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472 Filosofia do Direito • Mascaro um fenômeno que, visto de longe, tem conexão profunda com a luta de classes e as relações de produção, fazendo uma constatação geral, Pachukanis se dedica a compreender sua especificidade, num trabalho muito mais profundo de desco- berta desses mecanismos. Pachukanis O jurista russo Evgeny Pachukanis (1891-1937) é o maior pensador do direito do marxismo. Sua expressividade se deve ao mergulho profundo que empreendeu para extrair, da lógica do próprio Marx – em especial nas suas obras de maturida- de, como em O capital –, uma teoria do direito, compreendendo sua especificidade e sua íntima conexão com o capital. Pachukanis, além de ser o que melhor com- preendeu essa dinâmica necessária entre direito e capital, é também quem mais radicalmente extraiu as consequências dessa relação e de seu aproveitamento nas lutas políticas revolucionárias. A sua grandeza se mede pela dificuldade do pensa- mento conservador – mesmo entre os esquerdistas e até de alguns marxistas – em acompanhar seu horizonte revolucionário. Pachukanis também esteve bastante próximo das atividades revolucionárias soviéticas. Além de inúmeros textos de intervenção política direta, escreveu aque- la que é a maior obra do pensamento marxista sobre o direito, o livro Teoria geral do direito e marxismo, de 1924. Na obra, Pachukanis trata, de maneira profunda e metodologicamente bastante consequente, do modo de apreensão do fenôme- no jurídico no capitalismo, compreendendo suas razões profundas e estruturais e estabelecendo as relações lógicas necessárias quanto ao direito no socialismo. Um primeiro pano de fundo, relativamente bem estruturado, do pensamento jurídico marxista havia já se construído com a obra de Stutchka. De fato, Pachukanis reconhece a importância de Stutchka, mas empreende uma construção ainda mais avançada do que a deste. Enquanto Stutchka reconhece que o direito é o resulta- do da luta de classes, separando-se pois dos juristas burgueses, que ignoram tal fato, Pachukanis vai além. Não se trata, o direito, somente do resultado da luta de classes, porque, embora sendo essa uma explicação verdadeira, não é ainda suficiente. Por que justamente o direito é o instrumento do qual a luta de classes se vale sob o capitalismo, e não algum outro instrumental? A essa pergunta, que não nega a luta de classes, mas que, pelo contrário, a aprofunda, dedicou-se a obra maior de Pachukanis. Encaminhando-se à busca dessa solução, Pachukanis se posiciona em relação ao pensamento de Stutchka, que insistiu na identificação do direito com as rela- ções sociais (e não com o mero normativismo) e com a luta de classes: As Filosofias do Direito Críticas 473 A nosso ver o companheiro Stutchka expôs corretamente o problema ju- rídico, ao considerá-lo como um problema de relações sociais. Porém, em vez de se pôr a investigar a objetividade social específica destas relações, regressou à definição formal habitual, mesmo estando esta circunscrita a características de classe. Na fórmula geral dada por Stutchka, o direito já não figura como relação social específica, mas como o conjunto das relações em geral, como um sistema de relações que corresponde aos interesses das clas- ses dominantes e salvaguarda estes interesses através da violência organizada. Neste sistema de classe, o direito não pode, por conseguinte, ser separado de modo algum, enquanto relação, das relações sociais em geral, e então Stutchka já não está habilitado a responder à insidiosa questão do professor Rejsner: como é que as relações sociais se transformaram em instituições, ou ainda, como é que o direito se tornou aquilo que é? A definição de Stutchka, talvez porque proveniente do Comissariado dos Povos para a Justiça, é adequada às necessidades dos juristas práticos. Ela nos mostra os limites empíricos que a história traça, a todo instante, à ló- gica jurídica, mas não traz à tona as profundas raízes desta mesma lógica. Esta definição revela o conteúdo de classe das formas jurídicas, mas não nos explica a razão por que este conteúdo reveste semelhante forma.32 Em relação a Stutchka, Pachukanis postula uma compreensão filosófica do direito ainda mais complexa. Já que o direito advém da luta de classes, mas ne- cessita ainda de uma explicação lógica de maior peso para explicar o porquê do instituto jurídico e não de outro instituto qualquer, Pachukanis mergulha na obra de maturidade de Marx, em especial em O capital, para entender, a partir do mé- todo marxiano, a própria lógica intrínseca do direito. É por meio dessa lógica que regeu, no texto de Marx, o entendimento do capital que Pachukanis também pas- sará a entender a lógica do direito.33 No nível metodológico, Pachukanis se revela um paciente e cuidadoso filó- sofo marxista para os assuntos do direito. Suas conclusões não são ponderadas por qualquer peso arrefecedor das oportunidades da realidade. Pelo contrário, na esteira do pensamento de Marx, suas reflexões quanto ao direito são rigorosas. Enquanto Stutchka toma o direito a partir de uma genérica relação do fenômeno jurídico à luta de classes – vinculação essa que está correta, mas, ainda assim, é 32 PaCHuKaniS. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo, Acadêmica, 1988, p. 46. 33 “A diferença fundamental entre Pachukanis e os demais juristas apresentados consiste que sua preocupação básica será delimitar o que seja a forma jurídica, compreendendo o direito a partir dessa sua forma, e não mais partindo de uma valorização exclusiva ou excessiva de seu conteúdo. Não seria suficiente um exame apenas do conteúdo material do direito em cada época, mas haveria a necessidade de examinar o modo como este conteúdo se exprime, sua forma de expressão.” ferreira, Questão de classes: direito, Estado e capitalismo em Menger, Stutchka e Pachukanis, op. cit., p. 98. 474 Filosofia do Direito • Mascaro genérica, somente válida quando se verifica o direito de longe –, Pachukanis parte do direito como um dado específico da realidade do capitalismo. Captar a especi- ficidade do direito é o empreendimento pachukaniano, que limpa o entendimento dessa generalidade. Assim nós evitaremos esta contradição aparente se chegarmos a demons- trar, mediante a análise das definições fundamentais do direito, que este representa a forma, envolvida de brumas místicas, de uma relação social específica. [...] Assim, antecipamos até um certo ponto a resposta à questão inicialmente exposta: onde haveremos de procurar essa relação social sui generis da qual a forma jurídica é o reflexo inevitável? Em seguida tentaremos demonstrar detalhadamente que esta relação é a relação dos proprietários das merca- dorias entre si.34 O resultado da aproximação de Pachukanis à fidelidade do método de Marx fará com que seus estudos cheguem a identificar, de maneira bastante profunda, o direito à circulação mercantil. Nessa relação, Pachukanis verifica que a forma mercantil equivale à forma jurídica, e a razão de uma é a própria razão da outra, tomada de modo reflexo. Nesse sentido, diz Márcio Bilharinho Naves, o mais im- portante estudioso do pensamento de Pachukanis: Relacionar a forma da mercadoria com a forma jurídica resume, para Pachukanis, o essencial de seu esforço teórico. De fato, a elaboração teó- rica de Pachukanis se dirige no sentido de estabelecer uma relação de de- terminação das formas do direito pelas formas da economia mercantil. 35 Toda a proposta de análise do direito segundo a perspectiva marxista é, em Pachukanis, a tentativa de uma compreensão não genérica do direito ligado ao ca- pitalismo, mas sim a compreensão da forma do direito como equivalente e reflexo da forma da mercadoria. Nas relações mercantis Pachukanis inscreve os conceitos de direito e legalidade, demonstrando o seu caráter capitalista. Assim, pode-se ver: É somente na economia mercantilque nasce a forma jurídica abstrata, em outros termos, que a capacidade geral de ser titular de direitos se separa das pretensões jurídicas concretas. Somente a contínua mutação dos direitos que acontece no mercado estabelece a ideia de um portador imutável destes direitos. No mercado, aquele que obriga alguém, obriga simultaneamente a si próprio. A todo instante ele passa da situação da parte demandante à 34 PaCHuKaniS, Teoria geral do direito e marxismo, op. cit., p. 42 e 45. 35 naveS, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo, Boitempo, 2000, p. 53. As Filosofias do Direito Críticas 475 situação da parte obrigada. Deste modo se cria a possibilidade de abstrair das diversidades concretas entre os sujeitos jurídicos e de os reunir sob um único conceito genérico.36 O marxismo jurídico de Stutchka e dos juristas soviéticos, mesmo ainda ao tempo da revolução, imaginava que o direito, baseado na luta de classes, fosse um instrumento de fato capitalista, mas com um possível uso socialista, como arma de combate. Ao final das contas, para o marxismo jurídico pré-pachukaniano, ainda restaria alguma mínima neutralidade nos instrumentais jurídicos e estatais. No entanto, para Pachukanis, o direito e as funções estatais estão ligados necessaria- mente à forma da circulação mercantil. Dirá Pachukanis, nesse sentido, tratando da coerção estatal por meio do direito na circulação mercantil capitalista: Na medida em que a sociedade representa um mercado, a máquina do Estado estabelece-se, com efeito, como a vontade geral, impessoal, como a autoridade do direito etc. No mercado, como já foi visto, cada consumidor e cada vendedor é um sujeito jurídico por excelência. Nesse momento, quan- do entram em cena as categorias do valor, e do valor de troca, a vontade autônoma dos que trocam impõe-se como condição indispensável. O valor de troca deixa de ser valor de troca, a mercadoria deixa de ser mercado- ria quando as proporções da troca são determinadas por uma autoridade situada fora das leis inerentes ao mercado. A coação, enquanto imposição fundamentada na violência colocando um indivíduo contra o outro, contra- diz as premissas fundamentais das relações entre os proprietários de mer- cadorias. É por isso que numa sociedade de proprietários de mercadorias e dentro dos limites do ato de troca, a função de coação não pode aparecer como uma função social, visto que ela não é abstrata e impessoal. A subor- dinação a um homem como tal, enquanto indivíduo concreto, significa na sociedade de produção mercantil a subordinação a um arbítrio, uma vez que isso equivale à subordinação de um proprietário de mercadorias pe- rante outro. Eis a razão por que também aqui a coação não pode surgir sob a forma não camuflada, como um simples ato de oportunidade. Ela deve aparecer antes como uma coação proveniente de uma pessoa coletiva abs- trata e que é exercida não no interesse do indivíduo donde provém, pois numa sociedade de produção mercantil cada homem é um homem egoísta, porém, no interesse de todos os membros que participam nas relações jurí- dicas. O poder de um homem sobre outro expressa-se na realidade como o poder do direito, isto é, como o poder de uma norma objetiva imparcial.37 36 PaCHuKaniS, Teoria geral do direito e marxismo, op. cit., p. 76. 37 Ibid., p. 97-98. 476 Filosofia do Direito • Mascaro O lastro da identificação do direito à circulação mercantil, Pachukanis o extrai da própria maneira pela qual Marx descobre os fundamentos da lógica do capital. Marx não analisa o capital começando de seus desdobramentos superiores e úl- timos. Sua perquirição para entender o mecanismo do capitalismo se dá a partir dos elementos mais básicos, primeiros, a partir dos quais se desdobram relações mais complexas. Assim sendo, Marx não explica o capitalismo a partir das gran- des transações bancárias e da especulação financeira, mas sim dos mecanismos basilares da troca mercantil. Tais mecanismos põem em funcionamento uma má- quina institucional que lhe é necessária e reflexa. Tal máquina e tais relações se desdobram e se refinam posteriormente. Mas, justamente por isso, em se tratando de um refinamento e de um desdobramento de uma mesma lógica, o núcleo dessa lógica está em sua existência simples. Todos os elementos da teoria geral do di- reito, como direito subjetivo, dever, responsabilidade, sujeito de direito, atrelam- -se necessariamente à própria forma da mercadoria. Pachukanis é explícito nessa ligação metodológica a Marx: As premissas materiais da comunidade jurídica ou das relações entre os sujeitos jurídicos foram definidas pelo próprio Marx no primeiro tomo de O capital, ainda só de passagem e sob a forma de anotações muito gerais. Estas anotações, porém, contribuem muito mais para a compreensão do momento jurídico nas relações humanas do que qualquer volumoso tratado sobre teoria geral do direito. Para Marx a análise da forma do sujeito tem origem imediata na análise da forma da mercadoria.38 No quadro do capitalismo, antes de suas relações financeiras e especuladoras, e antes mesmo do desenvolvimento da exploração industrial, as relações de lucro já se estabeleceram a partir do desenvolvimento das trocas mercantis. No nível das trocas entre vendedores e compradores já se estabelece um mecanismo jurídico, porque é necessário que haja uma instituição estatal-jurídica para empreender o respaldo da relação entre os contratantes privados. Não se devem tomar as relações capitalistas como um bloco genérico para que fique clara, então, a verdade do direito. Mas tampouco o direito pode ser entendido de maneira abstrata, fora da história específica das próprias relações capitalistas. O direito é imediatamente verificado já quando, pelas primeiras vezes, estrutura- -se um sistema de trocas mercantis generalizadas. O fundamento metodológico de Pachukanis, assim sendo, demonstra-se muito fiel ao do próprio Marx. A forma jurídica não é tomada como um mero normativismo genérico, fora da história. É a circulação mercantil que dá especificidade ao direito. Assim sendo, a forma ju- 38 Ibid., p. 70. As Filosofias do Direito Críticas 477 rídica é um dado histórico-social concreto, do plano do ser – e não mais do dever- -ser, como o foi com toda a tradição metafísica e juspositivista. Sobre o método em Pachukanis, diz Celso Naoto Kashiura Júnior: Pachukanis pode tratar com muita propriedade da história da forma jurídi- ca porque, contrariando as teorias dominantes, encontra a especificidade do direito não no descolamento quanto à realidade social, mas nela pró- pria. A forma jurídica é, segundo sua visão, não essencialmente normativa (“dever-ser”), mas forma de relação voluntária entre sujeitos equivalentes, forma esta cuja gênese reside numa relação social determinada, a relação de troca mercantil. Uma vez que a forma jurídica está no “mundo real” (do “ser”), captar a sua história se torna possível – sua história acompanha a história da relação de troca. [...] A abordagem de Pachukanis abriu um novo caminho nos domínos do es- tudo do direito. Um caminho original, só não original em absoluto porque sua tradição e seu fundamento são aqueles legados da obra de Karl Marx, então já bastante desenvolvidos em domínios como a economia e a política. Um caminho insurgente, por certo, visto que nega centralidade à categoria da norma jurídica e por isso aparece desde o princípio como um ponto de vista a ser descartado a todo custo pelo pensamento jurídico tradicional.39 Para Pachukanis, a forma jurídica não corresponde a um quadro de trocas tomado no seu sentido genérico, ou então a meras trocas simples. As relações jurídicas, identificadas às relações mercantis, só existem como tal a partir de um sistema generalizado de trocas, isto é, a partir de um sistema de trocas mercantis capitalistas.E a própria dialética entre troca e produção não passa despercebida para Pachukanis. A relação entre forma jurídica e forma mercantil é complexa, porque se refina e se plenifica nas próprias relações de produção. Contra os que leem apressadamente Pachukanis, e pensam ser a determinação da forma jurídi- ca pela forma mercantil uma determinação simples, Márcio Bilharinho Naves a considera uma sobredeterminação: É verdade que há, para Pachukanis, uma relação de determinação ime- diata entre forma jurídica e forma da mercadoria, como vimos, mas a de- terminação em Pachukanis é, a rigor, uma sobredeterminação. A esfera da circulação, que determina diretamente as formas do direito, é por sua vez determinada pela esfera da produção, no sentido preciso de que só o espe- cífico processo de organização capitalista do trabalho permite a produção 39 KaSHiura Jr., Celso Naoto. “Dialética e forma jurídica: considerações acerca do método de Pachukanis”. In: naveS, Márcio Bilharinho (Org.). O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. Campinas, IFCH/Unicamp, 2009, p. 59 e 76. 478 Filosofia do Direito • Mascaro de mercadorias como tais, isto é, como o resultado de um trabalho que se limita a ser puro dispêndio de energia laborativa indiferenciada. Ora, se a forma do direito depende da forma da mercadoria, e se esta só se realiza no modo de produção capitalista, então a forma jurídica também depende do modo específico de organização do processo de trabalho decorrente da instauração das relações de produção capitalistas.40 Por isso, somente quando a estrutura mercantil se torna regra geral é que também as estruturas jurídicas se generalizam. O mundo do Império Romano ti- nha trocas simples, que não se generalizavam estruturalmente, e, assim também, o direito romano continha normas quanto às trocas, mas não havia um sistema jurídico universalizado de contratos. O direito romano corresponderia a um siste- ma primitivo, justamente porque Roma não estava estruturada de modo mercan- til capitalista, mas sim de modo escravagista, e que, portanto, tinha nas relações mercantis um complemento, e não a regra geral. Já no capitalismo, quando tudo e todos se trocam no mercado, é a escravidão que se torna incidental. Do mesmo modo que os atos de troca da produção mercantil desenvolvi- da foram precedidos por atos ocasionais e formas primitivas de troca, tais como, por exemplo, os presentes recíprocos, assim também, o sujeito jurí- dico, com toda a esfera de domínio jurídico, foi morfologicamente prece- dido pelo indivíduo armado, ou, com maior frequência, por um grupo de homens (gens, horda, tribo), capaz de defender no conflito, na luta, o que para ele representava as suas próprias condições de existência. Esta estreita relação morfológica estabelece uma clara ligação entre o tribunal e o due- lo, entre as partes de um processo e os protagonistas de uma luta armada. Porém, com o crescimento das forças sociais disciplinadoras, o sujeito perde a sua concretização material. No lugar de sua energia pessoal nasce o po- der da organização social, isto é, da organização da classe, cuja expressão mais elevada se encontra no Estado. A abstração impessoal de um poder de Estado, agindo regular e continuamente no espaço e no tempo, de maneira ideal, é aqui o mesmo sujeito impessoal e abstrato do qual ele é reflexo.41 Pachukanis chega, com sua identificação do direito às relações mercantis, ao cerne da especificidade jurídica no pensamento marxista. Não se trata apenas de um aparato de uma classe exploradora sobre outra. Se assim o fosse, o direito seria igual ao exército, aos meios de comunicação, à religião, todos estes que, ao seu modo, também operam como aparatos de uma classe sobre outra. O direito tem uma lógica específica, além dessa generalidade de ser aparato de classe. Sua 40 naveS, Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis, op. cit., p. 72. 41 PaCHuKaniS, Teoria geral do direito e marxismo, op. cit., p. 76. As Filosofias do Direito Críticas 479 especificidade reside no fato de que somente se estrutura o capitalismo quando, nas relações mercantis, que lhe são já sua primeira etapa e forma necessária, ins- titucionalizam-se também mecanismos jurídicos. O sujeito concreto que compra e vende livremente assim o faz porque também o direito tornou-o um sujeito jurí- dico, a partir dos instrumentais do direito subjetivo, do dever, da capacidade, da competência, da responsabilidade. Nesse sentido, diz Celso Naoto Kashiura Júnior: A forma sujeito de direito surge, como bem notou Pachukanis, sob o impe- rativo da forma mercadoria – a igualdade jurídica surge, portanto, sob o imperativo da equivalência mercantil. A equivalência jurídica dos homens surge a partir da expansão da equivalência econômica das mercadorias para o “outro lado”, o lado dos portadores das mercadorias. É porque as mer- cadorias se equivalem que os homens portadores de mercadorias devem igualar-se: a igualdade jurídica é, a princípio, nada mais do que consequên- cia da “igualdade” das mercadorias. Aqueles que trocam devem reconhecer, um no outro, seres da mesma qualidade, ou seja, cada um deve reconhecer no outro um igual, no exato sentido em que uma mercadoria reconhece na outra uma igual.42 A especificidade do direito como aparato necessário das relações mercantis é tal que, em face da religião e dos meios de comunicação, é possível claramente pensar em estruturas capitalistas não religiosas ou mesmo antirreligiosas, sendo possível pensar também em capitalismo sem meios de comunicação ou contra es- tes, mas restando impossível imaginar o capitalismo sem o aparato jurídico. Para a livre exploração do trabalho assalariado, que se dá mediante contrato, e para a garantia do lucro da venda e da apropriação dos bens, é preciso que haja o direi- to. O direito, assim, ao contrário da religião e dos meios de comunicação, que são aparatos úteis ao capitalismo, é-lhe um aparato necessário. Stutchka, embora denunciando o caráter de classe do direito, não alcançou o entendimento de sua especificidade, mantendo-se, então, numa espécie de cultu- ralismo jurídico refinado e avançado de esquerda.43 Pachukanis é quem apreen- 42 KaSHiura Jr., Celso Naoto. Crítica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista. São Paulo, Quartier Latin, 2009, p. 210. 43 Stucka, no prefácio à terceira edição de seu livro Direito e luta de classes, responde a Pachukanis a esse respeito: “No intervalo que transcorreu desde a primeira edição apareceu uma série de livros que, de uma ou de outra maneira, completam o meu trabalho, mesmo apesar de em parte não con- cordarem com a minha posição. Recordarei em primeiro lugar o trabalho Teoria Geral do Direito e Marxismo, de E. Pachukanis. O autor sustenta igualmente o caráter classista de todo o direito, mas fundamenta o seu trabalho de forma diferente e coloca questões distintas. Aproxima a ‘forma jurídica’ da ‘forma mercantil’ e tenta desenvolver um trabalho análogo ao realizado por Marx na economia política. [...] Desta maneira o autor concluiu que o direito deriva da troca de mercadorias e que não aparece antes dela, esquecendo a outra fonte do direito, as relações de domínio na propriedade pri- 480 Filosofia do Direito • Mascaro de o cerne do direito no pensamento de Marx. O direito, para Pachukanis, não é apenas um aparato a serviço da burguesia, ele está intimamente atrelado à pró- pria lógica do capital: Concordo, com reservas precisas, com uma outra censura que me dirige o companheiro Stutchka, a de não reconhecer a existência do direito a não ser na sociedade burguesa. Efetivamente tenho afirmado, e continuo a afir- mar, que as relações dos produtores de mercadorias entre si engendram a mais desenvolvida, universal e acabada mediação jurídica, e que, por con- seguinte, toda a teoria geral do direitoe toda a jurisprudência “pura” não são outra coisa senão uma descrição unilateral, que abstrai de todas as ou- tras condições das relações dos homens que aparecem no mercado como proprietários de mercadorias. Mas, uma forma desenvolvida e acabada não exclui formas embrionárias e rudimentares; pelo contrário, pressupõe-nas. As coisas apresentam-se, por exemplo, da seguinte maneira no que concerne à propriedade privada: só o momento da livre alienação revela plenamente a essência fundamental desta instituição, ainda que, sem sombra de dúvida, a propriedade, como apropriação, tenha existido antes como forma não só desenvolvida como também muito embrionária, da troca. A propriedade como apropriação é a consequência natural de qualquer modo de produção; porém, a propriedade só reveste a sua forma lógica mais simples e mais geral de propriedade privada quando se tem em vista o núcleo de uma determi- nada forma social onde ela é determinada como a condição elementar da ininterrupta circulação dos valores que se opera de acordo com a fórmula Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria. E quanto à relação de exploração sucede exatamente o mesmo. Esta, bem entendido, em nenhum caso vê-se ligada à relação de troca sendo igual- mente concebível numa economia natural. Porém, é apenas na sociedade burguesa capitalista, em que o proletariado surge como sujeito que dispõe da sua força de trabalho como mercadoria, que a relação econômica da ex- ploração é juridicamente mediatizada sob a forma de um contrato. É justamente por isso que na sociedade burguesa a forma jurídica, em opo- sição ao que acontece nas sociedades edificadas sobre a escravidão e a ser- vidão, adquire uma significação universal; é por isso que a ideologia jurídica se torna a ideologia por excelência e que também a defesa dos interesses vada dos meios de produção (e da terra em primeiro lugar). [...] O autor, embora analise somente o direito da sociedade burguesa [...], tirou conclusões relativas ao direito em geral, ou seja, aplicáveis também ao direito de outras épocas da sociedade classista. Porém, com esta ressalva, a obra é uma contribuição muito valiosa para a nossa literatura teórica marxista.” StuCKa, Direito e luta de classes: teoria geral do direito, op. cit., p. 11. As Filosofias do Direito Críticas 481 de classe dos exploradores surge, com um sucesso sempre crescente, como a defesa dos princípios abstratos da subjetividade jurídica.44 Percebe-se que a compreensão do direito e da legalidade, em Pachukanis, alça voos mais altos do que uma mera constatação do domínio burguês do Estado, para situar a legalidade na própria circulação econômica capitalista. O capitalis- mo, assim, é o momento superior que faz da igualdade e da liberdade condições da circulação econômica livre entre iguais, e a partir daí instaura-se a legalidade como mediação que estabelece essa igualdade formal. O mundo soviético, que se dividia entre o aprofundamento da libertação re- volucionária de Lênin e as tendências conservadoras no próprio seio da revolução, encontra em Pachukanis seu pensamento mais consequente, e, justamente por isso, mais incômodo aos que buscavam uma administração a partir da dominação esta- tal. É o fim do Estado e do direito o propósito político da libertação da exploração capitalista. Márcio Bilharinho Naves aponta a radicalidade das consequências do entendimento jurídico pachukaniano: O problema da relação entre o direito e o socialismo é o “centro nervoso” da teoria pachukaniana. Poderíamos mesmo dizer que é com base nela, isto é, no modo como Pachukanis apresenta essa questão e a resolve, que a sua análise da relação entre a forma jurídica e a forma mercantil se ilu- mina e ganha pleno significado – a um tempo teórico e político. De fato, se Pachukanis admitisse a possibilidade de um direito “socialista”, toda a sua construção teórica estaria comprometida. Se o socialismo implica a grada- tiva superação das formas mercantis, um direito que se qualificasse como “socialista” seria tanto uma impossibilidade teórica como um objeto a ser combatido politicamente. [...] A posição de Pachukanis permite reapresen- tar a questão da extinção do direito e do Estado, questão que ocupa lugar central na concepção de Marx e Engels.45 Em face de toda uma tradição que parece não ter levado o pensamento de Marx à radicalidade devida, a grande importância de Pachukanis para o problema da legalidade e da política reside na tentativa de proceder, na esteira de Marx, a uma compreensão do direito e do Estado não apenas como um domínio político à disposição ou da burguesia ou do proletariado (no caso de um Estado socialista), mas empreender entendê-los a partir das próprias estruturas econômicas capita- listas. Nessa linha, Pachukanis fará da legalidade necessariamente a legalidade burguesa. Sua consequência é rigorosa: um direito socialista é uma contradição em termos. Essa concepção, na União Soviética de Pachukanis, foi-lhe muito custosa. 44 PaCHuKaniS, Teoria geral do direito e marxismo, op. cit., p. 13-14. 45 naveS, Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis, op. cit., p. 87. 482 Filosofia do Direito • Mascaro A manutenção indefinida de um Estado soviético, por parte de Stálin, poderia ser entendida, sob a perspectiva esposada por Pachukanis, como um prolongamento de uma organização burguesa, e, portanto, revelando-se um entrave ao desenvol- vimento da luta pelo avanço socialista.46 O Estado, na perspectiva teórica de Pachukanis, indissociavelmente é uma etapa capitalista, burguesa. A ruptura com o Estado e com o direito talvez seja um dos mais marcantes dísticos da perspectiva de Pachukanis.47 Toda insistência em um direito proletário, em um direito revolucionário, ou é do momento revolucio- nário – portanto fadado a um breve fim – ou é meramente reformista. É certo que, na medida em que a nova sociedade esteja alicerçada em ele- mentos da antiga sociedade, ou seja, a partir de homens que concebem os vínculos sociais apenas como meios para os seus fins privados, as simples diretivas técnicas racionais assumirão também a forma de um poder estranho ao homem e situado acima dele. O homem político será ainda, na expressão de Marx, um “homem abstrato, artificial”. Porém, quanto mais as relações mercantis e o incentivo ao lucro estiverem sendo radicalmente suprimidos da esfera da produção, mais cedo soará a hora dessa libertação definitiva de que falou Marx no seu ensaio sobre A questão judaica: “Somente quando o homem real, individual, tiver retomado em si o cidadão abstrato, e quando como homem individual na vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, se tiver tornado o ser genérico, somente quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças como forças sociais, 46 “Evgeni Bronislavovic Pasukanis pode ser considerado, com efeito, um autor ‘maldito’. Depois que suas teorias tiveram uma grande influência nos anos 20 e ele mesmo ocupara cargos importan- tes na URSS, Pasukanis foi o principal alvo dos ataques de Vysinskyj, que lhe acusou de ‘espião e sabotador’, ‘traidor’, ‘pseudocientífico’, e à sua concepção de direito como ‘teoria pútrida e daninha’, ‘anti-marxista’ etc. Vítima da repressão stalinista (pelo que parece, foi detido e fuzilado em 1937, durante os processos de Moscou), foi reabilitado em 1956, mas nem assim sua concepção de direito seguirá sendo considerada na URSS – como dizemos – ‘inconsistente’, ‘daninha’ – ao configurar o direito soviético como direito burguês – e ‘errônea’ – ao reduzir a forma do direito soviético às relações mercantis. Inclusive, quando se trata de comparar sua concepção de direito com aquela de outro grande teórico da época pré-staliniana, o saldo resulta claramente favorável para Stucka. A razão disso, compreende-a Strogovic no seguinte: ‘Fundamental, para Stucka, é a função revolucionáriado direito soviético, função que falta pelo contrário em Pasukanis. No processo de construção do socialismo tem-se – para Stucka – uma consolidação, uma potencialidade da fundação do direito; para Pasukanis, pelo contrário, se verifica sua atenuação, um esgotamento do direito. Para Stucka o direito expressa as relações de produção; para Pasukanis expressa as relações mercantis, as relações de troca’.” atienza; manero, Marxismo y filosofía del derecho, op. cit., p. 78. 47 “Diferentemente inclusive dos outros autores de que antes havíamos tratado (Stucka, Vysinskij), Pasukanis considera que o direito não é nem sequer um meio adequado para ser utilizado no processo de consecução do socialismo, daí sua afirmação de que, na época de transição, do que se necessita não é direito, mas sim política.” Ibid., p. 90. As Filosofias do Direito Críticas 483 e quando não tiver de separar de si a força social sob a forma de força po- lítica, somente então se terá consumado a emancipação humana”.48 A transformação do trabalho, o fim das relações de classe, é o fim da própria forma do direito: Uma vez estabelecida a forma de troca de equivalentes, estabelece-se igual- mente a forma do direito, a forma do poder público, isto é, estatal, e, por conseguinte, esta permanece, ainda durante algum tempo, mesmo quando já não exista a divisão de classes. O aniquilamento do direito e como ele o do Estado só acontece, segundo a concepção de Marx, quando “o trabalho não é apenas um meio de viver, mas ele próprio se transforma na primeira necessidade vital”; quando com o desenvolvimento universal do indivíduo tenham aumentado também as próprias forças produtivas; quando todos os indivíduos trabalhem voluntariamente segundo as suas capacidades ou, como diz Lênin, quando se tenha ultrapassado “o horizonte limitado do di- reito burguês que obriga a fazer cálculos com a aspereza de um Shylock: ‘terei eu trabalhado meia hora a mais do que o vizinho?’”, numa palavra, enfim, quando a forma da relação de equivalências tiver sido definitivamente ultrapassada.49 A veemência contra o Estado, contra as concepções institucionais da política, mesmo as proletárias, dá a lembrança dos claros limites da legalidade, a qual era preciso ultrapassar: A transição para o comunismo evoluído não se apresenta, segundo Marx, como uma passagem para novas formas jurídicas mas como um aniquilamen- to da forma jurídica enquanto tal, como uma libertação em face desta he- rança da época burguesa destinada a sobreviver com a própria burguesia.50 O refinamento de Pachukanis quanto ao Estado e ao direito é muito grande. De fato, ele reconhece usos políticos e jurídicos ideológicos que se somam à es- trutura lógica necessária do direito e do Estado ao capital. Tais usos são inciden- tais, mas existentes, o que explica, no limite, os vários tipos de Estado e mesmo os tantos direitos, mais ou menos ditatoriais, mais social-democratas ou mais libe- rais, dentro do próprio capitalismo. A crítica de Pachukanis ao Estado e ao direito ainda prossegue no sentido de apontar a utilidade da instância jurídica e estatal aos propósitos burgueses: 48 PaCHuKaniS, Teoria geral do direito e marxismo, op. cit., p. 88. 49 Ibid., p. 28. 50 Ibid., p. 28. 484 Filosofia do Direito • Mascaro O Estado jurídico é uma miragem que muito convém à burguesia, uma vez que substitui a ideologia religiosa em decomposição e esconde aos olhos das massas a realidade do domínio da burguesia. A ideologia do Estado jurídi- co convém ainda mais do que a ideologia religiosa porque ela não reflete completamente a realidade objetiva ainda que se apoie nela. A autoridade como “vontade geral”, como “força do direito” concretiza-se na sociedade burguesa na medida em que esta representa um mercado. De acordo com este ponto de vista, os regulamentos de polícia também podem ser conce- bidos como a encarnação da ideia kantiana da liberdade limitada pela li- berdade de outrem. Os proprietários de mercadorias livres e iguais, que se encontram no mer- cado, só o são na relação abstrata de apropriação e da alienação. Na rea- lidade eles estão mutuamente unidos por todas as espécies de vínculos de dependência recíproca. Deste modo, por exemplo, o pequeno comerciante e o atacadista, o camponês e o latifundiário, o devedor arruinado e o seu credor, o proletário e o capitalista. Todas estas infinitas relações de concre- tas dependências fixam-se o fundamento real da organização estatal. Para a teoria jurídica do Estado, todavia, tudo se passa como se elas nem sequer existissem.51 Assim sendo, é possível apontar, no pensamento de Pachukanis, uma ligação funcional e uma ligação ideológica do Estado e do direito ao capital. A funcional é a razão mesmo de ser desses aparatos institucionais. A ideológica é incidental, mas não no sentido de opcional, e sim como suplemento, na medida em que a ideologia jurídica é plenamente arraigada nas sociedades capitalistas, que tem ne- cessidade de marcar, pela aparência de igualdade, uma realidade de desigualdade. Ao tomar a postulação de Marx da totalidade das relações sociais como um edifício com alicerce e paredes que deste se levantam, ou seja, infraestrutura e superestrutura, o direito está nos dois. No alicerce porque é a relação necessária que acompanha a própria circulação mercantil e sua exploração. Nas paredes por- que sustenta como braço da estrutura da circulação ou, como suplemento, uma miragem ideológica. Pachukanis, que jovem foi executado, devido às perseguições stalinistas, em- preende, com a associação do direito como reflexo necessário e sobredeterminante da esfera da circulação mercantil – sem prejuízo das demais operações de domínio incidentais que se lhe possam agregar –, a mais fiel e radical interpretação jurídica do pensamento de Marx. 51 Ibid., p. 100-101.
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