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O SENTIDO DO MOVIMENTO. Entrevista com Alain Berthoh1 por Florence Corin2 ________________________________________________ Alain Berthoh e Florence Corin _ ________________________________________________ Tradução: Lucrécia Silk3 FC: Você acrescenta aos cinco sentidos tradicionais – visão, audição, olfato, tato e paladar - uma série em que o principal seria o sentido do movimento. Como é ele? Como nós o construímos? Ele “nasce” de uma combinação de sentidos, da cooperação de vários captadores sensoriais? AB: Sim; diversamente do que dizem os livros e do que geralmente aprendemos, nós não temos apenas cinco sentidos. Além da visão, do olfato, do tato, da audição e do paladar, temos captadores sensoriais que são espalhados pelos músculos, pelos tendões e pelas articulações. Nos músculos, eles medem o comprimento e a velocidade do estiramento muscular; nos tendões, as forças que exercem os músculos; e, nas articulações, o ângulo que nossos membros fazem entre si e a velocidade de flexão de um membro sobre o outro. Este conjunto constitui o que chamamos de propriocepção muscular e articular. Além disso, temos também captadores situados dentro da orelha interna, próxima (da orelha que ouve?). Eles formam o sistema “vestibular”, que é composto, de cada lado da cabeça, por cinco captadores. Três deles são os “canais semicirculares”, semelhantes a anéis de cortinas minúsculos, cheios de um gel viscoso, que se chama “endolinfa” e que, quando a cabeça faz movimentos de rotação, exerce, após as forças de inércia, uma pequena pressão sobre os cílios sensoriais, permitindo medir-se as acelerações angulares da cabeça (rotações) com uma precisão que é da ordem de um grau por centímetro quadrado - é extremamente precisa. Temos três captadores do tipo e se encontram em três planos perpendiculares. Um deles define a horizontalidade da cabeça: este plano, logo que a gente olha alguém de perfil, é marcado por uma linha que vai do (néat) da orelha até o (contur) do olho. Podemos, então, ter uma idéia quase precisa deste plano, que é o plano fundamental, horizontal. Os dois outros estão situados em dois planos que, contrariamente ao que poderíamos imaginar, não são os planos frontal e sagital, mas que estão a 45º em relação ao plano sagital e frontal do corpo. São, portanto, três canais semicirculares formando um referencial fundamental, euclidiano, perpendicular, para medir as rotações angulares da cabeça. Eles medem suas acelerações, quer dizer, as mudanças de velocidade, mas não sabem nada sobre a posição da cabeça. Existem também, na orelha interna, dois captadores suplementares fundamentais, os “otolithes”, que medem as acelerações lineares da cabeça, as translações. Um deles se chama “utricule” e mede as translações horizontais. O outro, “saculle”, mede as translações verticais, quando saltamos, por exemplo. Estes dois captadores medem, também, a inclinação estática da cabeça e constituem os referenciais que nos permitem saber quanto nossa cabeça está inclinada no espaço. E isto graças ao fato de que a gravidade é equivalente a uma aceleração. No momento em que inclinamos a cabeça, se produz uma variação da ação da gravidade sobre os captadores. Eles são formados por uma cavidade na qual se encontra um gel – aquele mesmo dos canais semicirculares – no qual flutuam cristais. A gravidade age sobre estes cristais que estão ligados à células sensoriais: no momento em que inclinamos a cabeça, a gravidade empurra os cristais. Tais captadores são, portanto, os “inclinômetros”. 1 Alain Berthoz é engenheiro, psicólogo e neurofisiologista. Suas hipóteses provêm de seus estudos no Laboratório de Fisiologia da Percepção e da Ação do Collège de France, Paris, onde atua como professor e pesquisador. 2 Responsável pela publicação da revista Nouvelles de Danse. 3 Atriz e educadora, aluna do Curso de Licenciatura em Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina. Os “otolithes” são importantes por que medem as translações e a inclinação estática da cabeça, mas ao mesmo tempo são ambíguos, pois podem enganar o cérebro já que não podem fazer distinção entre os dois. É necessário, portanto, que haja outros captadores para completar a informação e permitir ao cérebro se decidir, e isto é feito pela visão, que retira a ambigüidade advinda do fato dos captadores não poderem distinguir uma aceleração de um sentido ou de outro. Nós temos, na verdade, vários sistemas visuais. Falamos da “visão” quando na realidade o sistema visual é composto de vias paralelas que analisam a forma dos objetos, a velocidade, a cor, etc. O movimento do mundo ao redor de nós é, ele mesmo, analisado por vias muito rápidas, e por outras mais lentas. Nós temos várias “visões”! Existem, por exemplo, pelo menos três sistemas neuronais de análise do movimento, e podemos identificar pelo menos dez áreas do córtex cerebral que tratam de diferentes aspectos do mundo visual. A propriocepção muscular e articular e os captadores vestibulares cooperam com a visão e com os captadores táteis da pele – em conjunto com os do corpo e os dos pés, por exemplo, para medir nossos movimentos. Tudo isso forma o que chamei em meu livro de Sentido do movimento. Não existem, portanto, somente os cinco sentidos clássicos, serão oito ou nove. O que é absurdo e inacreditável é que, apesar da acumulação extraordinária de conhecimentos que nós temos atualmente sobre esses captadores, continuemos a falar em cinco sentidos! FC: A percepção do sentido do movimento é então, uma combinação de sensações. A ação combinada dos captadores vestibulares e da visão nos permite, por exemplo, situarmo-nos no espaço. Você disse, entretanto, que pode haver interpretações de sensações bem diferentes, ambigüidades. O que podemos fazer para construir uma percepção espacial coerente e gerir as incoerências perceptivas? AB: Partindo das informações de todos os sentidos, o cérebro, para coordenar nossos movimentos, deve construir uma percepção coerente e única da orientação e do movimento de nosso corpo no espaço. A coerência perceptiva é assegurada pelas convergências das informações de todos os nossos sentidos. Por exemplo, a visão e o sistema vestibular devem trabalhar juntos para medir o movimento. A visão permite medir a velocidade permanente, enquanto os captadores vestibulares só podem medir o momento da aceleração quando mudamos de velocidade. Dentro do elevador, a uma velocidade constante, não temos impressão de estarmos subindo. Os dois captadores são complementares. Cada captador – o da pele, o da orelha, o da visão – trabalha com uma geometria e uma dinâmica diferente, e o problema é a coerência. É uma construção, como está provado na vertigem. É suficiente que tenhamos uma ligeira otite, um ligeiro déficit vestibular, para termos uma vertigem. Então compreendemos a que ponto nossa percepção é uma construção do nosso cérebro. Existem casos onde, efetivamente, os captadores estão em conflito. O caso mais conhecido e desagradável é o mal dos transportes: quando uma criança está dentro de um carro e lê um livro, a visão diz ao cérebro que ela não se mexe, enquanto os captadores vestibulares, que continuam a medir as informações mesmo com os olhos fechados, dizem que ela está se mexendo. O conflito entre a visão e o sistema vestibular produz a náusea. É a mesma coisa quando estamos dentro de uma cabina de um barco: o quadro visual não mexe, mas as informações vestibulares nos dizem o contrário. Ou quando colocamos óculos novos. Durante um momento, se a gente vira a cabeça, o mundo parece virar com mais rapidez que normalmente, porque as lentes aumentam, enquanto os captadores vestibulares, proprioceptivos, etc., continuam dizendo que a cabeça mexeu de um mesmo ângulo. Então as fontes de conflitosão numerosas. O cérebro possui mecanismos para compensá-las. Compensações automáticas são feitas por estruturas como o cerebelo, que podem se encarregar de certas variações, como por exemplo, quando colocamos óculos novos, mas alguns conflitos são gerados por mecanismos fisiológicos que causam náusea, vertigem, e outros incômodos. FC: Eu me lembro de uma experiência que vivi num avião. Encontrava-me em um pequeno avião sob mau tempo, estava submersa em uma massa de nuvens, como em frente a um muro branco, sem nenhuma referência. Não tinha nenhum ponto visual onde me firmar e estava tudo muito confuso por causa disso. Eu não podia mais saber onde se situava a horizontal, não podia perceber a posição do avião em relação à horizontal. AB: O problema dos “otolithes” de que falei é conhecido dos pilotos de avião. Por muitos anos, aconteceram acidentes de avião bem graves durante a decolagem sob neblina, pois os captadores otolíticos não diferenciam a inclinação do avião de sua aceleração. Como ele acelera durante a decolagem ao mesmo tempo em que inclina – e os pilotos constantemente não têm confirmação ou informação visual - eles tinham a impressão de que o avião estava muito inclinado e davam um pequeno golpe no manche do avião, batendo de bico na pista. Quando se percebeu isso, aconselhou-se aos pilotos navegar através dos instrumentos de bordo nessas situações, felizmente para nós... FC: Então, nossa percepção sozinha não é suficiente para estabelecer uma situação no espaço, temos necessidade de referência para construir totalmente nosso posicionamento. Você distingue as referências dos referenciais. Pode nos explicar melhor? AB: Devido a diversidade dos captadores sensoriais, a necessidade de obter coerência e, sobretudo, ao fato de que a percepção serve para coordenar os movimentos – os dançarinos sabem que o corpo humano é composto por múltiplos elementos; na linguagem dos engenheiros, diz-se que existem certos graus de liberdade - é indispensável ter referenciais. A natureza descobriu, ao longo da evolução, muitas astúcias para construir tais referenciais. Primeiramente, se você olhar uma gazela, um leão que corre, um passarinho, ou mesmo um corredor à pé, ou um dançarino no momento em que ele evolui sobre uma base, constatará um fato evidente: que a cabeça é perfeitamente estabilizada no espaço. A gente percebe durante os movimentos complexos da corrida, do salto – é verdade para o surfista, para o dançarino – a cabeça intermitentemente estabilizada em rotação. Ela sobe e desce verticalmente, mas é estabilizada em rotação. A cabeça se torna o que os engenheiros chamam de uma plataforma estabilizada. Isso acontece graças à medida de orientação da cabeça em relação à gravidade pelo sistema vestibular. A gravidade é um referencial gratuito, um prumo dado pela natureza, que é utilizado desde muito cedo no curso da evolução para estabilizar a cabeça dos animais que começaram a se mexer e a voar. Portanto, a primeira grande referência é a gravidade, que permite criar essa cabeça estabilizada no espaço e a partir da qual são coordenados os movimentos do corpo. Quando fizemos esta descoberta, muita gente pensava que a postura, o equilíbrio e a coordenação dos movimentos complexos eram organizados a partir dos pés em direção à cabeça. Até a idade de 1 ou 2 anos, a criança começa a caminhar tendo como referência seus pés; depois que desenvolve uma série de mecanismos de controle, o homem passa a ter sua locomoção controlada a partir da cabeça. A segunda referência é a visão, evidentemente. O mundo visual comporta diferenças de verticais ou de horizontais. Nós sabemos, aliás, que os homens e as mulheres não têm a mesma sensibilidade em relação a esta referência visual. Os psicólogos mostraram há muito tempo que quando se coloca uma pessoa em uma peça inclinada em relação à vertical, as mulheres são mais sensíveis a influência de campo visual que os homens: se a gente lhes pede para indicarem a vertical, elas são mais influenciadas pela inclinação da peça; claro que isso não é verdade para todas as mulheres! Temos também um terceiro referencial, que é nosso próprio corpo. Já falei sobre os captadores vestibulares, mas o eixo do corpo, do tronco, serve também como referencial para coordenar os movimentos. Por exemplo, pudemos demonstrar que os cosmonautas no espaço, assim que não têm mais gravidade, se baseiam em outro referencial: o referencial do eixo dos seus corpos, a que chamamos de referencial idiotrópico. O cérebro, portanto, tem à sua disposição ao menos três ou quatro grandes sistemas de referência. Ele pode utilizar outros. O que é totalmente incrível – e eu penso que os dançarinos devem saber – é que o cérebro escolhe seus referenciais. Logo que queremos pegar um objeto, o cérebro cria de maneira temporária uma referência ao nível do ombro. Ele pode, na verdade, mostrar que todos os erros que a mão faz para apontar um objeto estão distribuídos segundo uma nuvem de erros, uma elipse de erros que é dirigida em direção ao ombro. O cérebro pode então escolher sua referência em função da situação, das condições, das informações que estão disponíveis. A flexibilidade dos referenciais é uma propriedade interessante do cérebro. A gente pode também utilizar um ponto de apoio como referência. Aqui também imagino que os dançarinos saibam, se a gente se encontra com um par que a gente pode tocar, o par também se torna um tipo de referencial local. Vocês sabem que a coreografia israelense Eshkol criou um sistema de rotação da dança graças ao qual podemos descrever os movimentos de dois dançarinos dentro de três grandes referenciais: em relação ao ambiente, em relação ao corpo do dançarino, em relação ao par. Esta última maneira de descrever os movimentos relativos do dançarino nos interessa bastante porque nos permite descobrir as variações que eles criam entre si... Aliás, estamos iniciando uma pesquisa sobre a questão do referencial em relação ao par. FC: Em relação ao parceiro, “Contact Improvisation” seria verdadeiramente propício a este tipo de pesquisa. Esta dança, onde dois corpos em movimento vão estudar como poderão evoluir juntos em relação a suas relações de peso e a gravidade, parece-me um tema de estudo muito interessante por que Contact Improvisation combina, ao mesmo tempo, a referência da gravidade e a referência do parceiro. AB: Estou diretamente interessado na questão, e penso que a dança é um modelo absolutamente único do trabalho de criação de formas por dois ou mais parceiros. Temos muito a aprender com a dança, gostaríamos muito de entrar em contato com os dançarinos e coreógrafos interessados neste assunto. Na interação de dois parceiros dançarinos, existe uma importante propriedade que intervém sem dúvida e da qual não falamos ainda. São as leis do movimento natural. Eu me explico: desenhe a figura de um 8 com o lápis sobre uma folha de papel ou faça a mesma figura com o dedo no espaço, com o braço estendido. Descobriu-se que existe uma relação muito precisa entre a velocidade do lápis ou do dedo ao longo da trajetória e da curvatura do gesto. Esta lei, chamada (Puissance 1/3), liga a cinemática do gesto (a velocidade tangencial) à geometria do gesto. Ela é válida para um grande número de movimentos. É uma lei do movimento natural. Se não se respeita esta lei, o movimento parece artificial. O que é interessante é que ela contraria a percepção do movimento: por exemplo, se você fizer mover um ponto sobre uma tela segundo uma trajetória elíptica, e pedir a um observador para regular a velocidade de modo que ele tenha a impressão de que o movimento está numa velocidade constante, na verdade ele regulará a velocidade de forma a que ela siga esta lei - e a velocidade não será constante. Ela dependerá da curvatura. Você pode ver que as leis da produçãodo movimento natural influenciam as leis da percepção do movimento. No momento em que dois dançarinos precisam combinar seus dois corpos em movimento, eles devem perceber essas leis que são ligadas aos mecanismos internos do cérebro. FC: Este número de “Nouvelles de Danse” foi construído em torno do trabalho de Lisa Nelson, coreógrafa, improvisadora, “videasta” americana, e no prolongamento de um atelier de pesquisa que ela conduziu em Bruxelas, em janeiro passado. Ela explorava, ali, o papel dos sentidos em relação ao movimento, fazendo os estagiários trabalharem – a grande maioria dos dançarinos – muitas horas com os olhos fechados. Como a percepção dos dançarinos se construía nesses movimentos de olhos fechados? E, sobretudo, num momento em que ela pedia, em certos exercícios, para iniciá-los pela cabeça. Nestes momentos, a cabeça não faz mais seu papel de plataforma estabilizada por que é dela que parte o movimento, não podendo guiar-se por seu peso, por exemplo, ou, seguindo o movimento dos olhos, já que as pálpebras estão fechadas. Como os dançarinos percebem, então, suas posições no espaço? AB: Isto é verdadeiramente interessante; gostaria de responder de duas maneiras. Na primeira parte de nossa conversa, eu te descrevi o conjunto de todos os sentidos e a maneira como cooperam para que o cérebro reconstrua a percepção do movimento. Mas eu gostaria de deixar bem claro que eu não penso absolutamente que é somente desta forma que funciona o cérebro. Penso que ele é essencialmente uma máquina biológica que prevê, que antecipa. O cérebro, efetivamente, não pode tratar as informações de todos os captadores ao mesmo tempo. Primeiramente, ele não se contenta em receber as informações sensoriais passivamente para combiná-las, ele busca as informações que são úteis e importantes para a ação em curso. Esta é a ação que guia a percepção. O cérebro seleciona previamente as informações sensoriais. Não podemos ser campeões de esqui e primeiro dançarino se o cérebro do dançarino ou do esquiador não fizer uma simulação mental dos movimentos que serão executados. O imaginário cerebral moderno permitiu, graças às câmeras de emissão de posição, ver a atividade do cérebro de pessoas que imaginam os movimentos sem executá-los. Constata-se que as mesmas estruturas estão ativadas ao menos em parte, no momento em que se imagina o movimento ou o executa. O cérebro é um grande simulador de ação. Além disso, o cérebro, ao mesmo tempo em que faz uma simulação mental dos movimentos, prevê o estado no qual os captadores sensoriais, ou determinados captadores sensoriais, deverão estar no momento determinado. O cérebro é um simulador, um “adivinho”, um seletor de informações. Isto quer dizer que é necessário reformular completamente a maneira como temos, correntemente, tendência a perceber o papel dos sentidos. Os sentidos são verificadores, o cérebro é um gerador de hipóteses que utiliza os sentidos unicamente para verificar as hipóteses que ele constrói em função das ações que ele planificou. Mas, tem mais: ao mesmo tempo em que o cérebro emite uma ordem motora, ele envia aos centros da percepção uma “cópia” da ordem motora. Esses sinais neurotonais foram chamados “cópia eferente” ou “descarga corolária”. Por que isto tem uma relação com sua pergunta? Porque o que guia nossos movimentos é uma representação interna das trajetórias desejadas e, a partir dessa representação, o cérebro tem a capacidade de escolher os sentidos que vão permitir-lhe guiar o movimento. Quando fechamos os olhos, esta é a sua pergunta, o cérebro reorganiza completamente os tipos de informações sensoriais que ele vai utilizar: as informações táteis, por exemplo, tornam-se mais importantes. Fizemos recentemente, no laboratório, estudos sobre o que chamamos de locomoção cega. Desenhamos sobre o solo – talvez os coreógrafos façam este exercício – um círculo ou um triângulo e mostramos à pessoa. Pedimos, então, que se locomova com os olhos fechados sobre uma trajetória que corresponde a este círculo ou triângulo desenhado sobre o solo. Eles o fazem muito bem, mesmo de olhos fechados. Isto quer dizer que eles construíram em seus cérebros uma representação mental da forma do espaço e, durante a locomoção, o cérebro pode re-atualizar de algum jeito esta locomoção. Mas o que mostramos é que, se pedimos a alguém para se locomover sobre um triângulo com os olhos fechados, logo que ele chega a um canto, é seu olhar que se vira primeiro. Dizendo de outra maneira: não vamos onde os pés nos dirigem, vamos, mesmo durante a noite, onde o olhar nos dirige. São os olhos que vão primeiro, depois a cabeça, depois o corpo que segue. A razão pela qual os olhos se antecipam à rotação do corpo na produção de suas trajetórias é, precisamente, por que a pessoa segue, em verdade, uma representação mental da trajetória em cuja direção quer chegar - que ela antecipadamente “vê”. Em seguida, todo o corpo acompanha. Reencontramos a idéia – que desenvolvi a pouco – do papel fundamental da cabeça na orientação, não unicamente de estabilização, mas criando uma trajetória que seguimos. Compreendo muito bem um dos interesses do trabalho de Lisa Nelson, por que efetuando movimentos durante horas com os olhos fechados, ela auxilia os dançarinos a formatar esta simulação mental do movimento e a permitir ao cérebro controlar o movimento a partir de todos os sentidos, menos a visão. Isto, sem dúvida, também tem a vantagem de liberar a visão para outros contatos, como a coordenação com outros dançarinos, por exemplo. Mas existem, sem dúvidas, outras razões e eu ficaria bem feliz em conversar com madame Nelson. FC: Esta idéia de representação mental é bem interessante. Ouvi dizer, igualmente, que mesmo entre os cegos de nascença, existiria uma parte do cérebro que construiria a representação em três dimensões. Então, mesmo sem o sentido da visão, haveria a construção de uma representação espacial. AB: Nos cegos, as experiências do imaginário cerebral revelam que as áreas do córtex visual são ativadas quando lêem em braile. As informações tácteis transmitidas pelo dedo que lê em braile atingem o centro da visão. A percepção é sempre multimodal, multissensorial. Da mesma forma, existe uma influência da visão sobre os primeiros neurônios que tratam das informações vestibulares. Bach-y-Rita demonstrou isto nos cegos pelas vibrações. Usando uma câmera e utilizando pequenos vibradores ligados a esta câmera, os cegos têm verdadeiramente uma impressão visual, eles vêem verdadeiramente um balão precipitando-se em direção a eles. FC: O cérebro é, então, uma máquina impressionante. Em relação aos sentidos, ele prevê e a partir desta previsão ele aciona determinados captadores sensoriais, ou outros. A noção de tempo é, então, eu presumo, fundamental. Que papel nossa memória desempenha na elaboração de nossa percepção? AB: A percepção é guiada pela ação. Praticamente não há resposta sensorial em que não tenhamos encontrado influência de signos motores. Vamos dar um exemplo. Falamos a pouco do olhar. Pois bem, nos nós do cérebro que tratam as informações vestibulares e visuais do movimento, os neurônios que codificam estas informações sensoriais são influenciados pela direção do movimento do olho. A intenção da ação modifica a percepção. A partir do momento em que aceitamos reverter esta idéia do funcionamento cerebral, é claro que a memória vai ter um papel importante. O cérebro tem a função de predizer as conseqüências da ação. Para isso, ele se baseia na memória das ações passadas e de suas conseqüências, a fim de predizer as conseqüências da ação. A memória não é feita simplesmente para se lembrar do passado, é uma ferramenta fundamental de previsão do futuro. Ela ajuda a preparar os sentidos a selecionar informações, serve ao cérebro para projetar sobre o mundosuas lembranças, para interpretar os dons dos sentidos. Quando à noite, no campo, vemos os rochedos, temos a impressão de que é um elefante, uma vaca, um crocodilo. Isto quer dizer que a memória projeta, prefigura - podemos dizer – a análise que vai fazer da visão de uma forma. A memória organiza nossa percepção. Você tem razão ao dizer que a noção do tempo é fundamental, mas ela é complexa. Na verdade, o cérebro trabalha dentro de múltiplas escalas de tempo. A percepção aciona mecanismos que são da ordem de milionésimos de segundos ou, pelo menos, de algumas dezenas de milionésimos de segundos. É necessário, pelo menos, 150 milionésimos de segundos para reconhecer uma forma natural. Outros mecanismos, como a memória chamada “de trabalho” (aquela que nos permite memorizar o número de telefone por algum tempo, ou um gesto), têm uma duração de algumas dezenas de segundos, outras, ainda, acionam alguns minutos e, enfim, a memória a longo prazo nos permite lembrar acontecimentos ou movimentos durante anos. Cada uma dessas escalas temporais é assegurada por estruturas diferentes do cérebro e por mecanismos que estamos longe de compreender inteiramente. FC: Vamos, então, da percepção à ação e da ação à percepção. É um ir e retornar constante e contínuo. AB: Sim, eu mesmo desenvolvi em meu livro a idéia de que “no início era a ação”, dizia Fausto. É a ação que temos a intenção de executar quem guia a percepção. Esta ação é organizadora da percepção. E a noção de antecipação é fundamental. O cérebro é, antes de tudo, um simulador de ação, e a percepção está a seu serviço. REFERÊNCIAS IN: CORIN, Florence (org.). Vu du corps. Nouvelles de danse. Bruxelles: CONTREDANSE. Périodique semestriel autonne – hiver 2001, n. 48-49, pág. 80-93.
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