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DIREITO ADMINISTRATIVO REFLEXOS

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Artigo: Reflexo das esferas administrativa e penal 
 
 Prof. Jose M. P. Madeira1 
 
Passam-se, neste momento, a ser feitas algumas ponderações sobre os efeitos de 
uma decisão penal para o servidor público infrator, haja vista que as questões que a 
sentença envolve, embora por muitos levantadas, quase sempre são abordadas en passant, 
daí merecendo ser aqui mais detalhadamente observadas. 
 
Então, pela regra geral, diz a doutrina que não há comunicação entre as instâncias, 
isto é, a regra geral é a independência entre as instâncias civil, penal e administrativa. Por 
isso, uma pessoa pode cometer uma infração e este ato ser considerado, ao mesmo tempo, 
uma infração no âmbito civil, no âmbito penal e no âmbito administrativo, e ser punida 
nestas três esferas, sem que isso se configure bis in idem, porque as instâncias são 
independentes entre si. Essa é a linha geral. 
 
Sendo assim, as instâncias, em geral, são independentes, não havendo no direito 
brasileiro a preponderância de uma sobre a outra. No entanto, em dois casos específicos 
(inexistência do fato e negativa de autoria), o que será visto a seguir, haverá a prevalência 
da esfera penal sobre a da administrativa, fazendo com que a decisão judicial de 
absolvição prevaleça sobre as decisões das esferas cível e administrativa, se contrárias. 
 
Entretanto, existem situações excepcionais, em que as instâncias podem se 
comunicar, e é isso que a doutrina às vezes aborda muito rapidamente, razão pela qual se 
vai focar um pouco mais o assunto, já começando por indagar o seguinte: como uma 
decisão penal vai influenciar uma decisão administrativa? Essa é a questão: quando vai 
haver intercomunicação entre as esferas penal e administrativa. 
 
Para se obter a resposta, é preciso fazer a distinção que a doutrina faz, pois ela 
distingue, nesse caso, os crimes funcionais dos crimes não funcionais, ou seja, para a 
doutrina, quando se trata deste assunto, se a decisão penal vai influenciar na decisão 
administrativa, a primeira distinção que se tem que fazer é quanto ao crime que foi 
cometido. É saber se o crime foi cometido no exercício da função pública, se ele tem 
relação com a função pública (crime funcional), ou se ele foi cometido fora da função 
pública, na esfera privada do agente público (crime não funcional). 
 
Essa primeira distinção é salutar, pois é óbvio que, se o crime é cometido no 
exercício da função pública, se o crime é funcional, portanto, aqui se tem necessariamente 
o ponto de interseção com a decisão administrativa. Já no crime não funcional a regra é 
não ter esse contato, embora eventualmente possa ter alguma influência na decisão da 
esfera administrativa, mas a regra, em princípio, é a não comunicação entre as instâncias, 
se o crime não tem nada a ver coma função pública exercida pelo agente no caso concreto. 
 
Mas, sobre essa questão, a doutrina vai fazer algumas ponderações, e elas 
decorrem principalmente daquele art. 92 do Código Penal, já observado. É claro que o 
Estatuto dos Funcionários, a Lei federal nº 8.112/90, por exemplo, traz seus assuntos e 
 
1 Procurador do Legislativo (aposentado). Mestre em Direito do Estado, Doutor em Ciências Jurídicas e 
Sociais, Doutor Honoris Causa em Ciência Política e Administração Pública pela Emíll Brunner University 
e Pós-Graduado no Exterior. Pós-Doutorado pela Cambridge International University (Inglaterra). 
suas regras, lá nos arts. 126 e seguintes, como também o Código de Processo Penal dita 
suas normas sobre o assunto, mas as tais ponderações decorrem, em princípio, do art. 
92supra mencionado. 
 
Então, com base nesse dispositivo penal, a doutrina vai começar dizendo o óbvio, 
isto é, só há duas possibilidades ao servidor infrator: condenação ou absolvição. 
 
 
1a Possibilidade: condenação por crime funcional 
 
Para levantar essa possibilidade, supõe-se que um agente público, no exercício da 
função pública, cometeu um crime funcional e foi condenado no processo penal. Na esfera 
administrativa, ele tem que ser condenado também? Sim, porque aqui a comunicação é 
obrigatória, e pela seguinte razão: no processo penal vigora a presunção de inocência e, 
para haver a condenação na esfera penal, essa presunção de inocência fica afastada, ou 
seja, a dúvida favorece o réu, no processo penal. Para que ele sofra uma condenação penal, 
o juízo tem que ter certeza, embora nunca seja uma certeza absoluta, mas uma certeza 
relativa sobre a infração, a materialidade e a autoria da infração. 
 
Portanto, para estabelecer uma sanção penal, a análise dos fatos da autoria é muito 
mais profunda, muito mais detalhada, muito mais apurada. E, pior, na esfera penal, em 
regra, a simples culpa não gera a condenação, só se a lei for expressa nesse sentido, pois 
a forma culposa do delito tem de estar devidamente expressa na lei; a regra é para crime 
doloso. Se a lei for silente, não cabe o crime culposo; tem que ter dolo, em regra. 
 
Já no processo administrativo, para uma sanção ser aplicada, basta uma culpa leve 
do agente e uma análise que não precisa ser tão profunda. Bastam indícios de violação à 
legalidade para aplicar ao agente público uma sanção administrativa. Aqui, então, não se 
aplicaria aquela necessária interpretação do processo penal, do princípio da dúvida 
favorecendo ao réu e de uma análise apurada de culpa grave ou dolo para aplicar a sanção. 
Se isso acontece, quem pode mais, pode menos. Assim, caso se tenha aplicado uma 
sanção penal, onde tem que ter uma investigação mais apurada e profunda dos fatos, com 
maior razão essa condenação penal vai gerar também uma condenação administrativa. 
 
Aqui se tem, então, uma sanção administrativa aplicada no processo 
administrativo, após, é claro, ter sido respeitado o contraditório e a ampla defesa. É claro 
que a sanção pode variar, não quer dizer que o agente tenha que ser demitido, em 
princípio, do serviço. Pode ter sido aplicada uma outra sanção no processo administrativo 
– multa, advertência etc. –ou seja, vai variar de acordo com a gravidade do crime 
funcional. 
 
Agora, o Código Penal traz um efeito da própria decisão penal, qual seja, não é 
um efeito automático. Na verdade, é um efeito que decorre do processo penal, mas só que 
ele não está expresso; é um efeito para ser colocado pelo juízo criminal. Então, se os 
efeitos da decisão não forem expressamente estabelecidos pela sentença, eles não são 
gerados automaticamente com a condenação. 
 
Assim, quando o art. 92 determina que, se a condenação por crime funcional for 
a pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano (aqui, então, a sanção 
poderia ser um ano, certo?), a consequência administrativa é a demissão do servidor. É 
claro que esse efeito acessório da sentença penal, para existir, o juízo penal deve ter 
estabelecido expressamente na sentença condenatória. E isto é o que está expresso no 
Código Penal. Mas, o que importa é a regra geral: a condenação por crime funcional gera 
uma sanção administrativa, e esta pode variar. Agora, fato é que, se a condenação criminal 
for a pena privativa de liberdade igual ou superior a um ano, a sanção administrativa já 
está definida pela lei: é a demissão. E não pode ser outra, porque a própria lei está 
estabelecendo que é a demissão, pois se trata de ato vinculado. 
 
Mas, e se o juiz não fizer menção à perda do cargo ou função, expressamente, na 
sentença, quando a condenação é acima de um ano, a Administração pode abrir um PAD 
para a exclusão do servidor? Pode e deve, porque o Código Penal traz a possibilidade da 
demissão administrativa obrigatória, e é o que parece prevalecerna sua literalidade. 
Porém, para que ela ocorra – os penalistas e os processualistas vão dizer isso de uma 
maneira geral –, o juízo criminal tem que estabelecer isso expressamente na sentença, isto 
é, o efeito deve estar expresso na sentença, pois, caso contrário, não será efeito necessário 
da condenação. Observe-se, contudo, que isso não retira o poder-dever da Administração 
de apurar irregularidades, na busca da verdade material, e se o crime é, na verdade, um 
fato funcional, uma infração funcional, e um crime funcional também gravíssimo, e foi 
aplicada aquela sanção no âmbito penal, a nosso ver, não haveria outra saída a não ser 
aplicar, no âmbito administrativo, a demissão. Mas é preciso análise do caso concreto 
para isso. 
 
Então, ao que parece, a intenção do Código Penal foi mais ou menos a seguinte: 
“não importa a sanção em abstrato, o que importa é a sanção em concreto, a gravidade 
em concreto”. Só que, ao trazer a demissão, no caso de pena superior a um ano privativa 
de liberdade, porque o crime é grave, o administrador não é obrigado a esperar um ano 
para o servidor voltar ao serviço. Ele pode, portanto, analisando o caso concreto, demitir 
aquele agente, por conta da gravidade e do tempo que ele vai ficar fora. 
 
2a Possibilidade: absolvição 
 
O juízo penal absolveu o agente público. E aí? Será que essa absolvição gera 
necessariamente uma consequência na via administrativa? Depende, porque aqui se deve 
fazer uma divisão, isto é, depende do motivo da absolvição. Então, o que a lei vai dizer? 
Se, na absolvição, o juízo penal diz que não houve o fato (negativa do fato – o fato não 
ocorreu) ou o agente público não foi o autor daquele fato (negativa de autoria), o que 
acontece na via administrativa? Absolvição necessária. 
 
O raciocínio é parecido. Se, numa análise muito mais aprofundada, no processo 
judicial, o juízo criminal chega à conclusão de que o fato sequer ocorreu, não há conduta 
a ser sancionada, ou, se ele chega à conclusão de que o agente não foi o autor da infração, 
caso exista essa infração, ele não pode ser sancionado por uma infração que ele não 
cometeu. Na via administrativa, então, tem que se absolver esse agente e, por isso, nesse 
caso, existe também a vinculação da esfera administrativa à decisão penal. 
 
Ora, mas o processo administrativo não é independente do processo judicial? E 
se, nesse caso concreto, já houve processo administrativo e, neste processo,o agente foi 
condenado? Aí, agora, o processo penal absolve o agente. O que acontece com aquela 
sanção administrativa? A sanção administrativa é anulada e o agente público vai ter 
direito a receber, em relação a sua remuneração, tudo aquilo que ele receberia no período, 
corrigido, com juros etc. Nesse caso, vincula-se necessariamente a esfera administrativa. 
 
Agora, tem o fundamento da absolvição, e lá vigora a presunção de inocência. 
Supõe-se, então, que a absolvição se deu pela ausência de provas e, na dúvida, não se 
condenou aquele réu. Neste caso, o juízo penal não condenou o réu devido a ausência ou a 
insuficiência de provas, dizendo o seguinte: a dúvida favorece o réu e, para eu condená-
lo, tenho que ter uma certeza em relação à autoria e à materialidade, mas não tenho essa 
certeza, estou na dúvida, vou então absolvê-lo. 
 
E, neste caso, não se aplicando a pena na esfera penal, pode a esfera administrativa 
aplicar uma sanção? Pode, e sem problema nenhum, sendo aí que entra a independência 
entre as instâncias, como naquele caso relatado do ex-servidor policial. É claro que a 
sanção vai trazer vinculação de acordo com o que a lei estabeleceu. Agora, tirando o efeito 
automático, só se estiver expresso na sentença penal, mas isso não impede que, na esfera 
administrativa, seja instaurado o processo administrativo para aplicar a sanção. 
 
Bem oportuno, então, é esse caso, que é chamado de resíduo administrativo, o que 
já mencionamos acima, que costuma cair muito em prova, vale lembrar, havendo até uma 
súmula do STF, de 1963, a Súmula nº 18, cujo teor é o seguinte:“Pela falta residual, não 
compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa 
do servidor público”. 
 
Por esse teor, o sentido é o seguinte: aqueles fatos não geraram a aplicação de uma 
sanção penal porque não foram suficientes para se condenar. Mas, de qualquer forma, lá 
existe um resíduo, podendo a autoridade administrativa aplicar uma sanção, que é mais 
leve que a sanção penal para aqueles fatos, ou seja, existe aí um resíduo que pode ser 
sancionado, que pode ser analisado pelo agente público competente, pela autoridade 
competente, porque a avaliação judicial que foi feita não esgota o tema. Aqui, então, abre-
se espaço para a análise pela autoridade administrativa, que pode aplicar uma sanção. 
 
E para se aplicara sanção administrativa, o fato precisa ser típico? Em princípio, 
não. O simples fato de se ter algum fato atípico na esfera penal não impede a sanção 
administrativa. 
 
 
Referência Bibliográfica 
 
MADEIRA, Jose Maria Pinheiro: Reflexo das esferas administrativa e penal 
Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, nº. 22, março, 
2002.

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