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CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 1 AULA 4: PODER CONSTITUINTE, SUPREMACIA, VIGÊNCIA E APLICABILIDADE DA CONSTITUIÇÃO A fim de adentrarmos no estudo do texto constitucional em nosso próximo encontro, optei por apresentar nesta aula dois capítulos do Curso. Inicialmente, na primeira parte da aula, analisaremos o poder constituinte e suas diferentes espécies. Na segunda parte, trataremos da supremacia, vigência e aplicabilidade da Constituição. Parte I: PODER CONSTITUINTE 1) CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES O poder constituinte, numa primeira definição, é o poder de criar a Constituição, de instituir o ordenamento jurídico supremo do Estado, e pois, o próprio Estado, juridicamente falando. É evidente que, pela sua obra – a Constituição -, o poder constituinte deve ser diferenciado do poderes de alteração da própria Constituição ou de elaboração da legislação infraconstitucional (poderes constituídos, como veremos logo mais). No primeiro momento, estamos falando do poder que institui a Constituição, no segundo, do poder que a modifica ou a complementa, segundo as regras por ela postas. Daí decorre a profunda diversidade dos processos de produção legislativa, em um e outro momento. Como se trata de um poder excepcional, único, por instituir a ordem fundamental do Estado, o poder constituinte não é exercido a todo momento, embora, em termos teóricos, possa sê-lo. Seu exercício ocorre, sempre, em situações anômalas, como resultado de crises políticas, econômicas, sociais, ideológicas, insuscetíveis de serem contornadas pelas regras fundamentais então vigorantes no Estado, as quais, bem por isso, precisam ser profundamente alteradas. O movimento pelo qual se dá a substituição de tais regras basilares, instituindo-se a nova Constituição, os novos paradigmas de ação do Estado e da sociedade, é justamente o poder constituinte. Eventualmente, pelo exercício do poder constituinte temos efetivamente a criação de um Estado novo, de um organismo político absolutamente inédito. No mais das vezes, contudo, não é isto que se verifica. O Estado, enquanto estrutura de poder, preexiste, e o poder constituinte vai apenas reinaugurá-lo, sob novas bases. De qualquer modo, seja instituindo um Estado novo, seja alterando intensamente as bases de um Estado já existente, o poder constituinte sempre constrói uma nova Constituição, e pois, em termos jurídicos, um novo Estado. Pelas suas características, podemos concluir que o poder constituinte existe e sempre existiu em toda sociedade. Em toda e qualquer sociedade com um mínimo de organização política sempre existiu um CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 2 conjunto de regras disciplinando os aspectos básicos da convivência social e do exercício do poder. Ora, tais regras basilares são, sempre, fruto do poder constituinte, com o que podemos afirmar que a sociedade é juridicamente organizada justamente em decorrência do exercício do poder constituinte, instaurando suas regras fundamentais. O mesmo não se pode dizer, todavia, quando à teoria do poder constituinte, que é muito mais recente, tendo surgido no período da Revolução Francesa, fruto do pensamento do abade Emmanuel Sieyès, apresentado em seu livro “O que é Terceiro Estado?”. Na verdade, as ex- colônias inglesas na América do Norte, recém emancipadas, já tinham efetivamente exercido este poder durante a elaboração de seus textos constitucionais, nos moldes propostos pelo abade. Tanto que os norte- americanos, tendo como expoente maior La Fayette, sempre defenderam que a teoria do poder constituinte era de sua autoria, posição que, evidentemente, era refutada com veemência por Emmanuel Sieyès e pelos demais ideólogos da Revolução Francesa. Os franceses ganharam a disputa, e são considerados os criadores da teoria do poder constituinte. Mas, afinal de contas, qual a relevância da criação da teoria, se o poder constituinte, como apontamos, já era, de fato, exercido há milênios, em qualquer sociedade com organização política? Quais os motivos para a construção da teoria? Era a necessidade, frente às profundas alterações ocorridas na sociedade, de se justificar o exercício do poder pelos governantes. Em outras palavras, era a necessidade de conferir legitimidade ao exercício do poder. As monarquias até então reinantes, principalmente na Europa, fundavam-se no Direito divino e no Direito hereditário: Deus era o titular do poder, e o rei ou monarca seu representante na terra, cabendo-lhe exercê-lo por força da vontade divina e transmiti-lo a seus sucessores de sangue. Tais bases ideológicas perderam seu valor como justificativa para o exercício do poder com a ascensão social da burguesia. Fazia-se necessário, pois, reconstruir ideologicamente seus fundamentos, a fim de conferir-lhe legitimidade. Foi a isto que se prestou a teoria do poder constituinte: assentou as novas bases de legitimidade, definindo um novo titular do poder e um novo fundamento para seu exercício: não mais Deus (representado pelo monarca), mas a nação como titular; não mais a vontade divina, mas a razão humana como fundamento. Em última perspectiva, a origem da Constituição assentou-se no conceito de soberania nacional. A principal dificuldade de Sieyès, ao reconhecer a nação como titular do poder constituinte, foi justificar seu exercício por uma parcela restrita de seus integrantes. O ideólogo francês afastou-se da visão de Rousseau, que propugnava ser dos membros da sociedade, diretamente, o direito a exercer a soberania e construir a Constituição, pois tal concepção na prática era inexeqüível, pela absoluta impossibilidade de toda a sociedade intervir diretamente na elaboração da Constituição. Em seu lugar, elegeu o regime representativo como o caminho para o exercício do poder constituinte. Por esse regime, não é a própria nação, a titular do poder, que o exerce diretamente, mas representantes por ela escolhidos para realizar a tarefa, elaborar a Constituição. A nação CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 3 permanece como titular incontestável do poder, mas delega soberanamente seu exercício a representantes por ela escolhidos, aos quais incumbirá elaborar a Constituição, reunidos em Convenção ou Assembléia Nacional Constituição. Promulgada a Constituição, encerra-se a tarefa destes representantes, que não teriam competência para votar quaisquer outras leis ou mesmo alterar a Constituição, na forma como a teoria foi formulada por Sieyès. Atualmente, considera-se que a titularidade do poder constituinte não pertence mais à nação, mas ao povo: nação é o conjunto de pessoas com identidade de língua e tradições, onde quer se encontrem; povo é a parcela da nação que se localiza em certo território. Como o elemento territorial é indispensável ao conceito de Estado, substituiu-se a idéia de soberania nacional pela de soberania popular, com a titularidade do poder constituinte sendo conferida ao povo. Ademais, além do sistema representativo (democracia indireta), proposto pelo abade, admite-se hoje o exercício do poder constituinte nos moldes da democracia direta (quando o povo é chamado a aprovar o texto constitucional, mediante referendo ou plebiscito), ou mesmo da democracia mista (quando, após a eleição dos membros da Assembléia Constituinte, o povo é convocado a se manifestar sobre o documento constitucional) Contudo, nem sempre a vida segue a teoria. Como relembra Vicente Paulo, (...) embora a titularidade do poder constituinte pertença ao povo, nem sempre o seu exercício se dá demaneira legítima, democrática. Há casos em que essa titularidade é desrespeitada, usurpada, e um ditador impõe, unilateralmente, um texto constitucional, por meio da denominada outorga (Constituição outorgada). Nesse caso, se houver ruptura de ordenamento ou criação de um novo ordenamento jurídico, terá havido manifestação do poder constituinte, embora não democraticamente (poder constituinte ilegítimo ou usurpado). Encerrando esses apontamentos iniciais, devemos destacar que, segundo a doutrina, foi a compreensão da diferença entre o poder constituinte e os poderes constituídos que possibilitou o surgimento das Constituições escritas. Poder constituinte, objeto de nosso estudo, é aquele cujo exercício resulta na Constituição; poderes constituídos, por sua vez, são aqueles que resultam da Constituição. Temos, então, o poder pelo qual a Constituição é criada, o poder constituinte, e os poderes pela Constituição criados, os poderes constituídos (por exemplo, os poderes para alterar a Constituição e elaborar a legislação infraconstitucional), e foi a percepção desta diferença essencial que permitiu separar-se algumas matérias, consideradas de fundamental importância para o Estado, e instituí-las em um documento político-jurídico à parte, distinto de todos os demais diplomas jurídicos do Estado e a eles hierarquicamente superior. 2) PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO Quando falamos em poder constituinte, sem qualquer designativo, estamos nos referindo justamente ao poder constituinte originário (inicial, inaugural ou de primeiro grau). O poder constituinte originário, desse modo, é aquele que dá vida à Constituição de um Estado, definindo de forma soberana toda a estrutura do ente político e as garantias dos seus CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 4 cidadãos, bem como as demais matérias consideradas fundamentais pela sociedade em dado momento histórico. Como afirma Alexandre de Moraes: O Poder Constituinte originário estabelece a Constituição de um novo Estado, organizando-o e criando os poderes destinados a reger os interesses de uma comunidade. Tanto haverá Poder Constituinte nom surgimento de uma primeira Constituição, quanto na elaboração de qualquer Constituição posterior. Como sua manifestação dá-se em meio a uma situação de instabilidade social, em que se faz necessário o estabelecimento de novos parâmetros e princípios jurídicos, políticos e econômicos, a origem do poder constituinte originário varia conforme a forma através da qual ele é instituído. Pode ele provir da atuação dos próprios governantes que, em meio à crise, percebem a necessidade de uma renovação radical na estrutura política do Estado e, a partir disso, elaboram uma nova Constituição por meio de uma Assembléia Nacional Constituinte, com representatividade popular. É possível, também, que o seu exercício se dê por um movimento revolucionário que expurgue os antigos governantes do poder e estabeleça a nova Constituição ao arrepio da ordem jurídica anterior. E, por fim, pode ele provir de um ato de imposição do atual detentor do poder político, que à revelia do povo, estabelece uma nova Constituição. A primeira situação caracterizara exercício legítimo do poder constituinte originário; não a segunda e a terceira, que representam um ato de força, seja do movimento revolucionário, seja do governante do momento, não se enquadrando nas premissas democráticas propugnadas pela teoria do poder constituinte. De qualquer modo, em termos práticos elas se equivalem, pois todas apresentam o mesmo resultado: a edificação de uma nova ordem jurídico-política, mediante a instituição de uma nova Constituição. Vicente Paulo analisa as diferentes formas de manifestação do poder constituinte originário. Segundo o Autor, podemos ter: a) poder constituinte usurpado, quando a competência do povo é usurpada por algum ditador, que elabora uma Constituição e a impõe ao povo (Constituição outorgada); b) poder constituinte legítimo, quando da elaboração da Constituição, há participação do povo, mediante democracia direta (o povo, diretamente, aprova a Constituição, por meio de plebiscito ou referendo) ou democracia representativa (o povo escolhe seus representantes, que formam a Assembléia Constituinte e elaboram a Constituição do tipo democrática) ou mista (quando combinadas as democracia direta e representativa). Alexandre de Moraes, por sua vez, percebe duas formas básicas de expressão do poder constituinte originário, a Assembléia Nacional Constituinte ou Convenção e o Movimento Revolucionário (na denominação do Autor), afirmando que, tradicionalmente, o movimento revolucionário ocorre na primeira Constituição de um novo País, que conquiste sua liberdade política, sendo as demais Constituições deste país elaboradas por assembléias nacionais constituintes. Elucidando os conceitos, declara: CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 5 A outorga é o estabelecimento da Constituição por declaração unilateral do agente revolucionário, que autolimita seu poder. (...) A assembléia nacional constituinte, também denominada convenção, nasce da deliberação da representação popular, devidamente convocada pelo agente revolucionário, para estabelecer o texto organizatório e limitativo do Poder. Na matéria, vale mencionar a lição de Pedro Lenza, segundo a qual o poder constituinte originário que estrutura pela primeira vez um Estado é dito histórico, e aquele que reestrutura juridicamente um Estado já existente é denominado revolucionário. Das possíveis formas de instituição da Constituição, acima descritas, resulta a natureza política (não jurídica) do poder constituinte originário. É tal poder que estabelece o regramento jurídico supremo do Estado, sendo anterior e superior ao mesmo. Logo, sua natureza não pode ser jurídica. Apesar da conclusão apresentada, a matéria não é pacífica. Para a escola normativista, dominante entre nós, o poder constituinte originário tem, efetivamente, natureza política, extrajurídica. Tendo por objeto o primeiro documento jurídico do Estado, e sendo ilimitado (como veremos) não poderia este poder fundar-se em critérios jurídicos: ele é o próprio critério jurídico inicial do Estado, com base no qual outras normas serão elaboradas. Assim sendo, sua fundamentação deve necessariamente advir de fatores extrajurídicos, políticos. Já os jusnaturalistas, calcados na sua visão de que o Direito não se limita ao Direito positivo, havendo regras de Direito inerentes à própria natureza humana, defendem o caráter jurídico do poder constituinte originário. Frente às duas correntes, predomina a normativista, que concebe o poder constituinte originário como sendo de natureza política, extrajurídica. Com base na sua natureza política, podemos concluir que esse poder é: 1o) incondicionado, ilimitado pois não se subordina a qualquer regra ou princípio de índole material ou processual, podendo estabelecer de forma absolutamente livre o regramento primário de um Estado. 2º) absoluto, pois, pelo fato de instituir livremente a Constituição, pode atingir qualquer situação jurídica formada sob a égide da Constituição anterior, até mesmo aquelas que, sob esta Constituição, estavam protegidas pelo direito adquirido, pelo ato jurídico perfeito ou pela coisa julgada; 3o) autônomo, porque apenas ao titular do poder (o povo), por meio de seus representantes, cabe determinar as concepções jurídico-políticas que definirão a estrutura do Estado e a atuação de seus Poderes; 4o) inicial, pois tem por função inaugurar uma nova estrutura constitucional de um Estado, não tendo nenhum poder, seja de fato oude direito, antes e acima dele; 5º) permanente, encontrando-se sempre em estado de latência, já que basta que seu titular – o povo – decida pela edificação de uma nova ordem constitucional para que tal poder volte a ser exercido; CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 6 6º) inalienável: seus titulares (o povo) não podem abrir mão do poder, mas apenas outorgar seu exercício a representantes escolhidos por eles próprios; O caráter incondicionado impede que as normas postas pelo poder constituinte originário sejam objeto de discussão quanto à sua validade em sede de controle de constitucionalidade. Na verdade, a validade ou invalidade de uma norma é juízo que depende de um parâmetro de análise. Como, no caso, não há qualquer parâmetro, uma vez que as normas postas pelo poder constituinte originário são justamente o parâmetro de validade das demais normas do ordenamento jurídico, jamais o contrário, a discussão sobre a validade das normas instituídas por tal poder inicial simplesmente não é possível de existir. Ainda sobre o caráter incondicionado do poder constituinte originário, ele não é aceito com a mesma amplitude por toda a doutrina. A incondicionalidade, em termos absolutos, é o posicionamento adotado pela escola normativista, largamente predominante no Brasil, apesar de alguns integrantes da escola admitirem algumas limitações, mencionando, exemplificativamente, os ideais de justiça, o direito natural, o direito internacional. Já a escola jusnaturalista defende posicionamento diverso, no sentido de que há alguns direitos inalienáveis do ser humano, os direitos naturais, como vida e dignidade humana, representam um limite intransponível para o poder constituinte originário, o qual, portanto, terá que respeitá-los quando do seu exercício. Como dito, entre nós prevalece a escola normativista, cujos adeptos, em sua maioria, entendem total o caráter incondicionado do poder constituinte inicial. Há, também, aqueles que entendem que o caráter ilimitado do poder constituinte inaugural só se aplica ao próprio Estado, não alcançando a comunidade internacional, ao passo que outros não colocam limites à sua incondicionalidade. Para os primeiros, o exercício do poder constituinte originário é limitado por alguns princípios básicos de Direito Internacional, não podendo desconsiderar tais valores. Já a segunda corrente não aceita qualquer limite, considerando que seu exercício pode resultar em normas com qualquer conteúdo. Para nós, este segundo entendimento é o que deve ser acolhido. Enfim, o poder constituinte originário, justamente porque originário, pode resultar em normas de qualquer conteúdo, sem quaisquer condicionamentos e limitações. 3) PODER CONSTITUINTE DERIVADO O produto do poder constituinte originário é a Constituição, e esta, por sua vez, dá origem aos poder constituinte derivado (também denominado poder constituído, instituído, secundário ou de segundo grau). Podemos perceber o poder constituinte derivado, portanto, como fruto da Constituição, ou como fruto do poder que a instituiu, o poder constituinte originário. O poder constituinte derivado assume duas formas básicas de expressão: 1º) poder constituinte derivado decorrente é o poder conferido aos demais entes federativos, que não a União, para estabelecerem e modificarem CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 7 seus próprios diplomas constitucionais, sempre sujeitos às disposições da “verdadeira” Constituição, a Constituição Federal. É, então, o poder conferido aos Estados, para elaborem e alterarem suas Constituições, e ao Distrito Federal e aos Municípios para elaborarem e alterarem suas Leis Orgânicas; 2º) poder constituinte derivado reformador (ou competência reformadora): é o poder conferido ao legislador federal para proceder à alteração das normas fixadas pelo poder constituinte originário. Em termos mais simples, é o poder conferido pela Constituição Federal para que sejam promovidas alterações em seus dispositivos. No sistema pátrio, como modalidades de exercício do poder constituinte derivado reformador, foram previstos na Constituição de 1988 os processos de reforma constitucional (CF, art. 60) e de revisão constitucional (ADCT, 3o), este a ser realizado uma única vez, após cinco anos da promulgação da Carta Magna. Porque se origina do poder constituinte originário, o derivado está por ele condicionado, devendo observar as condições de forma e de fundo por ele estabelecidas para seu exercício. Disso ressalta a natureza jurídica do poder constituinte derivado (e não política, como o poder originário), sujeito que está aos parâmetros jurídicos estabelecidos pela Constituição Federal. A doutrina aponta como características deste poder o fato dele ser: 1º) derivado, porque se origina de outro poder, o poder constituinte originário; 2º) condicionado: porque seu exercício pressupõe a estrita observância das normas materiais e formais estabelecidas pelo poder constituinte originário; e 3º) subordinado, porque possui hierarquia inferior à Constituição, sujeitando-se aos seus limites. Vamos analisar as duas formas de expressão do poder constituinte derivado, seguindo a ordem de apresentação. 3.1) Poder constituinte derivado decorrente O poder constituinte derivado decorrente é aquele conferido pela Constituição Federal aos Estados (CF, art. 25, caput), aos Municípios (CF, art. 29, caput) e ao Distrito Federal (CF, art. 32, caput) para elaborarem e alterarem suas constituições e leis orgânicas. É exercido pelos deputados estaduais, deputados distritais e vereadores, segundo as regras e limites postos na Constituição Federal. Tal poder deriva da capacidade de auto-organização outorgada pela Constituição aos entes federados locais e regionais. Para os Estados a outorga consta do art. 25 da Constituição, consoante o qual “os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”. O dispositivo em apreço é complementado pelo art. 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que confere especificamente o poder de elaboração das Constituições estaduais à respectiva Assembléia Legislativa do Estado, devendo ser exercido no prazo de um ano, a contar da data da promulgação da Constituição Federal. CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 8 Para os Municípios a capacidade de auto-organização é prevista no art. 29 da Constituição Federal, e do seu exercício resulta a elaboração da Lei Orgânica de cada Município integrante de nossa Federal. O art. 29 é complementado pelo art. 11, parágrafo único do ADCT, que assevera: “Promulgada a Constituição do Estado, caberá a Câmara Municipal, no prazo de seis meses, votar a Lei Orgânica respectiva, em dois turnos de discussão e votação, respeitado o disposto na Constituição Federal e na Constituição Estadual”. Como se nota, as Leis Orgânicas Municipais estão sujeitas a dois limites na sua elaboração, a Constituição Federal e a Constituição do Estado que integram. O texto constitucional municipal é, pois, subordinado hierarquicamente, num primeiro plano, à Constitucional Federal, e, num segundo, à Constituição do Estado, sendo a observância dos preceitos nelas contidos condição insuperável para sua válida produção. Essa dupla subordinação faz com que parcela de nossa doutrina não reconheça aos entes municipais a titularidade de poder constituinte derivado decorrente, restringindo-o, pois, aos Estados e ao Distrito Federal. Essa é a posição, entre outros,do Professor Pedro Lenza, a partir do entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Predominantemente, contudo, considera-se que os Municípios são titulares de poder constituinte derivado decorrente, apesar da dupla subordinação acima apontada. O Distrito Federal goza, também, desta capacidade, a teor do art. 32, caput, da Constituição Federal. Tal poder é exercido pela Câmara Legislativa do DF, e resulta na elaboração da Lei Orgânica do DF, a qual deve obediência, a exemplo das Constituições estaduais, aos princípios estabelecidos na Constituição Federal. Apesar de alguns negarem ao Distrito Federal tal capacidade, prepondera o entendimento contrário, reconhecendo-se ao ente federado a titularidade de poder constituinte derivado decorrente, no mesmo nível daquele outorgado aos Estados, uma vez que subordinado apenas aos ditames da Constituição Federal. Temos, assim, que todos os entes federados locais e regionais gozam de poder constituinte derivado decorrente, pelo qual editam e alteram seus respectivos diplomas constitucionais, com a diferença de que os Estados e o DF devem obediência somente aos preceitos postos na Constituição Federal, ao passo que os Municípios devem observância, também, às preceitos prescritos nas respectivas Constituições estaduais. Pois bem, definida a titularidade do poder constituinte derivado decorrente, resta agora apresentarmos os limites a que ele está sujeito, ou, em outros termos, os princípios a que ele está adstrito. Segundo nossa doutrina e jurisprudência, tais limitações são de três ordens: 1º) princípios constitucionais estabelecidos (ou organizatórios): são restrições que decorrem da literalidade do texto constitucional, ou seja, são limites que a Constituição expressamente impõe aos Estados, ao Distrito Federal ou aos Municípios. Sempre que a Constituição impuser algo a tais entes federados, seja no sentido de proibir determinada conduta, seja no sentido de obrigar à sua adoção, seja no sentido de limitar seu exercício, estamos perante um princípio constitucional estabelecido. CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 9 Significa isso que os deputados estaduais, deputados distritais e vereadores, ao elaboram suas respectivas Constituições e Leis Orgânicas, deverão fazê-lo com total obediência a tais limites expressos, sob pena de serem os dispositivos destoantes declarados inválidos por desconformidade com a Constituição Federal. Exemplos de princípios constitucionais estabelecidos são o art. 25, § 2º, da CF, que obriga os Estados a explorarem diretamente ou mediante concessão os serviços locais de gás canalizado (limite expresso mandatório, impõe certa conduta); o art. 28, que fixa as regras para a eleição dos Governadores e Vice-Governadores dos Estados e do Distrito Federal (outro limite expresso mandatório); o art. 31, § 4º, que proíbe os Municípios de criarem Tribunais, Conselhos ou órgãos de contas municipais (limite expresso vedatório, impede certa conduta), entre outros. 2º) princípios constitucionais extensíveis: são preceitos da Constituição que, segundo sua literalidade, aplicam-se somente à União, mas que, a partir de uma interpretação sistemática e finalística da Constituição Federal, feita principalmente pelo STF, tiveram seu alcance ampliado para abranger também os demais entes federados. A Constituição, portanto, não traz expressamente tais princípios como impositivos para os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; expressamente, eles aplicam-se somente à União. Ocorre que a interpretação unitária e teleológica do texto constitucional, valorizando essencialmente o conjunto da Constituição e a finalidade da previsão de tais princípios e institutos, considerou-os vinculantes também para os demais entes federados. Desse modo, expressamente eles vinculam a União, implicitamente, como resultado da interpretação constitucional, todos os entes federados. Em termos de eficácia jurídica, a diferença é nenhuma. Entre os princípios constitucionais extensíveis podemos citar os princípios do Tribunal de Contas da União, do processo legislativo federal e do sistema de governo. 3º) princípios constitucionais sensíveis: alguns doutrinadores apontam à parte os princípios impostos aos Estados e ao Distrito Federal pelo art. 34, VII, da CF, e aos Municípios pelo seu art. 35 da Carta Magna. A peculiaridade de tais princípios é que a sua inobservância nas respectivas Constituições e Leis Orgânicas autoriza, nas hipóteses do art. 34, VII, a intervenção da União nos Estados e no DF e, nas hipóteses do art. 35, a intervenção dos Estados nos Municípios localizados em seus territórios, e da União nos Municípios localizados em territórios federais. Na verdade, os princípios constitucionais sensíveis, no âmbito de poder constituinte derivado decorrente, podem ser arrolados entre os princípios constitucionais estabelecidos, já que constituem limites expressamente prescritos pela CF aos Estados, DF e Municípios, com a singularidade de que sua violação autoriza a intervenção no ente federado. Quando tratarmos da organização do Estado analisaremos com a devida atenção esta matéria, ficando, desde já, esclarecido que tais princípios também são de observância obrigatória na elaboração e reforma dos diplomas constitucionais regionais e locais. 3.2) Poder constituinte derivado reformador CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 10 Relembrando, o poder constituinte derivado reformador é o poder conferido aos deputados federais e senadores para alterarem a Constituição Federal, subdividindo-se em duas modalidades: - poder de reforma constitucional (ou competência reformadora), previsto no art. 60 da CF; e - poder de revisão constitucional (ou competência revisional), previsto no art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Não é esse o momento de adentrarmos a fundo nas regras relativas ao exercício dos dois poderes, ou, de outro modo, dos dois processos de modificação da Constituição Federal, matéria a ser devidamente analisada após o estudo do processo legislativo ordinário, quando, a partir do conhecimento das regras atinentes ao processo de elaboração da legislação infraconstitucional, poderemos apresentar de forma mais adequada as peculiaridades desses dois processos legislativos de alteração do texto constitucional. Neste ponto, portanto nos limitaremos a destacar sumariamente, em termos teóricos, os tipos de limitações que podem ser impostos ao exercício do poder constituinte derivado reformador. A seguir, destacaremos aquelas que foram prescritas pela CF para sua primeira modalidade, o poder de reforma constitucional (não estranhem: o nome é semelhante). Ao final, veremos quais dessas limitações são aplicáveis ao processo de revisão. O poder constituinte derivado reformador, tanto o de reforma propriamente dito quanto o de revisão, são exercidos mediante a elaboração de emendas à Constituição. O processo de reforma constitucional, que segue as regras do art. 60 da CF, é um processo de regramento sobremaneira mais dificultoso que o processo legislativo ordinário. É um processo de caráter permanente, no sentido de que, desde a promulgação da Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988, e enquanto esta permanecer em vigor, pode ser ele exercido pelos legitimados a tanto pelo art. 60. É, portanto, o processo normal, regular de alteração da Constituição. Já o processo de revisão constitucional foi previsto no art. 3º do ADCT para permitir uma alteração mais fácil da Constituição Federal, em função da maior simplicidade das regras a ele aplicáveis, comparativamente às do processode reforma. Ao contrário deste, é um processo de aplicação única, pois, pelo dispositivo em apreço, só foi autorizada a instauração de um processo desta espécie, a contar de cinco anos da promulgação da Constituição, o qual já foi levado a cabo no primeiro semestre de 1994, daí resultando seis emendas, denominadas Emendas Constitucionais de Revisão. Com isso, exauriu-se a eficácia do art. 3º do ADCT, não havendo mais, desde 1994, a possibilidade de instauração de um segundo processo de revisão. Por conseguinte, atualmente existe apenas um modo de modificação da CF, o processo de reforma constitucional. Isto posto, passemos a apresentar as possíveis limitações a serem impostas ao poder de reforma constitucional, genericamente considerado: 1º) temporais: é a estipulação, pela Constituição, de um prazo mínimo para a alteração de seus dispositivos, antes do qual a Constituição é imutável; CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 11 2º) circunstanciais: quando a Constituição proíbe sua modificação em determinadas circunstâncias de anormalidade institucional, a exemplo do estado de defesa ou de sítio; 3º) processuais: são as limitações relativas ao processo especial para a alteração da Constituição, mais solene e dificultoso que o previsto para a modificação da legislação ordinária. André Ramos Tavares reúne as três espécies de limitações até aqui apresentadas sob a denominação limitações formais, pois não dizem respeito ao conteúdo possível da alteração constitucional. 4º) materiais expressas: limitação referente a determinadas matérias, por corresponderem a certos direitos e princípios considerados de fundamental relevância na conformação política do Estado (as cláusulas pétreas), as quais não podem ser objeto de propostas de emenda que pretendam sua abolição ou substancial modificação; 5º) materiais implícitas: construção doutrinária e jurisprudencial que obsta a modificação (1) dos legitimados ao exercício do poder constituinte, (e não seu titular, que é o povo, sendo inalienável essa titularidade), (2) dos titulares da iniciativa de apresentação de propostas de emenda, (3) das regras referentes ao processo legislativo previsto para a elaboração das propostas de emenda; e (4) das matérias que correspondem às cláusulas pétreas. Dessas limitações, aplicam-se ao poder de reforma constitucional, tal como prescrito em nossa Constituição, as seguintes: 1º) limitações circunstanciais: na Constituição Federal foi prevista esta espécie de limitação no art. 60, § 1º, que proíbe a votação e promulgação de emendas na vigência de estado de defesa, de estado de sítio e de intervenção federal. De se ressaltar que a restrição não atinge os atos de apresentação e de discussão da proposta de emenda, que não configuram atos decisórios, atingindo apenas os atos de votação e promulgação; 2º) limitações processuais: a CF, no art. 60, §§ 2o, 3o e 5º prevê esse processo especial, que apresenta como peculiaridades, frente ao processo legislativo comum: - limitação do poder de iniciativa de proposta de emenda, restrito ao (a) Presidente da República, (b) à câmara dos Deputados ou ao Senado Federal, por, no mínimo, um terço de seus membros, e (c) a mais da metade das Assembléias Legislativas, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus deputados; - quorum qualificado de três quintos para a aprovação da proposta de emenda; - necessidade de serem realizadas quatro votações para a aprovação da proposta, duas na Câmara e duas no Senado; - impossibilidade de apreciação de nova proposta de emenda, na mesma sessão legislativa, que trate da mesma matéria de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada naquela sessão. 3º) limitações materiais expressas: a CF prevê tal limitação no art. 60, § 4º, proibindo a deliberação de propostas de emendas tendentes a abolir ou CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 12 alterar substancialmente (a) a forma federativa de Estado; (b) o voto direto, secreto, universal e periódico; (c) a separação dos Poderes e (d) os direitos e garantias individuais; 4º) materiais implícitas: essas limitações aplicam-se integralmente ao processo de reforma da Constituição Federal, segundo entendimento jurisprudencial e doutrinário largamente predominante. Como podemos perceber, das cinco espécies de limitações passíveis de aplicação ao poder constituinte derivado reformador, quatro aplicam-se ao processo de reforma, sobre ele não incidindo apenas a limitação temporal, pois a CF, desde sua promulgação, podia ser alterada pelo processo legislativo previsto no art. 60. Por sua vez, O processo de revisão constitucional, regulado pelo art. 3º do ADCT, está sujeito às seguintes limitações: 1º) temporais: o art. 3º do ADCT estabeleceu tal espécie de limite ao processo de revisão, determinando que ele poderia ser instaurado somente após cinco anos da promulgação da Constituição; 2º) circunstanciais: apesar de o dispositivo em questão não estabelecer expressamente tal limitação, nossa doutrina sempre entendeu que ela lhe é aplicável, em termos idênticos ao que ocorre no processo de emenda. Assim, não era possível a votação e promulgação de emendas de revisão na vigência de estado de defesa, de estado de sítio e de intervenção federal; 3º) processuais: o processo de revisão tem regramento especial, diferente do processo legislativo ordinário. Todavia, é ele menos solene e dificultoso que o estatuído para o processo de reforma, exigindo-se para a aprovação de uma proposta de emenda de revisão somente o voto em sentido positivo da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, reunidos em sessão unicameral (na qual senadores e deputados federais reúnem-se e votam numa mesma ocasião, constituindo um corpo legislativo único, somando-se o voto de todos os presentes). Relembrando, no processo de reforma a aprovação da proposta de emenda exige quatro votações em separado, duas na Câmara e duas no Senado, sendo necessário, em cada uma delas, o voto favorável de três quintos de seus membros; 4o) materiais expressas: apesar de alguma discussão inicial, pacificou-se afinal que as limitações desta espécie, aplicáveis ao processo de reforma, incidem em idênticos termos sobre o processo de revisão, no qual, portanto, foi proibida a deliberação de propostas de emendas tendentes a abolir (a) a forma federativa de Estado, (b) o voto direto, secreto, universal e periódico, (c) a separação dos Poderes e (d) os direitos e garantias individuais; 5o) materiais implícitas: na verdade, nem se colocou em questão se essa espécie de limitação seria aplicável ao processo de revisão. Em termos teóricos, podemos concluir que ela provavelmente seria considerada também aqui incidente. Em termos práticos, como atualmente não há mais a possibilidade de instauração de um processo de revisão, a questão perdeu qualquer relevância. CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 13 PARTE II: SUPREMACIA, VIGÊNCIA E APLICABILIDADE DA CONSTITUIÇÃO 1) SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO Em termos doutrinários, pode-se admitir duas espécies de supremacia constitucional, a material e a formal. A supremacia material decorre do conteúdo das normas constitucionais, e vincula-se diretamente ao conceito material de Constituição, que só reconhece como constitucionais as normas referentes aos aspectos fundamentais da organização do Estado, sendo os principais aqueles referentes à forma de Estado, à forma de governo, ao regime de governo, à separação dos Poderes,à aquisição, exercício e perda do poder e aos direitos e garantias fundamentais. Nessa concepção as normas que tratem de tais temas, qualquer que seja sua origem (legal, jurisprudencial, costumeira), compõem a Constituição, e prevalecem hierarquicamente sobre as demais normas do ordenamento jurídico. A se adotar essa concepção, todas as Constituições possuem supremacia, mesmo as flexíveis e as não-escritas. A supremacia formal, por sua vez, ignora totalmente o conteúdo específico da norma, decorrendo do caráter escrito e rígido da Constituição. Dito de outro modo, a supremacia formal é atributo exclusivo das Constituições escritas e rígidas, em função das características destas espécies de Constituição, quais sejam, respectivamente, o fato de estarem reunidas em um único documento (Constituições escritas) e serem passíveis de alteração somente por um procedimento especial, mais dificultoso e solene que o instituído para a modificação da legislação ordinária (Constituições rígidas). Na realidade, a doutrina comumente afirma que a supremacia formal de uma Constituição decorre de sua rigidez, e esta, por sua vez, de seu caráter escrito. É uma forma de exposição lógica: a superioridade decorre propriamente do fato de as normas da Constituição só poderem ser alteradas pelo procedimento especial acima referido, mas este procedimento só pode existir se todas as normas da Constituição estiverem agregadas em um único documento. Acima mencionamos que essas duas modalidades de supremacia são admitidas em nível doutrinário. Efetivamente, isto é correto. Contudo, em termos jurídicos, só é verdadeira supremacia a supremacia formal, aquela que decorre da rigidez constitucional. É a partir da existência de dois processos distintos de modificação normativa, um mais simples para as normas ordinárias, outro mais complexo para as normas constitucionais, que juridicamente pode-se afirmar a superioridade hierárquica destas normas sobre aquelas. Assim, a superioridade propriamente jurídica é a formal, e, daqui por diante, quando mencionarmos apenas supremacia, é a ela que estaremos nos reportando. Bem, deste caráter superior da Constituição é que decorre sua condição de ponto inicial do ordenamento jurídico do Estado e parâmetro de validade de todas suas leis, pontos que serão novamente enfatizados, respectivamente, CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 14 quando do estudo da teoria da recepção e do controle de constitucionalidade. 2) VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO A Constituição só produz efeitos jurídicos após sua entrada em vigor, o que pode ocorrer na própria data da publicação do seu ato de promulgação, como regra geral, ou após determinado período, determinado na própria Constituição, caso em que temos a denominada vacacio constitucionis, isto é, um período de tempo em que a Constituição, apesar de já publicada sua promulgação, ainda não produz efeitos jurídicos. Nossa atual Constituição Federal não adotou a vacacio constitutionis, nem trouxe qualquer previsão genérica, aplicável à totalidade de suas normas, acerca do início da sua vigência. Todavia, diversos dispositivos de seu texto, contidos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, estabeleceram prazos especiais para o início da sua entrada em vigor. Desse modo, temos que esses dispositivos, que trouxeram regramento específico acerca de sua vigência, adquiriram-na após transcorrido o prazo neles definido, e os demais dispositivos constitucionais, à falta de previsão genérica na Constituição sobre a matéria, entraram em vigor na data mesma da publicação do ato de promulgação de nossa Constituição. 3) APLICABILIDADE IMEDIATA DA NOVA CONSTITUIÇÃO Como já estudamos, a Constituição é produto do poder constituinte originário, um poder de cunho político não sujeito a quaisquer limitações. Essa inexistência de limites ao poder constituinte originário permite que sua obra, a Constituição, desconsidere totalmente os atos jurídicos praticados antes de seu advento, podendo incidir até mesmo sobre o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Desse modo, nada impede, ao contrário, tudo autoriza, que a Constituição retroaja, alcançando situações passadas, consolidadas sobre a égide da antiga Constituição. Antes de tratarmos propriamente da aplicabilidade de Constituição às situações passadas, vamos tratar dos diversos graus possíveis de retroatividade das normas jurídicas, apresentando os conceitos de irretroatividade, retroatividade mínima, retroatividade média e retroatividade máxima. Utilizaremos um exemplo para apresentar esses conceitos: João e Pedro celebram um contrato de aluguel em 1980, com vigência por 10 anos. João, o locatário, pagará a Pedro um aluguel mensal de R$ 500,00, e, em caso de atraso, multa de 20% do valor do aluguel e juros de 5% mensais. Em 1982, João atrasa por seis meses o aluguel, o que leva Pedro a cobrar judicialmente a dívida. Em 1987 transita em julgado a decisão judicial, determinando que João pague os seis aluguéis em atraso nos exatos termos definidos no contrato (não houve mais atrasos no pagamento durante todo o período de tramitação do processo). Prosseguindo a locação, João novamente deixa de efetuar o pagamento do aluguel, desta vez de agosto de 1988 a novembro de 1988. Pedro, frente a este novo atraso, obtém judicialmente o despejo de João e a rescisão do contrato de locação, em dezembro, mas, por incrível que pareça, em janeiro CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 15 de 1989 celebra um novo contrato, adivinhem com quem? Com o João. No meio de tudo isso, em outubro de 1988 entra em vigor a Lei “X”, determinando que a multa por atraso no pagamento do aluguel não pode superar 10%, e a taxa de juros máxima é 2% ao mês. Exposta a situação hipotética, vamos apresentar os conceitos de retroatividade mínima, média e máxima, bem como de irretroatividade. A irretroatividade ocorre quando a nova lei só alcança os atos jurídicos praticados após o início da sua vigência. A retroatividade mínima ocorre quando a nova lei alcança os efeitos futuros de atos jurídicos praticados no passado. A retroatividade média ocorre quando a nova lei alcança os efeitos pendentes de atos jurídicos praticados no passado. E a retroatividade máxima ocorre quando a nova lei alcança o próprio ato praticado no passado, e, conseqüentemente, todos os efeitos dele decorrentes, ainda que o ato esteja “protegido” pelo direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada. Apresentados os diversos graus de retroatividade, bem como a irretroatividade, vamos aplicar esses conceitos ao nosso exemplo. Nele, o ato jurídico é o contrato de locação, e os efeitos jurídicos que nos importas são as prestações devidas por João a Pedro pelo uso do imóvel. Se a Lei “X” for irretroativa, não tem qualquer aplicação com relação ao primeiro contrato de locação celebrado entre Pedro e João, incidindo apenas sobre o segundo contrato. Isso porque a lei irretroativa aplica-se somente a atos praticados após o início de sua vigência. Interessa, aqui, apenas a data do ato (no nosso exemplo, do contrato), não de seus efeitos (no nosso exemplo, as prestações, adimplidas ou não). Como o primeiro contrato foi celebrado antes e o segundo depois à sua entrada em vigor, a lei só aplica-se a este. Se a nova lei tiver retroatividade mínima, aplica-se aos aluguéis vencidos e não pagos a partir de outubro de 1988, relativos ao primeiro contrato de locação (quando ao segundo, aplica-se na íntegra, pois ele é posterior ao início da vigência da lei). Relembrando, a retroatividade mínima atinge os efeitos futurosde atos passados. No nosso caso, os efeitos futuros são as prestações por João a partir de outubro de 1988, e o fato passado é o contrato celebrado em 1980. Assim, se João eventualmente atrasar os pagamentos devidos em outubro e novembro de 1988, a taxa de juros e a multa serão determinadas pela Lei “X” (10% e 2%, respectivamente), e não pela lei anterior (20% e 5%, respectivamente). Prosseguindo, se a nova lei tiver retroatividade média, incide sobre os pagamentos em atraso desde agosto de 1988, pois a retroatividade média alcança os efeitos pendentes de atos jurídicos praticados no passado (bem como os efeitos futuros, que lhe são posteriores). No nosso exemplo, os efeitos pendentes são as prestações vencidas e não pagas de agosto e setembro de 1988. Não há dúvida, contudo, que a lei vai incidir também sobre as prestações vencidas e não pagas de outubro e novembro de 1988, pois, quando afirmamos que a retroatividade média aplica-se aos efeitos pendentes de atos jurídicos passados, não queremos dizer que ela se limita CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 16 a eles, mas sim que ela se aplica a partir deles. Desse modo, a retroatividade média vai atingir os efeitos pendentes e os efeitos futuros de atos jurídicos passados, bem como os atos jurídicos que lhe sejam posteriores. Em termos conceituais, contudo, deve-se adotar a definição antes apresentada (efeitos pendentes de atos jurídicos passados). Finalmente, se a nova lei tiver retroatividade máxima, vai se aplicar a todas as prestações vencidas e não pagas por João, mesmo aquelas relativas aos seis meses de 1982, cujo valor ficou determinado por decisão judicial transitada em julgado (coisa julgada). Isso se deve ao fato de que a retroatividade máxima abrange o próprio ato praticado no passado, e, por via de consequência, todos os efeitos dele oriundos, ainda que o próprio ato ou algum de seus efeitos estejam “protegidos” pelo direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada. No nosso exemplo, é como se o contrato fosse novamente redigido, à luz da nova lei, e esta nova redação se aplicasse desde 1980. Com a retroatividade máxima, todas as prestações vencidas e não pagas desde a celebração do contrato devem ser adaptadas aos novos dispositivos legais. Exposta matéria em termos conceituais, resta-nos agora considerá-la da perspectiva que nos importa, a constitucional. Em outras palavras, qual será a aplicabilidade da Constituição? Duas respostas são possíveis. A primeira, se houver norma expressa na Constituição tratando desta matéria, caso em que não há margem para dúvidas: como a norma é obra do poder constituinte originário, pode dispor sobre o assunto sem quaisquer limitações, adotando a irretroatividade ou uma das três graduações de retroatividade. A segunda, se não houver norma expressa no texto constitucional regulando genericamente a matéria, que é o caso da nossa Constituição vigente. Nessa situação, devemos acatar a posição pacífica do Supremo Tribunal Federal na matéria: a Constituição, salvo disposição expressa em sentido contrário, tem aplicabilidade imediata, alcançado inclusive os efeitos futuros de fatos passados. Possui, portanto, retroatividade mínima, salvo disposição específica em sentido diverso. Voltando novamente ao nosso exemplo, se substituirmos a Lei “X”, de outubro de 1988, pela Constituição Federal, cuja vigência se iniciou no mesmo período, temos que ela incide sobre as prestações futuras do primeiro contrato de aluguel, ou seja, as prestações devidas por João a partir de outubro de 1988. Os aluguéis em atraso a partir desse período, serão, portanto, acrescido de multa de 10% e juros de 2% a.m, desconsiderando-se os percentuais acordados quando da sua celebração em 1980. Bem, esta é a regra geral: a Constituição possui aplicabilidade imediata, retroatividade mínima, aplicando-se a todos os atos jurídicos que lhe são posteriores se aos efeitos futuros de atos passados. Contudo, esta regra geral pode ser excepcionada pela própria Constituição. E esta efetivamente, o faz, em alguns de seus dispositivos. A título ilustrativo, trazemos um dos seus dispositivos que possui regra especial de aplicabilidade, quebrando a regra geral da retroatividade mínima. Trata-se do art. 231, abaixo parcialmente transcrito: CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 17 Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. O § 6º do art. 231 contempla um caso de retroatividade máxima, desfazendo todos os atos cujo objeto seja a ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, exceto na hipótese que aponta. Reforçando a retroatividade máxima, a parte final do dispositivo é taxativa quanto à inexistência de direito à indenização, salvo quanto às benfeitorias decorrentes de ocupação de boa-fé. Pois bem, no que toca à Constituição Federal a matéria esta definida. Mas, e quanto às Constituições dos Estados, às Leis Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal e à legislação ordinária? O STF, analisando a matéria, asseverou que a retroatividade mínima aplica-se exclusivamente à Constituição Federal, não sendo válida para as Constituições Estaduais, sujeitas ao art. 5º, XXXVI da CF, que traz a regra da irretroatividade. Tal conclusão que pode ser ampliada para abranger as Leis Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal e a legislação ordinária. Temos então, que a Constituição Federal, e apenas ela, possui retroatividade mínima. As Constituições dos Estados e as Leis Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal são irretroativas. E, por fim, a legislação ordinária também é irretroativa, ressalvadas algumas hipóteses em que a Constituição admite a retroatividade, que analisaremos no capítulo referente aos direitos e garantias individuais e coletivos. 4) CONSTITUIÇÃO NOVA, CONSTITUIÇÃO ANTERIOR E LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL A Constituição, ao iniciar sua vigência, inaugura uma nova era jurídica. Por ocupar o ápice do ordenamento jurídico do Estado, por servir de parâmetro de validade de todas as demais normas dele integrantes, devemos analisar CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 18 as conseqüências de seu surgimento com relação à Constituição anterior, à legislação ordinária pretérita e à legislação ordinária futura. 4.1) Constituição nova X Constituição anterior Iniciada a vigência da nova Constituição, a anterior automática e imediatamenteperde sua eficácia. Apesar de ser comum a afirmação de que a nova Constituição revoga a anterior, tecnicamente esta não é a melhor forma de tratar a matéria, porque a revogação é fenômeno que ocorre dentro de um determinado ordenamento jurídico, por força da aplicação das regras nele vigentes, e a perda da eficácia da Constituição anterior se dá não pela aplicação de tais regras, mas por força da própria Constituição (a nova). Bem, de qualquer modo, os efeitos da nova Constituição sobre a anterior são absolutos: todos os dispositivos da Constituição antiga têm cessada sua eficácia. A nova Constituição derruba em bloco a anterior. Não há que se indagar sobre uma eventual compatibilidade material entre as disposições constitucionais antigas e as vigentes, se existem ou não existem normas da Constituição anterior em plena conformidade com as normas da nova Constituição. Nada disso é necessário, o que torna a matéria bem simples: vigente a nova Constituição, desaparece integralmente a anterior. Essa é a posição de nossa doutrina predominante, sendo adotada de forma pacífica pelo Supremo Tribunal Federal. É, portanto, a posição que devemos acatar. Há doutrinadores, entretanto, que defendem um entendimento diverso, admitindo a permanência de disposições da Constituição anterior sob a égide da Constituição nova. Esse entendimento fundamenta-se na teoria da desconstitucionalização, segundo a qual as normas da Constituição anterior que dispusessem sobre matérias não tratadas pela nova Constituição, não seriam por esta revogadas: perderiam seu status constitucional e adquiririam nova vigência, com as vestes de legislação ordinária. A Constituição vigente recepcionaria tais normas, retirando-lhes sua força constitucional e, assim, permitindo sua inserção no ordenamento jurídico na condição de normas ordinárias (passíveis, portanto, de alteração pela legislação ordinária). A este fenômeno simultâneo de recepção e de rebaixamento hierárquico das normas da Constituição anterior, compatíveis com a Constituição atual, denominou-se desconstitucionalização. Apesar de autores de renome, a exemplo de Maria Helena Diniz e José Afonso da Silva, inclinarem-se favoravelmente a essa teoria, ela não tem acolhida em nosso sistema constitucional, pois, como já afirmado, a posição da doutrina majoritária e do STF é pela substituição integral da Constituição pretérita. Faz-se apenas uma ressalva a essa negativa, admitindo-se a desconstitucionalização se houver norma na Constituição vigente que a autorize. Esse entendimento parte da compreensão de que não há continuidade entre a ordem constitucional anterior e a atual, mas uma ruptura, de forma que a Constituição atual derruba integralmente as disposições da Constituição antecedente, e assim inaugura uma ordem jurídica nova, que CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 19 tem em seu ápice apenas os preceitos nela dispostos, sem qualquer resquício do documento constitucional anterior. Pode ocorrer, contudo, que haja na Constituição em vigor expressa disposição no sentido de recepção das normas da Constituição passada, ou de algumas delas, na condição de normas ordinárias. É essa é a única hipótese em que nossa corrente majoritária admite a desconstitucionalização. 4.2) Constituição nova X legislação ordinária anterior A análise da compatibilidade ou incompatibilidade da legislação anterior com a nova Constituição é assunto abordado dentro da teoria da recepção. A entrada em vigor de uma Constituição inaugura uma ordem jurídica absolutamente nova. Desfazem-se todos os vínculos com a ordem anterior, e o sistema jurídico como um todo passa a ser analisado sob as luzes da nova Carta Constitucional. Isto não significa que a legislação infraconstitucional anterior à Constituição automaticamente desapareça com a sua entrada em vigor. Ela passará por uma análise, quanto à sua compatibilidade com a nova ordem constitucional: as normas com ela incompatíveis consideram-se revogadas pela nova Carta, cessando assim a sua eficácia; as normas compatíveis são recepcionadas pela nova Constituição. Embora seja comum a afirmação de que as normas anteriores à Constituição e a ela ajustadas teriam mantida sua eficácia, ou seja, permaneceriam produzindo seus efeitos jurídicos, na verdade tal entendimento não se afigura tecnicamente correto. A entrada em vigor da Constituição causa uma ruptura na ordem jurídica e, momentaneamente, paralisa a eficácia de toda a legislação ordinária então existente e elaborada com base na Constituição anterior. Ocorre que as normas compatíveis com a Constituição atual recebem dela, imediatamente, um novo suporte jurídico, e passam a compor o ordenamento a partir dos novos preceitos constitucionais. Portanto, a legislação infraconstitucional não permanece em vigor, ela perde momentaneamente seu suporte de validade, a Constituição anterior, e simultaneamente adquire um novo, a Constituição atual, se em conformidade com ela. Não há permanência de eficácia, mas aquisição de uma nova eficácia, com base no novo ordenamento constitucional. A este processo automático pelo qual a nova Constituição confere à legislação ordinária a ela anterior um novo suporte jurídico dá-se o nome de recepção, que nada mais é, deste modo, que um processo abreviado de criação de normas jurídicas. As normas que não estiverem em conformidade com a Constituição atual, diversamente, consideram-se por ela revogadas. A recepção é processo que deve ser analisado em dois planos: no primeiro, o formal, pertinente ao tipo de norma, à sua roupagem jurídica, a recepção é automática, sendo a norma imediatamente adaptada ao tipo normativo previsto na nova Constituição para a matéria por ela regulada, e passando a gozar do status jurídico próprio deste tipo normativo, sem que, entretanto, seja alterada a sua denominação. Pouco importa o CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 20 processo legislativo de produção da norma, se é idêntico, semelhante ou totalmente diverso do determinado pela Constituição atual. Da mesma forma, é irrelevante sua denominação formal (lei, decreto) ou mesmo se a espécie legislativa ainda é prevista pela atual Constituição. Por exemplo, um decreto-lei (espécie legislativa não prevista pela Constituição de 1988), datado de 1970, que trate da proteção ao trabalhador no caso de despedida arbitrária ou sem justa causa, se compatível com a Constituição será, no aspecto formal, por ela recepcionado com seu nome anterior – decreto-lei –, mas terá, a partir de seu recebimento, status jurídico de lei complementar, porque a Constituição de 1988, em seu art. 7o, I, exige norma deste tipo para regular a matéria. Até mesmo eventual modificação do ente político competente para a elaboração da norma é irrelevante para fins de recepção. Se a norma infraconstitucional foi editada pela União, porque assim o exigia a Constituição anterior, em função da matéria regulada, e a nova outorgou tal competência aos Estados, a norma será recepcionada como norma estadual, cabendo a cada Estado-membro, a partir daí, proceder às alterações que entender convenientes, ou mesmo revogar por inteiro a norma recepcionada. Enfim, como há pouco afirmamos, no plano formal nada há a ser questionado, ocorrendo a recepção de forma automática. Já no plano material, com relação ao assunto regulado na norma, poderá ou não ser ela recepcionada, de acordo com o tratamento dado ao tema pela Constituição em vigor. Se compatíveis os preceitos constitucionais com a norma anterior, será ela recepcionada; do contrário, será tida por revogada. A seguir, listamos por tópicosmais algumas considerações sobre a matéria: 1o) a conclusão sobre a recepção de determinada norma (lei, decreto-lei ou outra espécie normativa) leva em consideração tão somente a matéria da norma e o modo como ela foi tratada. A denominação e o status jurídico da norma são irrelevantes; 2o) A recepção independe de qualquer previsão expressa na Constituição, e se dá no exato instante em que a nova Constituição entra em vigor, mesmo que se chegue a tal constatação em momento posterior. Dessa forma, decisão judicial que reconheça a recepção de norma anterior à Constituição é declaratória, retroagindo seus efeitos à data do início da vigência da Carta. O mesmo pode ser dito quanto à revogação, por incompatibilidade material, e eventual decisão judicial que a proclame; 3o) se a norma for recepcionada, sua denominação não sofrerá qualquer transformação, permanecendo ela com seu nome, número e data originais. Sua condição jurídica é que pode ser modificada, conforme estabeleça a Constituição para a matéria nela disciplinada. Por exemplo, o “Decreto-lei no 542, de 10/11/1973”, se recepcionado, o será com essa mesma denominação, mas adquirirá a condição jurídica prevista na Constituição para a matéria sobre a qual verse, ou seja, terá o status jurídico da espécie legislativa prevista para regular a matéria no texto constitucional atual (lei ordinária, lei complementar, resolução etc.), a qual deverá necessariamente ser observada quando do momento da alteração do decreto-lei; CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 21 4º) não devemos considerar que uma norma só admite recepção ou revogação total. É perfeitamente possível que, digamos, uma lei ordinária com 50 artigos tenha 30 deles considerados materialmente compatíveis com a Constituição, sendo os restantes tidos por incompatíveis. Nesse caso, a lei ordinária será parcialmente recepcionada pela Constituição, no que toca aos 30 primeiros artigos. Na verdade, um mesmo artigo poderá ser apenas parcialmente recepcionado, quando somente parcela de suas disposições estiver em conformidade com a nova Constituição; 5º) é possível também que os dispositivos de uma lei sejam recepcionados com status jurídico diverso. Utilizando o exemplo anterior, digamos que, dos 30 artigos da lei recepcionados, 10 artigos tratassem de normas gerais de direito tributário, 10 artigos tratassem do procedimento para a desapropriação por interesse social, e 10 artigos tratassem do regimento interno da Câmara dos Deputados. Pela Constituição atual, normas gerais de direito tributário é matéria reservada à lei complementar; desapropriação por interesse social é assunto a ser regulado por lei ordinária; e regras sobre o regimento interno da Câmara dos Deputados é assunto de trato exclusivo por resolução. Logo, será este o novo status jurídico de cada grupo de artigos recepcionados. Eles formalmente continuarão integrando a lei ordinária, mas seu status é definido pelo assunto específico que disciplinam; 6o) os raciocínios aqui expostos aplicam-se não só ao texto original da Constituição, mas também a emendas posteriores que venham a alterá-lo. Desse modo, promulgada uma emenda à Constituição, as normas ordinárias anteriores, se com ela compatíveis devem ser tidas por ela recepcionadas, e, se incompatíveis, revogadas, sendo ambos os juízos válidos a partir do exato instante em que a emenda à Constituição entra em vigor. Da mesma forma, se a emenda passou a exigir lei complementar para regular certa matéria, até então disciplinada por lei ordinária, permanecendo esta em conformidade material com a emenda, passará à condição jurídica de lei complementar. Se a modificação for em sentido contrário, com a emenda passando a admitir regramento por lei ordinária de matéria para a qual até então a Constituição exigia lei complementar, esta lei complementar, se materialmente compatível com a emenda, é recebida com seu novo status de lei ordinária; 7º) a recepção, parcial ou total, não significa que a norma permaneça vigente. Ela adquirirá uma nova vigência, agora sob a égide da Constituição em vigor e por força desta; 8º) por fim, o fenômeno da recepção ou da revogação pressupõe normas que estejam vigentes no momento da entrada em vigor da Constituição. Se a norma não é mais vigente não cabe se falar em recepção ou revogação. No final deste tópico voltaremos ao assunto. Acima declaramos que as normas anteriores materialmente incompatíveis com a Constituição nova consideram-se por esta revogadas. Este entendimento, todavia, não é pacífico. Há doutrinadores que consideram a revogação um fenômeno possível de ocorrer somente entre normas de mesma natureza e hierarquia. Assim, a revogação de uma lei ordinária só poderia se dar por outra lei ordinária, a de uma lei complementar apenas por outra lei complementar, e assim por diante. Diante de tal entendimento, CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 22 não poderia a Constituição revogar a legislação ordinária anterior, pois é diverso o nível hierárquico desses diplomas jurídicos. Para explicar esta perda de eficácia da legislação ordinária anterior à Constituição, em função da desconformidade material, tais autores construíram a teoria da inconstitucionalidade superveniente. A situação, então, seria a seguinte: a norma ordinária, no momento de sua produção, estava em plena conformidade, formal e material, com a Constituição então em vigor. Ocorre que a nova Constituição deu tratamento diverso à matéria objeto da norma ordinária, e este novo tratamento é incompatível com suas disposições. A norma ordinária, compatível formal e materialmente com a antiga Constituição, é incompatível materialmente com a nova Constituição, em função do novo regramento por esta conferido à matéria. Devemos notar que a análise da consonância da norma ordinária anterior com a nova Constituição limita-se ao plano material, pois, como já ressaltado, quanto à forma a recepção é automática. Bem, esta situação, em que o conteúdo da norma infraconstitucional pretérita não é comportado pela nova Constituição, corresponde, segundo este entendimento doutrinário, à figura de inconstitucionalidade superveniente. O Supremo Tribunal Federal, frente às duas correntes - a da revogação e a da inconstitucionalidade superveniente –, posicionou-se a favor da primeira, declarando, de forma peremptória, que uma norma ordinária cujo conteúdo é incompatível com uma Constituição que a precede deve-se considerar por esta revogada. Segundo a Corte, a análise da constitucionalidade de uma norma só pode ser feito tendo por parâmetro a Constituição então em vigor no momento de sua publicação. André Ramos Tavares, por sua vez, entende que, como a compatibilidade acarreta a recepção, e este é um processo de criação de normas, a incompatibilidade causa o desaparecimento da norma, situando a questão, portanto no plano da existência. Para ele, portanto, não é nem inconstitucionalidade superveniente nem revogação, trata-se de não- existência da norma. Apesar do brilhantismo com que o Autor defende seu posicionamento, não devemos considerá-lo para efeitos de concurso (salvo naquelas questões que começam por “há entendimento doutrinário...”, que estão sempre certas, já que há “entendimento doutrinário” para tudo). Outro ponto deve ser aqui comentado. Partimos do pressuposto, até este momento, que a legislação infraconstitucional encontrava-se vigente no momento em que a Constituição também entrou em vigor. Mas, e que à legislação infraconstitucional que não mais vigorava neste instante? A Constituição algum efeito tem sobre ela, no caso de haver compatibilidade entreseus dispositivos? Imaginemos duas leis, a primeira, tratando da legislação tributária, foi revogada em 1985; a segunda, que trazia regras sobre a ordem econômica, foi declarada inconstitucional, por desconformidade para com a Constituição anterior, em 1986. Pois bem, entra em vigor a atual Constituição, como fica a situação destas leis perante ela? Não podemos aqui raciocinar em termos de recepção ou não recepção, pois tal fenômeno pressupõe lei em vigor, o que não ocorre nesse caso. O caso CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 23 aqui é de repristinação ou não da legislação não mais vigente, entendo-se repristinação como um fenômeno pelo qual a Constituição restitui a vigência destas leis. A doutrina predominante, frente a uma situação como essa, entende que não existe a figura da repristinação tácita, ou seja, a promulgação da Constituição nova não implica, por si só, a restauração da vigência da legislação não mais vigente. Por outro lado, nada impede que a nova Constituição traga dispositivo expresso determinando a repristinação de algumas destas leis ordinárias, não mais vigentes, caso em que elas teriam restituída sua vigência pela Constituição. Enfim, a doutrina majoritária não admita a repristinação tácita (quando a Constituição não traz comando nenhum sobre a matéria), mas admite a repristinação expressa (quando a Constituição traz norma determinando o restabelecimento da vigência). Apenas para não deixar dúvidas, vamos voltar ao nosso exemplo, complementando-o. A primeira lei, que traz regras sobre legislação tributária, foi revogada em 1985, por outra lei que trata da mesma matéria. E se esta segunda lei não foi recepcionada pela Constituição? Será que nem neste caso poderíamos ter a repristinação tácita da lei anterior (a expressa sempre é possível, repita-se)? A resposta é simples: não. Mesmo que eventualmente fique um vazio normativo quanto à matéria, o reconhecimento da não-recepção da lei revogadora não traz como decorrência automática a restituição da vigência da lei revogada. Aplicam-se aqui as mesmas conclusões anotadas acima: é admissível somente a repristinação expressa, não a repristinação tácita. Outra questão: e se é retirada da Constituição a norma-parâmetro que implicou a revogação da norma anterior, pode-se entender que a norma anterior pode, agora, ser recepcionada? Simples: não, o juízo de revogação por não recepção é definitivo. Uma última questão: e se, na data de entrada em vigor da nova Constituição, há leis que apesar de já existirem, não estão ainda em vigor, seja por não ter ocorrido sua promulgação e publicação, seja por a lei estar dentro do seu período de vacatio legis? A questão não é pacífica na doutrina, mas, em nosso entender, a questão não se afasta das conclusões até aqui propostas: como se trata de lei não vigente, sua admissão pela Constituição atual depende de previsão expressa. André Ramos Tavares, enfrentando o tema, no primeiro caso traz lição de Jorge Miranda, segundo a qual tal norma deve ser avaliada pelo órgão competente, e conforme o resultado da avaliação, publicada ou não publicada. No segundo caso, traz lição de Elival da Silva Ramos, que entende que a norma tem sua entrada em vigor impedida pela nova Constituição. 4.3) Constituição nova X legislação infraconstitucional superveniente Essa matéria será analisada quando estudarmos o controle de constitucionalidade. Apenas apresentaremos neste tópico um ou dois conceitos elementares, para estabelecermos a diferença básica desta hipótese com as hipóteses de recepção, revogação e repristinação. CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 24 Exige-se mais da legislação superveniente à Constituição nova, comparativamente à legislação anterior. Enquanto desta exige-se somente conformidade material, daquela exige-se adequação formal e material, ou seja, a legislação posterior à Constituição, para ser válida, tem que adequar-se tanto material quanto formalmente à Constituição. Se houver tal adequação, a legislação superveniente é constitucional, se não houver, será declarada inconstitucional. A matéria é simples assim. Sintetizando as diferenças básicas deste tópico com o anterior, temos que: 1º) a análise da conformidade da legislação anterior à Constituição, em vigor no momento da sua promulgação, restringe-se aos aspectos materiais, relativos ao conteúdo da norma, e o resultado é pela sua recepção ou pela sua revogação; 2º) não cabe se falar em análise de compatibilidade da legislação anterior não vigente com a nova Constituição. Em primeiro, porque não se admite a repristinação tácita, de modo que a legislação “morta” não será ressuscitada só pelo fato da nova Constituição ter entrado em vigor (nesse caso, evidentemente não há análise de coisa alguma). Em segundo, porque se houver a repristinação, ela decorrerá de comando expresso da nova Constituição. Tal comando, por si só, restabelece a vigência da legislação anterior, sem necessidade de qualquer análise de compatibilidade material ou formal, ou melhor dizendo, sem possibilidade de tal análise, porque no Brasil não se admite a declaração de inconstitucionalidade das normas estabelecidas pelo constituinte originário. Só haverá tal análise no caso de uma repristinação determinada por emenda à Constituição; 3º) já a legislação posterior à nova Constituição deve apresentar-se com ela compatível sob os aspectos material e formal. Se o resultado for positivo, a legislação é constitucional, se negativo, inconstitucional. CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 25 QUESTÕES DE PROVAS ANTERIORES – PARTE I 1 (CESPE/Analista Legislativo – Câmara dos Deputados/2002) - O poder constituinte originário se estabelece em poder jurídico, figurado em um complexo de fatos e valores, e obriga a nação à subjetividade da soberania nacional. 2 (CESPE/Analista Legislativo – Câmara dos Deputados/2002) - Historicamente, o poder constituinte constituído está ligado a períodos políticos, econômicos e sociais de relativa normalidade. (CESPE/Analista Legislativo – Câmara dos Deputados/2002) - Ainda com referência ao poder constituinte e suas limitações, julgue os itens seguintes. 3 A situação de crise constitucional não apresenta perigo para a vida das instituições, mas se recomenda uma nova constituinte caso o problema político que lhe deu causa não seja meramente pontual. 4 O poder de reforma constitucional é de natureza política e é exercido pelo poder constituinte constituído. 5 (CESPE/Analista Legislativo – Câmara dos Deputados/2002) - Uma emenda constitucional que proponha a mudança do quorum de votação de emenda à Constituição não se pode realizar em virtude de cláusula pétrea implícita. 6 (CESPE/Analista Legislativo – Câmara dos Deputados/2002) - Considere a seguinte a situação hipotética. Um deputado apresentou emenda rejeitada na mesma sessão legislativa, sendo que a deliberação da matéria ocorreu em virtude de versar sobre direitos e garantias individuais. Nessa situação, o procedimento se deu conforme o processo legislativo previsto no direito constitucional brasileiro. 7 (CESPE/Consultor Legislativo – Senado/2002) - O povo brasileiro foi o titular do poder constituinte originário com base no qual se elaborou a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pois foi o voto popular, mediante sufrágio universal, que elegeu a Assembléia Nacional Constituinte que elaborou esse diploma
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