Nota-
se também a manutenção de certos princípios presentes na legislação urbana aplicada aos 
cortiços. Esta legislação visava a uma espécie de ‘congelamento’ urbanístico, impedindo as 
construções e reformas dos cortiços. O presente artigo repete esta lógica, proibindo a construção 
ou reforma de casebres, devendo-se “proceder sumariamente à demolição (...), daqueles em que 
for realizada qualquer obra e de qualquer construção que sejafeita nas favelas.” Neste contexto, 
mantém-se a condição precária e provisória das favelas, impedindo a sua consolidação no espaço 
 
40
 É interessante sublinhar que ainda não era clara a influência que a permissão concedida à construção de casas de madeira exercia 
sobre a favelização da cidade. O artigo 292 do Código de Obras vai manter esta permissão somente aumentando o espaço, onde tais 
construções eram proibídas. 
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urbano da cidade. Os métodos previstos se revelam igualmente autoritários, visto que a demolição 
seria efetuada de maneira sumária, “independentemente de intimação e apenas mediante aviso 
prévio dado com 24 horas de antecedência.” 
Ressaltam-se também as inovações instituídas por este decreto. Em primeiro lugar, ele 
estabelece, enfim, um conceito jurídico oficial às favelas, que vai se mostrar extremamante amplo 
e influenciará todos os demais conceitos que serão impostos a estas, durante décadas. Em 
segundo lugar, este artigo sublinha que os procedimentos legais, em relação às favelas, variam 
segundo a titularidade do terreno. Assim, as favelas situadas em terrenos públicos são passíveis 
de demolição imediata. Entretanto, o artigo prevê que, em terreno particular, cabe aos 
proprietários remover as favelas formadas ou construídas, o que nos leva a concluir que certas 
favelas não eram necessariamente ocupações de terrenos e que muitas eram incentivadas e/ou 
construídas pelos próprios proprietários dos terrenos. Desta forma, determina-se que, quando se 
verifica “que existe exploração da favela pela cobrança de aluguel de casebres ou pelo 
arrendamento ou aluguel do solo, as multas serão aplicadas em dobro (...)” Em terceiro e úlltimo 
lugar, fica claro que o processo de favelização não se resume aos morros, já que certas favelas 
estavam se formando “nos terrenos, pateos ou quintais dos prédios”. 
O Código de Obras inaugura, assim, uma nova face jurídico-política em relação às favelas o que 
revela um certo retrocesso em relação à política implementada pela administração Pedro Ernesto. 
As favelas vão adquirir um estatuto jurídico sui generis (CONN, 1968: 51). Esta espécie de vago 
jurídico vai legitimizar a falta de investimentos públicos nestes espaços de forma que toda e 
qualquer intervenção pública será sempre de caráter provisório, dado que, conforme estipula o 
código de obras, as favelas deveriam ser extintas. 
 
Conclusao 
Tentamos demonstrar, neste trabalho, a evolução histórica da legislação urbana na cidade do Rio 
de Janeiro, analisando, especificamente, o conteúdo desta legislaçao em relaçao às favelas. De 
possível solução provisória, estas vão se tornar uma realidade definitiva da paisagem urbana 
carioca. Esta espécie de construção juridica das favelas vai se materializar no Codigo de Obras de 
1937 que, reconhecendo oficialmente as favelas, consolida, enfim, a natureza ilegal destes 
espaços. 
A análise deste processo histórico de construção jurídica do objeto ‘favela’ nos permitiu de melhor 
compreender o poder simbólico do discurso juridico que, revestindo-se de uma pretensa natureza 
a-histórica, procura ocultar as contradições da sociedade e legitimar um certo padrão específico 
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de dominação política. O que procuramos demonstrar neste trabalho é que a produção do direito é 
iminentemente política e que toda análise jurídica deve necessariamente ser inserida em uma 
lógica histórica. A lei, mesmo se revogada, deixa ‘traços’ que não são facilmente suprimidos da 
realidade social (SANTOS, 1988: 366). Neste sentido, buscamos identificar estes ‘traços,’ 
salientando, assim, a influência do direito na formação e na expansão inicial das favelas o que nos 
leva a concluir que o direito teve um papel central na consolidação da favela, como elemento ao 
mesmo tempo marginal e estrutural do espaço urbano carioca. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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