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1983 , A EscritadeSi "Aesclitades1",Corpsécrit,nQ5:L'autoportrait,fevereirode1983,ps.3-23. A "séliedeestudos"dequeM.Foucaultfalatinhasido1n1cialmenteconcebida comoumaintroduçãopara Usodosprazeres,como título Cuidadodesi Comoestetítulofoiconservadoparaumanovadistlibuiçãodoselementosde Usodosprazeres,foientãoprogramadapelaÉd.du Seuilumaséliedeestu- dosmaisgeraissobreagovernamentalidade,comotítuloLegouvemementde soietdesautres. Estaspáginasfazempartedeumasériedeestudossobre "asartesdesi mesmo",ouseja,sobrea estéticadaexistência e o domíniodesi e dosoutrosna culturagreco-romana,nos doisprimeirosséculosdoimpério. A VitaAntoniídeAtanásioapresentaaanotaçãoescritadas açõese dospensamentoscomoumelementoindispensávelà vidaascética:"Eis umacoisaa serobservadaparanosasse- gurarmosde não pecar.Consideremose escrevamos,cada um,asaçõeseosmovimentosdenossaalma,comoparanos fazermutuamenteconhecê-los,eestejamoscertosdeque,por vergonhadesermosconhecidos,deixaremosdepecar,enada teremosde perversono coração.Pois quem,quandopeca, consenteemservistoe, quandopecou,não preferementir paraescondersua falta?Ninguémfornicariadiantedeteste- munhas.Da mesmaforma,escrevendonossospensamentos comose devêssemoscomunicá-losmutuamente,estaremos maisprotegidosdospensamentosimpuros,porvergonhade tê-losconhecidos.Queaescritasubstituao olhardoscompa- nheirosdeascese:enrubescendotantopor escreverquanto porsermosvistos,abstenhamo-nosdequalquermaupensa- 1983- AEsclitadeSi 145 I. mento.Disciplinando-nosdessamaneira,podemosforçaro corpoà submissãoefrustraras armadilhasdoinimigO."l A escritadesi mesmoapareceaquiclaramenteemsuare- laçãodecomplementaridadecoma anacorese:elaatenuaos perigosdasolidão;ofereceaquiloquesefezousepensouaum olharpossível;o fatodeseobrigara escreverdesempenhao papeldeumcompanheiro,suscitandoo respeitohumanoea vergonha;épossívelentãofazerumaprimeiraanalogia:oque os outrossãoparao ascetaemumacomunidade,o caderno denotasseráparaosolitário.Mas,simultaneamente,élevan- tadaumasegundaanalogia,queserefereàpráticadaascese comotrabalhonão somentesobreos atos,porémmaispre- cisamentesobre o pensamento:o constrangimentoque a presençade outroexercena ordemda conduta.a escritao exerceránaordemdosmovimentosinterioresdaalma;nesse sentido,elatemumpapelmuitopróximodaconfissãoaodire- tor espiritualsobrea qual Cassianodirá,na linha da espi- ritualidadeevagriana.* que ela deverevelar.semexceção. todosos movimentosda alma(omnescogitationes).Enfim.a escritadosmovimentosinterioresaparecetambém,segundo o textodeAtanásio,comoumaarmano combateespiritual: enquantoodemônioéumapotênciaqueenganaefazcomque osujeitoseenganesobresi mesmo(todaumagrandeparteda VitaAntoniiéconsagradaa essasastúcias).aescritaconstitui umaexperiênciaeumaespéciedepedradetoque:revelando osmovimentosdopensamento.eladissipaa sombrainterior ondesetecemastramasdoinimigo.Essetexto- umdosmais antigosquea literaturacristãnosdeixousobreotemadaes- critaespiritual-estálongedeesgotartodasassignificaçõese formasqueestaassumirámaistarde.Masépossíveldestacar algunsdosseusaspectosquepermitemanalisarretrospecti- vamentea funçãoda escritana culturafilosóficadesi pre- cisamenteantesdo cristianismo:sua estreitaligaçãocoma " I 1.(N.A.)SantoAtanásio,VitaAntonii(VieetconduitedenotreSaint-PereAntoi- ne. écriteet adresséeaux moineshabitanten pays étranger.par notre Saint-PereAthanase.évêqued'Ale.xandrieJ,trad.B. Lavaud,Palis, Éd. du Cerf,col."FoiViyante",nQ240,reedição1989,3~parte,§ 55:"Consellsspirt- tuelsdu solitalreà sesv1si~eurs",ps.69-70. -(N.T.)Evágno- santomártir. 146 MichelFoucault- DitoseEsclitos corporaçãodecompanheiros,seugraudeaplicaçãoaosmoVi- mentosdopensamento,seupapeldeprovadaverdade.Esses diversoselementosjá se encontramem Sêneca,Plutarco, MarcoAurélio,mas comvaloresextremamentediferentese segundoprocedimentostotalmentediversos. * Nenhumatécnica,nenhumahabilidadeprofissionalpode seradquiridasemexercício;nãosepodemaisaprenderaarte deViver,a technêtoubiou,semumaaskêsisquedevesercom- preendidacomoumtreinodesi porsi mesmo:esteeraumdos princípiostradicionaisaos quais, muito tempodepois,os pitagóricos,os socráticos,os cínicosderamtantaimportán- cia.Pareceque,entretodasasformastomadasporessetreino (e que comportavaabstinências,memorizações,examesde consciência,meditações,silêncioeescutadooutro),a escrita - ofatodeescreverparasi eparaoutro- tenhadesempenha- doumpapelconsiderávelpormuitotempo.Em todocaso,os textosdaépocaimperialqueserelacionamcomaspráticasde si constituemboapartedaescrita.É precisoler,diziaSêneca, mastambémescrever.2E Epícteto,quenoentantosódeuum ensinooral,insisteváriasvezessobreopapelda escritacomo exercíciopessoal:deve-se"meditar"(meletan),escrever(gra- phein),exercitar-se(gummazein);"quepossaa mortemeapa- nharpensando,escrevendo,lendo".3Ou ainda:"Mantenhaos pensamentosnoiteediaà disposição[prokheiron];coloque-os por escrito,façasua leitura;queelessejamo objetodetuas conversaçõescontigomesmo,comum outro[...]seteocorrer algumdessesacontecimentoschamadosindesejáveis,encon- trar;ísimediatamenteumalívionopensamentodequeaquilo nãoéinesperado.',4NessestextosdeEpícteto,a escritaapare- 2.Sêneca,LettresàLucilius(trad.H.Noblot),Pans,LesBellesLettres,"Collec- tiondesUruversitésdeFrance",1957,t. m, livroXI, carta84,§ 1,p. 121. 3.Epícteto,Entretíens(trad.J. Souilhé),Pans,LesBellesLettres,"Collection desUruversitésdeFrance",1963,1.m, livrom, capoV: À ceuxquiquittent l'écolepourraisonsdesanté,§ lI, p. 23. 4.Ibíd.,op.cit..livrom,capoXXIV:"Nãoéprecisoseemocionarcomoquenão dependedenós",§ 103,p. 109. 1983- A EsclitadeSi 147 .! ceregularmenteassociadaà"meditação",aoexercíciodopen- samentosobreelemesmoquereativao queelesabe,toma presentesumprincípio,umaregraouumexemplo,refleteso- breeles,assimila-os,e assimsepreparaparaencararo real. Mastambémsepercebequea escritaestáassociadaaoexer- cíciodepensamentodeduasmaneirasdiferentes.Umatoma a formadeumasérie"linear";vaidameditaçãoà atividadeda escritaedestaaogummazein,querdizer,aoadestramentona situaçãorealeà experiência:trabalhodepensamento,traba- lho pelaescrita,trabalhona realidade.A outraé circular:a meditaçãoprecedeas notas,quepermitema releitura,que, porsuavez,revigoraa meditação.Emtodocaso,sejaqualfor o ciclodeexercícioemqueelaocorre,a escritaconstituiuma etapaessencialnoprocessoparao qualtendetodaa askêsis: ou seja,a elaboraçãodosdiscursosrecebidosereconhecidos comoverdadeirosemprincípiosracionaisdeação.Comoele- mentodetreinamentodesi, a escritatem,parautilizaruma expressãoqueseencontraemPlutarco,umafunçãoetopoiéiti- ca:elaéa operadoradatransformaçãodaverdadeemêthos. Essaescritaetopoiéitica,tal comoapareceemdocumentos dosséculosI elI, pareceestarlocalizadanoexteriordasduas formasjá conhecidaseutilizadasparaoutrosfins:os hupom- nêmataea correspondência. Os hupomnêmata J I Os hupomnêmata.no sentidotécnico,podiamserlivrosde contabilidade,registrospúblicos,cadernetasindividuaisque serviamdelembrete.Suautilizaçãocomolivrodevida,guiade condutaparecetersetornadocomumatodoumpúblicoculto. Ali se anotavamcitações,fragmentosde obras,exemplose açõesqueforamtestemunhadasou cujanarrativahaviasido lida,reflexõesoupensamentosouvidosouquevieramàmente. Elesconstituíamumamemóriamaterialdascoisaslidas,ouvi- das ou pensadas;assim,eramoferecidoscomoum tesouro acumuladoparareleituraemeditaçãoposteriores.Formavam tambémumamatériaprimaparaa redaçãodetratadosmais sistemáticos,.nosquaiseramdadosos argumentose meios paralutarcontraumadeterminadafalta(comoacólera,ainve- ja, a tagarelice,a lisonja)ouparasuperaralgumacircunstàn- 148 MichelFoucault- DitoseEscrttos 1983- A EscrttadeSi 149 5.(NA) Plutarco.De tranquülitate.464Q.(DeZatranquülitéde l'âme.trad.J. DumortiereJ. Defradas.inOeuvresmorales.Parts.LesBellesLettres."Col- lectiondesUniversitésdeFrance".1975.1.VII. parte1,p. 98 (N.E.).) 6.(NA) Ibid..465G. Por maispessoaisquesejam,esseshupomnêmatanãode- vemnoentantoserentendidoscomodiários,oucomonarrati-