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1 16/06/2006 Fenomenologia e arte: o trabalho com Oficinas1 Christina Cupertino Cupertino, C.M.B. Universidade Paulista, São Paulo, Brasil Resumo: Essa apresentação trata do trabalho com Oficinas de criatividade em Psicologia, e pretende abordar alguns dos fundamentos dessa prática, ancorados a alguns exemplos retirados de intervenções específicas. O conhecimento psicológico surgiu e se desenvolveu com a intenção de constituir-se como ciência, inserindo-se no paradigma tradicional característico da modernidade, baseado no que Heidegger nomeou como “princípio de razão”. Essa perspectiva determinista define que tudo que é tem uma razão de ser, e mesmo quando não estamos procurando razões, implicitamente acreditamos em sua existência. É a partir disso que escutamos o outro/cliente presente em nosso fazer cotidiano: interpretando o que ouvimos a partir de um quadro de referências, explicando motivos e retraçando procedências. Quando algo novo aparece, somos imediatamente capazes de determinar a qual categoria esse evento pertence. Outras formas de escuta do outro, além dessas, são possíveis segundo o pensamento fenomenológico, que afirma que o ser do homem torna-se acessível não pelo sucessivo desdobramento progressivo de seus atributos em direção à sua essência, a alguma coisa que o antecede e define. Pelo contrário, no estado que Heidegger chama de “serenidade”, de quietude respeitosa e de suspensão da busca das razões, podemos permitir que os fenômenos aconteçam numa multiplicidade de sentidos, muito deles não formuláveis pela lógica racional, enigmáticos. A escuta que considera a condição enigmática do não dito favorece o surgimento de outros modos de expressão, de outras falas, entre as quais a artística. Parte do trabalho com Oficinas de Criatividade em Psicologia deriva dessas afirmações, e se baseia no uso de recursos expressivos de natureza artística como forma de acesso à experiência humana. Conduzidas em grupo ao longo de um número preestabelecido de encontros, essas oficinas criam o espaço necessário à quietude que favorece o fértil desdobramento de sentidos, por meio de modos de falar que não definem o que as coisas são, não lhes dão um significado único, imediato e final. Por meio da produção ou da fruição de obras artísticas, os participantes das oficinas habitam um tempo e um espaço diverso do dia a dia obrigatoriamente redutivo e categorizante, e podem dar sentido/direção à experiência vivida, entregando-se a esse transporte que permite a irrupção do movimento de sentidos. Minha fala encerra o Simpósio “Fenomenologia e Arte”, no qual você já viram o resultado de uma Oficina de Dança, com o excelente trabalho desenvolvido por Luciana Canalonga na Fundação Gol de Letra. Puderam também vivenciar o poder que os contos tradicionais têm na 1 Trabalho apresentado no Congresso do Centro de Psicoterapia Existencial, realizado na Universidade Paulista em junho de 2006. 2 mobilização de questões pessoais passíveis de abordagem pela Psicologia, por meio da leitura de um conto feita por Marina Halpern-Chalom. Minha função aqui, hoje, é recuperar então, rapidamente, alguns fundamentos da Fenomenologia pelos quais podemos pensar essas práticas. Pretendo dar um fechamento ao que vocês acabam de ver e ouvir, acrescentando um viés racional, tentando, todavia, não incorrer no problema que a própria fenomenologia denuncia, que é distanciar-nos da própria experiência. O meu intuito é fazer algumas pontes entre o que se diz sobre fenomenologia e arte e uma prática que vem se consolidando nos últimos anos, que são as oficinas que utilizam recursos artísticos. Inicialmente, no entanto, eu gostaria de frisar que essa passagem da Fenomenologia para a prática não é uma coisa que se possa fazer de forma linear, uma vez que a Fenomenologia é uma filosofia, e não uma abordagem teórica da Psicologia. E filosofia não se “aplica”. Ela constitui um horizonte a partir do qual podemos refletir sobre as formas do existir humano. E na constituição da forma de pensar da Fenomenologia, a arte é uma referência importantíssima. Não porque a partir da Fenomenologia podemos falar sobre ela, mas porque ela traduz, para além da representação conceitual, lógica e sistemática, esse existir humano. Os principais filósofos da Fenomenologia – Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty – defenderam ardorosamente a necessidade de encontrar caminhos para o conhecimento que superassem a “coisificação” do mundo característica do pensamento metafísico e da ciência tradicional. Nesse sentido, tomam o fazer artístico como espaço por excelência de uma outra relação do homem com o mundo, relação essa entendida na Fenomenologia como indissociável. Martin Heidegger descreve, em “O Princípio de Razão”, essa condição de aproximação das coisas que afirma que tudo que é tem uma razão, estabelecendo o corolário de que, portanto, aquilo de que não se pode estabelecer as razões, é como se não existisse. Contrariando essa premissa, a arte, em sua gratuidade, conduz a outra forma de relação homem-mundo. Os filósofos da fenomenologia falam da arte como o contraponto para a ciência, entendida na sua forma tradicional. A arte é vista como o lugar da manifestação mais íntima do ser humano com a experiência vivida, que é para eles o ponto central de qualquer conhecimento. Pela arte o corpo expressa o que vivencia para além dos limites da razão, trazendo de volta o que Husserl chamava de “as coisas mesmas”. Para Merleau Ponty (2004, p.13), “a ciência manipula as coisas e renuncia habitá-las”. Reduz as coisas a conceitos pelos quais elas perdem suas particularidades, podendo assim ser 3 manipuladas. No encadeamento lógico necessário ao proceder científico, no que vimos que Heidegger chama de “princípio de razão”, há que se determinar as razões das coisas. A arte, pelo contrário, define-se pela sua falta de funcionalidade. Merleau-Ponty (idem, p. 15) descreve a atitude do artista de forma poética: “[o pintor] está ali, forte ou fraco na vida (aqui nos lembramos de Pablo Picasso como o exemplo da força, e Vincent Van Gogh como o da fragilidade2), mas incontestavelmente soberano em sua ruminação do mundo, sem outra “técnica” senão a que seus olhos e suas mãos oferecem à força de ver, à força de pintar, obstinado em tirar deste mundo, onde soam os escândalos e as glórias da história, telas que pouco acrescentarão às cóleras e às esperanças dos homens”. Essa gratuidade favorece a suspensão da racionalidade, e a aproximação ao que é sensível. Sinaliza para a existência de dois tipos de pensamento. Um é o pensamento funcional, que estabelece as razões, desmembra e codifica as coisas, trabalha com elas num nível de experimentação, criando modelos que podem ser aplicados a outras situações. Esse é o pensamento que o habitante das sociedades ocidentais ditas civilizadas exercita o tempo todo. O outro tipo de pensamento assume a forma, descrita por Hanna Arendt (1995), de um diálogo do indivíduo consigo mesmo. Para ela o verdadeiro pensamento é esse que, como a tela de Merleau-Ponty, não tem uma utilidade imediata e, mais que isso, não tem fim, no duplo sentido de que não fica pronto, e não tem finalidade. Esse tipo de pensamento só é possível através da imaginação, da possibilidade que temos de assumir diferentes pontos de vista, da capacidade de nos posicionarmos (internamente) em lugares variados. E é nesse ponto que chegamos às oficinas, espaços para habitar diferentes lugares através da imaginação, onde os participantes se reúnem com a intenção de re-conhecer e expressar o que sentem por meio de recursos expressivos de natureza artística. Nelas se pode exercitar um abandono consentidoao imprevisto, à ausência de julgamentos, à pura fruição de caminhos que não têm uma finalidade imediata, e que permitem dois movimentos. Um deles leva ao interior de cada um. É da atualização de nossos legados, das heranças que carregamos valores e modos de existir que nos constituem, que vive a oficina. A concretização das diversas maneiras como eles se organizam em nossas vidas em uma produção concreta, gerada pelo uso dos recursos expressivos, facilita o caminho para desentranhar da experiência vivida nossos modos de nomeá-la, para além dos rótulos e hábitos. 2 Comentário meu. 4 Por outro lado, a imaginação, que é o recurso por excelência das oficinas, nos carrega por mundos e existências antes impensados, promovendo a atenção e o respeito à diversidade. Referências Bibliográficas Arendt, H. (1995) De la história a la acción. Barcelona, Ediciones Paidós Ibérica. Heidegger, M. (1962) Le príncipe de raison. Paris: Gallimard. Merleau-Ponty, M. (2004) O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify.
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