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Página �1 RESUMO SCRI 2 ______________________________________________________________________________ RELAÇÕES ENTRE A SOCIEDADE CIVIL, O GOVERNO E O BANCO MUNDIAL NO BRASIL Visão que a Sociedade Civil tem do Banco Mundial O banco mundial fez varias reuniões de consulta com representantes da Sociedade Civil com o objetivo de: fornecer às organizações da sociedade civil sobre o Banco e suas operações no Brasil; ouvir as percepções e opiniões da sociedade civil sobre o Banco; consulta-las sobre como melhorar o dialogo e permitir uma maior colaboração entre o governo, a sociedade civil e o Banco. Comentários dos participantes Os representantes da sociedade civil julgou que o Banco parece adotar uma postura econômica e tecnocrática em relação ao desenvolvimento, ignorando os aspectos sociais e institucionais; que o banco deveria ter uma abordagem mais integrada em relação ao desenvolvimento humano; afirmaram que é preciso que o banco trate das causas da pobreza e não apenas das consequências; o Banco deve coordenar seus esforços de maneira mais eficiente com outras agencias de cooperação internacional governamentais. O banco não é não acessível à sociedade civil como as políticas de participação e divulgação de informação levam a crer. O governo é o elo que falta nas reuniões. As OSCs, em geral, não são convidadas para participar durante as etapas de desenho e planejamento dos projetos, mas somente quando os projetos financiados pelo Banco experimentam problemas e a participação da sociedade civil é vista como necessária. A maior parte dos representantes das OSCs tinha apenas um conhecimento limitado sobre o Banco Mundial. Os participantes tinham, na melhor das hipóteses, informações gerais sobre um determinado projeto do Banco no Brasil, mas praticamente nenhum conhecimento sobre o Banco em Washington e sobre o seu funcionamento. A percepção geral dos participantes sobre o Banco tendeu a ser negativa, principalmente pela falta de dialogo. Percepções mutuas equivocadas Ambos acham que o outro tem alto grau de poder, e que são arrogantes e incompetentes. Os dois lados tendem a questionar a legitimidade do outro enquanto interlocutor, questionando seus motivos e comportamentos. RELAÇÕES ENTRE A SOCIEDADE CIVIL, O GOVERNO E O BANCO MUNDIAL NO BRASIL 1 O PODER DA IDENTIDADE 5 Migrações 10 Cidades Rebeldes 12 ECOLOGIA GLOBAL CONTRA DIVERSIDADE CULTURAL? CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E POVOS INDÍGENAS NO BRASIL 15 Página �2 Características comuns Os dois são agentes modernizantes em um contexto mundial de mudanças dramáticas. Apresentam o crescimento e a importância dos elos transnacionais. É comum as OSCs estarem mais alinhadas com as políticas do Banco em áreas como gênero, meio ambiente e participação da sociedade civil, do que com as políticas dos governos estaduais ou federal. Tanto as organizações da sociedade civil como o Banco Mundial defendem a reestruturação do Estado e o fortalecimento do papel da sociedade civil, para que se promova o accountability, transparência e democracia participativa. Os dois defendem uma agenda comum ampla que é a de reformar o Estado, tornando-o mais responsável, enxuto e eficaz na prestação de serviços públicos. Além disso, compartilham os mesmos ideais de desenvolvimento humano e sustentabilidade ambiental. Quando um diálogo produtivo ocorre, os três lados (Governo, Sociedade Civil, Banco) tendem a verificar que existem mais pontos e interesses em comum do que inicialmente imaginavam. Políticas de participação do Banco Mundial O Banco Mundial tem adotado medidas específicas para intensificar as relações com a sociedade civil no mundo todo, adotando políticas e programas mais participativos. Estas medidas têm incluído a promoção de reuniões de consulta entre representantes do Banco e da sociedade civil, a realização de estudos e a adoção de diretrizes operacionais para incentivar o maior envolvimento com as Oscs a nível dos projetos. A política de participação da sociedade civil é um conceito que realmente está sendo enfatizado no Banco Mundial. Diversos estudos do Banco sobre participação demonstraram que existe evidência empírica cada vez maior de que as estratégias de participação efetiva realmente contribuem para melhorar o desempenho dos programas e projetos de desenvolvimento. Outro aspecto importante que a experiência em vários projetos financiados pelo Banco no Brasil tem demonstrado é que a participação pode trazer benefícios para os diversos atores de formas diferenciadas, porém mutuamente benéficas. Os custos financeiros e de tempo que a participação acarreta ainda não foram devidamente quantificados. A efetiva participação da sociedade civil pode implicar em custos como, por exemplo, tradução e distribuição de documentos do Banco/Governo; organização de reuniões de consulta comunitárias; realização de pesquisas e diagnósticos comunitários; acompanhamento de missões de avaliação por representantes de OSCs; e financiamento da participação das OSCs no processo de monitoramento. Estes custos, em geral, não são previstos nos orçamentos de supervisão de projeto e, consequentemente, não são incluídos em orçamentos de preparação e supervisão. Reconhecendo que a informação é um fator preponderante para qualquer estratégia de participação bem sucedida, o Banco começou a adotar medidas específicas visando aprimorar sua política de informação. Em janeiro de 1994, o Banco adotou uma nova política sobre a divulgação pública de informações, detalhando quais documentos seriam públicos e que procedimentos deveriam ser seguidos para obtê-los. Além de oferecer às OSCs materiais gerais sobre o Banco e documentos específicos sobre projetos, como o documento de informação de projeto (PID) e o documento de avaliação de projeto (PAD), o escritório do Brasil também conseguiu aprimorar ainda mais as políticas de divulgação de informação em alguns casos. Banco também adotou medidas para revisar as suas políticas em relação à Estratégia de Assistência ao País (CAS). O estudo constatou que um CAS participativo “contribui para que o governo dê mais ênfase à sua pauta de desenvolvimento ou para que se chegasse a um consenso em torno de uma estratégia de governo”. Como conseqüência destas constatações, a Diretoria Executiva do Banco adotou uma nova política de CAS, em setembro de 1998, que incentiva uma maior divulgação do CAS através da introdução de um documento de informação pública do CAS (um resumo de duas páginas com os principais elementos do documento de estratégia) e de procedimentos para a divulgação pública do CAS, caso o governo local requisite tal ação. Página �3 Diálogo Tripartite Embora o diálogo e o contato formal entre Banco e OSCs esteja apenas começando no Brasil, as relações entre os dois vêm evoluindo há algum tempo em nível global. Um exemplo final de um processo de consulta envolveu a revisão de diversas diretrizes operacionais do Banco. Os ODs em diversas áreas importantes como assuntos indígenas, assentamentos involuntários e manejo florestal estão sendo convertidos em Políticas Operacionais (OPs), Procedimentos do Banco (BPs) e Boas Práticas (GPs). Evolução das Relações e Colaboração Institucional Embora possa parecer improvável, dada a tradicional relação antagônica entre as OSCs, o Governo e o Banco, tantas vezes caracterizada por mal entendidos e recriminações, na realidade os contatose as relações entre os dois lados são consideráveis. No Brasil, o nível crescente de interação e colaboração entre governo e OSCs assumiu diversas formas e inclui os conselhos de políticas públicas, composto por representantes do governo e sociedade civil, processos orçamentários participativos e mecanismos de consulta para projetos. Outro mecanismo de participação dos cidadãos, mencionado nos estudos do Banco, é a experiência do orçamento participativo que está sendo implementada em alguns municípios no Brasil. Outra tendência recente no quadro das parcerias intersetoriais no Brasil vem ocorrendo também entre organizações da sociedade civil e setor privado. Existem vários exemplos de colaboração entre eles que demonstram os benefícios potenciais que tal cooperação pode trazer em termos de mobilização de recursos, inovação de políticas e resultados operacionais. Como a Fundação ABRINQ, portosol, movimento viva rio. Financiamento das OSCs As relações entre as OSCs, o Governo e o Banco têm evoluído a tal ponto que milhares de OSCs atualmente recebem financiamento destes últimos. Embora a maior parte do financiamento seja de forma indireta, o Banco mantém diversos mecanismos para financiar OSCs diretamente. Em termos de financiamento indireto através do governo brasileiro, o Banco Mundial financia atualmente milhares de OSCs em todo o Brasil através dos fundos para pequenos projetos, que estão embutidos em diversos grandes empréstimos governamentais em andamento. Embora ainda seja muito cedo para avaliar os impactos e resultados desses fundos, já que a maioria foi criada há pouco tempo, a análise preliminar é bastante positiva. Vantagens e desvantagens da colaboração tripartite Desvantagens Mesmo considerando o importante avanço que houve na colaboração entre o governo, a sociedade civil e o Banco, alguns analistas e profissionais dos três setores acreditam que o fenômeno crescente das relações tripartites pode ter ido longe demais ou ter gerado diversos problemas ainda sem solução. Algumas autoridades do governo questionam a legitimidade do fenômeno do “conselhismo”, em que representantes das OSCs com uma representatividade auto- outorgada têm o mesmo poder de voto que um representante eleito. Eles acreditam que as OSCs devam ter uma presença em tais conselhos mas que esta deveria ser de natureza consultiva para não diluir o poder legítimo dos representantes eleitos. No outro extremo do espectro político, analistas salientam o perigo da “participação constrangida”, em que conselhos instituídos por exigência de projetos são vistos como uma camisa de força ou um organismo de fachada, e não como mecanismos efetivos e espontâneos de participação. Nestas situações, os conselhos simplesmente servem para legitimizar interesses das autoridades governamentais ou para apoiar decisões previamente tomadas pelo governo local. Página �4 Os críticos também ressaltam que as OSCs nunca foram eleitas e, conseqüentemente, nunca receberam uma representatividade legal nem o direito de falar em nome de quem quer que seja. É verdade que as OSCs não foram eleitas, mas o que esta visão ignora é que as OSCs, em parte, ganham sua legitimidade política não a partir de um crivo eleitoral ou de oficialmente representar cidadãos, mas sim por defenderem princípios universais mais amplos. Estes princípios incluem os direitos humanos, igualdade de gênero e proteção ambiental. A legitimidade das OSCs também é conseqüência do sucesso de suas ações em nível local, que cada vez mais lhes confere reconhecimento como importantes atores do processo de desenvolvimento. É importante ressaltar que a influência crescente das OSCs e suas relações mais estreitas com o governo também são questionadas por muitos dentro da própria sociedade civil. Não apenas muitas OSCs continuam a nutrir a velha suspeita em relação aos seus interlocutores do governo, desconfiadas que eles tentarão controlá-las ou cooptá-las, mas muitas outras mantém restrições conceituais quanto a trabalhar próximas ao governo ou até diante da idéia de ampliar suas operações. Muitos líderes de OSCs, assim como estudiosos do meio acadêmico, acreditam que as OSCs não deveriam tentar substituir o papel do Estado na provisão de serviços, já que estas são responsabilidades do governo, consagradas na Constituição Brasileira. Além disso, eles acreditam que um papel mais amplo das OSCs na sociedade faz parte da chamada estratégia neoliberal, que visa reduzir o porte e a influência do Estado. Às vezes o papel do Banco Mundial também é questionado, principalmente quando este se encontra, muitas vezes contra sua própria vontade, na posição de intermediário entre o governo e a sociedade civil. Para o Banco Mundial, a posição ideal é atuar como um catalisador do processo incentivando o governo, quando necessário, a ser mais aberto às solicitações das OSCs por mais informações e/ou participação. O estudo do OED constatou que o Banco tem vantagens comparativas para realizar o papel de catalisador e que já evolui neste sentido. Vantagens Apesar da contradições e problemas que caracterizam a colaboração Governo- OSCs- Banco, as evidências sugerem de forma cada vez mais clara que as vantagens desta crescente sinergia institucional são muitas e mutuamente benéficas. Os benefícios são mútuos já que cada ator (Governo - Sociedade Civil - Banco) tem experiências e conhecimentos diferentes, porém complementares. Em termos de papéis institucionais, enquanto as organizações da sociedade civil trazem a legitimidade e a representação da sociedade civil para a mesa de negociações, o Governo e o Banco contribuem com o peso e os recursos do setor oficial. Se as OSCs são incorporadas ao processo de uma forma construtiva, elas poderão tornar-se parceiras efetivas nas tarefas de monitoramento, provisão de assistência técnica e execução de projetos. Mesmo que as OSCs não estejam diretamente envolvidas nos assuntos relativos ao projeto, são formadoras de opinião importantes na sociedade e podem ajudar a mobilizar o interesse da sociedade civil em torno do projeto, assim como divulgar informações úteis sobre o mesmo a grupos de beneficiários. . Outra lição sobre as parcerias parece ser que os funcionários do Banco e das OSCs têm melhores chances de conseguir uma colaboração mais construtiva e substantiva quando se debruçam sobre programas ou projetos específicos, em vez de ficarem enfocados apenas em questões políticas e conceituais mais amplas. Página �5 O PODER DA IDENTIDADE Globalização, informacionalização e movimentos sociais A globalização e a informacionalização, determinadas pelas redes de riqueza, tecnologia e poder estão transformando nosso mundo, possibilitando a melhoria de nossa capacidade produtiva, criatividade cultural e potencial de comunicação. Ao mesmo tempo, estão privando as sociedades de direitos políticos e privilégios. Esse texto traça um paralelo entre três movimentos que se opõem explicitamente à nova ordem mundial dos anos 90, nascido a partir de contextos culturais, econômicos e institucionais extremamente diferentes, e veiculados por ideologias profundamente contrastantes. Movimentos sociais devem ser entendidos em seus próprios termos. Suas praticas são sua autodefinição. Nessa analise, o autor caracteriza cada movimento, nos termos de sua própria dinâmica especifica, e sua interação com os processos mais amplos que sustentam sua existência e se modificam justamente em função dessa existência. Os movimentos sociais podem ser conservadores, revolucionários, ambos, ou nenhuma delas. Não existe uma direção predeterminada no fenômeno da evolução social, o único sentido da historia é a historia que nos faz sentido. Os movimento sociais são sintomas de nossas sociedades e causam impacto nas estruturas sociais, em diferentes graus de intensidade e resultados distintos quedevem ser determinados por meio de pesquisas. Os três movimentos selecionados têm objetivos, identidades, ideologias e meios de se relacionar com a sociedade extremamente distintos. Como ponto comum eles têm a oposição declarada à nova ordem global, o adversário identificado em seu discurso e em suas praticas. Os zapatistas do México: o primeiro movimento de guerrilha informacional Quando o NAFTA entrou em vigor, os integrantes do exercito Zapatista da libertação nacional, levemente armados, assumiram o controle das principais cidades adjacentes à floresta de Lacandon. A maioria dos integrantes era de índios oriundos de diversos grupos étnicos, embora houvesse também mestiços, e alguns de seus lideres, eram intelectuais de origem urbana. Os lideres cobriam o rosto com mascaras de esquiadores. Em confronto com o Exército Mexicano, a guerrilha fez uma retirado para o meio da floresta tropical. O impacto do levante, bem como a simpatia generalizada pela causa zapatista, convenceram o Presidente do México a negociar. Foi assinado um acordo pelo qual se estabeleceu o cessar-fogo, forma libertados os prisioneiros de ambos os lados, e deu-se inicio a um processo de negociação voltado a uma discussão mais ampla sobre reforma política, direitos do indígenas e reivindicação sociais. Quem são os zapatistas? Eram basicamente camponeses, a maioria índios oriundos das comunidades estabelecidas na floresta tropical de Lacandon, na fronteira com a Guatemala. Essas comunidades foram criadas com o apoio do governo na tentativa de solucionar a crise social causada pelo expulsão dos camponeses sem terra que trabalhavam para os proprietários de terra. Em 1972, o Presidente decidiu criar a biorreserva de Montes Azul e devolver a maior parte das terras cobertas por florestas a famílias da tribo originalmente estabelecida em Lacandon. A maioria dos colonos recusou-se à realocação, o que serviu de estopim para uma luta de vinte anos pelo seu direito à terra, ainda em curso quando Salinas assumiu a presidência em 1988. Em 1922, os direitos legais das comunidades indígenas foi abolido por decreto, com o pretexto da Rio +20 e a necessidade de preservar as florestas tropicais. O golpe de misericórdia desferido contra a frágil economia das comunidades camponesas veio quando as políticas de liberalização da economia mexicana, durante a preparação para ingresso no NAFTA, aboliram as barreiras alfandegárias sobre a importação do milho e acabaram com o protecionismo dos preços do café, assim, a economia local foi desmantelada. Além disso, o destino das terras comunicarias tornou-se incerto após as reformas em prol da comercialização em larga escala da propriedade individual, outra decisão diretamente Página �6 relacionada à medidas de ajuste do México à privatização de acordo com as disposições do NAFTA. Em 1992/93, os camponeses se mobilizaram pacificamente contra essas políticas, Porém, após sua grande marcha ter sido ignorada, resolveram mudar sua tática radicalmente. Os padres, simpáticos a causa zapatista de libertação, deram apoio e legitimidade às reivindicações dos índios, além de ajudarem a reunir militantes de sindicato formados por camponeses. Apesar disso, a igreja se opôs com veemência ao conflito armado e não estava entre os insurrectos. Em 1992, quando as promessas de reforma continuaram sendo apenas promessas, e quando a situação de penúria das comunidade agravou-se ainda mais em ração do processo de modernização econômica, que os militantes zapatistas montaram sua própria estrutura e deram inicio aos preparativos para a guerra de guerrilha. Em maio de 1993, articularam-se as primeiras escaramuças contra o exercito, mas o governo mexicano abafou para evitar problemas com a ratificação do NAFTA pelo congresso norte-americano. O processo de deliberação, bem como a negociação com o governo, consistia de etapas bem demoradas, contando com a participação efetiva das comunidades, toda a comunidade tinha de acatar as decisões. A estrutura de valores dos zapatistas: identidade, adversários e objetivos Eles vêem o NAFTA e as reformas liberalizantes implantadas por Salinas, que fracassaram na tentativa de incluir camponeses e indígenas no processo de modernização, como reencarnação da opressão sob a forma da nova ordem global. Os zapatistas lutam contra as consequências excludentes da modernização econômica, e também opõem-se à ideia de inevitabilidade de uma nova ordem geopolítica sob a qual o capitalismo torna-se universalmente aceito. A nova identidade indígena foi construída por meio de sua luta e acabou incluindo diversos grupos étnicos; o elemento comum “é a terra que nos deu a vida e a vontade de lutar”. Os zapatista são rebeldes, patriotas e democratas, reivindicando o fim do unipartidarismo. A estratégia de comunicação dos zapatistas: a internet e a mídia O sucesso dos zapatistas deveu-se grande parte à sua estratégia de comunicação, a tal ponto que eles podem ser considerados o primeiro movimento de guerrilha informacional. Eles fizeram uso das armas para transmitir sua mensagem, e então divulgaram à mídia mundial a possibilidades de serem sacrificados no intuito de forças uma negociação e adiantar uma serie de reivindicações bastante razoáveis que tiveram grande apoio da sociedade mexicana em geral. Eles fora protegidos da repressão absoluta por sua inabalável conexão com a mídia, bem como pelas alianças estabelecidas em todo o mundo via Internet, forçando o governo a negociar e, levando ao conhecimento da opinião publica mundial a questão da exclusão social e da corrupção política. A relação contraditória entre movimento social e instituição política Se por um lado os zapatistas defenderam a democratização do sistema político, reiterando reivindicações semelhantes oriundas da sociedade mexicana como um todo, por outro, jamais foram capazes de definir com exatidão o significado de seu projeto político, o que implicaria atribuir-lhe outro significado que não a obvia condenação da fraude eleitoral. A revolta por eles organizada definitivamente mudou o México, impondo um desafio à lógica unilateral da modernização, característica da nova ordem global. Atuando sobre as profundas contradições existentes no Partido mexicano entre os defensores da modernização e os interesses de um aparato politico corrupto do partido, o debate desencadeado pelos zapatistas contribuiu consideravelmente para romper a hegemonia do PRI (Partido mexicano). Excluídos dos processos de modernização, os camponeses indígenas passaram a existir, e com isso, os serviços de saúde e educação melhoraram em diversas dessas comunidades, e um governo autónomo limitado estava em processo de implantação. Página �7 A afirmação da identidade cultural indígena esteve vinculada à sua revolta contra abusos vergonhosos. Contudo, sua luta por dignidade foi amparada pela filiação religiosa expressa na corrente do catolicismo populista. Às armas contra a nova ordem mundial: a Milícia Norte-Americana e o Movimento Patriótico dos anos 90 As milícias não são grupos terroristas. Esse grupo é constituído de facções autónomas e clandestinas que estabelecem suas próprias metas de acordo com as visões predominantes no movimento. As milícias representam a ala mais ativa e organizada de um movimento mais amplo, o Movimento Patriótico, cujo universo ideológica compreende grupos tradicionais supremacistas brancos, neonazista e anti-semitas; grupos religiosos fanático, uma seita anti-semita; grupos opositores ao governo federal. As milícias tinham em comum o governo federal dos EUA como inimigo declarado, por ser representante da nova ordem mundial. Essa nova ordem mundial, tendo por principal objetivo a destruição da soberania norte-americana, vem sendo constituída a partir de uma conspiração de interesses financeiros globais e de burocratas internacionaisque passaram a exercer controle sobre o governo federal dos EUA. No coração de todo o sistema encontra-se a OMC, a Comissão trilateral, o FMI, e sobretudo a ONU, cujas forças de paz são vistas como um exercito internacional mercenário, dispostas a suprimir a soberania do povo. À tamanha ameaça global aos empregos, à privacidade e à liberdade, e ao próprio american way of life, eles opuseram a Bíblia e a Constituição original. De acordo com esses textos, estão asseguradas a soberania dos cidadãos e sua participação direta nos governos dos condados, sem a necessidade de qualquer reconhecimento da autoridade do Governo Federal. As milícias e os patriotas: uma rede de informação de múltiplos temas A milícia de cada estado é independente, e às vezes há varias milícias em um mesmo estado que não mantém nenhum tipo de relação entre si. A esmagadora maioria de seus membros é branca, cristã e predominantemente masculina. Embora incorporem grupos tradicionalmente racistas, anti-semitas e fundamentados no ódio, as milícias possuem uma base ideológica bem mais ampla, e esse é justamente um dos motivos de seu sucesso; trata-se da capacidade desses movimentos de abarcar todo o espectro ideológico representado pelos núcleos de desafetos contra o governo federal. As bandeiras dos patriotas Apesar de suas múltiplas facetas, o movimento patriótico, tendo como vanguarda as milícias, realmente compartilha de objetivos, crenças e inimigos comuns. Esse conjunto de valores e finalidades é o responsável pela construção de uma visão de mundo e da definição do movimento propriamente dito. As milícias e os patriotas são um movimento libertário, que tem como inimigo o governo. Reconhecem como unidades básicas da sociedade o indivíduo, a família e a comunidade local. O governo é tolerado, na melhor das hipóteses, como expressão direta da vontade do cidadão , nos governos de condado, com autoridades acessíveis que possam ser monitoradas pessoalmente. Os escalões mais altos do governo são vistos com desconfiança e o governo federal considerado como ilegítimo. Essa rejeição da legitimidade do governo federal se manifesta por ações e atitudes bastante concretas e incisivas: recusa ao pagamento dos tributos federais, não observância às normas ambientais e ao planejamento de uso da terra. Os lemas do apocalipse: a Verdade Suprema do Japão A verdade suprema é uma seita religiosa que tem como principal objetivo sobreviver ao apocalipse iminente, salvando o Japão, e o mundo, da guerra de extermínio que resultaria inevitavelmente da concorrência entre as corporações japonesas e o imperialismo norte- americano em busca do estabelecimento de uma nova ordem mundial e um novo governo unido. Para sair vitoriada caberia à essa seita preparar um novo tipo de ser humano, fundamentado na Página �8 espiritualidade e no auto-aprimoramento por meio de meditação e exercícios, contudo, para poder enfrentar a agressão das potências mundiais, tinha de se defender aceitando o desafio de desenvolver novas armas de extermínio. Essa seita criou um Contra-Estado sagrado, que deveria liderar a seita e os poucos eleitos que sobrevivessem a batalha final contras as forças do mal (imperialistas norte-americanos e policia japonesa) Metodologia e crenças da verdade suprema O objetivo final da seita é a salvação – liberdade e felicidade verdadeiras. Para se atingir a verdade por meio da salvação, foi desenvolvido um método de meditação e austeridade. Na visão da Verdade Suprema, há uma relação direta entre o fim do mundo e a salvação dos fieis, que atualmente, se preparam para o apocalipse adquirindo poderes sobrenaturais. A Verdade Suprema e a sociedade japonesa A maioria de seus sacerdotes eram jovens universitários recém formados. 40% eram representados por mulheres, pois possui a meta de dirimir diferenças entre os sexos, transformando o mundo interior dos gêneros. O apelo da Verdade Suprema à juventude com grau de instrução superior foi um choque para a sociedade japonesa, tendo como justificativa a alienação como consequência da derrota dos poderosos movimentos sociais da década de 60. Informacionalização do corpo, a salvação era que as pessoas poderiam sentir a si próprias e as outras ai mesmo tempo – comunicação extracorpórea. As ideia do guru foram se desenvolvendo, e transformou sua identidade no “eu verdadeiro” Os canais de comunicação com o mundo exterior foram fechados, uma vez que esse mundo foi o inimigo declarado, que rumava em direção ao apocalipse. A rede interna era hierárquica, e nesse contexto o mundo exterior era irreal, e a realidade virtual criada a partir da combinação entre tecnologia e técnicas de ioga era o mundo real. De forma distorcida e esquemática, a Verdade Suprema refletida os temores da sociedade japonesa em relação à perda de vantagem comparativa na economia mundial, a um potencial conflito com os EUA e às consequências catastróficas do desenvolvimento desenfreado de novas formas de tecnologia. Uma das características mais marcantes da seita foi o meio encontrado para reagir a tais ameaças. Estar preparado para essa guerra e sobreviver a ela, exigiria o renascimento da espiritualidade e o conhecimento da mais avançada tecnologia bélica, principalmente no que diz respeito a armas químicas, biológicas e teleguiadas a laser. A verdade Suprema deve ser tratada como uma manifestação hiperbólica e amplificada de rebeldes com alto grau de escolaridade, manipulada pelo guru messiânico num misto de meditação eletrônica, negócios e espiritualidade, política informacional e guerra tecnologia, uma caricatura horrenda da Sociedade da Informação japonesa, refletindo sua estrutura de governo, comportamento corporativo e veneração pela tecnologia avançada mesclada ao espiritualismo tradicional. O significado das insurreições contra a nova ordem global Os três movimentos anti-globalização analisados tem em comum a identificação do adversário: a nova ordem global, classificada pelos zapatistas como a união do imperialismo norte americano com o governo corrupto e ilegítimo do PRI por meio do NAFTA; encarnada pelas instituição internacionais, mais notadamente a ONU e o governo federal dos EUA, na visão das milícias; e considerada como a ameaça global proveniente de um governo mundial unificado representante dos interesses das multinacionais, do imperialismo norte-americano e da policia japonesa pela Verdade Suprema. Cada um desses movimentos oferece como meio de resistência um principio especifico de identidade, refletindo as profundas diferenças entre as 3 sociedades das quais se originaram. Houve um apelo à autenticidade de seu princípio de identidade, manifestada sob formas distintas, baseadas na especificidade cultural e no desejo de controle sobre seu próprio destino. E opõe-se Página �9 ao adversário global em prol de seu objetivo societal maior, que leva a integração entre sua identidade especifica e o bem-estar da sociedade em geral. O grande impacto causado por esses movimentos resulta da presença marcante da mídia e do uso eficaz da tecnologia da informação. Ao forças um debate sobre suas reivindicações e induzir as pessoas a participares, os movimentos pretendem exercer pressão sobre governos e instituições, revertendo o curso de submissão da nova ordem mundial. Por isso o uso de armas constitui elemento essencial como sinal de liberdade e recurso que provoca acontecimentos, chamando a atenção da mídia. Os novos movimentos sociais reagem contra a globalização e seus agentes políticos atuando com base em um processo continuo de informacionalização por meio de mudança dos codigos culturais no cerne das novas instituições sociais. Conclusão Os movimentos abordados se opõem aos desdobramentos sociais, econômicos, culturais e ambientais da globalização. A transformação dessa rejeição na reconstruçãode novas formas de controle social sobre novas formas de capitalismo, globalizado e informacionalizado, requer a assimilação das reivindicações dos movimentos sociais por parte do sistema politico e das instituições do Estado. Página �10 Migrações É importante frisar que a globalização afeta os deslocamentos espaciais da população. Porém a globalização é parcial e inacabada e isso afeta as migrações de várias maneiras. A globalização apresenta dificuldades e morosidades no cumprimento de suas promessas, a disparidade entre ricos e pobres aumenta. Enquanto o capital financeiro e o comércio fluem livremente nas regras do jogo da globalização, a mão-de-obra se move a conta-gotas. O aumento significativo da migração não somente é inevitável no contexto da globalização, como também tem um potencial bastante positivo. O modelo conhecido como o Consenso de Washington (promovido pelos países desenvolvidos) reduziu significativamente a participação estatal na economia e a proteção da economia nacional, ao mesmo tempo, abriu as fronteiras para o fluxo de bens e serviços, assim como de capital. Em resumo, há um crescente predomínio dos processos financeiros e econômicos globais sobre os nacionais e locais. Porém há uma contradição em tal modelo Liberal, visto que há severos controles impostos à livre mobilidade dos trabalhadores e à fixação das pessoas nos territórios nacionais desses Estados. “ O discurso dos países desenvolvidos na pregação da abertura das fronteiras dos outros países” versus “a realidade protecionista das políticas praticadas por eles”. O estímulo massivo à migração internacional não é acompanhado por um aumento correspondente de oportunidades porque os países que atraem migrantes bloqueiam sua entrada. Não existe um mercado global de trabalho. O princípio do livre comércio sugere que a produção mundial seria maior se não houvesse fronteiras e se todos os fatores de produção, inclusive as pessoas, pudessem fluir livremente. Portanto, as políticas que restringem a mobilidade dos trabalhadores, segundo a teoria neoclássica, conduzem a uma economia mundial menor em termos agregados. Entretanto, para que o modelo liberal e a globalização alcancem suas promessas de promover o desenvolvimento, reduzir a pobreza e melhorar as condições de vida da população, seria essencial que essa inconsistência fosse algo minimizada. O bem-estar mundial aumentaria em mais de US 150 bilhões se os países desenvolvidos aumentassem sua quota de trabalhadores internacionais temporário até 3% da sua força de trabalho. Entretanto, esse aumento significativo de migração, tão necessário para a melhoria das condições nos países em desenvolvimento, não tem ocorrido. Evidentemente porque os países mais ricos consideram que a entrada massiva de migrantes lhes seria prejudicial. Na realidade, a maioria das consequências socioeconômicas da migração é dupla ou contraditória, dependendo da ótica. Vantagens: a cada ano, os migrantes enviam o equivalente a 100 bilhoes em remessas para sustentar suas famílias e comunidades. Essas cifras colocam as remessas em segundo lugar no fluxo monetário do comércio internacional. As remessas são críticas para a redução da pobreza. Se as remessas são investidas na produção, elas contribuem para o crescimento, se elas são consumidas, geram efeitos multiplicadores. Ao mesmo tempo, a emigração massiva serve para aliviar as tensões sociais e laborais em países com grande população de jovens, nos quais a conjugação do crescimento Página �11 demográfico com períodos de estagnação econômicas deixa uma parcela considerável de jovens sem emprego. Além disso, a migração é fator importante na promoção de equidade de gênero. Em certas circunstacias a migração pode também promover a emancipação da mulher, expandindo a gama de seus papéis sociais e permitindo que ela escape da dominação patriarcal. Os imigrantes pegam ocupações e trabalhos que os trabalhadores nacionais não querem. A entrada de jovens migrantes, com suas altas taxas de fecundidade e de participação no mercado de trabalho, é uma fórmula fácil para superar as dificuldades demográficas criadas por essa transição. Em suma, a maioria dos países industrializados precisa de renovação significativa de sua população via o influxo de migrantes. Desvantagens: os países de origem frequentemente perdem parte de seu estoque de pessoas mais criativas. Tanto a seletividade de migração como a fuga do cérebro levam a déficits de recursos humanos qualificados nos países mais pobres. No que se refere a todos os problemas de adaptação e até maltrato dos migrantes, não há dúvida de que essas situações existem frequentemente e que constituem uma das maiores dificuldades para os migrantes de todos os continentes e de todas as épocas. Os migrantes sofrem discriminação social e racial, são tratados com cidadãos de segunda classe. A migração também apresenta riscos adicionais para mulheres e crianças. Em muitos lugares, as migrantes internacionais e as crianças são mais vulneráveis nas diferentes etapas do processo. Apesar de necessários, os migrantes são vistos como indesejados. Os recém- chegados são vistos pela população natural como competidores de empregos e como uma ameaça permanente à estabilidade social e política da região de destino. Entretanto, essas acusações precisam ser examinadas com mais cuidado. Grande parte dos migrantes não qualificados ocupa os espaços que a população natural já não quer ocupar. No que se refere ao peso que representam os migrantes para os serviços fornecidos pelo país receptor, os estudos não são conclusivos. É verdade que a utilização de serviços sociais nas áreas de destino por parte dos migrantes constitui motivo de migração como também uma carga para o lugar de destino. Porém esses custos também são relativos, porque, na medida em que os migrantes são mais produtivos que a média da população, acabam aumentando a produtividade e melhorando a capacidade da localidade de custear os gastos de infra- estrutura e serviços. A maneira com que a comunidade dos países desenvolvidos e não desenvolvidos lida com os movimentos migratórios internacionais poder ser considerada inadequada. A atitude concreta dos países desenvolvidos constitui uma manifestação importante de inconsistências entre o discurso e a prática liberal na atual fase de globalização. O argumento desenvolvido no ensaio é o de que, apesar de ser possível reconhecer negatividades reais e significativas da migração internacional, estas são, no cômputo geral, muito inferiores às vantagens e aos benefícios que aportam. Página �12 Cidades Rebeldes Quanto a cidade vai às ruas – Carlos Vainer A fagulha e a pradaria Governantes, políticos de todos os partidos, imprensa, cronistas políticos e até mesmo cientistas socais foram pegos de surpresa pelas manifestação de massa que mudaram a face e o cotidiano de nossas cidades em junho. Pela rapidez com que se espalharam, pelas multados que mobilizaram, pela diversidade de temas e problemas postos pelos manifestantes, eles evocam os grandes e raros momentos da historia em que mudanças e rupturas que pareciam inimagináveis se impõem à agenda política da sociedade, e podem acabar transformando em possibilidade algumas mudanças sociais e políticas que pareciam inalcançáveis. O movimento social urbano no Brasil desde os anos 90 passou a ser muito disperso e fragmentado; os militantes possuíam dificuldade de fazer convergir reivindicações microlocalizadas e experiências de luta com diferentes enfoques e bases sociais. Em 2013, em termos imediatos, o que provocou essa unidade foi a arrogância e a brutalidade dos detentores de poder. Seu autismo social e politico, sua incapacidade de perceber a insatisfação social, promoveu, em poucos dias, aquilo que militantes, organizações populares e setoresdo movimento social urbano vinham tentando há algum tempo, unificar descontentamentos, lutas, reivindicações, anseios. A cidade neoliberal: empresa e mercadoria Não há como não reconhecer a conexão estreita entre os protestos em curso e o contexto propiciado pelos intensos e maciços investimentos urbanos associados à Copa do Mundo, e no caso do RJ, também aos Jogos Olímpicos. De um lado a repressão brutal e a rapidez com que a mídia e governos tentaram amedrontar e encurralar os movimentos deveu-se à preocupação em impedir que jovens irresponsáveis e vândalos manchassem a imagem do Brasil num momento em que os olhos do mundo estariam postos sobre o país. Mais importante que a repressão, são as transformações que esses megaeventos imprimem em nossas cidades, assim como a própria concepção de cidade, assim como a própria concepção de cidade que eles expressam e atualizam de forma intensa. A adoção das diretrizes e concepções neoliberais que reconfiguram as relações entre capital, Estado e sociedade a partir da ultima década do século passado teve profundas repercussões a respeito do lugar e do papel da cidade no processo de acumulação. Agora, sob a égide do Consenso de Washington, a cidade passa a ser investida como espaço direto e sem mediações da valorização e financeirização do capital. Concebidas enquanto empresas em concorrência umas com as outras pela atração de capitais cada vez mais móveis recursos públicos. O que caracteriza essa nova concepção neoliberal de cidade e de governo urbano? Fiel à inspiração neoliberal, o novo modelo levará ao banco dos réus a pretensão estatista e dirigista do planejamento moderno e seus planos diretores, com sua ideia de estabelecer modos, ritmos e Página �13 direções do crescimento urbano. Na cidade, a intervenção do Estado é vista como algo nefasto, que inibe o livre jogo das forças de mercado, que pelos cânones do liberalismo econômico asseguraria a alocação ótima dos recursos. A cidade de exceção e a democracia direta do capital Flexível, negocial, negociada, a cidade-negócio se atualiza, quase sempre, através de parcerias público-privadas, novas formas de relacionamento entre Estado, capital privado e cidade. A contratasse da cidade de exceção é uma espécie de democracia direta do capital A FIFA e o COI, verdadeiros cartéis internacionais associados a corporações nacionais e interesses locais, recebem do governo da cidade isenções de impostos, monopólio dos espaços públicos. São neoliberais, mas adoram um monopólio. Os monopólios para a concessão de serviços em áreas da cidade ferem os direitos do consumidor, e as remoções forças nas cidades anfitriãs da Copa violam o direito à moradia e à cidade. As população mais pobres se veem confrontadas a uma gigantesca onda de limpeza étnica e social das áreas que recebem investimentos, equipamentos e projetos de mobilidade. A cidade neoliberal aprofundou e agudizou os conhecidos problemas que nossas cidades herdaram de 40 anos de desenvolvimentismo excludente: favelização, informalidade, serviços precários ou inexistentes, desigualdades profundas, degradação ambiental, violência urbana, congestionamento e custos crescentes de um transporte publico precário e espaços urbanos segregados. Nesse contexto, o surpreendente não é a explosão, mas que ela tenha tardado tanto. Resistência, organização e perspectivas São os movimentos particulares e a multiplicidade de grupos culturais que vêm à tona agora. Trazem para nossas cidades e para a esfera pública o frescor do que ainda não foi contaminado pela ideologia do empreendedorismo e do individualismo competitivo que pretendem a totalidade da vida social. Desafiados pela cidade de exceção, pela cidade-empresa e pela democracia direta do capital, eles agora as desafiam. Querem outra cidade, outro espaço publico. A convulsão social em que o país e suas cidades foram lançados abre extraordinárias possibilidades de interpelação e transformação. Mas nada ainda está decidido. Será que formulamos mal a pergunta? Silvia Viana Baderna No dia 13/06/2013, o Movimento Passe Livre (MPL) já estava em sua quarta batalha contra o recente aumento das tarifas de transporte urbano em SP quando foi sentido um deslocamento sísmico. Apresentadores de jornais passaram a caracterizar o movimento como baderna e vandalismo, defendendo que a manifestação só é legitima quando não atrapalha, do contrário é violência. Quando se fez uma enquete: você é a favor desse tipo de protesto? e a resposta da maioria foi “sim”, o âncora se perguntou: Será que nós formulamos mal a pergunta? Você é a favor de protesto com baderna? “eu acho que essa seria a pergunta. E mesmo mudando a pergunta a resposta da maioria foi sim, o que fez com que o apresentador concluísse Página �14 como uma reação irracional, de que o povo estava tão cansado que apoia qualquer tipo de protesto. Para o Datena, o erro não estava na pesquisa, mas em sua deturpação, gerada pelas próprias imagens transmitidas a seu lado. O equivoco não estava lá nem cá: os espectadores sabiam muito bem do que se tratava; e a pesquisa não mentira ao diferenciar as manifestações pacificas dessa que então estava sendo transmitida. O erro estava nas ruas. Pacíficos Graças à invenção do protesto sem protesto, foi fácil para a mídia recriar por completo seu discurso a partir do dia 13, quando o apoio popular já deixara claro que o bloqueio à política – não o da polícia – havia sido rompido. A reconstrução da narrativa reconduzia precisamente ao ponto em que as mobilizações em torno do nada haviam encontrado sua terapêutica: a inclusão dos fins aos meios. Em mobilizações pacificas, importa ocupar o espaço publico, difundir ideias, ampliar o debate, unir pessoas, participar. A indignação automática também ocupou as avenidas nos dias que se seguiram, em meio a bandeiras nacionais e à negação do próprio sentido do conflito, bastou que a câmera focalizasse os gritos pela paz que se retomasse as rédeas imagéticas dos acontecimentos. A separação entre pacíficos e baderneiros servia à reposição da ordem, segundo a qual nada justifica o entrave à sobrevida cotidiana que nos arrasta. As manifestações pacificas eram exibidas e celebradas porque deixavam SP trabalhar. Ao produzirem a aparência de dissenso, simultaneamente contribuíam com a diversificação das mercadorias culturais e dos nichos de consumo. A baderna, por outro lado, não passava de fantasia preventiva que, ao mesmo tempo, justificava a prontidão securitária contra, por exemplo, skatistas do centro da cidade, que “depredam o patrimônio público”. O movimento de junho empurrou a classificação midiática, cujo sentido era a recusa de qualquer recusa, a seu ponto de verdade. Por isso, a tela que nos apresenta as manifestações encontra-se dividida: de um lado imagens verde-e-amarelas, de outro cenas vermelhas. Busca-se, desse modo, reaver o limiar cuja ruptura a enquete de patena explicitara: o protesto que assim merece ser chamado é, em si mesmo, violento. Pacificados Ao contrario do que se tem afirmado, o abalo não ocorreu devido à quantidade de adesões que se seguiram à quita-feira esfumaçada, e sim, graças à qualidade do movimento que as convocou. O MPL é um grupo de dezenas de jovens que resolveu, junto a outros movimentos e partidos, arriscar a pele. Os militantes impediram frontalmente com seu próprio corpo nosso sagrado ir e vir em nome da criação do direito de outros irem e virem. Era por causa dos 20 centavos, uma migalha para a classe média a qual protestava, cujo significado para aqueles que sabem quantas moedas carregam no bolso e qual o valor de cada uma delas, nós só podemos imaginar. Os rapazes e moças do MPL, que discutem as políticas de transporte publico a anos, e cuja organização não se limita às redes sociais, imaginaram. Daí terem assumido o risco maior: atentarcontra a segurança pública e contra sua própria segurança pessoal. Além dos carros, eles peitaram a mesma policia que mata ordinariamente os jovens que devem ser “pacificados” à bala – e não a de borracha. O encontro desses dois mundos, em imaginação e fogo, foi o pontapé para o deslocamento do campo politico que, até agora, parecia invulnerável à política. Pela imposição do conflito real, também eles precisavam ser pacificados, mesmo que as imagens indicassem que tudo esta calmo. Aí reside a violência do movimento: não em vitrines e latas de lixo quebradas, mas no freio brusco de uma ordem fundada, por um lado, no ir e vir que permanece e, por outro, no genocídio de quem, mesmo com a economia de 20 centavos, talvez não chegue. Página �15 ECOLOGIA GLOBAL CONTRA DIVERSIDADE CULTURAL? CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E POVOS INDÍGENAS NO BRASIL A constituição brasileira de 1988, no artigo 231, reconhece “aos índios (...) os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” e “cabe à União demarcá-la e garantir o respeito de todos seus bens”. A finalidade do reconhecimento dos direitos territoriais indígenas é a preservação de seu direito à diferença cultural e autodeterminação, dentro da nação Brasileira. O direito exclusivo dos índios sobre os recursos naturais de suas terras é explicitamente reconhecido, com a exceção dos recursos do subsolo, considerados estratégicos e pertencentes à União. O Ministério da Justiça, através da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), é responsável pelo reconhecimento de direitos territoriais indígenas, assim como pelo processo de demarcação das áreas. Porém, o processo demarcatório só é pleno e definitivo através de um ato formal final, o decreto de homologação, a ser assinado pelo Presidente da República. Populações locais e ecologia global no Brasil: da aliança ao conflito Nosso estudo levanta a questão da pertinência de políticas fundadas na implementação de cima para baixo (top-down) de modelos técnicos baseados na exclusão do homem para promover a conservação da natureza. De fato, segundo dados de 1985 da IUCN, cerca de 70% das áreas protegidas do mundo são habitadas; este dado sobe para 86% para a América Latina. Outra questão levantada é a dos conflitos existentes ou possíveis entre políticas de conservação da natureza e direito à diferença cultural de grupos humanos que, como os povos indígenas, muitas vezes dependem diretamente da apropriação e do uso da natureza, não só por sua sobrevivência física, mas também para sua identidade cultural e sua autodeterminação social. A ecologia global que, ao invés de promover a resolução local dos conflitos como caminho para a sustentabilidade, interfere nos processos de decisão nacionais e locais de tal maneira que o exercício do poder político pelas bases sociais e a diversidade cultural dos povos locais acabam sendo ameaçados. Estas questões serão abordadas através do caso do Monte Roraima. A sobreposição de Unidades de Conservação (UC’s) – Terras indígenas (TI’s) no Brasil A questão da sobreposição entre UC’s e TI’s na legislação brasileira é controversa e não está resolvida. Em muitos casos ela tem recentemente proporciona- do conflitos entre reivindicações territoriais de povos indígenas e a aplicação de políticas de conservação. O IBAMA reconhece a existência de 28 sobreposições entre UC e TI, que correspondem aos casos onde a UC se sobrepõe a uma TI homologada. Consequentemente, o decreto de criação da UC, assinado pelo Presidente, prevaleceria, seguindo a hierarquia das leis, sobre a portaria de demarcação da TI, assinada pelo Ministro da Justiça. Nos outros casos, a eficácia jurídica da demarcação da TI não é reconhecida com base no argumento de que falta ainda a assinatura do seu decreto de homologação. Página �16 A FUNAI, as organizações indígenas e os movimentos de apoio aos índios argumentam em favor da superioridade dos direitos territoriais indígenas com base na Constituição. Qualquer ato que limite o direito constitucional dos índios à posse permanente e ao uso exclusivo de suas terras não tem validade jurídica, independentemente do tempo necessário para identificar, demarcar e homologar as Terras Indígenas. Seria portanto inconstitucional a regularização da sobreposição entre UC’s e TI’s, porque neste caso as atividades dos índios seriam sujeitas à autorização e ao controle do IBAMA. Com referência ao problema geral da presença humana dentro de UC’s, é interessante notar que um processo de radicalização das posições acompanhou a discussão e a aprovação do SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação). A versão final da lei aprovada só permite negociar o valor da compensação, os termos e o momento do re-assentamento destas populações. Este processo também afetou a solução adotada no caso de sobreposição entre UC’s e TI’s: o assunto estava definitivamente resolvido em favor das TI’s nas primeiras versões do projeto de lei, mas ficou em aberto no texto de lei finalmente aprovado. Tendências Globais: ecologia de mercado, políticas e fundos para a conservação Talvez o endurecimento do conflito entre UC’s e TI’s pudesse ser explicado pela perspectiva futura do desenvolvimento de mercados mundiais para serviços ecológicos globais – commodities ambientais. Durante os anos 90 e até hoje, a principal exemplificação da disponibilidade global a pagar para a conservação da biodiversidade no Brasil tem sido a existência de fundo internacionais com essa finalidade. Boa parte desses fundos foram destinados a política de áreas protegidas. Os principais doadores e programas internacionais para o meio ambiente e a biodiversidade no Brasil são: o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD) e o KfW (Banco Alemão para a Reconstrução), que financiaram o Plano Nacional do Meio Ambiente (PNMA); o Fundo do Meio Ambiente Global (GEF); o Programa Piloto do G7 para a Proteção da Floresta Tropical do Brasil (PPG7). O PPG7 é o único dentre eles que também contribui para a proteção das Terras Indígenas e projetos de desenvolvimento sustentável para os povos indígenas. 1 6 91 6 91 6 91 6 91 6 9 Ecologia global contra diversidade cultural? - VICENZO LAURIOLA invasores de Unidades de Conservação pede às autoridades “a imediata retirada dos invasores e a restauração da ordem jurídica democrática” e reafirma a “posição con- trária a qualquer alteração da destinação ou categoria das Unidades de Conservação nacionais, que vise acomodar reivindicações territoriais de qualquer tipo”. TENDÊNCIAS GLOBAIS: ECOLOGIA DE MERCADO, POLÍTICAS E FUNDOS PARA A CONSERVAÇÃO Buscando entender o que poderia estar por atrás deste conflito é interes- sante observar alguns dados sobre distribuição de terra e floresta entre UC’s e TI’s na Amazônia brasileira. Segundo dados do Instituto Sócio-Ambiental (ISA)5, as TI’s abran- gem uma área total de 1.023.499 km�, isto é 20,4% da Amazônia Legal Brasileira (ALB), e 50,8% da floresta amazônica, enquanto as UC’s de proteção integral só totalizam 192.285,5 km�, isto é 3,8 % da ALB. Este dado sobe para 552.560,2 km�, ou seja 11% da ALB, considerando também as UC’s de uso sustentável. Porém, subtrain- do a superfície total das sobreposições entre UC’s e TI’s (168.010,7 km�), o dado efetivo das UC’s cai novamente para 384.549,5 km�, ou seja 7,7% da ALB, represen- tando 23,4% da floresta amazônica, isto é, menos da metade da porcentagem incluída em TI’s. Tabela 1: Terras Indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia Brasileira Talvez o endurecimento deste conflito pudesse ser explicado pela pers- pectiva futura do desenvolvimento de mercados mundiais para serviços ecológicos globais (commodities ambientais) —como a captura e/ou armazenamento de gases que causam o efeito estufa, a manutenção dos ciclos hidrológicos a conservação da biodiversidade, assim como as perspectivas dedesenvolvimento “verde” associadas a estas áreas através, por exemplo, da indústria ecoturística em rápido crescimento.6 De qualquer forma, durante os anos 90 e até hoje, a principal exemplificação da disponibilidade global a pagar para a conservação da biodiversidade Categoria Área em km2 % da Amazônia Legal Brasileira (5.006.316,8 km2) % da Floresta da Amazônia Legal Brasileira Terras Indígenas 1.022.783,38 20,43% 50,8% UC's de proteção integral 192,311.80 3,84% n.d. UC's de uso sustentável 419.701,92 8,38% n.d. Total UC's (- sobreposições entre UCs) 596.309,31 11.91% n.d. Total UC's – total sobreposições (TIs, TMs e RGs) 444.115,20 8,87% 23.4% Beatriz Sartori Bernabé Beatriz Sartori Bernabé Beatriz Sartori Bernabé Página �17 Fundos Globais para o meio ambiente e a biodiversidade no Brasil O PPTAL – programa de proteção de terras e populações indígenas – um programa especifico do PPG7, contribui diretamente para a proteção das terras indígenas apoiando as atividades de demarcação da FUNAI. O Programa de Projetos Demonstrativos A (PD/A), mesmo que não orientado especificamente aos indígenas, era aberto também ao financiamento de projetos de organizações e povos indígenas. No Brasil, durante a última década, os programas internacionais têm apoiado o meio ambiente e a conservação da biodiversidade não indígena entre 12 e 23 vezes mais do que a conservação das terras indígenas e a sustentabilidade dos povos indígenas. Existe uma assimetria importante na alocação dos fundos globais entre meio ambiente/ biodiversidade não indígenas e terras/povos indígenas. Poderíamos nos perguntar se isto reflete ou não a preferência alocativa dos contribuintes brasileiros e dos países doadores. Porém, parece-nos existir evidência suficiente, e não só na ecologia global, de que os mecanismos representativos das instâncias e instituições que guiam a tomada de decisões globais nestes temas estão longe de ser democráticos. Não dispomos de dados que nos permitam avaliar a eficiência relativa dos fundos internacionais gastos na conservação da biodiversidade em Unidades de Conservação na Amazônia Brasileira até hoje. Porém, dentro de um quadro geral, onde as taxas de desflorestamento permanecem altas e têm recentemente subido7, imagens de satélite mostram que a degradação ambiental é significativamente me- nor onde Terras Indígenas foram legalmente reconhecidas e protegidas8. Em outras palavras, a biodiversidade da Amazônia está muito bem protegida, e a um custo muito baixo, onde há pessoas vivendo e que se interessam por ela. Este dado é importante para se pensar políticas e estratégias futuras, pois a estabilidade destas tendências poderia ser incentivada e garantida a um custo razoável, enquanto o quadro atual configura um verdadeiro mecanismo de “free riding” ecológico sobre estas áreas. A sobreposição entre UC e TI no Monte Roraima, as populações e os conflitos políticos locais A parte setentrional da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, conhecida como região Serra do Sol, é uma região de montanhas, coberta por ecossistemas de cerrado e floresta, habitada por indígenas dos grupos étnicos Ingarikó, Patamona e Macuxi. O PNMR, localizado na parte setentrional desta região, cobre a maioria da sua área florestal. Assim como o resto da Terra Indígena, a área incluída no Parque representa, para os indígenas da região, área tradicional de ocupação, apropriação e uso dos recursos naturais, assegurando sua própria sobrevivência, cultura e estilo de vida. O Parque introduz regras e atividades contrastantes com suas formas tradicionais de uso, apropriação do espaço e dos recursos naturais. Concebidas e implementadas do alto para baixo, as regras de conservação ameaçam a cultura e a autonomia das sociedades indígenas da região Serra do Sol. O PNMR existe no papel há cerca de 10 anos. Apenas entre o segundo semestre de 1999 e o início de 2000 o IBAMA iniciou o processo de implementação do Parque Nacional. Neste caso, o quadro geral da sobreposição UC-TI é enriquecido por fatores locais específicos que precisam ser analisados numa perspectiva histórica. Na época do decreto de criação do Parque Nacional, em 1989, o processo de demarcação da Terra Indígena estava em andamento.o processo de reconhecimento da terra indígena continuou nos anos seguintes, atravessando ásperos conflitos políticos e legais, terminando em 1998 com a demarcação da área contínua Raposa-Serra do Sol. Não reconhecendo a eficácia da demarcação da Terra Indígena por falta do decreto de homologação, Página �18 o IBAMA age com independência na implementação do PNMR. Seguindo esta linha de pensamento, o Plano de Manejo define a UC como « área pretendida pela FUNAI », e percebe a possível homologação da TI como ameaça. A questão da demarcação da TI Raposa-Serra do Sol ocupa um papel central nas questões políticas locais. O Governo do Estado, os políticos e os grupos de interesses « brancos » dominantes estão conduzindo, em níveis político, institucional e legal, uma áspera luta contra a homologação da Raposa-Serra do Sol em área contínua, em favor de uma proposta de demarcação descontínua, que excluiria da Terra Indígena as fazendas e os povoamentos brancos existentes, a maioria dos quais se formaram e cresceram ao redor das atividades de garimpo. Esta batalha também inclui pressões políticas de deputados e senadores federais do Estado sobre o Governo Federal, assim como campanhas na mídia contra a FUNAI, as organizações indígenas e seus apoios locais, nacionais e internacionais. Casos de ameaças abertas e intimidações, ou atos violentos contra indivíduos que apóiam direta ou indiretamente « a causa indígena » não são isolados na história recente de Roraima. A « questão territorial indígena » representa um divisor de águas onipresente nas questões políticas locais, onde todos os atores sociais – e mesmo individuais – são classificados ou como aliados ou como inimigos por ambos os lados em conflito. O processo de elaboração do Plano de Manejo do PNMR Os Ingarikós são o grupo mais diretamente atingido, mas não o único: a implantação do PNMR também afeta diretamente comunidades das etnias Macuxi e Patamona, além de produzir possíveis conseqüências em toda a TIRSS, até no nível estadual. Efetivamente, apesar do zoneamento da própria área do PNMR, que prevê restrições no acesso aos recursos naturais, o Plano de Manejo estabelece uma « Zona de Transição », num raio mínimo de 10 km ao redor da Unidade de Conservação. Dentro desta área, conforme a Resolução CONAMA n° 13 de 1990, qualquer atividade que possa afetar a biota da Unidade de Conservação deverá ser obrigatoriamente licenciada pelo órgão ambiental competente, isto é, o IBAMA. De fato, a zona de transição engloba inteiramente a área tradicional- mente ocupada pelos Ingarikós, além de atingir áreas de localização de aldeias das etnias Macuxi e Patamona. Se as normas e as restrições de uso do espaço e dos recursos naturais previstas no Plano de Manejo do PNMR forem realmente implementadas, além de outras conseqüências imprevisíveis, é muito provável uma tendência ao reassentamento de comunidades e populações indígenas do norte ao sul da TIRSS, ou ainda à migração em direção à Boa Vista. No primeiro caso seriam gerados novos conflitos de apropriação do espaço ao sul da TIRSS ; no segundo, agravar-se-iam os já agudos problemas socioeconômicos urbanos da capital Roraimense. A atividade do IBAMA em relação ao PNMR tem até hoje se desenvolvido com plena autonomia, sem levar muito em consideração a presença dos indígenas no território, seja dentro, seja no entorno imediato dos limites do Parque. A FUNAI e os índios da RSS não têm sido ouvidos e estão menos envolvidos ainda nas atividades de elaboração do Plano de Manejo. A falta de participaçãode instituições e representantes indígenas no pro- cesso de elaboração do Plano de Manejo pode ser observada no texto do mesmo, que contêm informações escassas e inexatas sobre a população indígena, sua cultura e interação com o meio ambiente e os recursos naturais da região. A conseqüência é que o zoneamento e as regras previstas no Plano conflitam com as atividades e o estilo de vida dos indígenas locais, tornando sua implementação difícil e uma fonte de novos conflitos. Página �19 A intervenção da FUNAI: discutindo a proposta do parque nas comunidades Ingarikós Depois de decorridos 11 anos de sua criação oficial, e 5 meses da oficina de elaboração do Plano de Manejo, os indígenas não sabiam o que era um Parque Nacional.Ficaram todos preocupados com esta instituição nova e desconhecida que estava sendo implantada em suas terras e vinha sendo percebida como mais uma forma de invasão. Em resposta às preocupações dos índios, a FUNAI resolveu organizar uma missão de campo para visitar as comunidades Ingarikós, informá- las da questão do PN e registrar sua posição sobre o assunto. Parque Nacional? Os Ingarakós não aceitaram as regras e as propostas do Plano de Manejo do Parque Nacional do Monte Roraima, e, conseqüentemente, não concordaram com a presença do Parque em suas terras. Todas as áreas do Parque são ocupadas pelos índios, e nem se conhece todos os grupos indígenas da região: os habitantes de Manalai relatam a presença de um grupo de outra etnia, arredio, localizado aos pés do monte Caburaí, em plena área intangível do Parque, que os Ingarikós respeitam em sua vontade de permanecer isolados. As formas de ocupação são de vários tipos: em alguns casos, trata-se de ocupação estável, com residências de famílias e comunidades, mas em muitos outros casos, trata-se de uma ocupação do espaço descontínua no tempo, ligada a atividades econômicas e de subsistência, ou formas de uso dos recursos naturais: caça, pesca, plantio de roças, extração de madeira e de outros materiais para construção de casas, fabricação de objetos de uso cotidiano e de artesanato, colheita de frutas e ervas medicinais... São estes os principais usos materiais do espaço citados pelos Ingarikós. As áreas destinadas aos diversos usos muitas vezes se sobrepõem no espaço e no tempo. A floresta representa contemporaneamente o espaço para o plantio das roças, área de caça e de colheita. As trilhas que a atravessam são, ao mesmo tempo, caminhos de acesso aos recursos naturais e cultivados, e percursos de viagens sociais, comerciais e de culto, de visita a outros “parentes” indígenas. Fronteiras sem cercas existem entre comunidades e diferentes grupos étnicos, sendo reguladas por um complexo sistema de regras de divisão do espaço e dos recursos naturais entre “parentes”. Embora para os indígenas as terras sejam um espaço aberto, não cercado, onde eles são livres para circular, cada grupo tem seus limites e respeita a cultura e as áreas dos outros. Com a perspectiva de garantir as condições futuras de sobrevivência aos filhos e netos, o espaço é percebido como pequeno, frente ao crescimento populacional. Os Ingarikós não gostam da vida na cidade, são conscientes dos problemas da vida urbana e querem evitá-los, preservando seu bem estar presente e futuro em suas terras. Por isto não querem ser obriga- dos a ir procurar meios de sobreviver na cidade ou em outro lugar. O Parque ameaça ocupar o espaço vital dos Ingarikós, que não têm outra terra onde morar. Resumindo, as discussões realizadas nas comunidades indígenas Ingarikós demonstraram que as regras do Parque, assim como as previstas no zoneamento do Plano de Manejo, são Página �20 incompatíveis com a permanência das formas tradicionais indígenas de ocupação do espaço e de uso dos recursos naturais. Em outros termos, as regras do Parque entram diretamente em conflito com a preservação da cultura e do estilo de vida dos Ingarikós e de seu direito de escolha sobre o futuro. Quais são as soluções viáveis? A cultura indígena como ponto de partida das políticas de conservação da natureza. A situação presente da implementação do Parque Nacional do Monte Roraima, na Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, não permite previsões otimistas para a resolução dos conflitos entre, de um lado o IBAMA e as políticas oficiais de preservação, e do outro, as populações indígenas locais, principalmente os Ingarikós, a FUNAI, organizações e movimentos de apoio aos direitos indígenas, e as políticas indigenistas de preservação cultural. As informações e os dados acumulados durante a missão de campo, realiza- da pela FUNAI junto às comunidades Ingarikós da região Serra do Sol, levantam sérias dúvidas sobre a legitimidade e a viabilidade da implementação do Plano de Manejo do PNMR, seja com respeito às restrições de acesso e de uso dos recursos naturais, seja com respeito ao desenvolvimento do turismo. Qualquer tipo de planeja- mento sustentável futuro para a área e suas populações precisa de uma profunda mudança de posturas e do desenvolvimento de um verdadeiro diálogo entre os diferentes atores sociais, políticos e institucionais. Caso contrário, a questão ecológica só acrescentará mais conflitos aos conflitos já existentes.A esperança é que o grupo técnico do CONAMA, recentemente criado para resolver as questões ligadas às sobreposições entre UC’s e TI’s, consiga elaborar soluções viáveis legal e institucionalmente.No plano local, a bata- lha parece estar apenas começando. O IBAMA continua afirmando sua legitimidade plena e exclusiva em agir para implementar o Parque até que a Terra Indígena seja homologada. As probabilidades de que o conflito evolua em direção a negociações mais razoáveis no curto prazo não parecem muito altas. Com respeito aos atores, consideramos a participação ativa dos índios como essencial para garantir a futura viabilidade de um plano de manejo para a região. Seus atuais aliados institucionais e políticos são claramente identificáveis como aqueles que apóiam a homologação da TI Raposa- Serra do Sol em área única e contínua. O ponto de vista da política ambiental parece, porém, comprometer seria- mente a posição dos atores locais: o IBAMA precisará de muito tempo para ganhar a confiança dos Ingarikós, antes de poder almejar a implementação de qualquer projeto viável no Monte Roraima. Um ator diferente, sem ligações com o meio político domi- nante local ou com a causa anti-homologação, teria chances muito melhores para negociar um plano de manejo sólido e viável com os indígenas em suas terras. Antes de qualquer outra coisa, se o objetivo é o de preservar o ambiente natural na área do Monte Roraima, um grande esforço é preciso para a compreensão do relacionamento complexo que os povos indígenas da região Serra-do-Sol mantêm com seu meio ambiente, através de seus modelos e regras de apropriação e uso do espaço e dos recursos naturais. Qualquer plano de manejo Página �21 ou projeto de desenvolvimento que não tome o fator humano, social e cultural como seu ponto de partida não será viável. Conclusão: redirecionar os fundos ecológicos globais para os povos indígenas A definição exógena de regras de manejo rígidas, associadas a um zoneamento fixo do espaço, não só entrará necessariamente em conflito com os modelos indígenas de apropriação do espaço, de extração e uso dos recursos naturais, mas também, satisfazendo apenas as representações cientificas abstratas daquilo que é ou deveria ser teoricamente um ecossistema natural do qual a espécie humana está ausente, acabará falhando, muito provavelmente, em seu objetivo mesmo de conservação da biodiversidade. Já muitos casos mostram que um ecossistema pode evoluir de maneira imprevisível, e não necessariamente desejável, quando as pressões antrópicas são removidas. Isto acontece em parte porque o homem, assimcomo outras espécies, é um predador seletivo, e contribui para o controle da população de suas presas. Uma vez removida a predação humana, é difícil prever como a dinâmica e a distribuição da população das outras espécies evoluirão: poderia muito possivelmente acontecer o desaparecimento local de uma ou mais espécies, por extinção ou migração. O resultado seria uma política com alto custo social e ecologicamente ineficaz. e, por outro lado, for abandonada a referência normativa à separação artificial entre homem e natureza, e o conhecimento ecológico dos índios for integrado na definição de regras e normas de manejo, são altas as chances de que um sistema de gestão ecologicamente válido e sustentável possa ser definido e implementado, sem grandes mudanças nos modelos atuais de uso dos recursos naturais, assim implicando um custo social baixo ou negativo (isto é, um benefício social), e resultando num modelo onde as atividades e regras indígenas emerjam como uma componente fundamental da preservação do ecossistema.
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