Buscar

fichamento_noeli

Prévia do material em texto

O readymade delimita sua gramática com base em uma narrativa sentrada na noção de crítica da produção simbólica, configurando-se como arte reflexiva, sentidos corporificados. Por sua vez, as impecáveis telas de Vermeer, meditativas e exatas, o fazem com base na narrativa da mimese, engajando-se num projeto de veros-similhança, isto é, a conquista progressiva da aparência visual que, na arte holandesa do séc. XVII, se converte na arte de descrever (o que se vê é o que se pinta, utpictura, ita visio), traduzida pelo próprio Vermeer numa cartogra¬fia de interiores domésticos e intimidades cifradas em preciosismos pictóricos. E impensável para Danto conceber a arte sem que esteja inscrita em algurr. tipo de narrativa. Isso porque a própria identidade da obra é fixada por uma interpretação crítica referente a um mundo da arte saturado de teorias, narrati¬vas e crenças históricas, o que implica que toda a obra é historicamente loca¬lizada numa rede de significações, segundo coordenadas precisas. Sob esse aspecto, pode-se dizer que toda a obra de arte é site especific (in situ), e, por isso mesmo, nem tudo pode ser arte em qualquer momento da história. Quem na Florença dos Mediei ou na Roma da Contra-Reforma, nas quais o requinte cortesão ou a retórica barroca modulavam as práticas pictóricas, concederia à obra de David Reed ou John Cage o estatuto de arte?
Mas, sobretudo, aqui transpira o filósofo, bem como a disciplina das "re¬gras do método", que o distingue como crítico dos historiadores da arte, dos críticos artistas, dos poetas críticos, dos críticos intelectuais ou do fait divers, pelas suas análises rigorosas que delimitam a arte numa ontologia sui generis. Um mesmo método filosófico é o que confete sistematicidade às suas teses sobre a natureza da arte, estabelecendo relações com uma semântica da re¬presentação artística, uma filosofia da histótia da arte, o fim da arte, as estru¬turas narrativas e os princípios de uma crítica de arte. Se o crítico soa contro¬verso, é por conta de sua lucidez feérica, de um argumento inequívoco que disseca identidades inscritas em esttuturas narrativas no labotioso percurso do conceito.
O fim da arte, para Danto, é definitivamente o fim de uma narrativa do desenvolvimento histórico da arte, que se iniciou no Quattrocento com Vasari, culminou com Clement Greenberg na narrativa modernista (de Manet, 1880, à década de 1960), e entrou em colapso, na década de 1960, com o paradoxo da Brillo Box, o ready-made pop de Warhol, indistinguível de uma mera coisa. Por conseguinte, o problema da identidade da obra de arte, equacionado filo¬soficamente (no argumento "dos objetos materialmente indiscerníveis",), se generaliza a todo o gênero arte e, revogado seu caráter empírico e imediato, passa a ser uma questão metafilosófica e histórica, esta reconsttuída interpretativa e criticamente. Isso significou que, com a arte pós-histórica, isto é, a avant-garde dos anos 60 e 70, uma história da arte consumava seu propósiro e convertia-se na sua própria consciência ("autoconsciência da sua identidade") tornando assim aces¬sível, ao conceito filosófico, a verdadeira natureza da arte. 
Certamente Warhol, com seus ready-mades — obras indiscerníveis de meras embalagens de sabão —, decreta o fim da arte e, inadvertidamente, conjura uma tese filosófica, na medida em que os conceitos tradicionais não podem mais ser aplicados, tornando urgente a questão de uma definição de outra ordem, distinta da perceptual. Transposta ao domínio filosófico, essa defini¬ção circunscreve obras de arte no âmbito da representacionalidade, isto é, enquanto veículos semânticos tais como palavras, diagramas, imagens, etc. que mantêm uma importante "distância filosófica" entre representação e rea¬lidade, linguagem e mundo. A primeira condição, portanto, a ser satisfeita por uma obta de arte é sua intencionalidade: que ela deva ser sobre alguma coisa (aboutness), ou seja, deva veicular um conteúdo semântico, o que recipro-camente implica ter uma interpretação cujo conteúdo é aquilo de que trata a obra.
Vale lembrar que, para Danto, algo constitui-se em arte mediante um processo transformativo, no qual a "interpretação artística", como um batis¬mo ou iniciação (análogo à identificação mítica ou religiosa), entroniza obje¬tos no idioma e no mundo da arte, conferindo-lhes uma nova identidade. Ao deslocar a obra da ontologia dos objetos físicos, do plano perceptual para um nível intencional ("reino de significações"), a obra resulta de uma interpretação artística: um processo transfigurativo que faz do objeto um signo artístico. Ou seja, graças à identificação transfigurativa, um suporte material qualquer é transformado num médium artístico, permitindo-nos compreender como, por exemplo, uma mancha de tinta pode se tornar ícaro, no quadro de Peter Bruegel, ou como o expressionismo abstrato celebrizou a pintura como puro pigmento ("... Black and white paint, and nothing more"!), não aquele dos tubos de tinta, mas pigmento essencial, transposto ao idioma da arte como substância da pintura.
Intrepidamente, o autor atualiza um análogo do Bildungsroman der Geist hegeliano para caracterizar esse acidentado percurso histórico, na tentativa de especificar estruturas objetivas em que se acham engastadaas e se articulam as narrativas históricas do mundo da arte, segundo a "lógica oblíqua" de um movimento que as atravessa e contrapõe. A tese do fim da arte, apesar de se opor à narrativa modernista greenberguiana, também, como esta, funda sua filosofia numa certa leitura da história da arte segundo a qual a possibilidade filosófica da questão da natureza da arte fica determinada pela sua possibilidade histórica. O seu diferencial consiste em considerar o fim da arte como nada mais que a emergência da "autoconsciência", momento em que sua definição filosófica surge como questão interna da própria história da arte. Segundo o autor, tal "pensamento é completamente hegeliano" — a transcrição literal da seguinte tese de Hegel sobre o fim da arte:
Em todas essas relações a arte, considerada na sua mais elevada vocação, é e permanece para nós uma coisa do passado. Desse modo ela perdeu para nós a vitalidade e a verdade genuínas, antes transferindo para nossas idéias em vez de manter sua antiga necessidade na realidade e ocupar seu mais alto lugar. O que agora é suscitado em nós por obras de arte não é apenas a satisfação imediata mas também nosso juízo, uma vez que submetemos à nossa conside¬ração intelectual (i) o conteúdo da arte, (ii) os meios de apresentação da obra de arte e a adequação ou inadequação de um ao outro. A filosofia da arte é portanto de maior necessidade em nossos dias do que à época em que a arte por si própria produzia plena satisfação. A arte nos convida à consideração intelectual, e isto não com o fim de ainda criar arte, mas de conhecer filosofi¬camente o que é arte. 
Para Hegel, isso significava que a arte não era mais a manifestação sensí¬vel do Espítito Absoluto. A perfeita adequacidade de forma (modo de apre¬sentação) e conteúdo, como a expressão sensível do conteúdo universal do espírito alcançada pela escultura grega clássica, já não poderia ser mais intuída sensivelmente, mas exigia a mediação do juízo. Sinalizava, desse modo, a passagem das formas da arte (através da religião) para a filosofia, no percurso fenomenológico e especulativo do Espírito que descreve na Fenomenologia e reintroduz, incidentalmente, na sua Estética.
Para Danto, significa o deslocamento da positio quaestionis — do problema da essência da arte para a questão da indiscernibilidade material e diferença ontológica entre arte e não-arte suscitada historicamente pelas Brillo Boxes de Warhol. Ou seja, o deslocamento de uma fenomenologia da verdade da arte, em que a diferença deve ser encontrada em propriedades descritivas, para uma teoria semântica da representação artística, em que a diferença reside no "modo de apresentação" do conteúdo que implica uma interpretação crítica, que é histórica.Esse outro nível de consciência filosófica da arte torna possível a coexistência pacífica de diversas narrativas num cenário pluralista marcado por seu caráter disjuntivo.
Ao contrário, a condição objetiva da arte pós-histórica é a suspensão dessa progressão compulsória, como encadeamento necessário entre períodos direcionado a um clímax (essência da arte), resultando na supressão de uma certa estrutura histórica objetiva, qual seja, a perspectiva teleológica da histó¬ria. A conseqüência fundamental é que o modernismo se exaure e o contem¬porâneo tem início quando a filosofia se separa da estética, em virtude da emergência do conceito filosófico de arte. A era pós-histórica prescinde da estética para legitimar-se, sendo marcada pela disjunção dos caminhos da arte e da filosofia, de modo que a sua crítica deve ser tão pluralista e heterogê¬nea, idiossincrática e fragmentária quanto a própria arte de que trata, pois não há nem constrangimentos estilísticos nem filosóficos que notmatizem ou resttinjam a constituição do sentido.
Uma declaração de Andy Warhol tomou tal estado de coisas emblemático: "Como você pode dizer que um estilo é melhor do que o outro? Você deve ser capaz de ser um expressionista abstrato hoje, na próxima semana um artista pop ou um realista, sem sentit que desistiu de alguma coisa". Essa afirmação de uma liberdade positiva e itresttita é uma réplica à narrativa modernista, à "era dos manifestos", pautada no impetativo histórico da unidade estilística e, conseqüentemente, num conflito incontornável entre estilos . Isso é muito próximo da condição do fim da história preconizado por Marx e Engels em A idelogia alemã, livro no qual se sustenta que a superação da dominação e da luta de classes inaugura uma liberdade insuspeitada em que cada indivíduo pode exercer a atividade que melhor lhe convier: "... pescar à tarde, criar gado à noitinha, fazer crítica depois do jantar, apenas enquanto tenho uma mente sem que com isso me torne um caçador, um pescador, um pastor ou um critico .
Em Danto, isso se traduz numa lógica das estruturas históricas que per¬mite estabelecer períodos de continuidade, catactetizados por uma gama de possibilidades e práticas significativas próprias daquela estrutura narrativa, mas que não exclui uma solução de descontinuidade em que o próprio estatu¬to da arte é posto em questão. Desse modo, insiste o autor, a história da arte no ocidente não comporta mais nenhuma "evolução" ou desenvolvimento subseqüente, e a questão da natureza filosófica da arte, que o próprio percur¬so da história tornou enfim acessível, passa a ser problema dos filósofos, desonerando de tal tarefa os artistas, agora livres de quaisquer limites exter¬nos, livres para ser o que quiserem e à revelia "de uma certa agonia histórica" que impõe, num determinado estágio, o modo de ser "autêntico". Artistas como Sigmar Polke, Gerhardt Richter, Rosemarie Trockel, Bruce Naumen, Sherrie Levine, Komar e Melamid, que — transgredindo limites de gênero (genre) e contaminando os media tradicionais — exemplificam a prática pós-narrativa que consagra a extinção do "puro".
Certamente Danto perfila-se com Duchamp no repúdio à estética (leia-se doutrina formalista) como critério definidor da arte, distinguindo, de forma drástica, a obra de arte do objeto estético, mediante uma definição metafilosófica que, enquanto distinção categorial, a isola numa ontologia pró¬pria. Ou seja, a questão propriamente é: o que é arte?, ou o que a distingue ontologicamente da realidade e de outras linguagens, mas não o que a quali¬fica como "boa ou má arte", no sentido de uma atribuição de "qualidade". Isso ainda implica segregar a estética da filosofia da arte, emancipando a crítica de arte num novo formato que prescinde de injunções normativas.
Ora, isso o posiciona naturalmente como o antípoda do grande mentor do "novo formalismo", Clement Greenberg ("Clem"!), que deu forma e legitimi¬dade filosófica ao estilo exptessionista abstrato no avant-garde de Nova York das décadas de 1940 e 1950. Greenberg, pode-se dizer, inventou o modernis¬mo como teoria estética, conferindo estatuto filosófico e legitimidade à prati¬ca de um grupo de artistas notáveis, teunidos sob o rótulo do expressionismo abstrato. Celebrizou, num átimo, pintotes antes pouco conhecidos como Kline, Rothko, Pollock, e de Kooning.
Danto confronta os pressupostos filosóficos dessa prática crítica de Greenberg, supostamente inconsistentes e pingados na estética clássica de Kant, sobretudo na Analítica do belo, primeiro livro da Crítica da faculdade do juízo estético (1790-1793). Contabiliza entre os seus lapsos o fato de desconsiderar o background específico dessa estética que surge como disciplina autônoma no séc. XVIII — uma época em que a prática da arte permanecia estável sob o inquestionável "padrão do gosto". E nem mesmo o início do modernismo em 1880, replica Danto, foi suficiente para forçar os teóricos de então a repensar suas categorias estéticas. No entanto, a estética torna-se anacrônica para abordar a arte depois da década de 1960, isto é, a "arte após o fim da arte", nascida de um impulso crítico, reflexivo, político e antiestético.
Segundo Danto, Greenberg ignora por completo essas restrições e vê, na estética clássica kantiana, o fundamento impecável para a sua própria estéti¬ca, derivando até, das reflexões kantianas, o critério absoluto da "qualidade estética", ou seja, o veredicto imediato de um gosto deputado pela experiên¬cia. Nada senão a "experiência" da arte (percepção da "qualidade na arte") a distingue da natureza. Desse modo, admite que "olho experimentado" é aquele capaz de discriminar arte boa de arte ruim, de qualquer tipo, sem "qualquer conhecimento das circunstâncias específicas de produção na tradição a que pertence". De fato, Greenberg explora certas idéias da Crítica da faculdade do juízo estético de Kant para fundar sua estética, mas justamente isso, na visão de Danto, é seu pecado capital.
Danto localiza, milimetricamente, o ponto em que se instala a contradi¬ção, a saber, dois princípios contrabandeados da estética clássica kantiana que condenam a teoria de Greenberg. O primeiro afirma que a beleza prescinde de regras,21 derivado da noção kantiana de gênio como o "talento, dom natural ou faculdade produtiva inata que dá regra à arte”, justificando, desse modo, que o juízo crítico opere pela suspensão das regras com base exclusivamente numa certa experiência. O segundo é, na verdade, o “primeiro dogma da estética”, pois implica a separação entre estética e prática, que, confiscando qualquer interesse e isolando a arte de todo prosaico, autoriza a presunção de universalidade do juízo de gosto num puro formalismo, subtração estética de diferenças e matizes locais, abstraindo a inscrição história das formas de vida em puras sintaxes formais. 
O CONJUNTO DESSES ENSAIOS conflui no capítulo final, que condensa o argumento do livro ao explorar a questão das modalidades históricas que, o autor confessa, "o atormentaram por um longo tempo". Sua filosofia da arte tem como objetivo tornar compatível essencialismo e historicismo (de ascendência hegelíana), e os termos nos quais a formula são ditados pela extrema heterogeneidade da arte no cenário contemporâneo, que radicalizou-se pela inclusão de obras tão inverossímeis quanto Fountain e Brillo Box.
Com base nessa dupla perspectiva, Danto constrói uma nova definição, allinclusiv, que deve aplicar-se universalmente a todo tipo de arte — medieval, oriental, ocidental, abstrata, figurativa, pintura, instalação,performance, vídeo, etc, pois pretende articular o próprio conceito de arte como uma categoria ontológica distinta. Segue-se daí a disjunção fundamental para o pensamento de Danto, entre sua filosofia e sua prática crítica, na medida em que a sua teoria enquanto metafilosófica não trata senão da estrutura metafísica da obra e, desse modo, não restringe, sob nenhuma hipótese, o território da crítica, complementar à filosofia, permitindo individuarobras mediante uma inter¬pretação complexa que reintroduz as teorias e narrativas históricas próprias do mundo da arte. A questão do fim da arte interessa aqui, sobretudo, em relação às implicações dessa tese para uma prática crítica como o fio condutor de um outro modus operandi compatível com o cenário artístico atual.
A influência da estética e da filosofia da história hegelianas é evidente e fecunda, repercutindo numa formulação sofisticada da semântica da repre¬sentação artística. Danto celebra a perspicácia histórica de Hegel na sua ma¬gistral Estética, ao introduzir o filtro da narratividade histórica no contraponto do conceito (o ideal do belo), mediante a textura histórica, local, idiossincrática do seu "modo de aptesentação", pois a arte romântica deveria parecer distinta da clássica, e assim por diante. Ora, é precisamente esse conceito que Danto tefina como corporificação {embodiement), "adequação recíproca de conteúdo e meios de apresentação", a noção crucial para compreender o sentido comple¬xo da representação da arte, o qual, extravasando os conceitos de sentido e teferência, provavelmente se aproxime da noção complementar de Farbung em Frege. Mas fundamentalmente, tanto o conteúdo intencional {aboutness) da obta como seus meios de apresentação {embodiement) são conceitos históricos.35
Esse imenso menu de escolhas artísticas não é o saldo do desconstrutivismo, mas de uma reconfiguração histórica pós-narrativa em termos de uma irredutível disjuntividade, um pluralismo estrutural que marca o fim das gran¬des narrativas da arte. O que num cenário normativamente não estrututado, que dissolve todas as hierarquias, e sem "coisas primeiras ou últimas" implica forçosamente a mediação do "juízo", e a reflexão torna-se tão imprescindível que institui a identidade da obra de arte cujo esse é interpretan, quase filosofia, conceito corporificado. Mais que isso: significa que, num cenário tão hetero¬doxo, compreendendo uma gama de interesses, obras e atitudes tão diversas, tão próximas da desconcertante complexidade do humano e distantes dos cânones, que "a experiência da arte torna-se antes uma aventura moral que um interludio estético". Saudemos a publicação em português deste livro que condensa as teses mais polêmicas de Danto, permitindo-nos compreen¬der a embaraçosa questão de como ainda podemos fazer arte "após o fim da arte", mas, sobretudo, porque fazemos arte do modo em que o fazemos.
Já o grito modernista, dado, por exemplo, pelo caso de A Fonte (1917), de Marcel Duchamp, não levanta a questão ‘o que é arte?’, mas sim a idéia de ‘por que algo é uma obra de arte, quando algo exatamente idêntico a isso não o é?’. A questão levantada por Duchamp antecipa o problema filosófico exposto por Danto, requisitou um objeto antecedentemente resistente ao mundo da arte – como um mictório – de modo a chamar a atenção para o fato de que, afinal de contas, ela já estava no mundo da arte. Para o autor, a obra de Duchamp marca o início da era dos ismos e em cada um deles a necessidade da arte investigar a sua própria identidade. Esta Era de Manifestos “trouxe o que supunha ser filosofia ao centro da produção artística. Aceitar a arte enquanto arte significava aceitar a filosofia que a libertava, e a filosofia em si mesma consistia em uma espécie de definição hipotética da verdade da arte” (DANTO, 2006, p. 34)
 
Duchamp levanta a questão da natureza filosófica da arte dentro da própria arte, “implicando que a arte já é filosofia numa forma vívida e se desincumbiu agora de sua missão histórica ao revelar a essência filosófica no seu coração. A tarefa agora pode ser entregue à própria filosofia, que é equipada para dar conta de sua própria natureza, direta e definitivamente. Assim, o que a arte terá atingido como sua realização e fruição é a filosofia da arte” (DANTO, 2006b, p. 10). Com a pop art, a arte chega a um fim, reconhece que não há uma narrativa exclusiva sobre ela. Começam então a aparecer bordões do tipo “tudo é obra de arte’” ou “todo mundo é artista” que nunca aconteceriam se algum artista estivesse, por exemplo, imbuído do espírito de um dos ismos citados. “A história da busca, pela arte, de uma identidade filosófica havia se acabado. E, agora que havia se acabado, os artistas estavam livres para fazer tudo o que desejassem fazer. (...) Pintar casas isoladas na Nova Inglaterra, fazer mulheres com tinta, caixas, ou pintar quadrados. Uma coisa não é mais certa do que outra. Não há mais uma direção única. Na verdade, não há mais direção.” (DANTO, 2006, p. 138-139). E aqui voltamos ao exemplo de nosso ponto de partida: as Brillo Boxes, de Warhol.
 
Então as discrepâncias entre o modo como esse objeto é de fato mostrado e o modo como ele seria mostrado se o objetivo fosse a mera equivalência perceptual já não marca uma distância a ser percorrida pelo progresso da arte ou pela maestria da técnica ilusionista do artista, mas consiste, antes, na externalização ou objetificação do sentimento do artista diante daquilo que ele mostra. O sentimento é então comunicado ao espectador apenas no grau em que esse pode inferi-lo a partir das discrepâncias. (...) Porque agora nós temos que decidir em que medida as discrepâncias para com uma equivalência perceptiva ideal são uma questão de deficiência técnica e em que medida são matéria de expressão (DANTO, 2006c, p. 12, grifo meu)
 
A queda da finalidade da perfeição mimética da arte, sua implosão pelos movimentos do início do século XX, juntamente com a emergência do expressionismo abstrato, por exemplo, das action paiting, e a apropriação direta do real pela arte em meados da década de 1960, produzem o fim de uma história na arte, dividindo-a numa seqüência de atos individuais. “Uma vez que a arte torna-se construída como expressão, a obra de arte deve nos remeter ultimamente para o estado de espírito de seu autor, se nós temos que interpretá-la.” (DANTO, 2006c, p. 13). Como sugere Danto, se o que vemos “é algo que depende mais e mais de uma teoria para sua existência como arte, de modo que a teoria não é algo externo a um mundo que ela não procura entender (...) na compreensão do objeto ela tem que entender a si mesma” (DANTO, 2006c, p. 17).
 
Nesse sentido, há uma clara diferença entre os produtos acabados de Duchamp e as obras da pop art, como a Brillo Box de Warhol. “O que quer que tenha conseguido, Duchamp não estava celebrando o comum. Ele estava, talvez, depreciando a estética e testando os limites da arte”. (DANTO, 2006, p. 146-147). Diante da mudança, Duchamp, espantado, talvez olhasse para os rumos da arte com um grande ponto de interrogação. Anos mais tarde, Warhol, admirado, faz o mesmo – mas com um grande ponto de exclamação.
 
A fruição de uma experiência estética se deve a recorrência de algo menos misterioso, mas mais convencional. “Saber que uma ação está acontecendo num teatro é suficiente para termos certeza de que não está acontecendo de verdade´” (DANTO, 2005, p. 61). A mesma função de perímetro convencional desempenha as aspas numa citação, as vitrines ou as molduras. Mais tais parênteses, segundo Danto, são inibidores de crença muito poderosos. (DANTO, 2005, p. 62). Rompendo-os ou escamoteando-os, a questão emerge com mais força – e o conhecido caso de Orson Welles na transmissão radiofônica de “Guerra dos Mundos” é um bom exemplo.
Danto só pode chegar a esta conclusão ao identificar um momento de ruptura, de
descontinuidade com a maneira como se vinha fazendo e avaliando objetos de arte
desde o início da chamada “Era da Arte”, ou seja, do Renascimento para frente. Como
não existe mais uma forma específica que determine como as obras de arte devem ou
não ser produzidas, a história das narrativas alcança enfim um final: e é este final, como
veremos mais adiante, que Danto identifica com o fim da história da arte. Clement
Greenberg não pôde enxergar a ruptura nestes termos, mas chegou bem próximo de
fazê-lo. Greenberg redefine a história da arte a partir do Modernismocomo história da
pureza, isto é, se há uma continuidade com o modelo vasariano de evolução artística,
esta evolução não está na mímese – e sim na aquisição de “graus” de pureza cada vez
mais elevados.
Seja como for, tanto Danto quanto Greenberg foram partícipes diretos da história da arte no século XX; penso que friccionar o pensamento de ambos pode ser um bom ponto de partida para discutir a pertinência ou não de pelo menos duas grandes questões da filosofia da arte em nosso tempo: a primeira, relativa à definição; a segunda, relativa ao julgamento. A primeira pergunta: o que é arte? E a segunda: como é possível definir se determinada obra é melhor ou pior que outra? Com sorte, talvez seja possível trazer à tona alguns problemas relativos a qualquer tentativa de se chegar a uma conclusão bem delimitada das questões acima propostas.
Antes de mais nada, creio ser importante apontar o que diferencia o movimento histórico que marca a arte no início do século XX dos movimentos históricos anteriores – isto é, o que faz do Modernismo um capítulo especial na história da arte. Partindo de um ponto comum, Greenberg e Danto concordam que o Modernismo inaugura uma nova era para as artes pictóricas: a arte moderna coloca em primeiro plano as características nãomiméticas da pintura. Isto só é possível porque o Modernismo opera um movimento bem próximo daquele operado por Kant em sua Crítica da Razão Pura: da mesma forma que a Razão vira-se para si mesma a fim de investigar sua própria natureza, a arte vira-se para si mesma e acaba também – para parafrasear Danto – tornando-se seu próprio assunto. A diferença está na direção tomada por cada um a partir daí: de um lado, Greenberg e o “purismo”; de outro, Danto e o “pluralismo”. Para Greenberg, o “virar-se para si mesma” levaria necessariamente cada arte a identificar aquilo de único na natureza de seus meios. Cada arte deveria se aferrar àquilo de específico de seus próprios meios materiais e se livrar dos efeitos tomado dos meios de quaisquer outras artes – “assim, cada arte se tornaria ‘pura’, e nessa ‘pureza’ iria encontrar a garantia de seus padrões de qualidade, bem como de sua independência”.1 A mímese deveria ser abandonada, portanto, como meio de dissimulação tomado da escultura, cedendo lugar às características próprias da pintura: a planaridade, a própria tela, as tintas, etc. Daí a grande aposta de Greenberg na pintura abstrata, e particularmente por algum tempo no expressionismo abstrato norte-americano. A arte abstrata representaria o ponto culminante de uma narrativa histórica inexorável2:
Na verdade, boa parte dos artistas – senão a maioria – que deu contribuições importantes para o desenvolvimento da pintura moderna chegou a ela com o desejo de explorar a ruptura com o realismo inativo em busca de uma expressividade mais forte, mas a lógica do desenvolvimento foi tão inexorável que, no final das contas, sua obra não passou de um degrau a mais rumo à arte abstrata, e a uma maior esterilização dos fatores expressivos. Foi assim com Van Gogh, Picasso ou Klee. Todos os caminhos levaram ao mesmo lugar.3
Se, para Greenberg, a modernidade marca o início de um processo de limpeza de campo nas artes, Danto vê o mesmo fenômeno engendrar o início de uma crise: a era dos “ismos” desemboca exatamente no oposto do purismo que marca seu começo – o último “ismo” corresponde a um “pluralismo” em que tudo é permitido. Danto pensa a história da pintura como história das narrativas, dividindo-a assim em dois principais episódios de natureza progressiva: o “episódio Vasari” e o “episódio Greenberg”. O episódio Vasari (século XIV ao XIX) caracteriza-se pela prevalência da narrativa mimética, enunciada, é claro, por Giorgio Vasari – ou seja, a arte deveria se pautar por uma progressiva conquista das aparências. O advento da fotografia e, mais tarde, do cinema, colocou um fim à era vasariana. Com o fim da era vasariana, a pintura realiza um movimento introspectivo e, perguntando-se acerca da própria função, abre as portas para um novo modelo narrativo: entra em cena a busca pela identidade. A narrativa
greenbergiana caracteriza-se assim pela busca do ideal de “pureza” – cada arte progressivamente deveria se entricheirar naquilo que possui de mais próprio em seu meio material. O fim do episódio Greenberg coincide com o surgimento da arte pop
(meados da década de 60): a arte pop anuncia o fim da arte, “quando a arte reconheceu que não havia uma aparência especial que devesse ser assumida como própria da obra de arte”.4 A arte produzida após a pop destaca-se da arte produzida no Modernismo na medida em que se livrou das estruturas narrativas: tornou-se, neste sentido, arte póshistórica – arte contemporânea.
Afirmei anteriormente que não era possível estabelecer nenhuma diferença entre o estético e o artístico; que toda experiência estética deveria ser considerada arte. Mas fui obrigado a levar em conta a diferença entre a experiência estética em seu estado mais bruto e abrangente – que denominei “arte crua” – e o gênero de experiência estética comumente reconhecido como arte – que denominei de arte “formalizada” ou “formal”.5
Se toda experiência estética deve ser considerada arte, isto quer dizer que nós humanos produzimos arte desde quando produzimos experiências estéticas – até onde sei, desde que nos entendemos por seres humanos. Qualquer situação pode ser vivida esteticamente, desde que a experiência recue sobre si mesma, possibilitando assim uma participação passiva na própria experiência vivida. Ou seja: “a experiência estética é a experiência da experiência”.6 Arte formalizada é o que acontece com a experiência estética quando se deseja torná-la comunicável, pública. A comunicação da experiência estética exige que a mesma seja submetida a determinadas convenções – tais convenções (ou formas) demarcam o campo da arte formalizada. A progressividade histórica faz com que só seja possível à arte formal – se pretende ser arte de qualidade
(ver nota 1) – aderir às convenções elegidas por seu próprio tempo. Não há nada na natureza de qualquer arte que a leve a ser necessariamente desta ou daquela maneira –
“o imperativo”, como diz Greenberg, “vem da história”.7 Em última instância, as convenções estabelecidas historicamente submetem-se ao “gosto” de cada época; o que equivale a dizer que a arte é sempre a mesma, e sua formalização é determinada historicamente pelo gosto.
Em Danto, a resposta é relativamente mais simples: se após o “fim da arte” tudo pode ser uma obra de arte, a pergunta “o que é arte?” deixa de fazer sentido. Uma definição filosófica da arte não poderia excluir nada, uma vez que a arte está a partir de então liberada da história (isto é, das definições históricas que tinham por função delimitar aquilo que ela deveria ser). Uma definição filosófica da arte que seja abrangente o bastante para captar todas as suas manifestações deve ser, portanto, essencialista e
extra-temporal. Ela deve assumir que as definições acerca da natureza da arte anteriores ao fim da arte não passaram de mascaramentos. Se o fim da história da arte anuncia a validade artística de praticamente qualquer coisa, ele também torna imperativa uma definição filosófica trans-histórica da arte: todos os momentos históricos anteriores devem ser tomados em sua totalidade, uma vez que a “essência” da arte só se revela por meio da história. “A verdadeira descoberta filosófica”, diz Danto, “penso ser, na verdade, que não existe uma arte mais verdadeira do que outra, bem como não há uma única forma que a arte necessariamente deva assumir: toda arte é igual e indiferentemente arte”.8 Concluindo: se para além do essencialismo filosófico (ou da imutabilidade greenbergiana) aquilo que caracteriza a arte está também atrelado a um momento específico na história, em Greenberg esta história conduz inexoravelmente ao purismo (ela limita); para Danto, a narrativa histórica do purismo leva a arte a um esgotamento interno do qual ela só pode se libertartornando-se pós-histórica, ou seja, abrindo as portas para todas as possibilidades. Passemos enfim à segunda pergunta: é possível distinguir a arte boa da ruim?
Quero retomar a discussão acerca da experiência estética em Greenberg. Havíamos dito que, para Greenberg, “a experiência estética é a experiência da experiência”. Não se pode jamais recuar, entretanto, da experiência estética propriamente dita: e isto porque os juízos estéticos são inseparáveis de seus objetos ou circunstâncias específicas. A experiência estética deve sempre ser uma experiência direta do sujeito, o que equivale a dizer que ela é intransferível. Com isso, Greenberg quer dizer que fazer arte e apreciar arte pertencem, em último grau, à mesma ordem da experiência. Isto se dá porque a experiência estética não está dissociada do juízo de gosto, e a intuição estética por parte de quem faz a obra coincide com seu próprio juízo de gosto. O produtor (considerando a arte formal) faz julgamentos assim como o apreciador o faz. Deste modo, o artista toma
decisões estéticas que pode experimentar, assim como o apreciador, em sua própria obra.
Vejamos como isso se opera: em seu texto “Queixas de um crítico de arte”, Greenberg assume a tarefa de examinar o que pode ser dito acerca de uma obra de arte. Se é possível realizar a distinção, pelo menos para fins analíticos, entre forma e conteúdo, então ao crítico ficaria vedado emitir qualquer opinião acerca do conteúdo – e isto porque nunca se pode dizer nada de significativo sobre o conteúdo de uma obra (“E se eu preferir dizer que Kline é pessimista, e não otimista, quem pode me contestar?”).10 Tudo o que se diz sobre o conteúdo é incontestável e, como tal, inútil para a crítica. Mas se só é possível criticar a forma, e se o juízo de gosto se dá de imediato – sem a intervenção de razões ou teorias – como é possível criticar a forma, que por excelência só pode ser criticada mediante a intervenção de razões ou teorias? A resposta de Greenberg:
Esses princípios qualitativos ou normas [padrões, critérios, regras, preceitos] sem dúvida estão presentes em operações subliminares; do contrário, os juízos estéticos seriam puramente subjetivos, e a prova de que não o são é o fato de que os veredictos daqueles que mais se preocupam com a arte e mais lhe dedicam atenção acabam por convergir ao longo do tempo, formando um consenso.11
Tais princípios qualitativos, no entanto, não podem ser postos em palavras. Sua existência só pode ser provada por seus efeitos – isto é, a existência de um certo consenso atingido por aqueles mais preocupados com a arte através do tempo. Em última instância, só a história poderá confirmar qualquer juízo acerca da qualidade de uma obra – trocando em miúdos, só a história poderá definir se o julgamento de um crítico acerca de determinada obra procede ou não procede. 
Na minha opinião, é extremamente curioso o fato de Greenberg e Danto coincidirem num ponto tão controverso quanto o da possibilidade de crítica objetiva da arte: ambos concordam que deve haver critérios de qualidade (talvez por serem ambos críticos de arte?). Mas esses critérios nunca são colocados em palavras. A pergunta que me faço é a seguinte: por que devem existir critérios de qualidade?
Não me dou por convencido com a resposta de Greenberg: não acho que os efeitos sirvam para qualquer coisa que não seja especulação. Mesmo que assumíssemos a existência de “clássicos” (não consigo enxergar o consenso de que Greenberg tanto fala), o fenômeno poderia ser tão somente conseqüência da historicização do gosto de
determinada época. Aquilo que elege o gosto de determinada época pode ser contingente: não há como afirmar condições únicas e universais de “bom gosto”. Se devo concordar com Danto que a arte contemporânea assiste a um esgotamento das antigas categorias conceituais, não vejo como fazê-lo sem também estender o esgotamento para as antigas categorias de julgamento. Afinal, por que a crença em qualquer possibilidade de criticabilidade objetiva deve passar incólume?
A falta de critérios objetivos não é necessariamente boa nem ruim. E nem tem que tornar obsoleta a função do crítico. Não vejo nenhum problema na constatação de que, se o gosto é subjetivo, a função do crítico resume-se a expor sua opinião pessoal – subjetiva – provinda da sua própria experiência ao manter contato com uma obra. Gostaria de encerrar reproduzindo o desfecho de um texto da crítica Rosalind Krauss – sinceramente, a visão mais honesta que já encontrei acerca da função crítica. Nesta passagem, Krauss responde ao formalismo greenbergiano da seguinte forma:
Isso quer dizer também que insisto em considerar o “formalismo” como uma vulgaridade; que se comecei como crítica modernista e ainda sou uma crítica modernista, pertenço a uma sensibilidade modernista no sentido mais amplo, e não no sentido mais estrito do termo. Enfim, isso quer dizer que eu não tenho que dar conta de uma perspectiva universal, mas simplesmente de meu próprio ponto de vista; que importa quem damos a impressão de ser quando escrevemos sobre arte. Sua própria perspectiva, como sua própria idade, é a única orientação que uma pessoa jamais terá.14
Ainda no início do que poderia vir a ser uma bem sucedida carreira como pintor, Duchamp perde o interesse pela pintura por discordar da excessiva teorização em torno de questões formais levada a cabo por artistas de vanguarda que, segundo ele, com exceção dos surrealistas, ainda mantinham uma relação “retiniana” com a pintura. Em 1913 realiza um trabalho formado por uma roda de bicicleta invertida colocada sobre um banco. Mas havia ainda algo da “mão do artista” ao unir esses objetos que Duchamp chamava de “readymade assistido”1. Em 1914 apresenta, então, o Porta-garrafas, objeto pronto sem nenhuma intervenção do artista. A este objeto sucederam uma pá de neve (1915) e, finalmente, a mais famosa e controversa de suas obras, o urinol (1917) intitulado A Fonte. Segundo Duchamp, a escolha de seus objetos era guiada pela “indiferença visual” e “ausência total de bom ou mau gosto” com a intenção de não produzir nenhuma “emoção estética” 2. Assumia, assim, uma postura de independência em relação aos movimentos da época, sendo seus gestos comumente interpretados como ataques ao sistema de arte, desafios aos juízos de gosto e de valor ou simples brincadeiras. Sua obra, no entanto, requer uma participação criativa e imaginativa do espectador - o que seria explorado pelos artistas conceituais meio século depois.
Danto começou a se “interessar pela arte pop depois de ver uma tela de Roy Lichtenstein reproduzida no Artnews” 5, mas foi após o contato com as Brillo boxes de Andy Warhol, na Stable Gallery de Nova Iorque em 1964, que ele formulou a questão6 “como um objeto adquire o direito de participar, como obra, do mundo da arte?” 7, que vem a ser o ponto de partida para sua busca pela definição do conceito de arte.
Danto situa o trabalho de Warhol em meio às reflexões sobre o “retorno à linguagem ordinária” empreendidas pelos “maiores filósofos do período” 8. Segundo ele, Warhol “violou todas as condições tidas como necessárias a uma obra de arte mas, ao fazer isso, revelou a essência da arte” 9. A essência da arte é objeto de investigação filosófica que foge do escopo de nosso trabalho. O que pretendemos aqui é investigar os motivos que levaram Danto a prescindir dos readymades de Duchamp ao defender a originalidade das Brillo boxes. Tomaremos como referência o livro A transfiguração do lugar comum, “obra rigorosamente filosófica” 10 em que Danto estrutura sua teoria para a definição de um novo conceito de arte.
Partindo da idéia de que toda obra de arte diz respeito a alguma coisa e que, portanto, “toda arte é representacional”, Danto fundamenta o princípio de que “a obra de arte é um veículo de representação que corporifica seu significado”. O ponto fundamental, “a chave para entender a corporificação”, passa a ser a interpretação. Em seu sistema, a missão do crítico será“identificar o significado de uma obra e mostrar como o objeto em que o significado está corporificado efetivamente o incorpora” 11.
O problema da indiferença visual entre Brillo boxes e caixas de sabão comuns nos remete aos readymades. Danto tem consciência disso ao afirmar que “a precedência de Marcel Duchamp projeta uma certa sombra sobre todos os subseqüentes esforços de delimitar as fronteiras da arte”14, mas conclui que:
Talvez, ao entender que um urinol podia ser um objeto de arte, ele [Duchamp] tenha antecipado a sentença de Warhol de que “qualquer coisa pode ser uma obra de arte”. Não levantou, entretanto, a outra parte da questão, a saber: Por que todos os outros urinóis não eram obras de arte? Mas essa foi justamente a estupenda questão de Warhol: Por que a Brillo Box era uma obra de arte enquanto as caixas de Brillo comuns eram meras caixas de Brillo? 15
Assim, Danto coloca a questão em dois tempos: em um primeiro momento Duchamp demonstra que qualquer coisa pode ser arte; num segundo momento Warhol transforma esse procedimento numa questão filosófica, o que demonstra um sentido de progressão histórica da arte e teoria artística. Esse senso histórico de Danto tem grande influência na forma como ele interpreta os trabalhos de Duchamp e Warhol, o que mostraremos a seguir em comparação às interpretações de outros estudiosos a respeito dessas obras.
Segundo Danto, como obra de arte, a Fonte teria “propriedades que os urinóis em geral não têm: é ousada, insolente, irreverente, espirituosa e inteligente”16, e, como objeto comum, o urinol seria “altamente carregado de conotações, associado com algumas das fronteiras mais duramente defendidas na sociedade moderna, a saber, as diferenças entre os sexos, a segregação do processo de eliminação do resto da vida, e um mais inteiro elenco de associações tendo a ver com privacidade, saneamento, e coisas afins”17. Já uma caixa de sabão comum é algo “público, banal, óbvio, e desinteressante”18. Será que não podemos inverter essa argumentação e considerar o urinol algo público, banal e desinteressante, enquanto uma caixa de sabão exposta numa galeria adquire um caráter ousado, insolente e irreverente?
Danto prossegue com a hipótese de que “Se o que transformou a Fonte numa obra de arte fossem somente as qualidades que ela tem em comum com os urinóis, a pergunta pertinente seria o que faz dela, e não os demais urinóis, uma obra de arte”19. Sua argumentação revela que o significado do urinol artístico vai além da mera semelhança com um urinol comum. Duchamp teria selecionado um objeto carregado de conotações simbólicas, enquanto Warhol havia decidido transformar em arte um objeto banal e desinteressante que parece testar a possibilidade de experiência estética. Mas o que dizer então do porta-garrafas ou da pá de neve de Duchamp? Que tipo de significado ontológico podemos extrair desses objetos? Não seria a “revelação” das Brillo boxes para Danto uma experiência estética?
Danto se considera um essencialista e um historicista, tentando conciliar a teoria de que “a arte é sempre a mesma – que existem condições necessárias e suficientes para algo ser uma obra de arte invariáveis quanto ao tempo e o lugar” com a teoria de que “o que é uma obra de arte em um certo tempo não pode sê-lo em outro”26. Quando afirma que a “existência da arte depende de teorias” e “nada é uma obra de arte sem uma interpretação que a constitua como tal”27 verificamos o paradoxo entre a idéia de uma ontologia da obra de arte e sua interpretação dentro de um contexto histórico e cultural.
Como as Brillo boxes não poderiam ser arte se Duchamp já havia provado que qualquer coisa pode ser arte parece ser uma contradição. A justificativa de Danto se apóia dentro de uma perspectiva histórica em que a arte evolui junto com a teoria artística, sendo a década de 60 o período de “ruptura e descontinuidade”30 onde Warhol havia demonstrado que “nenhum critério visual serviria ao propósito de definição de arte”31. A partir daí, os artistas contemporâneos teriam “se transformado em pensadores visuais (...) os filhos/herdeiros de Duchamp, que lhes mostrou como fazer filosofia fazendo arte” 32.
Segundo Danto, as duas questões supostamente originais apresentadas pelas Brillo boxes e que puseram fim a um século de investigações filosóficas dos artistas modernos33 são: saber o que fez com que elas se tornassem não somente possíveis mas inevitáveis dentro da história da arte e o que as torna arte enquanto as caixas originais eram apenas caixas. Será que a contribuição de Duchamp para a arte não pode ser encarada como um problema filosófico?
Segundo Yve-Alain Bois, o grande feito de Duchamp foi apresentar “o objeto artístico como um tipo especial de mercadoria” evidenciando que “objetos de arte são fetiches absolutos”34, ou seja, objetos essencialmente sem uso prático, sem função. Os readymades são um problema para o juízo de gosto e de valor e contribuíram de forma definitiva para a ampliação dos limites da arte. A tese de Danto de que arte e teoria andam juntas implica aceitar que à época de Duchamp ambas não estavam preparadas para interpretar o readymade como um problema filosófico, ou seja, a possibilidade filosófica do conceito de arte surge do próprio desenvolvimento histórico da arte. Segundo ele, as Brillo boxes demonstram que a “história da arte não foi interrompida, mas acabada”35 e que a partir daí a arte entra em sua fase “pós-histórica”. O desfecho da história da arte é então o resultado da autoconsciência filosófica adquirida pela arte – aos moldes da consciência que a filosofia tem de sua própria disciplina.
O sentimento de um fim da arte foi despertado simultaneamente em vários artistas e teóricos a partir dos anos 70, ao mesmo tempo em que o modelo de história da arte como seqüência de estilos e movimentos passou a ser problematizado ou mesmo rejeitado. Para o historiador da arte Hans Belting, por exemplo, tanto a arte quanto a história da arte são “ficções” da cultura européia e Duchamp teria demonstrado isso através de seus trabalhos. Belting, ao contrário de Danto, parece perceber que tentar localizar na história da arte um evento que confirme seu fim seria um paradoxo. Seria como adotar o modelo de história que se deseja rejeitar inserindo neste modelo um último fato, ou seja, usar um artifício historicista para negar o historicismo. Assim, Belting procura apenas demonstrar através de exemplos que o modelo apresenta falhas, que o conceito de arte e de história da arte são um problema da cultura ocidental, enquanto Danto acredita na evolução teleológica da arte a confirmar simultaneamente a célebre frase de Wölfflin de que “nem tudo é possível em todos os tempos” e a tese de Hegel de que ao fim da arte sucede a verdade filosófica.
No ensaio Marcel Duchamp e o fim do gosto, Danto afirma que Duchamp foi o primeiro a romper com a possibilidade de julgamento da obra a partir do gosto e conseqüentemente com a estética relacionada ao conceito de belo. Segundo ele, foi com Duchamp que “o conceito de gosto desapareceu da avaliação crítica de obras de arte”, pondo “um fim naquele período do pensamento e da prática estéticos comprometidos (...) com o “Padrão do Gosto” ”38. Danto conclui que a “superação do gosto foi um efeito dos seus readymades de 1915-1917, destinados a exemplificar a mais radical dissociação entre estética e arte”39. Mas se Duchamp rompeu com o gosto e separou a arte da estética, não seria este o momento histórico de revisão do conceito de arte?
É no campo da estética que ocorrem as grandes transformações na arte contemporânea, gerando muitas discussões entre os críticos e historiadores de arte que buscam construir teorizações que possam dar conta de indicar novos rumos para pensar a estética, a ética, o gosto e a beleza a partir dos paradigmas atuais que orientam a sociedade como um todo. Danto (2006), Duve (1998a), Cauquelin (2005) são teóricos que problematizam as questões da estética e da experiência estéticaa partir das desconstruções da pós-modernidade na arte.
O termo Readymade foi criado por Marcel Duchamp (1887-1968) para designar um tipo de objeto, por ele inventado, que consiste em um ou mais artigos de uso cotidiano, produzidos em massa, selecionados sem critérios estéticos e expostos como obras de arte em espaços especializados (museus e galerias).
Na concepção de Duve, Joseph Beuys foi o artista que melhor expressou esta concepção de arte, fazendo “da criatividade humana e do princípio Todos são artistas as bases não só de sua arte, mas também de seu insistente proselitismo”. Ao contrário, segundo o autor, Duchamp se afasta completamente desta concepção ao propor o readymade que “não surgiu nem da crença, nem da esperança que todos podem ou deveriam ser artistas”, mas do reconhecimento do “fato que todos já tinham se tornado artistas. Diante do readymade, não existe mais qualquer diferença técnica entre fazer e apreciar arte” (DUVE, 1998a, p.128).
No texto o autor faz uma reflexão teórica em torno das questões da estética a partir da crítica do juízo de Kant e direciona a análise para algumas ideias no campo da recepção da arte que são pertinentes para essa pesquisa ao considerar que não devemos confundir a obrigação moderna, que é ética, com a pós-moderna, que é intelectual, pois ambas são heterogêneas.
Danto (2006, p.95), seguindo essa mesma linha de pensamento, reforça o fato de que “a estética parece cada vez mais inadequada para lidar com a arte a partir da década de 60”, para o que ele denominou como “a arte depois do fim da arte”, período histórico que marca uma distinção entre o estético e o artístico na arte. Na concepção do teórico a grande desconstrução de Duchamp foi descaracterizar a beleza como atributo definidor da arte, ao se aproveitar de objetos manufaturados por causa de sua não-descritividade estética com a intenção de demonstrar que os objetos eram arte, mesmo não sendo belos. Ao suspender a arte das considerações de gosto, Duchamp “demonstrou que a estética na verdade não é uma propriedade essencial à arte, nem a define” (DANTO, 2006 p. 125). Ao adentrar no campo da experiência estética, Danto (2006, p.197) traz a vivência da arte de “maneira existencial e transformadora”, reconhecendo o uso de um termo fora de moda para definir a experiência que confere “uma visão do mundo e do sentido de viver no mundo”.
Para Dewey a experiência é uma característica irredutível da vida, uma negociação consciente entre o eu e o mundo, sendo que a mais intensa é a experiência com a arte. “A arte é a prova viva e concreta de que o homem é capaz de restabelecer, conscientemente e, portanto, no plano do significado, a união entre sentido, necessidade, impulso e ação que é característica do ser vivo” (DEWEY, 2010 a, p.93).
Para Dewey o que é experimentado faz sentido, na experiência estética as qualidades sensoriais e os significados no campo das ideias se intensificam e se aprofundam, sendo que a distinção é apenas secundária e metodológica, como um instrumento necessário da reflexão. É importante ressaltar que para Dewey a experiência é uma questão de interação do organismo com o seu meio que é tanto humano como físico. Neste processo o “eu tanto age quanto é submetido ao que vem de fora”, sendo que as impressões externas a que fica sujeito dependem da forma como o organismo reage e responde. Caracterizando-se esse processo como um caminho ou ponto de partida para pensar a experiência estética com a arte contemporânea.
É uma aquisição defi nitiva da teoria fi losófi ca da arte a afirmação kantiana de que o juízo de gosto fundamenta-se sobre o sentimento de prazer suscitado pela contemplação desinteressada da obra3. Se assim é, então a tarefa inadiável da estética consistiria
em elucidar a essência do sentimento, de todo sentimento possível, e da beleza em particular, evitando as tantas e fáceis armadilhas do psicologismo, do historicismo e do culturalismo, que vêem a obra como índice de dimensões psíquicas, como documento de época ou exemplar característico de uma dada cultura. Mas, alguma vez na história da fi losofi a em geral e, em particular, na história da fi losofi a da arte, tal elucidação foi efetivamente levada a cabo? A dimensão ontológica do sentimento foi alguma vez pensada em sua essencialidade própria, oposta, como veremos, à dimensão da fenomenalidade em geral, caracterizada pela abertura de um mundo, ou seja, da projeção de um primeiro plano de exterioridade de onde algo assim como uma coisa pode nos saltar ao encontro do olhar?
Toda coisa, inclusive a obra de arte, nos é dada duas vezes. Uma vez lá, diante de nós, no horizonte exterior do mundo, como objeto de uma visão. Sendo assim, a análise fi losófi ca deveria deter-se na elucidação da abertura – de natureza ontológica, e então apriórica – desse horizonte universal de visibilidade que, de fato, como afi rmou Heidegger, “deve já estar aberto ek-staticamente para que possamos confrontar entes dentro dele”4.
A natureza ek-stática desta abertura ontológica caracteriza essencialmente a totalidade dos nossos sentidos, isto é, a essência da própria sensibilidade humana como tal. O ente somente se apresenta a nós, na condição objetiva que é a dele, a partir de um certo distanciamento de si da essência que projeta a objetividade. Distanciamento essencial que nada tem a ver com a maior ou menor proximidade do objeto em relação ao olho que o vê, pois, por mais próximo que esteja do órgão físico, a distância permeará necessariamente sua presença como essência mesma do seu ser enquanto estar-diante-de5.
Além dessa apreensão à distância, uma segunda vez o objeto é apreendido afetivamente a partir da tonalidade interior à efetuação do olhar que se sente vendo-o, agradável ou dolorosamente. Ver não é apenas perceber alguma coisa, debruçar-se sobre um conteúdo estranho. Toda percepção está imersa numa totalidade afetiva, implica um sentimento de ver, um esforço de olhar dotado de uma tonalidade afetiva própria, sentimento que não se confunde com nenhum elemento da fenomenalidade da própria coisa, com nenhuma sensação. Por isso toda percepção se faz, no seu fundo, imersa numa tonalidade afetiva, e Heidegger pode dizer que uma certa disposição de humor acompanha necessariamente todo o desenrolar da existência. Mas se tal é o caso teríamos de perguntar: por que não podemos viver sem sentir se podemos, por exemplo, cessar de pensar ou ver? Ou melhor, qual é o papel do sentimento de si nas diversas efetuações da consciência em geral, se a consciência é sempre a manifestação de qualquer coisa que ela própria não é?
Os maiores pintores conceberam sua arte como uma espécie de conhecimento metafísico da essência última das coisas, não só distanciada da percepção utilitarista, predominante na vida cotidiana, mas também das teorizações científi cas. O que Cézanne procurava ao pintar mais de cem vezes a montanha Sainte-Victoire vai além da sua aparência sensível: é o segredo da constituição da manifestação do universo como tal. Ele pretende fazer ver o que não pode ser visto, o conteúdo interior expressado e os meios que permitem exprimir esta essência invisível presente no âmago do visível, a alma viva das coisas, e a cor não poderia “vibrar” interiormente na matéria extensa.
Esta invisibilidade visada aqui não é, no entanto, a que caracteriza a face oculta de todo objeto percebido, as perspectivas não atualmente presentes à percepção efetiva, a sombra que margeia toda coisa iluminada. Esta invisibilidade é ainda uma dimensão da objetividade e da exterioridade. Ela pertence à mesma região ontológica do visível como um elemento inseparável da sua estrutura. A prova da homogeneidade do visível e do invisível reside justamente no fato da sua reversibilidade, da fi gura poder tornar-se fundo, da face oculta poder vir a ser visível enquanto a face vista retorna para a obscuridade da primeira, mediante um giro do olhar ou uma modifi cação da atenção. Entretanto, o Invisível visado pelapintura situa-se na Interioridade viva da vida subjetiva, não na Exterioridade do horizonte do mundo. “O que tento traduzir-vos é mais misterioso, emaranha-se nas próprias raízes do ser, na fonte impalpável das sensações”19, afi rma Cézanne. Assim as “raízes do ser” situam-se e revelam-se essencialmente no invisível metafísico das sensações, constituindo justamente o que o pintor pretende exprimir com sua arte. As sensações não são tangíveis, não são nem mesmo visíveis: são vividas plenamente, sem serem, no entanto, percebidas.
Mas a expressão implica a transmutação do conteúdo expressado. A expressão de um rosto colérico, por exemplo, pode ser captada numa fotografi a, e ali, embora continue a ser a expressão colérica de um rosto humano, não há mais a presença vivida do sentimento da cólera. A expressão, por mais adequada que seja, jamais se iguala à manifestação originária do que ela promove à dimensão da representação. O método através do qual Cézanne pretende nos introduzir nos mistérios metafísicos da vida e do ser consiste, diferentemente da expressão, em “traduzir”. Do latim traducere, traduzir significa, etimologicamente, “conduzir além” e, no nosso caso, além da objetividade, além da visão aberta sobre o horizonte do mundo e com ele confundida. A arte não somente nos põe em presença da realidade “impalpável” das sensações, promovendo-as à condição de objeto de um ver. Ela faz atuar essa realidade em nós, ela nos incita e nos conduz a experimentá-la como essa “vibração interior” de que falava Kandinsky: “Deve haver vibração interior da alma. Se isto não existe, não pode haver obra de arte.”20 Assim, o que arte nos dá a conhecer, o que ela nos ensina e revela, ela o faz fazendo-nos vivê-lo. Porque ela brota da fonte impalpável das sensações, nos remete a ela.
Toda arte vive e se origina da interiorização do mundo, do aprofundamento da experiência na afetividade da vida e do ser, lá onde, sem distanciamento nem exterioridade, no sentimento de si da vida, as impressões se transmutam incessantemente de sofrimento em gozo de si. Mas esta dimensão nada mais é do que a essência da sensibilidade sobre a qual toda arte age necessariamente. Porém, desta constatação aparentemente banal será preciso concluir, como o faz Kandinsky, que, agindo sobre a sensibilidade, a arte não pode senão atuar a partir dela e das leis por ela ditadas à obra. Mas as leis da sensibilidade não são as leis do mundo, isto é, justamente da exterioridade pura? Não são as leis do espaço e do tempo, de um conjunto de “partes extra partes”, no primeiro caso, e de instantes que se sucedem incessantemente, uns exteriores aos outros, no segundo? A “Estética transcendental” de Kant não é, precisamente, a ciência da abertura deste primeiro plano de luminosidade no e pelo qual os objetos nos são dados como fenômenos antes que sejam concebidos pelo pensamento em um juízo? Ora, a essência da sensibilidade não se esgota nesta pura relação a um mundo considerada em si mesma. O tempo não pode ser exclusivamente o sentido interno da sensibilidade, o meio da sua comunicação interior com o ser, se ele é uma “ek-stasis”, a exterioridade pura. Mas uma atenta observação revela que nenhum olhar é um simples ver do “objectum”, implicando, essencialmente, o sentimento das coisas derivado do fato de que, como já afi rmamos, a visão que doa as coisas se sente a si mesma vendo (“sentimus nos videre”), experimentando e afetando a si mesma antes de ser afetada pelo mundo. Então repousa aí, neste saber absolutamente primitivo de si do olhar, antes de lançar-se sobre o mundo e as coisas, antes de abrir-se para o mundo, o conhecimento oriundo da sensibilidade sobre o qual se ergue e se edifi ca toda obra de arte. Saber calcado sobre as tonalidades interiores dos afetos esquecidos sob a alienação cotidiana da atividade exclusivamente prática. Assim, a arte não supera a alienação da vida cotidiana apenas suspendendo, de modo negativo, o caráter prático da percepção determinada pelo interesse, nos revelando, por esta via, a coisa em sua aparência pura. Ao olhar imerso no espetáculo do mundo, seja ele oferecido ao ver interessado da atividade prática, ou à contemplação, a arte opõe uma atenção outra, dirigida pela afetividade da vida interior, onde nenhum objeto mais se anuncia. Ao vermelho indicativo da passagem impedida ela não opõe o vermelho puramente percebido, sua pura aparência objetiva como tal, e sim a vibração interior suscitada em nós pela sua percepção, a tonalidade afetiva da sua “excitação”: isto que jamais pode ser reduzido à pura extensão, mesmo eideticamente tomada. O que foi revelado emocionalmente pela tonalidade afetiva da percepção da cor é o que motivará o artista: o modo e o porquê da sua intervenção na pintura.
A arte não esposa outro objetivo distinto de traduzir as determinações subjetivas que constituem o fundo da nossa existência, e que se confundem, para o artista pelo menos, com as determinações metafísicas do próprio ser. Ela repousa sobre a alma primitiva, mais antiga que todo pensamento, conceito ou ciência (e é certamente por isso que os homens primitivos puderam pintar), das coisas e do universo, se é verdade que toda entidade, considerada em sua aparência objetiva, como fenômeno, possui uma ressonância interior, repousando inicialmente nela de modo fundamental. Esta dimensão imanente e afetiva da subjetividade constitui-se a partir do próprio ser e, por isto, ela é identicamente a essência do universo e o conteúdo abstrato que a arte pretende traduzir. Por isto Kandinsky, a quem mais uma vez damos a palavra, pôde afi rmar que sua arte habitava as profundezas cósmicas, que coincidem e tocam, nos seus limites genealógicos, o ser interior da vida; que, por fi m, a Gênese de uma obra de arte é de caráter “cósmico”21.
Neste sentido diz a poesia de Rilke, apontando para a dimensão que a arte pretende conquistar, deixando-se dominar por ela: Se quiseres conquistar a existência de uma árvore, Reveste-a de espaço interno, esse espaço Que tem seu ser em ti.22
Entre estes filósofos está Arthur Danto, que em 1964 escreveu um artigo intitulado “O mundo da arte”. Nele Danto defende que é possível dar uma definição da arte capaz de subtrair-se às vicissitudes da história e à pluralidade das obras reconhecidas como arte e ao mesmo tempo captar a essência da arte. Paradoxalmente, essa tese, depois reformulada e ampliada em vários livros, combina o historicismo de Hegel com um outro aspecto da teoria dos jogos de linguagem do mesmo Wittgenstein das Investigações Filosóficas. Este outro aspecto é o conceito de forma de vida, que está intrinsecamente ligado aos dois que já mencionamos.
Existem várias interpretações deste conceito, apesar de ele ter pouquíssimas ocorrências na obra de Wittgenstein e ser de fundamental importância na segunda fase da sua obra. Em linhas gerais, este conceito aparece sempre vinculado ao conceito de jogo de linguagem. Forma de vida pode significar, entre outras coisas, o conjunto de ações que acompanha um jogo de linguagem ou que constitui uma linguagem, mas pode significar mais amplamente o conjunto de condições sociais ou culturais que produz e sustenta uma linguagem.
Em que sentido o historicismo de Hegel pode ser combinado com o pragmatismo de
Wittgenstein? Um dos aspectos mais importantes da teoria de Danto é a sua tese do fim da arte, uma reformulação da tese hegeliana dos Cursos de Estética.7 O fim da arte pode ser entendido como o fim da história da arte. De acordo com Danto, a história da arte acaba com o fim da idéia de superação, presente no desenvolvimento da arte até o modernismo. Danto divide a história da arte em dois grandes períodos: a Era da Imitação e a Era dos Manifestos.
Na primeira, os artistas estavam empenhados na tarefa de buscar sempre uma melhor representação da realidade dentro daquilo que ele chama de estilo mimético. Os diversos estilos do período se sucedem no tempo: Renascimento, Maneirismo, Barroco, Rococó, Neo-classicismo e Romantismo, cadaum deles pretendendo superar o anterior no sentido de apresentar um retrato mais fiel do mundo. No Modernismo, cada movimento, coexistindo no tempo, deixava claro, através dos seus manifestos, que os outros estavam ultrapassados e que a forma de arte que este defendia era a única arte “verdadeira”. A idéia de superação é claramente hegeliana e está profundamente conectada com as palavras do historiador da arte Wölfflin, citada por Danto várias vezes: “Mesmo o talento mais original não pode avançar além de certos limites que são fixados para ele já no momento de seu nascimento. Nem tudo é possível em todos os tempos, e certos pensamentos só podem ser pensados em certos estágios do desenvolvimento”. Na era da história da arte, portanto, a arte está sempre ligada ao mundo que a produz e o artista não pode escapar de tratar dos problemas da arte e da vida de seu tempo. Danto diz, na Transfiguração do Lugar-comum, que o que o artista expressa é uma visão de mundo, mas não apenas uma visão pessoal, e sim a visão de uma época8.
Como a história da arte acabou em 1964, com a Brillo Box de Andy Warhol, Danto reformula a sua tese dizendo que a arte se relaciona agora não com um momento histórico, mas com uma forma de vida. Dito de outra forma: na arte histórica, a arte está sempre conectada a um período histórico de uma determinada sociedade e sua evolução não ultrapassa o desenvolvimento social. Na arte pós-histórica não há mais a idéia de evolução na arte porque o seu objetivo (autoconsciência) foi alcançado, mas a arte permanece conectada a um mundo que a produz. Para designar esse mundo, Danto usa o conceito de forma de vida. Isto porque, apesar de definir a arte em termos de sua história, Danto não está simplesmente fornecendo uma definição para a arte de hoje. De fato, sua teoria é muito mais ambiciosa e pretende estabelecer uma definição que não seja ameaçada por transformações históricas. Danto se considera ao mesmo tempo um
historicista e um essencialista com relação à possibilidade de definir a arte. De um modo muito engenhoso, Danto encontra essa definição na própria história e apresenta a história recente da arte como um desenvolvimento na direção da “compreensão de sua própria essência histórica”.9
A expressão “essência histórica” é uma expressão estranha. Os discursos filosóficos que buscam a “essência” buscam o que é imutável e, a não ser que Danto queira se comprometer com a metafísica hegeliana, o que ele definitivamente não faz, esta é uma expressão contraditória. Não obstante, considero a tese sobre o fim da história da arte profundamente esclarecedora sobre a condição da arte atual.10
Danto comenta esta frase na Transfiguração do lugar-comum.13 Ele diz que o que os wittgensteinianos defendem é que o estatuto de arte deve ser aplicado de forma indutiva, não conceitualizada, e é assim que ele interpreta o funcionamento dos “critérios de reconhecimento” de Weitz, como uma comparação entre propriedades aparentes no sentido de que ao ter em mente várias propriedades que as obras de arte geralmente possuem eu posso afirmar que um objeto que possua algumas dessas propriedades também é uma obra de arte. E, de fato, parece que é isso que Weitz está dizendo.
Embora fale do uso do conceito, ele está sempre enfatizando que este uso é guiado pelas propriedades aparentes do objeto. Danto não pode aceitar isso, pois, na sua visão, a teoria da arte desempenha um papel fundamental na fruição das obras de arte. Em várias passagens, ele diz que não se pode diferenciar uma obra de arte de um mero objeto real “simplesmente olhando”. O caso da Brillo Box é exemplar neste sentido: pois a obra de arte e o produto do supermercado são visualmente idênticos. É preciso, diz Danto, uma teoria para separar o que é arte do que não é.
É preciso não esquecer também que o conceito de semelhança de família está profundamente articulado com o de jogo de linguagem. A teoria da linguagem das Investigações é uma teoria que afirma que a linguagem é ação e não representação. Ou melhor, representar e descrever são apenas alguns dos modos de usar a linguagem. Nesta teoria não é possível distinguir entre a linguagem e a ação que ela realiza. A linguagem está imersa na forma de vida. Por outro lado, Wittgenstein não parece estar escrevendo para orientar o falante de uma língua a usar corretamente as palavras. Muito provavelmente, Wittgenstein diria que os falantes da língua sabem como usar a palavra arte. O que é preciso é curar os filósofos da idéia de que é preciso definir um conceito para usá-lo corretamente, ou de que a tarefa da filosofia é fornecer conceitos completamente definidos16. Não é preciso, para usar corretamente um conceito, defini-lo completamente. Assim como eu posso me referir a uma pessoa usando seu nome sem conhecêla completamente, eu posso usar um conceito sem conhecer todas as suas especificações.17
É uma tese capital da teoria de Danto de que a arte é oposta à realidade. A realidade é aquilo que a arte, como a linguagem, representa. Uma obra de arte diz algo sobre o mundo e deve ser, portanto, ontologicamente distinta do que ela representa. Em outras
palavras, toda a arte é simbólica, e se, por um lado, qualquer coisa pode ser um símbolo de qualquer coisa, por outro, o símbolo não pode ser ao mesmo tempo aquilo que simboliza, ou então, dito de outro modo, o estatuto ontológico de uma coisa enquanto símbolo é diferente de uma coisa enquanto mera coisa. Isto constitui o cerne da teoria da Transfiguração do lugar-comum: é porque se tornam símbolos artísticos que meras coisas passam para a condição de obras arte.
Podemos dizer então que, embora Danto tenha uma preocupação em definir a arte a partir das propriedades que a obra deve possuir, mesmo que sejam propriedades relacionais, sua teoria aponta para uma definição da arte como uma instituição cultural.24 Como diria Wittgenstein, é uma tendência de um velho modo de pensar tentar definir a arte a partir das propriedades das obras, sendo a artisticidade algo que estaria apenas nos objetos, como de fato estão as propriedades estéticas. No entanto, Duchamp mostrou que a arte não está só nas obras, mas que ela é um sistema de produção e circulação de objetos, no qual interagem também o artista e o público. Mostrou também que, no Ocidente, essa relação é também mediada pela teoria. Ao dissociar o artístico do estético, ele nos fez ver o aspecto institucional da arte.25

Continue navegando