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99 FALSAS MEMÓRIAS E PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO PENAL: EM BUSCA DA REDUÇÃO DE DANOS AURY LOPES JR* CRISTINA CARLA DI GESU** Resumo: O trabalho aponta a fragilidade da prova testemunhal no processo penal, desde a perspectiva da possibilidade de implantação de falsas memórias. Partindo da função persuasiva da prova em relação à captura psíquica do juiz, espelhada na sentença, alerta-se para os riscos da prova testemunhal e da palavra da vítima, especialmente nos crimes sexuais envolvendo crianças, e a necessidade de buscarem-se medidas de redução de danos processuais. Palavras-chave: Processo penal – Prova testemunhal – Falsas memórias. 1 – INTRODUÇÃO: A FUNÇÃO PERSUASIVA DA PROVA PENAL O processo penal é uma máquina retrospectiva, onde, através do seu ritual, busca-se desenvolver uma atividade recognitiva1 dirigida ao julgador. A atividade processual gira em torno da busca pelo convencimento do * Advogado Criminalista. Doutor em Direito Processual Penal. Professor no Programa de Pós- Graduação – Mestrado e Especialização – em Ciências Criminais da PUCRS. Pesquisador do CNPq. ** Assessora de Desembargador no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Especialista em Ciências Penais pela PUCRS. Mestranda em Ciências Criminais da PUCRS. Bolsista da CAPES. 1 CARNELUTTI, Francesco. “Verità, dubbio e certezza”. In: Rivista di Diritto Processuale, volume XX (II serie), 1965, p.04 a 09. RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 100 julgador. Trata-se da função persuasiva da prova, de que fala TARUFO2, no intuito de obter a captura psíquica do juiz (CORDERO). É ingenuidade seguir falando em “verdade processual” ou, mais grave ainda, falar-se na (absurda) verdade real3, cuja única “realidade” é a de fundar um sistema inquisitório. No processo acusatório, a “verdade” dos fatos não é elemento fundamente do sistema. O poder do julgador não se legitima pela verdade, tendo em vista que o poder contido na sentença é validado pela versão mais convincente sobre o fato, seja a da acusação ou a da defesa. O que importa é o convencimento do julgado. Para reduzir a esfera de arbitrariedade ou substancialismo, a prova que ingressa nos autos deve respeitar o due process of law, aportando ao feito de forma lícita e legítima. Parte-se, portanto, do abandono da idéia de verdade como escopo do processo, devido a seu excesso epistêmico4, não esquecendo a lição magistral de CARNELUTTI5 de que a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós (“la verità è nel tutto, non nella parte; e il tutto à troppo per noi”). As provas têm uma função persuasiva em relação ao juiz, permitindo uma tentativa de reconstruir (sempre parcialmente) aquilo que aconteceu. É elementar que a reconstrução de um fato histórico será sempre minimalista e imperfeita6, justamente porque se reconstruirá no presente algo ocorrido no passado. Se imaginarmos a testemunha como um pintor, encontramos em MERLEAU-PONTY7 a lição magistral de que faltam ao olho condições de ver o mundo e faltam ao quadro condições de representar o mundo. Impossível, portanto, a reconstrução de fato da mesma forma em que ocorreu no passado, pois este só existe na memória das pessoas. E a 2 TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Trad. de Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p.83. 3 Sendo o crime um fato passado, falar em verdade real é um absurdo, entre vários motivos, pelo fato de equiparar o real ao imaginário. Por ser passado, é imaginação, mito, fantasia, memória. Jamais realidade. Sobre o tema, LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal – Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional. 4ª Edição Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006. 4 Sobre a necessidade de abandonar-se a idéia de “verdade” no processo, imprescindível a leitura da 4ª edição da obra Introdução Crítica ao Processo Penal – Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional, de AURY LOPES JR., publicado pela editora Lumen Juris. 5 CARNELUTTI, Francesco. Verità, dubbio, certezza. In: Rivista di Diritto Processuale. Vol.XX. Padova: CEDAM – Casa Editrice Dott Antonio Milani, 1965, p.5. 6 LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal, p.267. 7 LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal, p.268. RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 101 memória, por sua vez, ao ser evocada, também não é fidedigna à realidade; ao oposto, é bastante deficitária. 2 – MEMÓRIA: O CÉREBRO NÃO ARQUIVA FOTOGRAFIAS Diferentemente do que se poderia pensar, as imagens não são permanentemente retidas na memória sob a forma de miniaturas ou microfilmes, na medida em que qualquer tipo de “cópia” geraria problemas de capacidade de armazenamento, devido à imensa gama de conhecimentos adquiridos ao longo da vida. É o que explica ANTÔNIO DAMÁSIO8, ao referir que “as imagens não são armazenadas sob forma de fotografias fac- similares de coisas, de acontecimentos, de palavras ou de frases. O cérebro não arquiva fotografias Polaroid de pessoas, objetos, paisagens; não armazena fitas magnéticas com música e fala; não armazena filmes de cenas de nossa vida; nem retém cartões com ‘deixas’ ou mensagens de teleprompter do tipo daquelas que ajudam os políticos a ganhar a vida. (...) Se o cérebro fosse uma biblioteca, esgotaríamos suas prateleiras à semelhança do que acontece nas bibliotecas”. Em clara oposição à idéia de que a memória é essencialmente reconstrutiva, ANTÔNIO DAMÁSIO9 refere que a evocação da memória deve estar relacionada à idéia de “representação aproximativa”. A memória pode ser classificada, segundo IZQUIERDO10, em dois grandes grupos. O primeiro trata da memória procedural, ligada ao aprendizado de atividades como escrever à máquina, andar de bicicleta, etc. O segundo grupo – o da memória declarativa – é o que interessa para o presente estudo, faz alusão à memória de fatos, eventos, de pessoas, de faces, de conceitos e de idéias. Assim, um ponto de suma importância para o estudo diz respeito ao esquecimento dos detalhes ao longo do tempo, quando se trata, por exemplo, de uma tragédia. Logo que o fato acontece, as pessoas lembram do acontecimento com riqueza de detalhes (mas sempre será uma “parte”, o fragmento do todo, que é inapreensível para nós). Contudo, com o passar 8 DAMÁSIO, Antônio. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. Trad. Portuguesa Dora Vicente e Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.128-129. 9 DAMÁSIO, Antônio. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, p.128. 10 IZQUIERDO, Ivan. A Memoria. Entrevista com Ivan Izquierdo concedida à RAN – Revista Argentina de Neurociencias, por Ignacio Brusco, MD; Diego Golombeck, Phd e Sérgio Strejilevich, MD. Trad. Renato M. E. Sabbatini. Capturada na internet em 18.10.2006. http://www.cerebromente.org.br/n04/opiniao/izquierdo.htm. RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 102 do tempo, estes são esquecidos, mas fica a lembrança do momento dramático. IZQUIERDO11 relata que “o que vai se apagando são os detalhes não emocionais. Cada vez que há uma circunstância que evoca algo emocional, que pode ser nossa própria vontade, evocamos os detalhes emocionais”. Isso veio a ser corroborado pelos estudos neurológicos, no sentido de que não há como dissociar a emoção da razão, tal como fez DESCARTES no passado. O dualismo cartesiano separou mente, cérebro e corpo através da “idéia de que a mente e cérebro estão relacionados, mas apenas no sentido de a mente ser o programa de software que corre numa parte do hardware chamado cérebro; ou que cérebro e corpo estão relacionados, mas apenasno sentido de o primeiro não conseguir sobreviver sem a manutenção que o segundo lhe oferece”12. 3 – MEMÓRIA E PROVA TESTEMUNHAL Trazendo a questão para a seara criminal, colocamo-nos diante de mais um problema. O delito, sem dúvida, gera uma emoção para aquele que o testemunha ou que dele é vítima. Contudo, pelo que se pode observar, a tendência da mente humana é guardar apenas a emoção do acontecimento, deixando no esquecimento justamente o que seria mais importante a ser relatado no processo, ou seja, a memória cognitiva, provida de detalhes técnicos e despida de contaminação (emoção, subjetivismo ou juízo de valor). É preciso, portanto, questionar como se apresenta e quais são as condições de possibilidade de exercício da memória na sociedade contemporânea. OST13 refere quatro paradoxos da memória: 1) a memória é social e não individual, ou seja, nunca se recorda de nada sozinho; 2) diferentemente do que se poderia pensar, a memória opera a partir do presente, estando longe de derivar do passado; 3) o terceiro paradoxo faz alusão à dinamicidade da memória: “A memória situa-se no prolongamento direto do precedente: se a memória opera a partir do presente e não do passado, é porque ela é uma disposição ativa, até voluntária, e não uma faculdade 11 IZQUIERDO, Ivan. A Memoria. Entrevista com Ivan Izquierdo concedida à RAN – Revista Argentina de Neurociencias, por Ignacio Brusco, MD; Diego Golombeck, Phd e Sérgio Strejilevich, MD. Trad. Renato M. E. Sabbatini. Capturada na internet em 18.10.2006. http://www.cerebromente.org.br/n04/opiniao/izquierdo.htm. 12 DAMÁSIO, Antônio. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, p.278. 13 OST, François. O tempo do direito. Trad. de Maria Fernanda Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p.59 e ss. RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 103 passiva espontânea”14; 4) por fim, o quarto e último paradoxo relaciona a memória ao esquecimento: a memória não se opõe ao esquecimento; ao contrário, pressupõe-no. Também para VIRILIO15, a memória tem uma íntima relação com o esquecimento: “O conteúdo da memória é função da velocidade do esquecimento. Isso quer dizer que a memória é o que resta quando nós esquecemos, e que não há memória sem esquecimento. Porém, a rapidez do esquecimento é mais importante, porque se esquecemos muito rápido, caímos na amnésia, mas se nós não esquecemos, ficamos loucos!”. Imprescindível a demonstração da concepção da memória sob diversos aspectos, pois dela depende o processo tanto para o reconhecimento dos acusados quanto para a reconstrução do fato delituoso, diante da ausência de demais provas técnicas, tais como perícias, exames de DNA, isolamento do local, colheita de digitais, entre outras. Destarte, o processo penal não pode ignorar como a memória é vista pelos outros campos do saber. GORPHE16 já afirmava que “desde que existen los hombres y desde que tienen la pretensión de hacer justicia se han valido del testimonio como del más fácil y más común de los medios de prueba”. 4 – FALSAS MEMÓRIAS No que diz respeito às falsas memórias, são praticamente inexistentes os estudos sobre o tema e os graves inconvenientes que elas podem trazer na formação e valoração da prova jurídico-penal. Os primeiros estudos acerca da falsificação da memória remontam ao início do Século XX, mais precisamente com BINET, em 1900, na França, e com STERN, em 1910, na Alemanha. Estes autores realizaram os primeiros experimentos demonstrando a ilusão ou a falsificação da lembrança em crianças. Mais tarde, em 1932, BARTLETT investigou, pela primeira vez, o fenômeno em adultos. 14 OST, François. O tempo do direito, p.61. 15 VIRÍLIO, Paul. “O paradoxo da memória do presente na era cibernética”. Entrevista com Paul Virilio concedida a Frederico Casalegno, in Memória cotidiana: comunidades e comunicação na era das redes. Entrevista com Paul Virilio concedida a Frederico Casalegno. CASALEGNO, Frederico. Memória cotidiana: comunidades e comunicação na era das redes. Tradução de Adriana Amaral, Francisco Rüdger e Sandra Montardo. Porto Alegre: Sulina, 2006, p.98. 16 GORPHE, François. La critica del testimonio. 2ª ed. Trad. Mariano Ruiz-Funes. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1949, p.1. RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 104 LOFTUS apareceu bem depois, ou seja, nos anos 70. Entretanto, o que fez dela uma das maiores autoridades sobre o tema foi justamente a introdução de uma nova técnica para o estudo das falsas memórias, consistente na sugestão da falsa informação. Cuida-se da inserção de uma informação não-verdadeira em meio a uma experiência realmente vivenciada, produzindo o chamado efeito “falsa informação”, no qual o sujeito acredita verdadeiramente ter passado pela experiência falsa. LOFTUS17 constatou, através de experimentos com mais de 20 mil pessoas, que “a informação errônea pode se imiscuir em nossas lembranças quando falamos com outras pessoas, somos interrogados de maneira evocativa ou quando uma reportagem nos mostra um evento que nós próprios vivemos”. Inicialmente pensávamos que as falsas memórias giravam apenas em torno de um processo inconsciente ou involuntário de “inflação da imaginação” sobre um determinado evento. As pessoas expostas à desinformação alterariam a memória de maneira previsível ou espetacular, mas de sempre de forma dirigida, isto é, não espontaneamente. Contudo, STEIN e PERGHER18 alertaram para um novo fator, considerando também ser possível a formação de uma falsa memória espontaneamente ou através de auto-sugestão. Explicam que “as falsas memórias são geradas espontaneamente, como resultado do processo normal de compreensão, ou seja, fruto de processos de distorções mnemônicas endógenas”. Todavia, o enfoque centra-se na indução. Segundo LOFTUS, a recordação dos acontecimentos fictícios da infância possui maior aceitação quando a fonte da informação foi esquecida, bem como quando o participante se familiariza com os detalhes. Nesse sentido, psicólogos apresentaram a voluntários acontecimentos reais relatados por membros da família, o que de fato dá mais credibilidade à história, misturados a acontecimentos inventados – ter derramado champanha nos pais da noiva, em uma festa de casamento. Na primeira vez em que o fato fictício foi relatado, nenhum dos participantes lembrava-se dele. Entretanto, os resultados da pesquisa mudaram ao longo de duas entrevistas consecutivas: 18% e depois 25% dos voluntários afirmaram se lembrar do incidente falso. A verificação da aludida indução ou sugestionamento é tão significativa que alguns voluntários da pesquisa acabaram por lembrar de 17 LOFTUS, Elizabeth. “As falsas lembranças”, in: Viver mente & cérebro, p.90. 18 STEIN, Lílian Milnilsky e PERGHER, Giovanni Kuckartz. “Criando falsas memórias em adultos por meio de palavras associadas”, in Psicologia: Reflexão e Crítica, p.354. RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 105 acontecimentos ocorridos logo após o nascimento – lembrança dos móbiles do berço do hospital, das enfermeiras e das máscaras dos médicos –, quando, na verdade, sabe-se que as “recordações ligadas ao primeiro ano de vida estão perdidas para sempre, sobretudo porque o hipocampo, que desempenha um papel importante nos mecanismos da memória, não é suficientemente maduro nessa idade para guardar lembranças recuperáveis na idade adulta”19. Inclusive, nos testes, alguns voluntários assinaram confissões de supostos danos a um computador, ao apertar uma tecla errada, que nunca haviam praticado: “Os participantes, inocentes de início, negavam a afirmação, mas depois de terem sido confrontadoscom um cúmplice do experimentador que afirmava tê-los visto fazer isso, vários deles assinaram confissões e terminaram por descrever de maneira detalhada o ato que não haviam cometido”20. A assunção de culpa, inclusive com confissão por escrito, dá-nos bem a dimensão do problema. Algumas pessoas estão mais suscetíveis à formação das falsas lembranças, geralmente aquelas que sofreram algum tipo de traumatismo ou lapso de memória. Contudo, através da observação casuística e de estudos de experimentação, as crianças foram historicamente avaliadas como mais vulneráveis à sugestão, pois a tendência infantil é justamente a de corresponder às expectativas do que deveria acontecer, bem como às expectativas do adulto entrevistador. BINET21 verificou numerosos erros involuntários de crianças submetidas a testes de recordação, concluindo que “o grau de sugestionabilidade das crianças mais jovens é significativamente mais alto, em razão de dois fatores diferentes: a) cognitio ou auto-sugestão, porque a criança desenvolve uma resposta segundo sua expectativa do que deveria acontecer; b) e outro social, que é o desejo de se ajustar às expectativas ou pressões de um entrevistador”. Isso veio demonstrar a fragilidade da memória infantil, em termos de sugestionabilidade. Na verdade, há um alerta generalizado para o depoimento infantil. 19 LOFTUS, Elizabeth. “As falsas lembranças”, in: Viver mente & cérebro, p.92-93. 20 LOFTUS, Elizabeth. “As falsas lembranças”, in Viver mente & cérebro, p.93. 21 BINET, Alfred apud PISA, Osnilda. Psicologia do testemunho: os riscos na inquirição de crianças. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade – da PUCRS, Orientadora Lílian M. Stein. Porto Alegre, Julho de 2006, p.13. RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 106 Disso tudo resulta que a obtenção de informações precisas de crianças é uma tarefa bastante árdua, tendo em vista que “1) as crianças não estão acostumadas a fornecer narrativas elaboradas sobre suas experiências; 2) a passagem do tempo dificulta a recordação de eventos; e 3) pode ser muito difícil reportar informações sobre eventos que causam estresse, vergonha ou dor”22. Além disso, conforme já foi salientado anteriormente, a tendência infantil é de se adaptar à expectativa do entrevistador, a fim de demonstrar cooperação com o adulto, razão pela qual raramente responde que não sabe. Soma-se a isso o fato de a credibilidade e a confiabilidade do relato das crianças restarem abaladas pelas convicções prévias do entrevistador acerca da ocorrência do evento, pois há clara tendência para moldar a entrevista de forma a maximizar as revelações consistentes com suas convicções, não desafiando ou dando a devida importância ao relato da vítima que não seja condizente com ela. De outra banda, a criança tende a ser desafiada pelo entrevistador quando o seu relato for incongruente com a convicção inicial dele23. O fato é que se o entrevistador está previamente convicto acerca da ocorrência do delito, certamente vai dirigir todos os questionamentos de modo a confirmá-lo (o chamado de primado das hipóteses sobre os fatos, na célebre expressão de FRANCO CORDERO, em que primeiro se decide para depois se obterem as provas, a fim de justificar a decisão), sem investigar ou explorar qualquer outra hipótese, demonstrando um imenso grau de contaminação do relato. Em que pese parecer surreal, a realidade vivenciada na atividade forense não escapa do que aqui foi referido, principalmente nos delitos sexuais, comumente praticados na clandestinidade, em que a palavra da vítima, em contraste com a versão do réu, constitui-se na principal prova. O problema é desvelar o que realmente aconteceu, situação que na maioria das vezes não é tão simples, pois ou o fato não deixa vestígios ou estes foram apagados pelo tempo. Restando tão-somente a prova testemunhal como único meio de prova, nasce um novo e grave problema: o induzimento realizado pelos parentes, amigos, por policiais, psicólogos, assistentes sociais e julgadores ao formularem seus questionamentos, bem como pela mídia, devido à notoriedade do caso. O tema é complexo e de fundamental importância, na medida em que os atores judiciários lidam constantemente com as recordações das pessoas 22 CECI e BRUCK apud PISA, Osnilda. Psicologia do testemunho: os riscos na inquirição de crianças, p.38. 23 PISA, Osnilda. Psicologia do testemunho: os riscos na inquirição de crianças, p.17. RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 107 para obter provas de um determinado delito e para realizar reconhecimentos pessoais ou por fotografias, sejam elas vítimas, testemunhas ou apenas informantes. É preciso que tenham ciência e consciência do fenômeno, possam identificá-lo e, por fim, estejam preparados para lidar com ele, criando mecanismos procedimentais que sirvam para mitigar a situação. Em se tratando de processo penal, muito embora haja necessidade de uma prova robusta, se vêem inúmeras decisões condenatórias fundamentadas exclusivamente na prova oral, principalmente na palavra da vítima, quando a infração não deixa vestígios, como nos delitos de atentado violento ao pudor, sem falar nas condenações motivadas no cotejo entre a prova oral colhida na fase processual e na fase pré-processual, totalmente despida de contraditório e ampla defesa. Assim, inegável que o processo penal valha-se das testemunhas como o mais fácil e mais comum meio de prova. Infelizmente, a prova pericial é muito pobre, pois a investigação, muitas vezes, é despida de qualidade técnica. Daí a necessidade de um exame cuidadoso da prova oral, principalmente em razão dos erros judiciais cometidos em função de testemunhos falsos ou equivocados. No Brasil, o caso Escola Base de São Paulo é paradigmático, sendo um dos maiores exemplos de falsas memórias já vistos, ainda que não tenha sido suficientemente trabalhado sob essa óptica. Outro exemplo encontramos na Apelação Criminal nº 70017367020, julgada pela 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na sessão do dia 27 de dezembro de 2006, onde se manteve a absolvição do réu, padrinho da suposta vítima, por atentado violento ao pudor. No acórdão foi transcrita a sentença da magistrada de 1º grau, Osnilda Pisa, a qual aplicou seus estudos sobre a psicologia do testemunho infantil e as falsas memórias para elucidar o caso concreto. Neste caso, as acusações de abuso sexual começaram quando a menina de oito anos, na época do fato, assistia juntamente com sua mãe ao programa Globo Repórter, que abordava a questão do abuso sexual contra as crianças. A vítima ficou impressionada com a história do pai que havia engravidado a própria filha e vivia maritalmente com ela. Diante disso, questionou a sua mãe se beijar na boca podia engravidar. A mãe ficou nervosa e procurou esclarecer a questão, ao mesmo tempo em que procurou RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 108 imputar a prática do delito a alguém. Não incriminou o pai, mas sim o padrinho da menor. Como a genitora não conseguia falar sobre o assunto com a filha, pediu para que esta escrevesse em bilhete contando o que havia ocorrido. Em um pedaço de papel, a menina descreveu uma experiência, com conotação sexual; contudo, ocorrida na creche onde estudava. Lá, as meninas teriam se beijado na boca e mostrado a “bunda” umas para as outras. Além disso, também teriam chamado os meninos para pegarem no “tico” deles. No bilhete não sabia expressar se gostava ou não daquilo. Esse fato não foi explorado na investigação, somente o foi em juízo. Associado a tudo isso, ainda salienta-seque a ofendida também beijava o irmão na boca, tinha visto acidentalmente um filme pornográfico na televisão a cabo, bem como seu pai costumava andar nu pela casa. O contexto em que ocorreu a acusação foi totalmente propício para a ocorrência das falsas memórias, por indução da própria mãe da vítima, a partir de uma experiência sexual vivenciada na escola. 4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS: A NECESSIDADE DE MEDIDAS DE REDUÇÃO DE DANOS Nessa breve exposição, pretendemos chamar a atenção para a problemática das falsas memórias no âmbito do direito e não solucioná-la, pois não há soluções simples para problemas complexos. Todavia, viável pensar-se em medidas de redução de danos, com o intuito de melhorar a qualidade da prova oral. As contaminações a que estão sujeitas a prova penal podem ser minimizadas através da colheita da prova em um prazo razoável24, objetivando- se suavizar a influência do tempo (esquecimento) na memória. A adoção de técnicas de interrogatório e a entrevista cognitiva25 permitem a obtenção de informações quantitativa e qualitativamente superiores às das entrevistas tradicionais, altamente sugestivas. O objetivo aqui é evitar a restrição das perguntas ou sua formulação de maneira tendenciosa por parte do entrevistador, sugerindo o caminho mais adequado para a resposta. De outra banda, a gravação das entrevistas realizadas na fase pré-processual, 24 Sobre o tema: BADARÓ, Gustavo Henrique; LOPES Jr., Aury. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 25 Sobre as técnicas de interrogatório e a entrevista cognitiva, consultar QUECUTY, María Luisa Alonso. “Psicología y Testimonio”. In: Fundamentos de la psicología jurídica. Madrid: Psicologia Piramide, 1998. RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 109 principalmente as realizadas por assistentes sociais e psicólogos, permite ao juiz o acesso a um completo registro eletrônico da entrevista. Isso possibilita ao julgador o conhecimento do modo como os questionamentos foram formulados, bem como os estímulos produzidos nos entrevistados. Assumem especial importância não como indício de prova propriamente dito, mas para que o julgador avalie como foi realizado o procedimento e que métodos foram utilizados, a fim de verificar ou não os graus de contaminação. Também é de grande valia que os entrevistadores não explorem tão- somente uma versão da história, notadamente a versão acusatória, no sentido de confirmar a materialidade e a autoria do delito. É interessante que se faça também uma abordagem de outros aspectos ofertados pela própria vítima quando de seu depoimento. Isso porque é bastante comum que crianças e adolescentes utilizem a acusação de abuso sexual para fazer cessar outras formas de violência física, psicológica ou negligência26. Nestes casos, a prisão do pai ou padrasto representa o afastamento do lar. Não raras vezes, vêem-se em sede de revisão criminal, através de justificação judicial, menores retratando-se das acusações de abuso contra seus supostos agressores, afirmando abertamente que “inventaram” a situação para afastá-los do lar. Além disso, denúncias de abuso sexual figuram como uma arma poderosa nas ações de separação ou divórcio, em que se disputa a guarda dos menores. Por fim, há que se abandonar a cultura da prova testemunhal, tão presente em nosso processo penal, dando lugar a investigações policiais calcadas em novas tecnologias e novas técnicas de investigação. Somente com a inserção de tecnologia é que se poderão reduzir os danos decorrentes da baixa qualidade da prova produzida atualmente. 26 PISA, Osnilda. Psicologia do testemunho: os riscos na inquirição de crianças. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade – da PUCRS, Orientadora Lílian M. Stein. Porto Alegre, Julho de 2006, p.22. 111 UMA NOVA PROPOSTA DE ATUAÇÃO: OS REFLEXOS PENAIS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO HC 82.959-7/SP E DA LEI 11.464/2007 LIZIANE DOS SANTOS* CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS A recente modificação verificada na composição do Supremo Tribunal Federal, em virtude da tomada de assento por um grande número de novos Ministros, acarretou substancial alteração na jurisprudência até então consolidada na Corte. A questão ora tratada figura na condição de matéria que foi alvo de significativa revisão de linha de atuação jurisdicional, o que ocorreu com a conclusão do julgamento do HC 82.959- 7/SP em 23.02.2006, resultado de apertada votação majoritária de seis votos contra cinco, trazendo um novo viés em relação ao tema, uma vez que a jurisprudência da mais alta Corte de Justiça do país reconhecia até então como constitucional o regime prisional integralmente fechado para os crimes hediondos, tendo a partir de tal apreciação plenária afirmado a inconstitucionalidade de tal tratamento jurídico, inclusive com eficácia erga omnes e efeito ex nunc1, logo apta a produzir efeitos com relação à população carcerária nacional. Vislumbra-se a problemática partindo da interpretação constitucional levada a efeito pelo STF no julgamento do HC 82.959-7/SP, alterando a jurisprudência do próprio Tribunal, firmada há muitos anos, cumprindo * Assessora Parlamentar da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. 1 Min. Gilmar Mendes: (...) foi todo o desenvolvimento do meu voto, no sentido de que declaramos essa lei inicialmente constitucional – não há dúvida em relação a isso –, e muitas penas se extinguiram segundo esse regime. A Constituição cogita de responsabilidade civil do Estado, ou por erro judicial, ou por prisão excessiva, até mesmo. É uma das hipóteses claras de responsabilidade civil do Estado, por conta deste aspecto. Daí eu ter ressaltado que o efeito ex nunc deve ser entendido como aplicável às condenações ainda suscetíveis de serem submetidas ao regime de progressão. RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 112 investigarmos do acerto de tal decisão colegiada à luz da dogmática jurídica e de uma política criminal constitucionalista, bem como os seus reflexos penais. Constatando-se a evolução jurisprudencial pelo tratamento dado aos condenados que cometeram delitos de caráter altamente ofensivo, os constitucionalmente nominados e legalmente definidos como hediondos, a partir da análise dos votos dos Ministros do STF no julgamento havido no HC 82.959-7/SP, em 2006, no qual se percebe claramente uma maior preocupação do referido Tribunal com os Direitos Fundamentais inscritos na Constituição Federal de 1988, subsidiados pelos princípios norteadores do ordenamento, de forma a garantir a efetivação de uma interpretação constitucional sistemática, o que proporciona a relevância do presente escrito. Como bem menciona BITENCOURT, os princípios constitucionais penais explícitos ou implícitos em nossa Constituição (art. 5°) possuem a função de orientar o legislador ordinário para a adoção de um sistema de controle penal voltado para os direitos humanos, embasado em um direito penal da culpabilidade, um direito penal mínimo e garantista2. 1 – O SIGNIFICADO DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL O exame levado a efeito pelo colendo Supremo Tribunal Federal na sede do Habeas Corpus 82.959-7/SP, impetrado pelo próprio paciente, Oseas de Campos, foi precedido do seguinte iter percorrido pelo interessado: acusado pela prática do delito de atentado violento ao pudor, previsto no art. 214 combinado com os artigos 224, 226, inciso III, e 71, todos do Código Penal, primeiramente o acusado interpôs apelação da sentença condenatória, recurso julgado pela 1ª Câmara do Tribunal de Justiçade São Paulo, que lhe deu parcial provimento para reduzir a condenação para a pena de 12 anos e 3 meses de reclusão, mantendo o regime integralmente fechado fixado na sentença. Posteriormente, o paciente impetrou o habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, dotado do número 23.920, argumentando que o crime que praticara não poderia ser considerado hediondo, pois não resultou em lesão corporal grave, nem morte, admitindo a violência 2 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo. Saraiva, 2003, v.I, p.9-10. RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 113 presumida, tendo asseverado acerca da inconstitucionalidade do § 1° do art. 2° da Lei 8.072, ou seja, da imposição do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. A 6ª Turma do STJ indeferiu o pedido, sustentando que a jurisprudência da aludida Corte considera hediondos os crimes de estupro e atentado violento ao pudor nas suas formas qualificadas ou simples, devendo suas penas ser cumpridas em regime integralmente fechado. Contra o acórdão do Superior Tribunal de Justiça houve nova impetração, o já mencionado Habeas Corpus 82.959-7/SP, perante o Supremo Tribunal Federal, no qual o autor-paciente alega, entre outras matérias de relevância para a tese defensiva, a incoerência na possibilidade de progressão de regime de cumprimento de pena quanto ao delito de tortura e a vedação de tal para o seu caso específico, pugnando pelo deferimento da progressão de regime prisional em seu favor. Conforme já referido, na apreciação plenária do habeas corpus noticiado, a colenda Corte acatou a tese da impetração relacionada à possibilidade de progressão de regime prisional quanto aos crimes hediondos, tendo inclusive declarado incidentalmente a inconstitucionalidade do § 1° do artigo 2° da Lei 8.072/90. De se ressaltar que tal reconhecimento empreendido pelo Supremo Tribunal Federal tem o especial significado de garantir a efetividade do mandamento constitucional respeitante ao princípio da individualização da pena. A modificação de entendimento da colenda Corte, após longa data de negativa sobre a possibilidade de progressão do regime prisional quanto aos crimes hediondos, guarda forte conotação garantista, afirmada pela novel composição da aludida Corte. Há falar sobretudo em maturidade democrática como um todo, notadamente com reflexo sobre as instituições públicas, entre elas o Supremo Tribunal Federal, e em um evoluir paulatino da concepção comum acerca dos direitos fundamentais, com especial valoração sobre o princípio da dignidade da pessoa humana. A mutação constitucional na espécie é inegável. Nesse sentido, vale registrar a observação de LARENZ, registrada no voto do Ministro Gilmar Mendes3: 3 HC 82.959-7/SP. Voto-vista do Min. Gilmar Mendes. RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 114 “De entre os factores que dão motivo a uma revisão e, com isso, frequentemente, a uma modificação da interpretação anterior, cabe uma importância proeminente à alteração da situação normativa. Trata-se a este propósito de que as relações fácticas ou usos que o legislador histórico tinha perante si e em conformidade aos quais projectou a sua regulação, para os quais a tinha pensado, variaram de tal modo que a norma dada deixou de se ajustar às novas relações. É o factor temporal que se faz notar aqui. Qualquer lei está, como facto histórico, em relação actuante com o seu tempo. Mas o tempo também não está em quietude, o que no momento da gênese da lei actuava de modo determinado, desejado pelo legislador, pode posteriormente actuar de um modo que nem sequer o legislador previu, nem, se o pudesse ter previsto, estaria disposto a aprovar (...). De par com a alteração da situação normativa, existem factos tais como, sobretudo, modificações na estrutura da ordem jurídica global, uma nítida tendência da legislação mais recente, um novo entendimento da ratio legis ou dos critérios teleológico-objectivos, bem como a necessidade de adequação do direito pré-constitucional aos princípios constitucionais, que podem provocar uma alteração de interpretação. Os Tribunais podem abandonar a sua interpretação anterior porque se convenceram que era incorrecta, que assentava em falsas suposições ou em conclusões não suficientemente seguras. Mas ao tomar em consideração o factor temporal, pode também resultar que uma interpretação que antes era correcta agora não o seja.”4 2 – OS EFEITOS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL O julgamento do Habeas Corpus 82.959-7/SP pelo Supremo Tribunal Federal teve grande repercussão no funcionamento do sistema penal brasileiro, mesmo que a decisão tenha sido proferida em sede de habeas corpus, ensejando assim o controle de constitucionalidade de forma difusa, tendo em linha de conta, de outra parte, que ao veredicto foram conferidas as eficácias erga omnes e ex nunc da declaração de inconstitucionalidade, nesse caso afirmando a aplicabilidade do resultado às condenações ainda 4 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3.ed. Lisboa: [s.e.], 1997, p.495. RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 115 suscetíveis de serem submetidas ao regime de progressão, conforme salientado no voto do Min. Gilmar Mendes5. Desse modo, embora os efeitos imediatos se restrinjam a este habeas corpus, não há como negar a já destacada ampla repercussão quanto aos demais condenados em condição similar, que podem passar a vindicar ao Poder Judiciário o reconhecimento do direito à progressão de regime prisional, desde que atendidos os demais requisitos legais. O descumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal por qualquer órgão do Poder Judiciário dará ensejo a duas possibilidades: o ajuizamento de uma reclamação6 perante o próprio STF contra a decisão do juiz que deixar de observar o comando emanado quando da apreciação do Habeas Corpus 82.959-7/SP, assim como uma ação indenizatória contra o Estado, por estar o juiz afetando direitos fundamentais de um condenado7. Embora pela tão-só aplicação da Lei de Execução Penal (LEP), especificamente o seu art. 112, muitos juízes já vinham concedendo a progressão aos condenados pelos crimes em questão a despeito da jurisprudência superior firmada em sentido contrário, existe a afirmação de um dado concreto: após a decisão do STF, os condenados brasileiros por crimes hediondos submetidos ao regime integralmente fechado poderão invocar o recente precedente do colendo Tribunal em seu favor, manejando o habeas corpus, se necessário. A partir da decisão do pleno, o juiz pode, então, conceder a progressão em alguns casos concretos. Isso significa, na prática, conferir ao juiz muito mais responsabilidade, colocando fim à figura do “Juiz carimbador”, que só tinha o trabalho de dizer: crime hediondo: regime fechado. Enfim e felizmente começa a agonizar este tipo de magistrado “despachante”. No Estado Constitucional e Democrático de Direito, só existe espaço para um tipo de Juiz: o que dá a cada um o que é seu, fundamentando todas as suas decisões, tendo por base a constitucionalidade, a legalidade e a razoabilidade. Inclusive no âmbito criminal, estamos começando a ver o fim do Juiz burocrata, guiado por “automatismo”8. 5 HC 82.959-7/SP. Voto-vista do Min. Gilmar Mendes. 6 Nesse sentido: Reclamação 4.335-5/Acre, Relator Min. Gilmar Mendes. 7 GOMES, Luiz Flávio. STF Admite Progressão de Regime nos Crimes Hediondos. Em Evidência. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n.10, p.78-79, fev.-mar. 2006a. 8 GOMES, Luiz Flávio. Op. cit., 2006a, p.80. RJ 364 FEVEREIRO/2008DOUTRINA PENAL 116 3 – O SOFISMA DA NOVA LEI 11.464/2007 Após a decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 82.959-7/SP em 2006, surgiram alguns casos de grande comoção nacional, no mesmo ano inclusive. Além dos vários atentados cometidos pelo grupo denominado PCC9 em São Paulo alguns meses depois do encerramento do julgamento pelo STF, em fevereiro de 2007 ocorreu a morte do menino João Hélio10, no Rio de Janeiro, após o cometimento de assalto à sua mãe. A repercussão social de tais fatos, amplificada pelos meios de comunicação11, com o acréscimo do combustível das paixões momentâneas, não pautadas pela racionalidade, tem poder de mobilização fortíssimo12. Como conseqüência, tivemos a aceleração do processo de votação do PL 6.793/2006 na Câmara dos Deputados, sancionado pelo Presidente da República em 29.03.2007 sob a forma da Lei 11.464/200713. Se não houvesse cenas como as citadas, dificilmente teríamos a aprovação desta recente lei14. 9 Primeiro Comando da Capital, facção criminosa que atua em vários presídios do país. 10 O menino foi arrastado por alguns quilômetros pendurado no carro levado pelos assaltantes, o que ocasionou sua morte. 11 O papel da imprensa neste contexto não é difundir/divulgar conhecimento, mas sim vender, e não há nada que venda mais do que a desgraça alheia. E o crime é uma dupla desgraça da vida, tanto para quem sofreu a violência como também para quem a praticou. LOPES, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da Instrumentalidade Garantista. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.185. 12 Anota-se que os fatos que promoveram o advento da Lei 8.072/90 têm estreita relação com o advento da Lei 11.464/2007: Como a criminalidade viveu, e ainda vive numa espiral crescente de criminalidade, além de uma carência de resposta à sociedade, o mais fácil foi estabelecer uma resposta simbólica, isto é, uma resposta que aplacasse o clamor social gerado pela insegurança. Em vez de uma polícia mais numerosa, bem preparada e remunerada, que no plano imediato tem inegável capacidade dissuasória, tivemos a promulgação de uma lei (8.072/90) que introduziu profundas modificações no nosso sistema punitivo. TORON, Alberto Zacharias. A Lei de Crimes Hediondos Sobre a proposta do Ministro da Justiça de Alteração da Lei de Crimes Hediondos. In: XIX Conferência Nacional dos Advogados. República, Poder e Cidadania. Anais. v.2. Florianópolis, 25 a 29 set. 2005. 13 (...) Estava errada a Lei que eliminava a progressão de regime prisional quando o crime fosse enquadrado na lista dos cometidos com a crueldade ou a nocividade da hediondez. Era uma visível contrariedade ao nosso modelo constitucional. Agredia-se o sistema como um todo. Bom comportamento tem prêmio, mau comportamento tem castigo, mas fechar alguém por 20 anos na cela e dar-lhe depois o livramento condicional, sem etapas de gradativo merecimento, era um absurdo inaceitável (...). BRITTO, Cláudio. Zero Hora, Porto Alegre, 11 mar. 2007. 14 Nesse sentido, comprova Elio Gaspari: Em quatro anos, foram apresentadas 646 propostas relacionadas com o crime. Delas, 626 destinavam-se a agravar penas, regimes e restrições. GASPARI, Elio. Folha de S. Paulo, São Paulo, 21 abr. 2007. RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 117 O sofisma15 decorrente da inserção desta lei no coletivo público, apto a produzir ilusão acerca da verdade, diz substancialmente com o fato de que gestada no âmbito de um chamado pacote legislativo de incremento à segurança pública, apresentado enquanto solução que faltava para assegurar a paz aos cidadãos em geral, ao passo que em realidade apenas posterga em algum lapso de tempo a saída das pessoas que cumprem pena por crimes hediondos de instituições que não lhes garantem o mínimo, a propósito do intento ressocializador legalmente previsto e idealmente esperado. Diante de tal perspectiva, há de se perguntar: é possível contar com o incremento de segurança prometido pelas autoridades? O outro aspecto sofístico de tal tessitura legislativa diz com a falsa representação da realidade de que podem eventualmente ser vítimas os condenados por crimes hediondos, que passaram a jubilar com a possibilidade de progressão de regime prisional a partir da decisão do STF, mas em verdade com o advento da Lei 11.464/2007 o prazo para tal progressão passou a ser consideravelmente mais extenso do que aquele genericamente contemplado na Lei de Execução Penal. 3.1 Progressão de Regime Prisional A Lei 11.464/2007 vem confirmar a decisão do Supremo Tribunal Federal, permitindo a progressão de regime fechado para o semi-aberto e 15 Nesse sentido vale a explicação sobre o surgimento dos sofistas: A questão da linguagem sempre esteve posta em diferentes épocas. Pode-se colocar como a primeira obra de filosofia da linguagem o escrito Crátilo, de Platão, do ano de 388 a.C. Nele, além de Sócrates, há mais dois personagens: Hermógenes, que representa os sofistas, e Crátilo, que representa Heráclito, que inaugura a discussão acerca do ser e do pensar. São contrapostas duas teses: o naturalismo, pela qual cada coisa tem nome por natureza, tese defendida por Crátilo, e o convencionalismo, posição sofística defendida por Hermógenes, pela qual a ligação do nome com as coisas é absolutamente arbitrária e convencional, é dizer, não há qualquer ligação das palavras com as coisas. O Crátilo representa o enfrentamento de Platão à sofística. Com a tese convencionalista dos sofistas, a verdade deixava de ser prioritária. A palavra, para os sofistas, era pura convenção e não obedecia nem à lei da natureza e tampouco às leis divinas (sobrenatural). Como era uma invenção humana, podia ser reinventada e, conseqüentemente, as verdades estabelecidas podiam ser questionadas. Os sofistas provocam, assim, no contexto da Grécia antiga um rompimento paradigmático, levando “a cabo una revolución espiritual”. Aristóteles via os sofistas como falsos filósofos, que representavam uma ameaça à própria filosofia. Não aceitava a linguagem como ciência universal, ao contrário dos sofistas que, com a linguagem, achavam que podiam fazer e dizer tudo sobre qualquer coisa, vendo no discurso possibilidades ilimitadas. Dito de outro modo, não aceitava que a linguagem pudesse ter uma autonomia em relação às coisas, mas tampouco aceitava que esta fazia parte da physis pré-socrática. STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.113, 115,118. RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 118 depois para o aberto nos crimes hediondos (alteração promovida pelo art. 1° da Lei 11.464/2007 no § 1° do art. 2° da Lei 8.072). Por força da nova redação da lei, surgem hipóteses nas quais o condenado poderá ser enquadrado de forma a viabilizar o benefício, tendo em consideração sua específica condição de cumprimento de pena. A pena será cumprida “inicialmente” em regime fechado, e não mais “integralmente”, porém exigindo 2/5 do cumprimento da pena, se o apenado for primário, e 3/5, se for reincidente. 3.1.1 Requisitos para a progressão de regime prisional nos crimes hediondos a) Bom comportamento O novo texto do § 2° do artigo 2° da Lei 8.072/90 dispõe: “A Progressão de Regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.” O dispositivo em questão não estabelece qualquer outro requisito para a obtenção da progressão, cabendo indagar se além deste requisito temporal deve ser exigido outro, como o bom comportamento carcerário, previsto no art. 112 da Lei de ExecuçãoPenal, requisito, aliás, exigível dos demais condenados por crime não-hediondo16. Embora não esteja expressa na nova lei a exigência do “bom comportamento carcerário”, é preciso interpretar e aplicar o novo comando do § 2° do artigo 2° da Lei 8.072/90 juntamente com o § 2° do art. 33 do Código Penal e também com o art. 112 da LEP, pois o último continua vigente, apenas não será mais aplicado o requisito temporal de cumprimento de 1/6 da pena, em se tratando de crimes hediondos, mas sim de 2/5 ou de 3/5, conforme o caso, como já visto; portanto, o mencionado dispositivo da LEP aplica-se aos casos em questão, à exceção do quantitativo temporal específico. 16 LEAL, João José; LEAL, Rodrigo José. Progressão de Regime Prisional e Crime Hediondo. Análise da Lei n° 11.464/2007 à Luz da Política Criminal. Jus Navigandi, Teresina, n.1426, 28 maio 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=>9936>. Acesso em: 28 maio 2007. RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 119 No entanto, o juiz não está obrigatoriamente vinculado ao atestado de “bom comportamento carcerário”. Poderá acatá-lo ou rejeitá-lo, se entender que as informações prestadas pelo diretor do estabelecimento prisional não se conformam com os fins maiores dos princípios da individualização da pena e da segurança coletiva17. Por isso, caberá ao juiz saber trabalhar com a complexidade e a gravidade de cada caso concreto, solicitando, se necessário for, até mesmo um exame criminológico18. b) Tempo de Cumprimento de Pena Há entendimentos doutrinários divergentes quanto à retroatividade ou à irretroatividade dos requisitos objetivos para a progressão de regime em crimes hediondos. Uma corrente19 já está interpretando que se compararmos a nova lei (11.464/07) com a lei anterior (8.072/90), que vedava totalmente a progressão de regime, as novas regras poderão ser consideradas mais benéficas, já que permitem a progressão, mesmo que o condenado tenha que cumprir 2/5 ou 3/5 da pena para ter concedido o benefício. Obviamente que para esta corrente o regime integral fechado era considerado constitucional, por isso o novo regramento é mais benéfico, porque permite a progressão. A outra corrente20, que considerava inconstitucional a vedação da progressão do regime prisional (§ 1° do art. 2° da Lei 8.072 em sua redação originária), reputando conseqüentemente aplicável aos crimes hediondos o art. 112 da LEP, no qual a progressão é contemplada a partir do cumprimento de 1/6 da pena, atendidos os demais requisitos, viu sua posição respaldada pela decisão do STF no HC 82.959-7/SP, que reconheceu a inconstitucionalidade da vedação à progressão, concluindo tal corrente por afastar os novos patamares de cumprimento de pena exigidos pela lei de 2007, que são mais severos, quanto aos fatos ocorridos antes de sua 17 Ibidem. 18 Embora o exame criminológico tenha sido abolido através da Lei 10.792/03, o STF já manifestou sua validade, cabendo ao Juiz fundamentar a sua necessidade. HC 88.533/PE; HC 84.811/PR; HC 88.149/GO. 19 BASTOS, Marcelo Lessa. Crimes Hediondos. Regime Prisional e Questões de Direito Intertemporal. Jus navegandi. Teresina, n.1380, 12 abr. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto/.asp.?id=9734>. Acesso em: 16 ago. 2007. 20 LEAL, João José; LEAL, Rodrigo José. Op. cit., 2007. RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 120 entrada em vigor, não podendo haver retroatividade em prejuízo do condenado. Do cotejo de tais entendimentos, resulta que o tempo de pena a ser cumprido para o exame da pretensão à progressão de regime prisional constitui objeto de controvérsia, que gravita em torno dos intervalos correspondentes a 1/6, 2/5 e 3/5 da pena. Adota-se a posição segundo a qual a Lei 11.464/2007 é lei mais grave, na medida em que exige o cumprimento de lapso maior da pena privativa de liberdade à progressão de regime. Os novos marcos temporais agravam a situação dos condenados. Com a admissibilidade expressa da progressão em crimes hediondos, de acordo com a nova lei o requisito temporal passou de 1/6 para 2/5 ou 3/5, dependendo da primariedade ou da reincidência. c) Reincidência Conforme já sinalizado, questão que se agrega ao tópico concernente à definição segundo a Lei 11.464/07 do tempo necessário de cumprimento de pena para o deferimento da pretensão do condenado à progressão do regime prisional diz respeito à verificação de eventual reincidência. É o que resulta dos expressos termos do já transcrito § 2° do artigo 2° da Lei 8.072/90, na redação atribuída pela Lei 11.464/07. Assim, o lapso necessário de cumprimento de pena para a progressão do regime prisional na sede dos crimes hediondos quanto aos condenados primários é de dois quintos da pena e a respeito dos reincidentes é de três quintos. Natural, na questão ora examinada, à vista do elevado quantitativo de cumprimento de pena necessário para a progressão de regime quanto aos condenados reincidentes, a ponderação acerca da espécie de reincidência tratada no novel diploma legal. A expressão excepcional do montante arbitrado pelo legislador parece indicar no sentido da inexorabilidade da indagação acerca de que espécie de reincidência se está a tratar, se genérica ou específica. Em outras palavras, o prazo exacerbado para o alcance do benefício da progressão de regime é exigível da pessoa que já foi condenada com trânsito em julgado por qualquer crime anterior ao cometimento do delito hediondo, na forma do artigo 63 do Código Penal, ou apenas para o caso de anterior cometimento de outro crime definido como hediondo. RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 121 Os termos da Lei 11.464/07 dão conta da simples expressão “se reincidente”, circunstância que, não obstante a clareza do enunciado, pode ensejar a tomada de vulto da indagação mencionada. A favor da corrente que defende na espécie a necessidade de configuração de reincidência específica, apesar da ausência do qualificativo no texto legal, militam os argumentos no sentido da salvaguarda da humanidade da pena criminal e da razoabilidade, assim como na defesa de que a Lei dos Crimes Hediondos representa subsistema punitivo especial ou próprio, demandando para a incidência da regra que prevê o prazo de três quintos para o deferimento da progressão do regime prisional a superposição de crimes catalogados como hediondos21. De outra parte, há de se asseverar que da literalidade da norma em discussão resulta, conforme já destacado, a simples consideração da reincidência, sem a indicação de qualquer qualificativo, diferentemente do que ocorre a propósito da regra do inciso II do artigo 44 do CP, a qual versa sobre a reincidência em crime doloso para o caso da substituição da pena privativa de liberdade, assim como em relação ao disposto no inciso I do artigo 83 do mesmo CP, a respeito do livramento condicional, com a ponderação novamente da reincidência em crime doloso. A teor ainda da consideração tendente a afastar a idéia de subsistema penal quanto à Lei dos Crimes Hediondos, ao menos para os efeitos do exame da reincidência inscrita no § 2° do artigo 2° da Lei 8.072/90, na redação atribuída pela Lei 11.464/07, tendo em conta que na referência ao instituto da reincidência resta inevitável o socorro da definição estabelecida no artigo 63 do CP, notadamente à míngua de outra no diploma legal específico, firma-se posição pela aplicabilidade da reincidência genérica. Muito embora fulcrada inicialmente em interpretação literal do dispositivo, do contexto sistemático outra solução não parece se afirmar de forma segura, já que se a vontade da lei visasse a resultado distinto, deveriahaver expressa menção à reincidência específica, o que, de fato, não há. De mais a mais, quer parecer que nem o STF em eventual controle de constitucionalidade da disposição legal poderá ensejar interpretação conforme a Constituição22 para fazer ver no caso a expressão “reincidência 21 LEAL, João José; LEAL, Rodrigo José. Op. cit. 22 Nesse sentido cabe a lição de JORGE MIRANDA: “A garantia da Constituição é a da Constituição no seu complexo normativo tomada como um todo”, e a garantia da constitucionalidade “é a garantia de que cada norma e cada ato subordinados à Constituição lhe são conformes”. Temos RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 122 específica” onde ela não está, pois a mencionada Corte não pode, à luz da Constituição, operar enquanto legislador positivo. 3.1.2 A aplicação da Lei 11.464/07 no tempo Questão que comporta exame apartado, apesar de já adiantada em pequena monta quando da análise do requisito relacionado ao tempo de cumprimento de pena necessário para o reconhecimento do direito à progressão do regime prisional na seara dos crimes hediondos, que é objeto do presente estudo, diz respeito à aplicação das inovações decorrentes da Lei 11.464/07 no tempo. Resgatando a menção realizada no intróito deste capítulo quanto à dimensão sofística desta nova lei, vinculada em um dos casos mencionados a eventual ilusão que poderia vitimar os condenados por crimes hediondos ao fazer supor sobre a aplicabilidade da regra geral de progressão de regime constante da LEP, ao passo que em verdade há previsão de prazos específicos consideravelmente mais extensos, cumpre destacar que se trata de questão dependente da definição do modo de aplicação no tempo da Lei n° 11.464/07. A disciplina de tal questão tem assento constitucional específico sob a forma do princípio que veda a retroação da lei penal, salvo na hipótese de beneficiamento da condição jurídica do réu23. Assim, tratando a progressão de regime prisional de matéria relacionada ao cumprimento da pena, tópico jurídico vinculado ao direito penal material, evidentemente atrai ainda a incidência combinada dos artigos 2° e 4° do Código Penal, com o que só há falar na incidência dos preceitos correlatos à progressão de regime da Lei n° 11.464/07, visivelmente mais gravosos, quanto aos crimes praticados a partir do advento dos seus efeitos, ou seja, a contar de 29.03.2007, data da publicação do aludido diploma legal. Nessa linha, cumpre a transcrição do seguinte excerto doutrinário de SCHMIDT: direitos não só a garantia da Constituição, mas também à constitucionalidade, ou seja, sermos processados por leis que se assemelham ao programa constitucional democrático (...). BAUM, Adler; SANTOS, Liziane dos. Uma Leitura Constitucional sobre a Desjudicialização da Execução Fiscal. Revista de Estudos Tributários, n.55, p.115, maio-jun. 2007. 23 Constituição Federal de 1988, art. 5°, inciso XL: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 123 “(...) pode-se afirmar, agora, que as normas materiais de execução penal sujeitam-se ao princípio da irretroatividade da lex gravior, bem como à retroatividade da lex mitior e da abolitio, enquanto que as normas formais de execução, ao princípio da aplicação imediata. Assim, teríamos de fixar o ‘momento critério’ de aplicação da lei penal no tempo, quanto às normas processuais penais materiais, no tempus delicti, ou seja, devem ser aplicáveis as normas processuais – caso sejam elas mais leves – em vigor à época da ação ou omissão delituosa (art. 4° do CPB), prescindindo- se, para tanto, da análise da legislação vigente à época em que o processo penal teve início. Justifica-se tal investigação pelo simples fato de a Lei n° 7.210/84, em seu Título I, disciplinar o Objeto e a Aplicação da Lei de Execução Penal, sem fazer menção, entretanto, a qualquer norma expressa que regule a aplicação da lei de execução penal no tempo. A execução da pena encontra-se regulada por normas de direito material (p. ex., as penas de reclusão e detenção), de direito processual material (p. ex., as condições impostas à progressão de regime) e de direito processual formal (p. ex., a expedição de guia de recolhimento como condição necessária ao início do cumprimento da pena privativa de liberdade). No primeiro caso, o princípio da legalidade, bem como seus desdobramentos, possui inteira aplicabilidade. Assim, se à época da prática do delito (art. 4° do CPB) o fato era punido com pena de detenção, a lei nova que determine a pena de reclusão não se aplica retroativamente, dada a sua natureza de lex gravior. Da mesma forma, se o quantum de pena autorizava o início de seu cumprimento em regime semi-aberto, a lei superveniente que determina a satisfação inicial da pretensão executória do Estado em regime fechado não pode ser aplicável aos delitos anteriores à sua efetiva entrada em vigor.”24 Desse modo, cometido o crime hediondo até 28.03.07, o réu condenado por tal prática não sofrerá os efeitos relativos ao regime de cumprimento prisional, no enfoque da disciplina específica da progressão de regime, dispostos na Lei n° 11.464/07, restando alcançado, de outro tanto, pela preceitação levada a efeito pelo colendo Supremo Tribunal 24 SCHMIDT, Andrei Zenkner. A Crise da Legalidade na Execução Penal. In: CARVALHO, Salo de. (Coord.) Crítica à Execução Penal. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2007, p.40. RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 124 Federal no julgamento do HC 82.959-7/SP no sentido da afirmação com eficácia erga omnes e ex nunc da inconstitucionalidade do § 1° do art. 2° da Lei 8.072 em sua redação originária, nesse caso com aplicabilidade às condenações ainda suscetíveis de serem submetidas ao regime de progressão. De tal forma, resta assegurada a tal condenado a progressão de regime prisional em razão do reconhecimento da inconstitucionalidade da vedação legal originária de forma a produzir efeitos na sua esfera jurídica, o que permite a incidência das regras contidas na LEP, no caso as do artigo 112, com a garantia do benefício a partir do cumprimento de 1/6 da pena, desde que atendidos os demais requisitos. Já a respeito dos crimes hediondos cometidos a partir de 29.03.07, resta claro o alcance do diploma legal ora em comento, qual seja a Lei 11.464/07, com a incidência de suas regras específicas a propósito da progressão de regime prisional, na forma da nova redação conferida aos §§ 1° e 2° do artigo 2° da Lei 8.072, com prazo mínimo de cumprimento de pena de 2/5 para o condenado primário e de 3/5 para o reincidente, aplicação normativa cumulada com os demais dispositivos da LEP, conforme salientado anteriormente. Com a edição da Lei 11.464/07, restou configurada hipótese de novatio legis in pejus, que só vale para crimes cometidos a partir do dia 29.03.07, já que a lei penal não poderá retroagir em desfavor do réu; portanto, para os delitos cometidos a partir desta data é que se aplicará a regra dos 2/5 e dos 3/5. Segue tal orientação a jurisprudência que começa a se firmar a contar do advento do novo diploma legal: “Recurso em Habeas Corpus – Direito Penal – Progressão de Regime Prisional – Crimes Hediondo – Inconstitucionalidade da Vedação ao Cumprimento Progressivo da Pena – Exigência de Lapso Temporal Não Previsto na Legislação Pátria – Impossibilidade – Princípio da Legalidade – Advento da Lei nº 11.464/07 – Lapsos Temporais Mais Gravosos – Aplicação Exclusiva aos Casos Supervenientes – 1. Reconhecida a inconstitucionalidade do art. 2º,§ 1º, da Lei nº 8.072/90, na sua antiga redação, não pode o magistrado exigir lapso distinto do previsto na legislação pátria para a progressão de regime, sob pena de ferir-se o princípio da legalidade. 2. Com o advento da Lei nº 11.464/07, a progressão de regime prisional aos condenados pela RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 125 prática de crimes hediondos é permitida após o cumprimento de 2/5 da pena, em se tratando de réu primário, ou 3/5, nos casos de reincidência, lapsos aplicáveis somente aos casos supervenientes à sua vigência, em razão do maior rigor. 3. Recurso provido” (RHC 21.055/PR, Relª Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª Turma, julgado em 17.05.2007, DJ 04.06.2007, p.427). 3.1.3 Legitimidade constitucional da ampliação do prazo de cumprimento de pena para o deferimento do benefício Ultimado o exame a respeito dos requisitos introduzidos pela Lei 11.464/07 quanto à progressão de regime prisional em se tratando de crimes hediondos, assim como realizadas ponderações acerca de sua aplicação no tempo, cumpre promover ligeira apreciação no que tange à legitimidade constitucional da alteração substancial verificada em relação ao tempo de cumprimento de pena exigido para o deferimento do benefício. Novamente trazendo à baila o título deste capítulo, afigura-se enquanto inolvidável a ilusão da verdade que representa a edição do diploma legal em comento sobre as expectativas dos condenados pelo cometimento de crimes hediondos, à vista da brusca elevação do patamar de cumprimento de pena necessário para o alcance da progressão de regime prisional em contraste com o disposto para as demais espécies delitivas na condição de regra geral no bojo da Lei de Execução Penal, topicamente em seu artigo 112. Nesta perspectiva, oportunas a indagação e a especulação no que toca à conformidade constitucional da modificação referida. Em tal mister, desde já busca-se subsídio na moderna doutrina constitucional, que opera com a noção da proibição de retrocesso na seara dos direitos fundamentais, consoante a seguinte formulação: “(...) resulta evidente que a dignidade da pessoa humana não exige apenas uma proteção em face de atos de cunho retroativo (isto, é claro, quando estiver em causa uma efetiva ou potencial violação da dignidade em algumas de suas manifestações), mas também não dispensa – pelo menos é esta a tese que estaremos a sustentar – uma proteção contra medidas retrocessivas, mas que não podem ser tidas como propriamente retroativas, já que não RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 126 alcançam as figuras dos direitos adquiridos, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Basta lembrar aqui a possibilidade de o legislador, seja por meio de uma emenda constitucional, seja por uma reforma no plano legislativo, suprimir determinados conteúdos da Constituição ou revogar normas legais destinadas à regulamentação de dispositivos constitucionais, notadamente em matéria de direitos sociais, ainda que com efeitos meramente prospectivos. Com isso, deparamo-nos com a noção que tem sido ‘batizada’ pela doutrina – entre outros termos utilizados – como proibição (ou vedação) de retrocesso (...).”25 Assim, sem descurar da ponderável ofensa aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade que a elevação do quantitativo temporal necessário para a progressão de regime prisional em relação aos crimes hediondos de 1/6 (artigo 112 da LEP) para 2/5 ou 3/5 (redação atribuída ao § 2° do artigo 2° da Lei 8.072/90 pela Lei 11.464/07) representou, quando sabidamente se está a falar de penas concretizadas como regra em patamares bastante elevados, há também de se sindicar a respeito de eventual contrariedade à cláusula da proibição de retrocesso. Para tanto, basta considerar que apesar da circunstância de as alterações debatidas atingirem, como já salientado no tópico anterior, apenas os autores condenados por crimes hediondos praticados a contar do advento da Lei 11.464/2007, operando então efeitos prospectivamente, com a significativa majoração dos níveis de cumprimento de pena necessários para o deferimento do benefício de progressão conforme referido no parágrafo anterior, haveria falar em mácula à condição jurídica de toda uma coletividade mediante o ataque à sua segurança jurídica perpetrado pelo retrocesso concretizado através de tal elevação desmesurada da exigência temporal, em flagrante ofensa ao princípio fundamental atinente à dignidade da pessoa humana, com a imposição de prolongado intervalo de cumprimento de pena no regime fechado, em notório desfavor quanto ao intuito ressocializador da pena. De outro vértice, há de se ter em vista que a investigação sobre o mencionado retrocesso impõe algumas dificuldades, tais como o seu usual alcance a propósito dos direitos sociais, hipótese de que ora não se trata, a necessidade de que a eventual ofensa atinja o núcleo essencial do direito 25 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p.405-406. RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 127 tutelado e a obrigatoriedade da consideração deste direito em ponderação com as demais esferas jurídicas, o que na espécie acarreta expressivo enfraquecimento da fundamentação acerca do referido retrocesso, na medida em que o advento da Lei 11.464/2007 foi marcado por uma série de incidentes relacionados à segurança pública, tidos como carecedores de medidas mais rigorosas a respeito da criminalidade. De todo modo, seja à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, seja em função da cláusula da proibição de retrocesso, é necessário o amadurecimento do debate sobre a matéria, cumprindo ao Supremo Tribunal Federal o derradeiro exame em sede jurisdicional sobre o ponto. 3.2 Liberdade Provisória A Constituição Federal não se mostrou indiferente à questão da liberdade provisória, ao contrário, interessou-se por ela. Antes de tudo, erigiu-a à condição de direito fundamental da pessoa humana na medida em que estabeleceu no inciso LXVI do art. 5° “que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”26. No entanto, a Lei 8.072/90, na redação originária do inciso II do art. 2°, além de vedar a fiança, considerou inadmissível a concessão da liberdade provisória em sede de crimes hediondos. Aí está outra modificação importante trazida pela Lei 11.464/2007, que foi a autorização da liberdade provisória para tais crimes. Houve a supressão da expressão “e liberdade provisória” do mencionado inciso II do art. 2°. Os constitucionalistas (intérpretes e juízes adeptos do Estado Constitucional e Humanitário de Direito) já não viam nenhum sentido na proibição da liberdade provisória. Os legalistas (interpretação seca da lei) já não podem sustentar a impossibilidade de liberdade provisória nos crimes hediondos e equiparados27. Em primeiro lugar, observa-se que o inciso XLIII do art. 5° da CF/88, ao tratar dos crimes hediondos, impede apenas e tão-somente a fiança, a graça e a anistia, não se referindo à liberdade provisória. Logo, lei 26 FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.489. 27 GOMES, Luiz Flávio. Lei. 11.464/2007: Liberdade provisória e Progressão de Regime nos Crimes Hediondos. Disponível em: <http://lfg.blog.br>. Acesso em: 13 abr. 2007. RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 128 infraconstitucional não poderia ir além, arvorando-se ao constituinte originário, proibindo também a possibilidade de liberdade provisória. De mais a mais, no processo penal a “regra é a liberdade28”, admitindo-se excepcionalmente a prisão provisória em casos deextrema e comprovada urgência e necessidade29. Estas breves anotações permitem concluir que a Lei 11.464/07 reconheceu que o simples recrudescimento de regras processuais, como a vedação genérica à liberdade provisória e à progressão de regime de cumprimento da pena, inauguradas pela Lei 8.072/90, em evidente afronta aos fundamentos da prisão cautelar e ao princípio da individualização da pena, em nada inibiu a prática de crimes ou minorou a sensação de impunidade no seio da sociedade, fomentando apenas o debate doutrinário e a divergência jurisprudencial sem qualquer efeito prático30. A vedação à liberdade provisória não está prevista no inciso XLIII do art. 5° da CF/88 a propósito dos crimes hediondos e equiparados, portanto o inciso II do art. 2° da lei 8.072/90 na sua redação originária excedeu os limites do preceito constitucional, ensejando a superveniência da Lei 11.464/07 para reparar o evidente equívoco. Para que toda pena não seja uma violência de um, ou de muitos, contra um cidadão particular, deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, e mínima possível nas dadas circunstâncias, proporcionada aos delitos, ditadas pelas leis31. CONCLUSÕES Ao acórdão lavrado no mencionado habeas corpus restaram conferidas as eficácias erga omnes e ex nunc da declaração de inconstitucionalidade, neste caso afirmando a aplicabilidade do resultado às condenações ainda 28 A CF/88 em seu art. 5°, caput, assegura o direito à liberdade, porém, de outro lado, permite expressamente a prisão dos indivíduos submetidos a inquérito ou a processo (art. 5°, LXI). Assim, onde couber a prisão, não se poderá negar o seu efeito mais imediato, ou seja, a privação temporária da liberdade. Ora, só se pode cogitar de liberdade provisória, no sistema processual penal vigente, quando o indiciado ou acusado estiver regularmente submetido a uma ordem de prisão (flagrante ou mandado judicial). Se essa ordem não for regular ou legítima, caberá, obviamente, o relaxamento ou a revogação do ato coator, não a liberdade provisória. Portanto, a liberdade provisória supõe prisão legítima, regular, pelo que pode ser ampliada ou restringida na lei que a admite. FRANCO, Alberto Silva. Op. cit., 2005, p.497. 29 MOREIRA, Rômulo de Andrade. As Alterações na Lei dos Crimes Hediondos – A Lei 11.464/2007. IBCCRIM. Disponível em: <http:// www.ibccrim.org.br >. Acesso em: 05 jun. 2007. 30 AMICO, Carla Campos. Inovações Decorrentes da Lei 11.464/2007. IBCCRIM, n.176, jul. 2007. 31 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. Rio de Janeiro: Rio, 2002, p.141. RJ 364 DOUTRINA PENAL FEVEREIRO/2008 129 suscetíveis de serem submetidas ao regime de progressão. Tal julgamento provocou imediata repercussão quanto aos demais condenados em condição similar no território nacional, apta a desencadear inúmeros pedidos para o exame acerca da pretensão à progressão de regime prisional, sujeitando os órgãos do Poder Judiciário que recusarem autoridade à decisão do colendo Supremo Tribunal Federal aos efeitos da reclamação eventualmente ajuizada perante esta Corte, quiçá de ação indenizatória. Na esteira do julgamento empreendido pelo Supremo Tribunal Federal no bojo do referido Habeas Corpus 82.959-7/SP e da espiral de violência urbana experimentada nas grandes cidades brasileiras, tomou corpo no Congresso Nacional forte iniciativa no sentido de dotar a população de supostos meios preventivos da criminalidade, sintetizados no chamado “pacote para a segurança pública”, do qual resultou a aprovação da Lei 11.464/2007, que dispõe substancialmente sobre a possibilidade da progressão de regime prisional quanto aos crimes hediondos e equiparados, sabidamente inclusos os delitos de estupro e atentado violento ao pudor, além da viabilidade de concessão da liberdade provisória em tais casos. Há de falar efetivamente em sofisma, a propósito do advento da referida Lei 11.464/07: tendo em consideração que tal diploma legal importa ilusório aceno tendente ao incremento na segurança pública, uma vez que apenas posterga em algum lapso de tempo a saída de pessoas que cumprem pena por crimes hediondos em instituições que não lhes garantem o mínimo quanto ao escopo ressocializador legalmente previsto e idealmente esperado. De outra perspectiva, a ilusão da verdade resultante da Lei 11.464/2007 diz também com a expectativa da massa carcerária condenada por crimes hediondos, que poderia ver na edição da lei em comento o alcance da progressão de regime prisional nos moldes temporais até então previstos para os demais delitos, quando, em realidade, o diploma legislativo dispõe sobre prazos consideravelmente mais extensos para o caso específico dos crimes hediondos e equiparados. Conforme salientado, a medida legislativa acabou por confirmar o veredicto do Supremo Tribunal Federal acerca da inadequação de proibição da progressão do regime prisional a respeito dos crimes em comento, tendo, assim, passado a permitir a tal progressão, impondo como requisito, em contraste com o patamar de 1/6 previsto na Lei de Execução Penal, o cumprimento de 2/5 da pena para os condenados primários e de 3/5 para os reincidentes (§ 2° do art. 2° da Lei 8.072/90 na nova redação atribuída RJ 364 FEVEREIRO/2008 DOUTRINA PENAL 130 pela Lei 11.464/07); neste caso sem destacar o fato da reincidência específica, com o que se conclui que a simples reincidência genérica atrai a aplicação do prazo mais gravoso para o condenado. Em todos os casos, este deve contar com bom comportamento carcerário, na forma do art. 112 da Lei de Execução Penal, dispositivo excepcionado unicamente a respeito do quantitativo de pena a ser cumprido em relação aos crimes hediondos e equiparados. Adotada a posição segundo a qual a Lei 11.464/2007 representa lei penal mais gravosa aos condenados, vez que a contar da antecedente decisão do colendo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 82.959- 7/SP, que, por sua vez, reconheceu o direito à progressão de regime prisional nos casos em estudo, passou a ter aplicação integral o art. 112 da Lei de Execução Penal, o qual dispõe sobre prazo de cumprimento de pena inferior ao daquele diploma legal. Sublinhe-se na sua incidência apenas a propósito dos crimes praticados a partir do advento dos seus efeitos, ou seja, a contar de 29.03.07, data da sua publicação; em observação ao enunciado constitucional vazado sob a forma do princípio que veda a retroação da lei penal, salvo na hipótese de beneficiamento da condição jurídica do réu, do que ora não se trata. Afigura-se como digna de exame a questão relativa à legitimidade constitucional da ampliação substancial do prazo de cumprimento de pena para o deferimento do benefício de progressão de regime prisional a propósito dos crimes hediondos e equiparados. À luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, a elevação do quantitativo de cumprimento de pena de 1/6 (art. 112 da LEP) para 2/5 ou 3/5 (de acordo com a redação atribuída ao § 2° do artigo 2° da Lei 8.072/90 pela Lei 11.464/07), nesta hipótese a depender da configuração da reincidência, tendo em linha de conta a realidade de penas concretizadas, como regra, em expressivo número de anos, o que acarreta a imposição de prolongado intervalo de tempo de cumprimento de pena no regime fechado, aparenta depor contra a dignidade da pessoa humana e o intuito ressocializador da pena, carecendo conseqüentemente de compatibilidade constitucional. Ademais, na linha do moderno constitucionalismo, a mencionada majoração do quantitativo de pena principiada pelo legislador pode enfrentar óbice por conta da cláusula de proibição de retrocesso na seara dos direitos fundamentais. Tal se afirma diante do decesso da condição jurídica de toda uma coletividade,
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