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AD2 – 2019.1 Fundação Centro de Ciências e Educação a Distância do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro Universidade Federal Fluminense Curso de Licenciatura em Letras- UFF / CEDERJ Disciplina: Literatura Brasileira III Coordenadora: Profª Flávia Amparo De acordo com o que você estudou nas Unidades 4, 5, 6 e 7 sobre a literatura e a representação das classes, Machado de Assis, a literatura na Belle Époque e o Modernismo, responda às questões abaixo de modo dissertativo. As questões visam à reflexão dos conteúdos estudados, bem como ao aprofundamento nos assuntos presentes nas unidades. Por isso, pesquise sobre o tema, assista aos vídeos na plataforma virtual e leia os textos indicados, mas não copie respostas do seu material didático nem de qualquer site da internet. Bons estudos! Questão 1 (2,5): No vídeo 90 anos da Semana de Arte Moderna: De lá prá cá, presente na Unidade 7 da Plataforma virtual, o professor Eduardo Jardim fala a respeito de duas importantes questões que nortearam a Semana de Arte Moderna de 1922: insatisfação com o cenário cultural brasileiro da época e anseio por uma atualização estética. Desse modo, disserte sobre esses dois pontos citados por Eduardo Jardim e explique de que maneira é possível relacioná-los com o “Prefácio interessantíssimo”, de Mário de Andrade, texto que abre seu livro Paulicéia Desvairada (1922). Texto 1 – Prefácio interessantíssimo (1922) – Mário de Andrade (fragmento) Leitor: Está fundado o Desvairismo. Este prefácio, apesar de interessante, inútil. Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis ambos. Os curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e dados. Para quem me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou. Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo. Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei. E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma sô vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem. (...) Um pouco de teoria? Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação determinada. Entroncamento é sueto para os condenados da prisão alexandrina. Há porém raro exemplo dele neste livro. Uso de cachimbo... A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer impecilho a perturba e mesmo emudece. Arte, que, somada a Lirismo, dá Poesia, não consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para avisá-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que tropece, caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o poema de repetições fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis ou inexpressivos. Que Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero: símbolo sempre novo da vida como do sonho. Por ele vida e sonho se irmanam. E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de expressão. "O vento senta no ombro das tuas velas!" Shakespeare. Homero já escrevera que a terra mugia debaixo dos pés de homens a cavalos. Mas você deve saber que há milhões de exageros na obra dos mestres. Taine disse que o ideal dum artista consiste em “apresentar, mais que os próprios objetos, completa e claramente qualquer característica essencial e saliente deles, por meio de alterações sistemáticas das relações naturais entre as suas partes, de modo a tornar essa característica mais visível e dominadora". O Sr. Luís Carlos, porém, reconheço que tem o direito de citar o mesmo em defesa das suas “Colunas”. Já raciocinou sobre o chamado “belo horrível"? É pena. O belo horrível é uma escapatória criada pela dimensão da orelha de certos filósofos para justificar a atração exercida, em todos os tempos, pelo feio sobre os artistas. Não me venham dizer que o artista, reproduzindo o feio, o horrível, faz obra bela. Chamar de belo o que é feio, horrível, só porque está expressado com grandeza, comoção, arte, é desvirtuar ou desconhecer o conceito da beleza. Mas feio — pecado... Atrai. Anita Malfatti falava-me outro dia no encanto sempre novo do feio. Ora Anita Malfatti ainda não leu Emílio Bayard: “O fim lógico dum quadro é ser agradável de ver. Todavia comprazem-se os artistas em exprimir o singular encanto da feiúra. O artista sublima tudo”. Belo da arte: arbitrário, convencional, transitório — questão de moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural — tem a eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir natureza, nem este é seu Fim. Todos os grandes artistas, ora consciente (Rafael das Madonas, Rodin do Balzac, Beethoven da Pastoral, Machado de Assis do Brás Cubas), ora inconscientemente (a grande maioria) foram deformadores da natureza. Donde infiro que o belo artístico será tanto mais artístico, tanto mais subjetivo quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram o que quiserem. Pouco me importa. (...) Não acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter comoções a um leito de Procusto para que obtenham, em ritmo convencional, número convencional de 6 sílabas. Já, primeiro livro, usei indiferentemente, sem obrigação de retorno periódico, os diversos metros pares. Agora liberto-me também desse preconceito. Adquiro outros. Razão para que me insultem? Mas não desdenho baloiços dançarinos de redondilhas e decassílabos. Acontece a comoção caber neles. Entram pois às vezes no cabaré rítmico dos meus versos. Nesta questão de metros não sou aliado; sou como a Argentina: enriqueço-me. (...) Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embridá-la nas minhas verdades filosóficas e religiosas; porque verdades filosóficas, religiosas, não são convencionais como a Arte, são verdades. Tanto não abuso! Não pretendo obrigar ninguém a seguir-me. Costumo andar sozinho. Virgílio, Homero, não usaram rima. Virgílio. Homero, têm assonâncias admiráveis. A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo “ão". (...) Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Si estas palavras frequentamme o livro não é porque pense com elas escrever moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão de ser. Sei mais que pode ser moderno artista que se inspire na Grécia de Orfeu ou na Lusitânia de Nun'Álvares. Reconheço mais a existência de temas eternos, passíveis de afeiçoar pela modernidade: universo, pátria, amor e a presençados-ausentes, ex-gozo-amargo-de- infelizes. Não quis também tentar primitivismo vesgo e insincero. Somos na realidade os primitivos duma era nova. Esteticamente: fui buscar entre as hipóteses feitas por psicólogos, naturalistas e críticos sobre os primitivos das eras passadas, expressão mais humana e livre de arte. O passado é lição para se meditar, não para reproduzir. "E tu che sé costí, anima viva, Partiti da cotesti che son morti”. Por muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora não me digam que ando à procura de originalidade, porque já descobri onde ela estava, pertence-me,é minha. (Fonte: https://sanderlei.com.br/PDF/Mario-de-Andrade/Mario-de-Andrade-Pauliceia-Desvairada.pdf) No vídeo “90 anos da Semana de Arte Moderna: De lá prá cá”, o professor e escritor Eduardo Jardim teoriza sobre duas importantes características que os modernistas de 1922 apresentavam em comum: uma insatisfação com o cenário intelectual brasileiro da época – muito preocupado com a questão estética e extremamente afastado da realidade do país – e um desejo por atualização da mente artística a fim de criar algo novo e definitivamente nosso. De fato, ao estudarmos o Modernismo de 1922, é possível perceber que o cenário literário vigente na época – preciosismo linguístico e rigor estético dos beletristas e parnasianos – incomodava uma parte da elite intelectual de São Paulo que começou a articular um movimento que rompesse com essa literatura e modernizasse o nosso fazer literário. Para alcançar esse objetivo, os escritores modernistas retomaram o olhar voltado à cor local do Brasil e buscaram se alinhar às novidades estéticas encabeçadas pelos Movimentos de Vanguarda da Europa no início do século XX, defendendo uma poesia que, ao mesmo tempo em que valorizava as origens da formação do brasileiro, também enaltecia a velocidade, as máquinas e o tempo moderno. No “Prefácio interessantíssimo”, Mário de Andrade ratifica esses ideais ao apresentar uma espécie de manifesto do Modernismo, no qual o autor expõe os principais anseios de seu círculo de escritores modernistas e contra quem e o que o movimento se voltava. Assim, uns dos principais motes do movimento, a liberdade rítmica em contraposição às rimas rigorosamente construídas pelos parnasianos e um maior uso das possibilidades da língua portuguesa, também aparecem no “Prefácio interessantíssimo” como uma reivindicação do autor paulista: “Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embridá-la nas minhas verdades filosóficas e religiosas (...). A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo “ão".”. Muitos são os trechos que os alunos podem usar para relacionar a fala do professor Eduardo Jardim ao texto de Mário de Andrade, na medida em que, no fragmento destacado, ao expor o que pensava de seu fazer poético e da literatura que estava inaugurando, o autor paulista falava de todo um grupo de artistas modernistas que buscava dar novos rumos ao cenário intelectual brasileiro, atribuindo às nossas criações artísticas uma cara mais nacional, mais próxima do povo, mais livre e conectada às mudanças sócio-históricas da modernidade. Questão 2 (2,0): O Modernismo de 1922 travou interessantes diálogos com os Movimentos de Vanguarda que eclodiram na Europa no início do século XX, como, por exemplo, o Cubismo, o que influenciou a produção artística brasileira desse período. Nessa perspectiva, leia o poema “Hípica”, de Oswald de Andrade, e analise como o poeta se apropriou de técnicas cubistas para construir seu texto. Texto 2 – Hípica – Oswald de Andrade Saltos records Cavalos da Penha Correm jóqueis de Higienópolis Os magnatas As meninas E a orquestra toca Chá Na sala de cocktails (ANDRADE, Oswald de. Poesias Reunidas. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A., 1974, p. 129) A proposta de atualização do panorama artístico brasileiro idealizada pelos modernistas de 1922 contou com algumas atitudes, dentre elas o alinhamento às perspectivas dos Movimentos de Vanguarda vigentes no início do século XX na Europa. Dos poetas desse movimento literário brasileiro, Oswald de Andrade foi, definitivamente, o que mais se apropriou dos conceitos das vanguardas europeias, o que pode ser visto em muitos de seus poemas publicados nesse primeiro momento do Modernismo. Em “Hípica”, o diálogo travado com o Cubismo se deve, sobretudo, à utilização da técnica da colagem cubista, que consistia, no campo das artes plásticas, na representação de cenas e de objetos de forma “desmontada”, “solta”, como se a realidade apresentada pudesse ser vista de diferentes ângulos, importando somente a observação dos elementos que a compõem e não a maneira com que esses elementos se unem. Por isso, no poema “Hípica”, as palavras que o compõem, compreendidas por um mesmo campo lexical, delineiam gradativamente a cena da própria hípica, sociedade nobre onde se pratica hipismo, a partir da enumeração de elementos encontrados neste ambiente, como os magnatas, os cavalos, a sala de coquetéis e a orquestra. É necessário perceber que a ausência quase total de conectivos, comumente responsáveis por garantir a articulação entre as orações e períodos, e a inversão dos versos não acarretam prejuízos à compreensão da cena em sua totalidade, evidenciando um processo de colagem de figuras a fim de alcançar um panorama total – neste caso, a própria hípica. Assim, a cena retratada pode ser contemplada de vários ângulos e perspectivas, tal como as pinturas cubistas, como as de Pablo Picasso. Questão 3 (3,0): O crítico literário Antonio Candido, em Formação da literatura brasileira, põe em evidência o caráter inovador dos romances de Machado de Assis, na medida em que o escritor carioca rompeu com a tradição dos romances de costumes ao investir em obras que priorizavam uma sondagem psicológica de seus personagens. A partir da leitura do capítulo II de Dom Casmurro (1899-1900), intitulado “Do livro”, disserte sobre a importância desse movimento de ruptura machadiano para a Literatura Brasileira e explique como o relato de Bento Santiago no trecho destacado materializa essa questão. Texto 3 – Do livro – Machado de Assis Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão. Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa. O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar osestranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa. Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo mal. Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou- me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma História dos Subúrbios, menos seca que as memórias do padre Luís Gonçalves dos Santos, relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?... Fiquei tão alegre com esta idéia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo. (ASSIS, Machado de. Do livro. In: Dom Casmurro. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 14-16.) No século XIX, como foi estudado na Unidade 5, os romances brasileiros apresentavam um caráter estritamente localista, na medida em que valorizavam a descrição dos costumes da cidade, do campo e até mesmo os costumes indígenas, como, por exemplo, algumas obras de José de Alencar. Machado de Assis, entretanto, rompe com essa perspectiva ao produzir narrativas cujo foco não era descrever os costumes da cidade, mas sim observar as relações sociais de sua época e os conflitos internos de seus personagens, que, de certa forma, correspondiam aos conflitos dos Homens de todos os tempos. Assim, Machado foi o responsável, no panorama da Literatura Brasileira, por um movimento inaugural de sondagem psicológica das figuras que compunham as suas obras, explorando os dramas humanos e refletindo sobre a relação entre o homem e a sociedade em que estava inserido, atribuindo ao romance brasileiro um caráter universalista que, até então, não era priorizado. O capítulo destacado de Dom Casmurro evidencia perfeitamente esse processo de sondagem psicológica, uma vez que nele contemplamos Bento Santiago – narrador do romance e do trecho em questão – enfrentando seus próprios dramas ao ter de lidar, sobretudo, com a solidão e com suas lacunas, seus vazios. Bento Santiago é um homem que falta a si mesmo, cujo único e possível objetivo já no fim da vida é tentar relembrar a sua história a fim de, quem sabe, compreender como chegou ao estado em que se encontra. Desse modo, a escrita de Machado se volta ao interior de Santiago ao mesmo tempo em que expõe essas feridas que são não só íntimas ao personagem, mas também ao leitor de qualquer tempo e espaço devido ao caráter universal atribuído ao relato e ao desenrolar da narrativa. Questão 4 (2,5): Aluísio Azevedo, ao escrever O cortiço (1890), apoiou-se na concepção de Naturalismo de Émile Zola, seguindo as tendências do Cientificismo, da Teoria Evolucionista e do Determinismo para construir seu romance. Assim, explique de que maneira é possível perceber a influência dessas teorias no trecho destacado da obra de Azevedo. Texto 4 – O cortiço (Cap. IV) – Aluísio Azevedo (fragmento) A labutação continuava. As lavadeiras tinham já ido almoçar e tinham voltado de novo para o trabalho. Agora estavam todas de chapéu de palha, apesar das toldas que se armaram. Um calor de cáustico mordia-lhes os toutiços em brasa e cintilantes de suor. Um estado febril apoderava-se delas naquele rescaldo; aquela digestão feita ao sol fermentava-lhes o sangue. A Machona altercava com uma preta que fora reclamar um par de meias e destrocar uma camisa; a Augusta, muito mole sobre a sua tábua de lavar, parecia derreter-se como sebo; a Leocádia largava de vez em quando a roupa e o sabão para coçar as comichões do quadril e das virilhas, assanhadas pelo mormaço; a Bruxa monologava, resmungando numa insistência de idiota, ao lado da Marciana que, com o seu tipo de mulata velha, um cachimbo ao canto da boca, cantava toadas monótonas do sertão: “Maricas tá marimbando, Maricas tá marimbando, Na passage do riacho Maricas tá marimbando.” A Florinda, alegre, perfeitamente bem com o rigor do sol, a rebolar sem fadigas, assoviava os chorados e lundus que se tocavam na estalagem, e junto dela, a melancólica senhora Dona Isabel suspirava, esfregando a sua roupa dentro da tina, automaticamente, como um condenado a trabalhar no presídio; ao passo que o Albino, saracoteando os seus quadris pobres de homem linfático, batia na tábua um par de calças, no ritmo cadenciado e miúdo de um cozinheiro a bater bifes. O corpo tremia-lhe todo, e ele, de vez em quando, suspendia o lenço do pescoço para enxugar a fronte, e então um gemido suspirado subia- lhe aos lábios. (...) À esquerda, por cima de um vestígio de rio, que parecia ter sido bebido de um trago por aquele sol sedento, havia uma ponte de tábuas, onde três pequenos, quase nus, conversavam assentados, sem fazer sombra, iluminados a prumo pelo sol do meio-dia. Para adiante, na mesma direção, corria um vasto telheiro, velho e sujo, firmado sobre colunas de pedra tosca; ai muitos portugueses trabalhavam de canteiro, ao barulho metálico do picão que feria o granito. Logo em seguida, surgia uma oficina de ferreiro, toda atravancada de destroços e objetos quebrados, entre os quais avultavam rodas de carro; em volta da bigorna dois homens, de corpo nu, banhados de suor e alumiados de vermelho como dois diabos, martelavam cadenciosamente sobre um pedaço de ferro em brasa; e ali mesmo, perto deles, a forja escancarava uma goela infernal, de onde saiam pequenas línguas de fogo, irrequietas e gulosas. (AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: FTD, 1998. p. 52-54.) O romance naturalista de Aluísio Azevedo, influenciado pelos ideais do Naturalismo de Zola, entendia esse gênero como uma experiência de laboratório, em que eram analisadas, de forma objetiva, as relações humanas e o comportamento dos homens, assemelhando- se a uma experiência de laboratório realística, direta e científica, cujo foco era tentar compreender e analisar o desenvolvimento do homem face ao meio em que está inserido. Assim, os vieses cientificistas, evolucionistas e deterministas do século XIX que tanto inspiraram Zola e Aluísio Azevedo, assim como outros escritores naturalistas, embasavam-se na teoria de que a raça, o ambiente e o clima condicionavam o comportamento humano, atribuindo caráter negativo ao clima tropical, decalor excessivo, em comparação ao clima ameno presente na Europa, além de reafirmarem, de acordo com a perspectiva darwinista, a soberania dos mais fortes sobre os mais fracos na luta pela sobrevivência. Dessa forma, o clima brasileiro, na obra de Azevedo, é o fator que guia as atitudes de seus personagens, fazendo com que estes recebam características animalizantes e realizem atitudes “condenáveis” aos olhos do autor. O calor, portanto, no trecho destacado, gera um ambiente de caráter degradante, na medida em que o autor prioriza expressões que sempre associam o local e as personagens à sujeira, à desordem e à degeneração: “A Machona altercava com uma preta que fora reclamar um par de meias e destrocar uma camisa; a Augusta, muito mole sobre a sua tábua de lavar, parecia derreter-se como sebo; a Leocádia largava de vez em quando a roupa e o sabão para coçar as comichões do quadril e das virilhas, assanhadas pelo mormaço”. Nesse sentido, todo o trecho volta-se à explanação de como aquele ambiente e aquele clima eram capazes de influenciar de forma negativa o homem, criando um cenário desolador para o país, que, segundo os naturalistas, teria de passar pelo obstáculo do clima e da natureza tipicamente brasileiros para conseguir progredir.
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