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Crítica à Dualidade Abstrato e Concreto na Psicanálise

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UFSC – CFH – FIL5785 - Filosofia da Psicologia – Profª Carolina D. S. Noto 
Estudante: Igor S.Thiago de Souza (17101264) 
 
 
“(...) o que interessa no acto psicológico não é a sua matéria ou forma, mas o seu 
sentido.” (Politzer, 1975, p. 107) 
 
Botemos esta frase ao divã. 
“Quando foi a primeira vez que você se lembra de ter usado a palavra 
sentido​?” pergunta Freud à psicologia. 
A psicologia não é uma pessoa, tampouco histérica, mas sirvo-me de minha 
pequena narrativa fictícia para ilustrar a confusão e o brilhantismo de Freud. 
O excerto selecionado da página 107 de “Crítica aos fundamentos da 
psicologia” (POLITZER, 1975) incide diretamente no eixo da crítica por conter, já no 
capítulo segundo, a problemática da dualidade do abstrato e do concreto na 
psicanálise, desenvolvida mais profundamente no capítulo quinto. Ironicamente, a 
psicanálise enquanto descritora da ambivalência dos sujeitos diante do mundo, 
sofre do mesmo drama: encontra a chave de acesso à concretude – a produção de 
sentidos –, mas permanece portando-a no bolso, andando pelos corredores da 
abstração – a metapsicologia –, sendo portanto ambivalente em relação à psicologia 
clássica. 
O trecho em destaque a ser comentado eclode no segundo capítulo 
sustentando a visão de um ganho da psicanálise em relação à psicologia clássica, 
a qual Politzer (1975) chama de abstrata por ater-se a causas gerais para a 
explicação de seus fenômenos. Nessa perspectiva, a psicologia clássica não 
concebia os fenômenos psicológicos em função de um sujeito, mas como uma 
matéria independente, dotada de um determinado funcionamento, que pode ser 
estudado em sua positividade. De um ponto de vista formal que pretendia esgotar o 
assunto. 
Esta visão compreende a psicofisiologia e também a introspecção. O exemplo 
trazido para ilustrar a incompetência deste método foi o fenômeno do esquecimento. 
A psicologia clássica pretendia estudar os mecanismos formais da memória 
enquanto processo psicológico básico ou integrantes do grupo de funções 
psicológicas superiores. A contrapartida de Freud foi de reinventar este tema, 
considerando o fenômeno do esquecimento no próprio ato, no interior de uma 
narrativa, na particularidade. Questiona-se, portanto, acerca de quem esqueceu e 
que relação guarda com o conteúdo esquecido. Partindo dessas considerações, 
Freud pôde abrir uma grande contribuição: a descoberta do sentido. Tal feito coloca 
o sujeito no centro do fenômeno, pois o sentido se produz na trajetória da vida do 
sujeito. No entanto, esta não é uma trajetória Newtoniana, premeditada pela 
dinâmica de forças, mas que forma-se pela dialética de narrativas, por isso Politzer 
(1975) denomina “drama”. Creio que esteja justamente aí o ponto central 
argumentativo de Politzer (1975) para criticar Freud: não se trata de uma dinâmica 
de forças. Um vetor tem módulo, direção e sentido, mas o sentido do drama, por 
mais que imprima “força”, exerça uma “moção pulsional”, não é externa ao sujeito, 
tratando-se de um sentido de outra natureza, que não pode ser analisado num tom 
realista. Ademais, não há módulo – mensuração possível –, tampouco direção da 
força – forma, espaço –, contradizendo a primeira tópica. Jaz, nesta tópica um erro 
freudiano apontado por Politzer (1975) como resultado de uma tendência realista da 
psicologia vigente, a qual levou em si uma forma de transcendência que não ocorria 
no fenômeno de análise, mas sim na própria análise. 
Essa constatação da diferença da trajetória newtoniana e da trajetória dialética 
parece óbvia e Freud parece ingênuo quando posto desta forma, no entanto, 
Politzer (1975), no capítulo quinto, toma o cuidado de descer brevemente de seu 
pedestal para a ressalva de que Freud estaria tomado pelas necessidades e limites 
da ciência da época, que não suportava nem tolerava a simples concretude. Nesse 
sentido, Freud deu o primeiro passo em direção à concretude da vida dramática, 
mas não foi capaz, seja por pressão externa ou por limitação própria, de estabelecer 
uma ciência isenta de abstrações. 
Inclino-me a reforçar esta ressalva. Afinal, justamente o Complexo de Édipo, 
exaltado por Politzer (1975) no capítulo quinto como incidência da psicanálise na 
concretude da vida dramática, sustenta-se na compreensão da sexualidade infantil; 
questão fortemente reprimida pelos médicos e cientistas da época. Até hoje tendo 
baixa aceitação pelas pessoas no senso comum, ainda hoje a educação sexual 
emancipatória nas escolas tem sido combatida por pais adeptos de uma moralidade 
mais repressiva (GONÇALVES; FALEIRO; MALAFAIA, 2013). Entendo que a 
concretude seja pouco aceita no âmbito da ciência pois a ciência não é tida como 
ficção, diferentemente da arte, que acaba por ganhar maior liberdade para tratar de 
dramas concernentes a questões existenciais. Assistir a uma interpretação 
dramática de Édipo Rei num teatro é catártico. Mas um médico de alto prestígio 
constatar que vivemos a mesma situação dramática de Édipo e tantos outros 
dramas foi, e ainda é, um escândalo. 
Sobre a relação da psicanálise com a concretude, eu agregaria, aos apontamentos 
feitos por Politzer (1975), as reflexões de Maria Rita Kehl sobre a ética da 
psicanálise. Kehl (2002) analisa a depressão como uma epidemia contemporânea 
advinda do fato de as terapias cognitivas atuais, a fugacidade das relações e a 
lógica otimizadora-produtivista do mercado, além de entregarem sentidos prontos 
para consumo, visarem a eliminação do mal-estar. Empreendendo um ideal de vida 
isento das questões existenciais. “O homem contemporâneo quer ser despojado 
não apenas da angústia de viver, mas da responsabilidade de arcar com ela” 
(KEHL, 2002, p. 8). A ética da psicanálise sustentada pelo método da 
associação-livre é justamente a ética da responsabilização e implicação total do 
sujeito. Não pela lógica simplesmente individualista, meritocrática, associada aos 
resultados produtivos e capitalistas. Mas pela compreensão do sujeito enquanto 
co-participante dos dramas existenciais e produtor de sentido. Seria possível até 
abrir espaço para uma elaboração marxista junto de Politzer pensando a alienação, 
haja vista que sujeito enquanto objeto do capital não seria mais sujeito, não 
produzindo sentido e não vendo mais sentido na vida. A psicanálise, então, para 
Politzer (1975), entra de modo bastante adequado como um resgate das narrativas 
em 1ª pessoa, demandando uma revisão constante das dialéticas vividas. Residiria 
aí o poder transformador, “a mágica” que a ciência e a prática psicológica 
necessitavam, abordada por Politzer (1975) em seu capítulo primeiro. É nessa 
acepção que a obra de Politzer elucida a possibilidade de construção de uma 
psicologia concreta, isenta de abstrações, voltada para o sentido do ato psicológico, 
e não querendo estipular sua forma ou matéria.A materialidade do objeto da psicologia se dá pela sua originalidade, que é o 
conhecimento de si. E, portanto, a capacidade de gerar narrativas dramáticas. Esta 
seria a especificidade do ser humano. Nossa especificidade não se dá na forma de 
“funções psicológicas superiores” como até mesmo Vygotsky intuíra em toda a força 
de suas generalidades acerca do ser humano. A condição ontológica humana que 
diverge dos outros seres não pertence simplesmente aos giros do cerébro. Pertence 
à poesia, à história, à ficção, às paixões. Ao sentido. 
 
 
 
 
REFERÊNCIAS 
 
GONÇALVES, Randys Caldeira; FALEIRO, José Henrique; MALAFAIA, Guilherme. 
Educação sexual no contexto familiar e escolar: impasses e desafios. Holos, v. 
5, p. 251-263, 2013. 
KEHL, Maria Rita. Introdução, In: Sobre Ética e Psicanálise. ​São Paulo: Cia das 
Letras, 2002. 
POLITZER, Georges. ​Crítica dos fundamentos da psicologia​. Editorial Presença / 
Martins Fontes: Lisboa, 1975.

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