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Conhecimento e Crença na Ciência

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Aprendemos que há boas razões científicas para dizer que, contrário às aparências, o Sol não se move em torno da Terra, mas o inverso é verdadeiro. Contudo, como a ciência nos ensina, aquilo que vemos é falso, e aquilo que nem vemos e sentimos é, nesse caso, verdadeiro. Acontece que nós temos também experiência de que nossos sentidos nos enganam e que, por vezes, vemos coisas que não estão realmente ali, ou nos enganamos sobre as características dos objetos que percebemos. Significa que podemos obter algum conhecimento sobre o mundo também raciocinando, sem necessidade de ter experiências ou fazer experimentos. Epistemologia aplicada não difere essencialmente, portanto, da epistemologia geral, nem aplicada aqui significa algo técnico.
E justamente, desde lá, consiste a tarefa fundamental da epistemologia, seja geral ou aplicada, em determinar a diferença entre conhecimento (episteme) e opinião (doxa), especialmente opinião verdadeira. Os gregos perceberam que ter uma opinião que corresponde aos fatos não é necessariamente conhecer os fatos.
A diferença fundamental, portanto, entre conhecimento e crença (no sentido estrito) está no grau de evidência disponível. Um exemplo desse tipo de crença é a de que existem objetos físicos reais, independentes da forma como os percebemos, e com características realmente similares àquelas que as nossas sensações desses objetos nos fazem crer.
Mas precisamos estar atentos aqui, especialmente tendo em vista as associações usuais com o termo fé. Geralmente, o termo está ligado a crenças religiosas, mas não é exclusivo delas. A certeza da falsidade de uma crença ou explicação baseada na certeza da veracidade de uma crença ou explicação oposta constitui antes um tipo de dogmatismo.
Por exemplo, se alguém não está certo de que o objeto que vê a uma certa distância é uma bicicleta ou uma motocicleta, essa é uma dúvida particular, cuja resolução usualmente supõe que, no geral, o sentido da visão nos fornece informações confiáveis sobre a realidade, e que pode, conforme o caso, ser auxiliado por algum outro sentido (do tato, digamos).
Em algum momento, todos nós passamos pela experiência de crer, mesmo momentaneamente, em algo que subsequente- mente se mostrou ser uma ilusão sensorial. Para muitos dos pensadores da Idade Moderna, tal interação é explicada como uma forma de ação causal exercida pelo objeto sobre nossa sensibilidade.
Não que as conhecemos independentemente dos sentidos, mas temos delas noção mais clara em razão do exercício de reflexão e argumentação sobre os dados sensoriais E, quando refletimos sobre o sonho, percebemos que aquilo que acontecia enquanto sonhávamos era, dentro do próprio sonho, real. Se nos damos conta de que é um sonho, já estamos pelo menos semi despertos.
Pois mesmo as coisas comuns que fazemos no cotidiano são muitas vezes tam- bém sonhadas. Essa descoberta não faz com que ela se torne uma pessoa real, mas faz com que ela procure meios de sair de dentro da história. De todos esses conhecimentos podemos nos sentir seguros e não perceber onde estaria o erro.
Durante muito tempo, acreditava-se que a teoria geocêntrica descrevia o mundo tal como ele é. Não que essa crença fosse um mito, um preconceito popular que a ciência física viria a refutar, como muitos outros mitos; essa era uma teoria científica.
Mas fatos, e as coisas de que são fatos, são sempre individuais, particulares. E muito do que afirmamos, e que nos interessa em ciência, constitui sentenças gerais, como é o caso de hipóteses e teorias. Em qualquer dos casos, entretanto, a sequência terá a mesma estrutura de crenças, servindo de base e evidência para outras crenças, até se chegar a uma crença cuja base não é outra crença. A diferença é que não creio nelas com base em outras crenças, mas em algo diferente (como uma experiência, uma intuição, uma percepção, na memória etc.).
Assim, por exemplo, se eu acredito que estou com dor de cabeça, não acredito nisso com base em alguma outra crença; creio diretamente. E também ninguém pode me dizer: não é verdade que você está com dor de cabeça, Contudo, nem todo argumento dedutivo possui essa relação de implicação. Assim, mesmo mantendo-se que algumas crenças são dependentes de outras em razão de serem delas inferidas por meio de um processo dedutivo ou indutivo, o que as justifica não é essa dependência, mas sua coerência mútua. Dessa forma, para saber se aceito ou não uma nova ideia, hipótese ou teoria, não devo olhar para os fatos, mas para minhas outras crenças (ideias, hipóteses e teorias que já aceito); isso porque fatos são, para o coerentista, outras crenças.
Em ciência, trata-se de propor conjecturas genuínas, ousadas, que devem depois ser testadas em sua capacidade de explicação e previsão, estando sujeitas a revisões ou abandono conforme o resultado de tais testes. Devemos aceitar nossa incapacidade de atingir a verdade, de modo seguro e indubitável, mas não devemos rejeitar a ideia mesma de verdade. Por exemplo, se alguém conjecturasse que a criminalidade é consequência inevitável da pobreza, bastaria um pobre honesto para invalidar tal conjectura, mas muitos pobres desonestos não seriam ainda suficientes para determinar a universalidade de tal explicação. Nesse caso, dever-se- ia procurar ativamente por pobres honestos; enquanto não fossem encontrados, a conjectura é aceita temporariamente.
E muito menos nos fazer crer que a epistemologia não tem importância para as ciências sociais, ou não ajudaria a colocar as ciências sociais em um rumo mais estável como ciência, já que ela própria é tão diversificada. Isso porque é mais fácil fazer esse tipo de classificação, que alcança um consenso mais abrangente. Mesmo que as pessoas vivessem em um estado de selvageria constante, em que o perigo de ser morto e a possibilidade de matar fosse comum, tal fato não invalidaria a norma, pois ela não é uma generalização com base no comportamento efetivo das pessoas.
Mas é principalmente, do ponto de vista dos crentes, um discurso sobre a realidade, do qual se extraem ou se justificam ensinamentos morais e se estimulam sentimentos. Temos um exemplo na discussão contemporânea das ciências cognitivas acerca da relação entre o cérebro e a consciência.

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