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BRUXA: UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA MULHER QUE CONHECE O PRÓPRIO CORPO Laila Lilargem Rocha1 Larissa Belarmindo2 Luciane Pessanha3 Resumo: O corpo feminino foi compreendido ao longo da história como misterioso e fascinante. Principalmente antes do advento do modelo biomédico, as mulheres possuíam e repassavam em seus círculos de convivência conhecimentos sobre o corpo, as plantas, sobretudo medicinas alternativas. Assim, essas mulheres, por romperem com a cultura patriarcal dominante, que exclui as mesmas da possibilidade de conhecimentos, são então consideradas transgressoras. Classificadas na Idade Média (século XVI) como bruxas, as mulheres desviantes desde então tem enfrentado e resistido às práticas dominadoras. Pensando nessas questões o presente trabalho tem por objetivo analisar como se dá a relação historicamente construída entre a mulher e o conhecimento sobre o seu corpo. Assim, foi realizada uma revisão bibliográfica contemplando autores como Mary Del Priore e Foucault, e como método de análise, procedeu-se a uma análise temática da literatura. Desse modo, a concepção de bruxa que propomos, compreende as mulheres que detêm o conhecimento sobre seu próprio corpo, são independentes e livres, o que representa uma ruptura e ameaça à sociedade patriarcal, já que isso confere poder às mesmas. Palavras chave: mulher, conhecimento, corpo, bruxa. 1 Universidade Federal Fluminense; lailalr@id.uff.br 2 Universidade Federal Fluminense; lalabelarmindo@hotmail.com 3 Universidade Federal Fluminense; lucypess@hotmail.com 1-Introdução A proposta do presente texto é fazer um recorte histórico, a partir de alguns momentos (períodos) que são entendidos como relevantes para discutir os temas: mulher, corpo e conhecimento. Nesse sentido o objetivo não é traçar uma cronologia (linearidade), mas sim demarcar alguns momentos considerados importantes para alcançar tal compreensão. Para este fim, então, foi utilizado o método de revisão bibliográfica, baseando-se especialmente em Mary del Priore e Michel Foucault, como também em outros autores que versam ou se aproximam da temática de gênero. Desse modo, parte-se das sociedades matriarcais, caracterizadas pelos povos pré- históricos. Vale destacar a importância desse período, visto que o mesmo configura-se como um contraponto às sociedades posteriores. Estudos etnográficos mostram que nas sociedades matriarcais é observada uma relação mais horizontalizada entre as pessoas. Mesmo com a centralização na figura da mulher, e mãe, não é identificada relação de autoridade e opressão, nem demarcações hierárquicas. Posteriormente é feito um salto histórico para a Idade Média, período fundamental para o presente texto, pois data a emergência da figura da bruxa. Nesse período, mulheres que fugiam às normas dessa sociedade medieval, alicerçada no saber religioso, eram perseguidas e condenadas à fogueira. É esse caráter transgressivo da bruxa que é ressaltado ao longo do deste trabalho. A subversão da mulher, considerada bruxa, instiga uma reflexão desta para além do discurso religioso. A ideia então vai ao encontro de pensar a bruxa enquanto uma construção sócio-histórica da mulher transgressora, empoderada, sobretudo em relação ao seu corpo. Após a sociedade medieval, foi explorado o advento da modernidade, marcado principalmente pela emergência do saber científico. Nesse contexto é possível observar que o pensamento religioso vai se deteriorando enquanto hegemônico, dando lugar a um discurso científico, predominado principalmente pelo saber da medicina. Saber este que subsidiará as relações interpessoais e subjetivas, produzindo modos e práticas sobre o corpo. No que tange a mulher, a medicina exercerá um papel disciplinador, sobretudo acerca da sua sexualidade. Nesse escopo, as mulheres que rompem com o modelo social normatizador serão enquadradas pelo discurso médico, sendo patologizadas. É nesse contexto moderno que as mulheres, por meio de mecanismos de resistência ao poder hegemônico, podem construir coletivamente, formas de luta, ao modelo patriarcal. Desse modo, o movimento feminista emerge como um conjunto de práticas e teorias que visam problematizar, desconstruir o lugar e o papel da mulher ao longo da história, buscando principalmente compreender como se dão as relações de gênero. Para a presente revisão de literatura foram realizadas buscas nos bancos de dados Google Acadêmico, PePSIC e Scielo. Os descritores utilizados foram “mulher”, “bruxa” e “conhecimento” e “corpo”. Dos textos achados, foram selecionados alguns escritos em português e uma entrevista na língua espanhola. O ano de publicação e área do conhecimento não foram delimitados e nem elementos de exclusão. Em seguida, foi feita uma leitura exploratória desse material que, de acordo com Gil (2002) parte da ideia de verificar o quanto da obra consultada é relevante para a pesquisa. Para análise das informações obtidas, utilizou-se revisão temática da literatura, embasada no método de análise temática de conteúdo em que são identificadas unidades de significados nos conjuntos das falas (MINAYO, 1994). A partir dela, foram verificados importantes temas como as sociedades matriarcais, o controle dos corpos pela igreja na idade média, o patriarcado, a mulher no Brasil colônia e nas famílias burguesas da idade moderna, como também a eclosão do movimento feminista nas sociedades pós-revolução industrial. 2- Discussão 2.1- As sociedades matriarcais: povos pré-históricos. Segundo Geiger (2014), a visão atual acerca do sexo e das mulheres é muito diferente da forma como os povos pré-históricos viam. Os povos paleolíticos, em torno de 30 mil (A.C.) anos atrás veneravam o princípio materno e a sexualidade das mulheres, vinculava-se ao poder feminino e elas possuíam papéis relevantes no plano espiritual, na política e economia das comunidades em que viviam. Vale ressaltar, de acordo com essa autora, que não existem pistas que indicam uma posição de subordinação ocupada pelos homens ou que eles sofressem opressão tal qual as mulheres vieram a sofrer no sistema patriarcal. Nas palavras da autora: “[...] nessas sociedades, violência, crueldade, opressão e dominação não foram institucionalizadas com a intenção de manter posições de dominação e exploração, nem a sexualidade e a identidade masculina foram associadas com dominação ou submissão”. (GEIGER, 2014, p. 23). Para Campos (2010), a ausência do instituto da propriedade privada sustenta ainda mais o fato do controle sexual feminino ser desnecessário, visto que o pensamento hierárquico, individualista e separatista, que são fundamentos da propriedade privada, está ligado ao arquétipo masculino. Assim, a propriedade privada iria inaugurar a era do patriarcado. Frias (2013, p.4) em consonância com as proposições de Campos (2010) afirma que: “[...] a passagem do sistema matriarcal para o patriarcal seria o ponto crucial para o processo de dominação da mulher, pois nesse sistema a mulher perde a sua supremacia e autonomia, tornando-se escrava de pais, irmãos e maridos.” Assim, Campos (2010) complementa ao dizer que essa passagem do matriarcado para o patriarcado mudou a imagem da mulher e de seu poder de sedução na de um ser insaciável, que traz ameaças e tem natureza demoníaca e tal concepção era um meio de legitimar os homens e a subjugar as mulheres. 2.2- Idade Média: O controle da igreja. A figura da bruxa como uma construção social e histórica, emerge na Idade Média incluindo inúmeros pré-conceitosacerca do feminino. A bruxa, seja ela a jovem sedutora ou a velha decrépita, associa-se às mulheres que possuem conhecimento sobre o corpo e a natureza. Segundo Zordan (2005, p.331), “[...] parteiras, curandeiras e carpideiras, as bruxas misturam em seu caldeirão os mistérios da vida e da morte herdados das tradições pagãs”. Assim, as mulheres de origem camponesa que desenvolviam práticas e crenças sobre modos de tratar doenças e lidar com as situações da existência eram tidas como criminosas naquele contexto. Ou seja, a imagem da bruxa diz respeito a um modo de olhar a mulher, principalmente quando esta expressa conhecimento e poder. Em conformidade com essa questão, Federici (2004, p. 276) também afirma: “[...] historicamente la bruja era la partera, la medica, la advina, o la hechicera del pueblo”. Ao longo do tempo, nas sociedades patriarcais, as mulheres independentes e livres, as quais a máquina civilizatória não conseguiu dominar, foram punidas por sua expressão de poder, pagando por vezes, com suas próprias vidas. As chamadas bruxas foram torturadas e queimadas para demonstrar à população o que pode acontecer àqueles que subvertem a lógica dominante, que durante a Idade Média era representada pela Igreja. Para tal, o cristianismo cunhou a figura da bruxa como uma mulher perversa e devoradora, que comia carne humana, participava de orgias, transformava-se em animais e, possuía relações íntimas com demônios. A Igreja apoiando-se no manual de inquisidores, o Malleus Maleficarum (século XIV), o qual descrevia os poderes das bruxas, sua aliança com o demônio e sua ameaça para o cristianismo, construiu uma imagem fantástica dessas mulheres. Entretanto, os prodígios realizados pelas bruxas eram ineficientes quando elas eram tomadas sob o seu jugo (ZORDAN, 2005). Autores acrescentam também que sob tortura, privação do sono e fome, essas mulheres chegavam ao ponto de admitir todos os sortilégios aos quais eram acusadas. As bruxas eram acusadas pela Igreja de participar dos sabás4, os quais eram considerados rituais de sexo e luxúria dedicados a satã, e por sua vez, como a negação da fé cristã. Os sabás4 eram festas camponesas com resquícios do paganismo, onde os adeptos se reuniam e dançavam nus. O corpo torna-se mais evidente se comparado a uma missa cristã: usa-se o corpo com seus movimentos, expressões e odores para dançar, comer e beber. Por sua vez, a missa cristã apesar da finalidade de comungar do corpo (pão) e do sangue (vinho) de Cristo, fazendo alusão ao paganismo, representa um “[...] ritual asséptico onde ninguém come e bebe de verdade, não há saciedade para o corpo.” (ZORDAN, 2005, p.334-5), há apenas um teatro simbolizando a antropofagia dos cultos pagãos. As bruxas encarnavam então tudo o que é indomável, selvagem e instintivo nas mulheres, o que para a Igreja era inconcebível, pecaminoso, devendo ser punido. Isto é, na 4 O termo sabá aparece no final da Idade Média para aludir a festividades não-cristãs, nas quais práticas da velha religiosidade camponesa, com resquícios do paganismo vigoravam (ZORDAN, 2005, p.334). Pode ser denominado também como missa negra. lógica patriarcal, era impossível a mulher possuir conhecimento e ter a capacidade de curar os males do corpo. “A caracterização da bruxa que vigorou durante a Inquisição, ressoando até os dias de hoje, constitui-se como um dos elementos mais perversos produzidos na sociedade patriarcal do Ocidente.” (ZORDAN, 2005, p.332). As condenações propostas pela Igreja possuíam uma função moralizadora e misógina, pois as bruxas eram consideradas o expurgo de todos os males representados pelo feminino, a começar pelo pecado original e a desobediência da mulher ao comer do fruto proibido. Segundo Silva (2008), a ligação negativa atribuída a Eva (pecado original) se faz relevante no pensamento patriarcal, pois “foram às mulheres historicamente situadas, o objeto simbólico do mal e da fraqueza humana”, sinalizando a inferioridade racional da mulher desde a sua criação. Acreditava-se que as mulheres eram seduzidas mais facilmente pelo pecado (luxúria), pelo desejo sexual que espalhou o pecado original. A sexualidade era vista como algo diabólico pelos eclesiásticos e, todas as artimanhas realizadas pelas bruxas possuíam a finalidade do ato carnal da união dos corpos ou do mistério da procriação. Campos afirma: “[...] os homens não podem controlar o poder feminino da procriação – mas procuram superar através de métodos históricos de opressão, um deles, o monopólio da propriedade” (CAMPOS, 2010, p. 64). Ou seja, a subordinação das mulheres nas sociedades patriarcais era garantida pelo controle da sexualidade feminina. A bruxa representando o feminino com o seu potencial transformador e criador, aliando-se a imagem da mulher independente, dona do seu destino, de seu corpo e da sua sexualidade, era temida e, portanto na lógica patriarcal deveria ser dominada. 2.3- Idade Moderna: Da Europa ao Brasil Colônia. Em seu estudo, Campos (2010) aponta que, mesmo durante o Iluminismo, os seus principais pensadores não consideravam a mulher como ser titular de direitos. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a Declaração da Independência Americana (1776) não contemplavam as mulheres. E foi sem direitos de cidadania que elas, consideradas bruxas ou não, chegaram ao século XX. Segundo Schmidt (2012), em tempos pré-modernos, de acordo com a ideologia social referente à relação mulher/natureza, acreditava-se na capacidade ilimitada da mulher para o mal, representado na figura das bruxas da Idade Média perseguidas durante a Inquisição. No período moderno, esta crença adquire estatuto de verdade, ou seja, princípios da desordem e do mal foram ressaltados para justificar a necessidade de controlar a natureza e a mulher. Tal fato explica a figura de um corpo feminino dócil, disciplinado e reprodutivo que seria de grande utilidade para a burguesia nesse novo contexto de ordenação das sociedades ocidentais. Pode-se considerar, nesse sentido, que o desenvolvimento da racionalidade científica com vistas ao conhecimento da natureza, a demanda por uma ética sexual pautada na necessidade de domesticar as mulheres e o processo capitalista na base da expansão europeia que levou à conquista de outras terras e gentes não são fenômenos excludentes e nem aleatórios, mas entrelaçados por uma mesma matriz moderna: o desejo de controlar o outro e de integrá-lo a um projeto de domínio. (SCHMIDT, 2012, p. 6). No Brasil, especificamente, de acordo com Del Priore (2011), nos primeiros tempos da colonização, homens e mulheres viam a doença como uma advertência divina. Assim, nesse contexto em que doença e culpa estavam misturadas, o corpo feminino era visto, tanto pela igreja como pela medicina, como um palco nebuloso e obscuro em que Deus e o Diabo se enfrentavam. Ela ressalta que este imaginário constituía um saber que orientava a medicina e supria as lacunas de seus conhecimentos. Esta autora ainda diz que a ciência médica, além de investir em conceitos que subestimavam o corpo feminino, começou a perseguir as mulheres que tinham conhecimento de como tratar o próprio corpo. Nesse contexto, a Igreja as via como feiticeiras capazes de identificar e debelar as manifestações satânicas nos corpos doentes, mesmo quando elas estavam apenas substituindo os médicos, como se observa a seguir: “[...] tanto o corpo da mulher quanto os conhecimentos femininos da arte de tratá-lo, curá-lo e cauterizá-lo passaram a ser alvo da perseguição das autoridades científicas e eclesiásticas de então.” (DEL PRIORE,2011, p. 82). Ficava a cargo de a medicina disciplinar as mulheres para o ato da procriação, visto que só como mãe ela apresentaria um corpo e uma alma saudáveis, cujo destino era acolher o projeto fisiológico e moral dos médicos e a perspectiva sacramental da igreja. (DEL PRIORE, 2008). Assim, diante de todos esses fatos, Campos (2010) complementa a respeito da posição da mulher no Brasil colonial ao dizer que estas gozavam de posição política quase análoga a dos escravos, com a vida sexual controlada pelos pais, maridos ou senhores. Ela chama atenção para a ideia de que as mulheres mais controladas eram as de classes sociais mais elevadas, já que possuíam propriedades privadas e estas precisavam ser resguardadas a todo custo. As escravas tinham liberdade sexual, visto que seus parceiros também escravos não tinham posse de propriedades, ao contrário, eram eles uma das propriedades dos seus senhores. 2.4- Mecanismos de poder sobre o corpo. Como já explicitado anteriormente, com o advento da modernidade, o poder da igreja começou a se desmantelar, dando lugar ao saber científico, que se configura paulatinamente. Nesse sentido, Foucault (1998, p.36) aponta: “[...] e ao exército dos padres que velam pela saúde das almas, corresponderá o dos médicos que se preocupam com a saúde dos corpos”. Assim, o saber da igreja e posteriormente o saber científico produzem cada um com seus discursos e práticas, mecanismos de poder sobre os corpos. A preocupação com a saúde dos corpos se constituiu por meio da construção da medicina social. Esta tem como função o esquadrinhamento e controle social, com finalidade para docilização e disciplinarização dos corpos. Dessa forma, a saúde da então denominada “população” passa a se tornar uma questão política, na qual o corpo é o instrumento de controle. (FOUCAULT, 1984). Sobre essa concepção de população, Foucault (1988, p.31) expõe que “[...] uma das grandes novidades nas técnicas de poder, no século XVIII, foi o surgimento da ‘população’, como problema econômico e político [...]”. Partindo dessa nova noção de população, este autor compreende a emergência concomitante do mecanismo denominado biopolítca. Mais à frente, então explana: “[...] biopolítica para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana.” (FOUCAULT, 1988, p.155). Em outra obra, intitulada O nascimento da biopolítica, Foucault retoma o conceito explicando: O tema escolhido era, portanto a "biopolítica": eu entendia por isso a maneira como se procurou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas postos a prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, longevidade [...]. (FOUCAULT, 2008, p.431). Assim sendo os mecanismos de saber produzidos pela ciência configuram-se em uma forma de exercício de poder, que se dá nas relações sociais. Apesar dessa regulação dos corpos, observam-se rupturas que ocorreram nessa engrenagem social. Assim sendo, Foucault (1988, p.106), em História da sexualidade: a vontade de saber, afirma que: “Pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder”. Desse modo, a figuras da mulher, sobretudo as que subvertem a normas sociais, configuram enquanto esses pontos de resistência. Foucault (1988, p.132) aponta ainda para o fato de que a mulher foi alvo da disciplinaridade e docilidade, com relação a sua sexualidade. Ele afirma: “[...] a personagem investida em primeiro lugar pelo dispositivo de sexualidade, umas das primeiras a ser ‘sexualizada’ foi não devemos esquece, a mulher ‘ociosa’[...]”. Nesse caso, Foucault ressalta que a figura da mulher histérica serviu como instrumento ao exercício de um poder disciplinar com fins de controle da sexualidade ressaltando, sobretudo, o foco nas mulheres burguesas, que ele sinaliza como mulher ‘ociosa’. Assim no primeiro momento, os mecanismos de poder-saber foram criados principalmente para e pela burguesia (sendo posteriormente, aos poucos engendrados nas classes populares). Esse controle acerca do corpo e sexualidade da mulher se apresentou por meio da patologização da mesma. Foucault (1988, p.160) evidencia: “[...] a histerização das mulheres que levou a uma medicalização minuciosa de seu corpo, de seu sexo, fez-se em nome da responsabilidade que elas teriam no que diz respeito à saúde de seus filhos, a solidez da instituição familiar e a salvação da sociedade.” Assim compreende-se que a figura da mulher e o atravessamento dos dispositivos de poder-saber sobre seu corpo representa um ponto fundamental para a sociedade. 2.5- Séculos XIX e XX e o Movimento Feminista. Como reação aos anos de opressão e domínio da mulher, no âmbito da civilização industrial dos séculos XIX e XX, surge o movimento feminista que inclui um conjunto de ações e teorias que visam empoderar as mulheres, diante da sociedade que está alicerçada no patriarcado. Este modelo patriarcal, construído historicamente, cria hierarquias entre homens e mulheres, nas quais os primeiros exercem autoridade, e gozam de privilégios. Diante desse cenário ao longo dos anos as mulheres foram consideradas e tratadas como inferiores aos homens. (FONSECA, 2008). O conceito de gênero tem grande influencia no movimento feminista, buscando compreender então a produção social dos papéis do homem e da mulher, e o modo como estes foram e continuam sendo construídos historicamente. Desse modo, o sexo biológico não é um dado imparcial, posto que o corpo (seja ele composto pelo aparato sexual da mulher ou do homem) é inserido na cultura e, para tanto, é compreendido diferentemente em cada sociedade, distinguindo-se entre os diversos grupos sociais, sendo necessário considerar também variáveis como classe social e etnia (FONSECA, 2008). É possível observar então que as diferenças entre homens e mulheres são marcadas, sobretudo, pela dualidade e oposição, e tem como base explicações biológicas. Nesse sentido, as características obedeceriam ao processo natural da biologia, na qual a mulher caberia o papel de mãe, e por isso ligada ao cuidado, proteção, sendo considerada naturalmente emotiva. Já o homem teria o papel de provedor e mantenedor da família, por isso considerado forte, e racional. Embora estas tão conhecidas explicações ainda vigorem, enfatizamos que estas concepções são construídas dentro de um contexto social (MACHADO et. al., 2010). Tomando as palavras de Scott: Nós só podemos escrever a história desse processo se reconhecermos que “homem” e “mulher” são ao mesmo tempo categorias vazias e transbordantes; vazias porque não têm nenhum significado último, transcendente; transbordantes porque mesmo quando parecem estar fixadas, e contém ainda dentro delas definições alternativas negadas ou suprimidas (SCOTT, 1995, p. 93). A autora Joan Scott demonstra então que as categorias homem ou mulher não são determinantes. Caso se apresente de forma rígida, essa determinação do que é ser mulher ou homem, não é fixa, posto que ela traz aspectos e perspectivas de rompimento, mesmo que “negadas ou suprimidas”. A sociedade em sua organização dinâmica, atravessada pela economia, política, história, sofre transformações graduais e constantes. Assim o sistema patriarcal também vem sofrendo alterações. Considerando as mudanças socioeconômicas, o cenário social, pôde atestar, por exemplo, a entrada da mulher no mercado de trabalho. Fenômeno este que exigiu reorganização social tanto no nível prático, quanto em termos de produçãoconceitual. Desse modo, o feminismo, caracterizado como um movimento social que questiona os papéis estabelecidos entre mulheres e homens, vem sofrendo alterações e configurando pluralidades ao longo da sua história. O movimento feminista em seu início, por exemplo, (século XIX) se destacou na luta das mulheres pelo direito ao voto (sufragistas). Posteriormente, o feminismo acompanhou também a entrada da mulher no mercado de trabalho, bem como o advento das tecnologias reprodutivas, a exemplo pílula anticoncepcional (PINTO, 2010). Cada uma dessas transformações representa a importância do movimento feminista no que tange a emancipação e empoderamento, sobretudo da mulher, (mas também do homem), podendo romper estereótipos e papéis cristalizados. 3. Considerações finais No presente trabalho buscamos traçar uma trajetória acerca da mulher ao longo da história, enfatizando as noções de corpo, conhecimento e transgressão. Assim sendo iniciamos com uma breve elucidação das sociedades matriarcais, visto que consideramos importante romper com a noção e a hegemonia de sociedades patriarcais. Nesse sentido ao observar a existência do matriarcado em alguns povos, mesmo que em povos antigos, enfatizamos a concepção de possibilidades de outros modos de se construir uma sociedade, modos esses que levem em consideração, por exemplo, princípios tais como os seguidos pelas sociedades matrifocais, ou seja, predomínio da cooperação mútua, e relações horizontais. Rompendo com paradigmas tradicionais históricos, acerca da construção de sociedades patriarcais, nos direcionamos, a partir de um salto histórico, para a Idade média. Esse período configurou-se fundamental para o presente trabalho, pois a imagem da bruxa surge no período medieval, associando concepções terríveis ao feminino. As mulheres que possuíam conhecimento sobre o corpo, a natureza, desenvolvendo práticas sobre modos de tratar enfermidades e diversas situações da vida, eram consideradas bruxas. A essas mulheres eram atribuídos tudo o que é indomável e selvagem, visto serem detentoras de poder, liberdade e conhecimento. Diante da sociedade patriarcal e do poder exercido pela Igreja, as mulheres deveriam ser punidas por não aceitarem se submeter à lógica dessa sociedade perversa. Para tanto a religião, com auxílio do manual dos inquisidores, as transformou em monstros, justificando assim todo o tipo de tortura e agressão que cometeu ao longo da Idade Média e Moderna. As bruxas eram figuras que reuniam todos os males femininos, como o pecado original e a desobediência da mulher ao comer do fruto proibido. Ou seja, historicamente a mulher simbolizava a fraqueza humana e a inferioridade racional, devendo ser dominada, oprimida. No pensamento patriarcal, era inconcebível a mulher deter conhecimento e poder. Assim, a bruxa representando o feminino com o seu potencial transformador e criador, aliando-se a imagem da mulher independente, dona do seu destino, de seu corpo e da sua sexualidade, era temida. Verificou-se que da Idade Média para a Moderna, mesmo esta sendo marcada pela valorização da racionalidade e do saber científico, a mulher continua a sofrer opressão e domínio masculinos. Apesar dos avanços no que se refere aos direitos conquistados pelo homem, eles não contemplavam as mulheres, assim como o saber médico que ainda concebia os corpos femininos como propriedades do demônio, cujo objetivo era deixá-los dóceis para que atendessem aos anseios da burguesia e do capitalismo crescentes. Simultaneamente, no Brasil colonial, essa mesma lógica estava presente. A medicina, dando continuidade aos ideais da Igreja no que se refere ao conhecimento do corpo feminino, perseguia e condenava as pessoas, com destaque para as mulheres, que tinham habilidades de cura para as doenças que as acometiam. O saber médico se encarregava, assim, de disciplinar as mulheres para a procriação, especialmente as de classes mais enriquecidas, tendo em vista a necessidade de preservar a propriedade privada. O movimento feminista (século XIX e XX) se configura então enquanto um conjunto de teoria e prática que vem questionando as relações de gênero ao longo da história, incorporando novas concepções, e reflexões, de acordo com as transformações sociais. Dentre elas, podemos observar, por exemplo, a releitura da história, que até então era contada e protagonizada majoritariamente pelos homens, mas que ao ser revisitada a luz dos questionamentos feministas, nos possibilita repensar a noção da bruxa, e o porquê da busca pelo seu extermínio. Segundo FEDERICI (2013), em entrevista, o feminismo dos anos 70 trouxe a tona o interesse pela caça as bruxas. As feministas perceberam que a caça as bruxas alterou e influenciou a trajetória das mulheres, pois eram mulheres que resistiram ao poder da Igreja e do Estado. Longe de esgotar essa fértil discussão, o presente trabalho caminhou no sentido de propor reflexões e um olhar crítico, bem como fomentar futuras pesquisas que versem sobre essas temáticas. É nesse sentido que compreendemos a concepção da “mulher-bruxa” enquanto aquela que transgride as normas e concepções sociais vigentes. Essa mulher que, sobretudo a partir da idade média, busca se apropriar do conhecimento acerca do seu corpo, assumindo com isso as consequências implicadas nessa escolha. 4. Referências CAMPOS, A. A. As Bruxas retornaram... Cacem as Bruxas! Revista Espaço Acadêmico, n.104, jan. 2010. DEL PRIORE, M. Ao Sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. 2ª Ed. 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