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Livro-Texto sociologia rural IV

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SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Unidade IV
7 TENSÕES ENTRE DIREITOS E NORMAS: PERDAS E GANHOS
Certos temores que estavam associados ao relógio agora mudaram-se para 
o celular: o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que caia no chão 
e quebre. Como dizia o texto de Cortázar, mas, agora, aplicado ao celular: 
“dão-lhe de presente a marca e a certeza de que é uma marca melhor do 
que as outras”, dão-lhe de presente a tendência a comparar seu celular com 
os demais, a necessidade de recarregá-lo, a ansiedade de saber quando vão 
aparecer novos modelos com funções inesperadas. O relógio e o celular 
requerem uma despesa inicial, mas os celulares se diferenciam porque só 
existem se continuamos investindo.
Você também recebe de presente a facilidade de iniciar conversas a partir 
de lugares remotos, a necessidade de ficar dependente dos chamados, a 
pressa de ligar o celular antes de sair do cinema quando mal acaba de 
passar o fim do filme para saber o que há de novo: o celular é o outro 
espetáculo, as ilusões da tela grande competem com os entretenimentos 
da íntima. Você recebe de presente a pergunta “onde você está?” que 
costuma principiar as conversas pelo celular, o controle que seus familiares 
tentam ter (por isso, dizem, tantos celulares são dados de presente pelos 
maridos a suas mulheres e pelos pais aos filhos). Você também recebe 
de presente a possibilidade de que o chefe ligue às onze da noite e 
mande fazer um trabalho urgente. Enquanto os pós-modernos celebram 
a mobilidade e o nomadismo, a desterritorialização e a facilidade com 
que nos comunicamos, na verdade nem todos podem fugir à exigência de 
estar sempre disponíveis, à vigilância daqueles que lhe recordam que você 
pertence a uma empresa e a um lugar mesmo estando em outra cidade 
ou outro país.
[...]
As ligações múltiplas e rápidas são um capital social, porém – como 
acontece com o dinheiro – nem todos as obtêm de maneira igual. Outras 
formas de acumulação não digital da riqueza distribuem a possibilidade 
de dar ordens ou a obrigação de cumpri-las. Não importa a hora 
mostrada pelo seu celular ou computador, você pode ser convocado ou 
receber uma mensagem para que faça algo imediatamente. Onde está 
o poder: em conectar-se velozmente e com muitos ou na possibilidade 
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Unidade IV
de desconectar-se? Você não ganha de presente o celular. Você é o 
presente, você é que é ofertado para o aniversário do celular (CANCLINI, 
2013, p. 40-41).
Mais uma parada em nosso roteiro. E consultando nosso mapa corporal, aguçamos a sensibilidade, 
provocamos nossa cognição, abrindo nossas vias de apreensão e; desse modo, vamos nos aproximando 
da realidade, procurando o que há de rural, de agrário (ou não); procurando também pelas cidades, com 
objetos e relações rurais e agrários, mais ou menos presentes.
Metaforicamente, aproximando-nos, agora, com auxílio dos olhos, ouvidos, nariz, com a memória da 
situação do início do trajeto, em que estávamos com os pés no chão. É um momento de identificação 
de forças contrárias àquelas apresentadas até então, procuramos rebeldia ao olhar. O enfoque passa a 
ser crítico diante das relações sociais consolidadas, sejam econômicas ou culturais – crítica que parte 
dos impactos reais das políticas de Estado na vida cotidiana, daí o foco na apreensão dos decretos e 
diretivas que se materializam na comum unidade de pessoas, na percepção.
Dessa maneira, estamos procurando tanto os problemas inerentes aos aspectos da vida rural, 
quanto falhas estruturais do Estado, em suas ações. Problemas nas associações privadas e/ou 
mistas, falhas manifestadas nas formas de concentração de poder privado também em âmbitos 
públicos, como os segmentos do aparato estatal, cuja instrumentalização precisa ser procurada em 
sua composição e razões.
Nas malhas normativas que descrevemos, é o momento do corpo indócil, expressão de subversões, 
alinhado ou não aos movimentos sociais:
• nos campos: corpos rebeldes que já perceberam que a “diminuição das desigualdades” 
promovidas pelas relações estritamente de mercado não leva a melhorias reais, integrais, mas 
à homogeneização, a qual leva à questão rural-agrária (sem-terra, desemprego, tendência 
na queda dos preços dos alimentos, queda nos preços vai de encontro às necessidades dos 
agricultores, inseridos no mercado de bens agrários, como afirma Mazoyer, 2010), pois pelo 
mercado suas condições de manutenção de “negócios sustentáveis”, economicamente, 
decrescem, conforme os preços das corporações podem baixar, sem que seus insumos baixem;
• nas cidades: trabalhadores despossuídos dos meios de produção assalariam-se; emerge, assim, 
uma questão urbana, como a rural, derivada da desigualdade, porém com problemas de acesso à 
riqueza específicos, ligados à reprodução das condições de existência, diante de obstáculos como 
trabalho indisponível, transporte com investimentos e diversificação insuficiente, portanto, com 
este ineficiente; além de alimentação, habitação, saúde, educação, todos de alto custo. Percalços 
ao modo de como os vê Castells, Lefebvre, Kowarick.
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 Saiba mais
A expressão “corpo indócil”, para nós, faz sentido porque diante das 
determinações redutoras do humano, o corpo-sujeito rebela-se, não em 
busca de liberdades puras, absolutas ou naturais, mas de acordo com as 
utopias de humanidade. E não se trata das reduções necessárias, como 
aquelas de ímpeto, impulsos e paixões ameaçadoras e destrutivas do 
próprio humano, como já nos ensinava Thomas Hobbes, para quem nossas 
liberdades ilimitadas não são condizentes com a vida coletiva, requerendo 
freios, no caso, de um Estado forte. Sobre o assunto, leia:
SILVA, H. A. As paixões humanas em Thomas Hobbes: entre a ciência e 
a moral, o medo e a esperança. São Paulo: Cultura Acadêmica/Editora da 
Unesp, 2009.
As reflexões de Han (2015) são convergentes às nossas quanto à inflexão histórica do cálculo econômico 
marcado pela escassez, que se caracteriza agora pela abundância, isto é, momento cujas principais 
questões sociais dão-se em meio a excessos, diferentemente das equações convencionais baseadas em 
condições de escassez e de carência, sociedade viral para a neural. Sua “sociologia do cansaço” põe-se 
em alerta diante dos excessos paradoxais das cada vez mais largas escalas e padronizações do fordismo e 
do pós-fordismo. Excessos relativos que, segundo Milton Santos, nos atam (proprietários ricos e classes 
médias não mudam nada) aos arranjos sociais ou sociotécnicos elementares do capitalismo.
Daí o modo de vida de males sem defesas, sem alertas de perigos, que tomam os circuitos produtivos, 
os quais seguindo o caminho dos circuitos produtivos, em suas múltiplas dimensões (culturais, espaciais, 
históricas, biológicas, psicológicas, econômicas), tomam tanto as áreas rurais e atividades agrárias (ou 
de poliatividades, como quer Graziano da Silva) quanto urbanas (em cidades ou “suas redes”).
Hoje concordamos que o rural não deveria ser somente caracterizado pelo “agro” (é lugar de 
poliatividades), tampouco por atividades estritamente tecnológicas (comumente urbanas, das cidades). 
A ideia é, exatamente, fugir dos extremismos, por meio de registros mais fieis dos modos de vida reais, 
não de figuras metodológicas que falarão pelo modelo aplicado, do qual são deduzidas.
Nessa empreitada, a antropologia rural ilumina as relações que queremos entender e apresentar e 
Mellati (2007) propõe instrumental conceitual elementar associado aos processos básicos às aproximações 
do pesquisador; ao nos aproximarmos da sociedade estudada, devemos:
• relatar ou produzir levantamentos;
• sistematizar ou mapear o funcionamento;
• interpretar minuciosamente crises, relações críticas, atendo-nos à ideia de movimento e mudança.
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Entre a procura, até certo ponto fracassada, de fundamentos racionaisdas ciências nos moldes 
clássicos, positivistas e o enfrentamento da complexidade, temos um compromisso com a didática ao 
apresentar uma síntese de ambos. Assumimos que os modelos que se universalizam não nos trazem o 
cerne da vida social, assim como o relativismo também não o poderá fazer. O desafio é encontrar o bom 
termo das posições.
Bem, nossa hipótese é de que há perdas de sentido das práticas, em geral, e do trabalho, em particular, 
com seu produto em território rural ou urbano.
Vejamos a entrevista concedida por David Harvey (2012b), estudioso da vida moderna nas cidades.
As cidades rebeldes
Um grande teórico das metrópoles contemporâneas contesta hipóteses conformistas e 
vê nestes centros, colonizados pelo capital, laboratórios de outra sociedade.
Acaba de sair, por enquanto, em inglês, um livro indispensável para quem quer debater 
crise do capitalismo, degradação social e ambiental das cidades e busca de alternativas. 
Numa obra curta (206 páginas), intitulada Cidades Rebeldes, o geógrafo, urbanista e 
antropólogo David Harvey sustenta pelo menos três ideias polêmicas e indispensáveis, num 
tempo de crise financeira, ataque aos direitos sociais, risco de desastre ambiental e rebeliões 
contra o sistema. Elas estão expostas em detalhes em entrevista que Harvey concedeu a 
John Brissenden e Ed Lewis, do excelente site britânico New Left Project.
A primeira provocação do geógrafo – que é também um dos grandes estudiosos 
contemporâneos de O Capital, de Karl Marx (veja a área especialmente dedicada ao tema, 
em seu site) – diz respeito ao papel das grandes metrópoles. Harvey discorda de dois tipos 
de pessimismo. Estes grandes centros para onde fluem as multidões de todo o mundo no 
século XXI, diz ele, são bem mais que templos da desigualdade, da vida automatizada e 
cinzenta, da devastação da natureza.
É a elas que afluem – e lá que se articulam – as multidões às quais o capital já não 
oferece alternativas. Esta gente estabelece novas formas de sociabilidade, identidade 
e valores. É nas metrópoles que aparecem a coesão reivindicante das periferias; novos 
movimentos, como occupy; as fábricas recuperadas por trabalhadores em países como 
a Argentina; as famílias que fogem ao padrão nuclear-heterossexual-monogâmico. 
Nestas cidades, portanto, concentram-se tanto as energias do capital quanto às melhores 
possibilidades de superá-lo. Elas não são túmulos, mas arenas. Aí se dá o choque principal 
entre dois projetos para a humanidade.
A segunda hipótese de Harvey diz respeito à própria (re)construção de um projeto 
pós-capitalista. O autor de Cidades Rebeldes está empenhado em identificar e compreender 
formas de organização social distintas das previstas por um marxismo mais tradicional. 
Ele reconhece: ao menos no Ocidente, enxergar na classe operária fabril o grande sujeito 
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da transformação social equivale quase a um delírio. É preciso buscar sentidos rebeldes 
nas lutas por direitos sociais empreendidas por um leque muito mais amplo de grupos e 
movimentos. Não cabe nostalgia em relação às batalhas dos séculos passados: é hora de 
tecer redes entres os que buscam de muitas maneiras, nas cidades, construir formas de vida 
além dos limites do capital.
Mas esta abertura ao novo não significa, diz Harvey (e aqui está sua terceira provocação 
fundamental), aderir a modismos. O autor saúda o surgimento de uma cultura da 
horizontalidade e da desierarquização, nas lutas sociais. Mas sugere: para enfrentar um 
sistema altamente articulado, será preciso construir, também, visões de mundo e projetos 
de transformação que não podem ser formulados no chão de uma assembleia local de 
indignados. Harvey teme que o horizontalismo – grosso modo, a noção de que tudo deve vir 
das bases e ser debatido em assembleias – acabe se transformando num fetiche. Seria, ele 
adverte, refazer pelo avesso a obsessão dos antigos Partidos Comunistas pela autoridade e 
centralização. A entrevista completa vem a seguir.
John: Você diria que há um argumento central em As Cidades Rebeldes: do direito à 
cidade à Revolução Urbana, ou o livro reúne diversos temas?
David Harvey: Um pouco dos dois. Se há um argumento central, ele está nos capítulos 
2 (“As raízes urbanas das crises capitalistas”) e 5 (“Reivindicando a cidade para a luta 
anticapitalista”). O capítulo 2 é essencialmente sobre as relações entre capital e urbanização; 
o 5, sobre a oposição entre o capital e a urbanização. O conflito de classes está basicamente 
nos capítulos 2 e 5.
John: Você fala sobre as rendas do monopólio e as contradições intrínsecas a esse 
processo. Poderia explicar essas contradições e o significado delas para sua análise?
David Harvey: Argumenta-se que capitalismo tem a ver com competição, algo 
muito repetido e valorizado. Mas basta falar com um capitalista para descobrir que ele 
prefere o monopólio, se houver essa possibilidade. O que existe na verdade, por parte do 
capital, é uma incessante tentativa de evitar situações competitivas por meio de algum 
truque monopolista.
Por exemplo, o fato de dar nome e marcas produtos é uma tentativa de colocar neles um 
selo do monopólio. É por isso temos o swoosh do Nike [a seta estilizada que caracteriza a 
marca], ou ícones parecidos, que tornam certos produtos diferentes de qualquer outra coisa. 
Esta tendência ao monopólio é permanente. Ao escrever A Arte da Renda, eu quis chamar 
atenção sobre como os capitalistas gostam de chamar algo de original, autêntico, único. 
Eles adoram o “marketing da arte”. Há, portanto, um fluxo enorme de capital em direção a 
qualquer coisa que se possa facilmente monopolizar.
John: Mas uma vez que esse processo começa…
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David Harvey: Bem, num certo momento, aquilo que não era uma mercadoria de marca 
transforma-se em algo menos exclusivo, uma commodity. Esta tensão sempre existe. Veja, 
por exemplo, a modernização dos portos urbanos. O primeiro processo foi muito bom, 
todos diziam “que interessante”. Agora, quando você vai a muitas cidades do mundo e lhe 
perguntam: “Viu o porto?”, você responde: “Vi um, vi todos”. E Barcelona não parece mais 
tão única quanto antes, porque seu porto (modernizado) se parece com qualquer outro. 
Rotterdam, Cardiff e, claro, Londres têm um. Não é mais uma coisa única, se tornou apenas 
um tipo de taxa urbana comum.
John: Você argumenta: “um espaço se abre, nessa tensão…”
David Harvey: Sim, acho, por exemplo, que a qualidade de vida em uma cidade 
frequentemente é algo definido por seus habitantes, sua forma de vida, seu modo de ser. 
Para que isso se torne único, o capital depende da inventividade de uma população para 
fazer algo, para fazer algo diferente. O capital tende a ser homogenizante. As pessoas 
frequentemente fazem o diferencial, produzem atrações únicas, existe um tipo de relação 
aí. Isso significa que os movimentos populares podem ter espaço para florescer, para tentar 
definir alguma coisa que é radicalmente diferente.
John: Você pode apontar exemplos de onde isso está acontecendo?
David Harvey: Sim. Em Hamburgo, existe uma área, o bairro St. Pauli, que era cheio 
de squats (ocupações de prédios abandonados, em geral, feitas por jovens e imigrantes). 
Eles criaram um ambiente único, muito diverso. Múltiplas etnias, classes, uma vida urbana 
muito intensa. O setor imobiliário, muito presente em Hamburgo, havia transformado a 
cidade em algo muito homogêneo. De repente, perceberam que existe esse bairro incrível, 
e agora estão tentando apropriar-se dele, comprando casas e alugando-as por um preço 
diferenciado, porque “não é interessante viver nesse bairro vibrante?”. Esse tipo de coisa 
você vê nas cidades a toda hora: as pessoas criam um bairro único, ele se torna burguês 
e entediante.
John: Sabemos que, no interior do capitalismo urbanista, há forças de compensação 
muito poderosas. Como podemosreverter sua lógica?
David Harvey: Um exemplo: o movimento Occupy desencadeou, em Nova York, uma 
resposta policial muito feroz e realmente exagerada. Basta você tentar participar de uma 
marcha, ou manifestação semelhante, para que haja 5 mil policiais em seu redor – e são 
bem agressivos.
Tentei entender por quê. Quando os Giants venceram o Superbowl (campeonato nacional 
de futebol americano), as pessoas tomaram as ruas, interromperam a atividade normal de 
maneira ainda mais clara e a polícia não fez nada. “Ah, eles estão apenas comemorando”. 
Mas o Occupy cria, por seu significado político, uma resposta violenta. E se você pergunta 
por que, sinto que Wall Street enerva-se muito com a possibilidade de esse movimento virar 
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moda. Se isso ocorrer, haverá uma clara demanda para responsabilizar pessoas por muito 
do que aconteceu à economia. E o pessoal de Wall Street sabe o que fez, sabe que tem 
responsabilidade e que pode acabar preso. Penso que dizem ao prefeito e a todas as demais 
autoridades: “acabe com esse movimento antes que vá longe demais”. Isole-o, faça com que 
pareça muito violento. Então você acaba com esse tipo de resposta política.
John: Que outras qualidades do movimento Occupy lhe parecem particularmente 
significativas?
David Harvey: Eu estive fora ano passado inteiro, realmente não acompanhei o Occupy 
em seu período mais ativo nos Estados Unidos. Mas algo que fizeram foi chamar muita 
atenção para a questão da desigualdade social, para os bônus enormes pagos aos altos 
executivos. Estes conceitos estão se espalhando. Antes do Occupy, nada disso era discutido. 
Agora o Partido Democrata nos Estados Unidos, e até Obama, estão dispostos a tratar a 
desigualdade social como um problema. Os acionistas das grandes empresas estão começando 
a votar contra os grandes pacotes de bônus. Acho que tudo isso foi consequência da agenda 
criada pelo movimento. Mas, como sempre acontece, os poderes políticos cooptam parte do 
discurso contra o sistema e tentam diluí-lo. Vivemos agora uma fase de certa cooptação, em 
que os acionistas estão assumindo parte da retórica e Obama, outra parte.
Ed: Sobre isso, estamos interessados em suas discussões sobre estratégia. Como ponto de 
partida, é claro que a concepção tradicional que a esquerda tinha, da classe operária industrial 
como sujeito revolucionário e agente de mudança, não se encaixa mais no Ocidente. Você 
pode contar como reconcebeu o sujeito revolucionário, quem pode constituí-lo hoje e como 
está relacionado às cidades e à identidade urbana?
David Harvey: Para tratar deste tema, faço uma pergunta: quem está produzindo e 
reproduzindo a vida urbana? Se você olhar para o tipo de produção que prevalece hoje, 
definirá o proletariado de maneira totalmente distinta da que se contentava em associá-lo 
ao trabalhador fabril.
Este é o passo necessário. A partir daí, é possível pensar em quais formas de organização 
são possíveis hoje, entre as novas populações urbanas. Elas são mais difíceis de organizar, 
precisamente porque não estão em fábricas. Por exemplo, a imensa quantidade de 
trabalhadores que atuam no transporte de produtos e pessoas, de caminhoneiros a taxistas, 
como organizá-los?
Há algumas experiências interessantes a respeito, em Nova York e Los Angeles. 
Politicamente, não é possível falar num sindicato nos termos tradicionais, é preciso criar 
organizações diferentes.
Ou tomemos o caso dos empregados domésticos. É extremamente difícil organizá-los, 
particularmente quando são, como em muitos países do Norte, ilegais. Porém, são uma força 
de trabalho bastante significativa, em muitas cidades. Parte do que estou dizendo é que todas 
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estas formas de trabalho desenvolvem-se nas cidades e são vitais para a reprodução da vida 
urbana. Por isso, deveríamos nos preocupar em organizar politicamente estes trabalhadores, 
para influir na qualidade e natureza da vida nas cidades. Em alguns casos, a organização 
é muito difícil; em outros, pode ser muito vigorosa, mas assume frequentemente formas 
muito distintas das tradicionais.
Ed: Você acha que a esquerda está mergulhada neste tema, em compreender os desafios 
e oportunidades com que nos deparamos?
David Harvey: Penso que, historicamente, a esquerda sempre estabeleceu algum tipo de 
separação entre o que você poderia chamar de organizações de trabalhadores, ou baseadas 
em classes, e movimentos sociais. Uma de minhas batalhas nos últimos 30 ou 40 anos tem 
sido dizer que é preciso enxergar estes movimentos como movimentos de classe. Penso que 
houve uma relutância a aceitar isso, em muitos setores da esquerda.
Veja que esta relutância diminuiu, inclusive em razão da rapidez com que o trabalho fabril 
desapareceu. Quando cheguei em Baltimore, em 1969, havia algo como 35 mil operários na 
fábrica de aço. Quinze anos depois, eram 10 mil e na virada do século, apenas 2 mil. Se você 
quisesse organizar algo politicamente em 1970, você abria um diálogo com o sindicato dos 
metalúrgicos, porque eles tinham musculatura. Hoje, são irrelevantes. Mas, se o sindicato já 
não conta, como organizar os trabalhadores? Diante desta questão, penso que a esquerda 
passou a compreender e valorizar melhor os movimentos sociais.
Ed: Em relação às dificuldades na organização dos grupos de que estamos falando, você 
investigou uma grande variedade de movimentos, em momentos diferentes. Existem lições 
particulares que devam ser generalizadas?
David Harvey: A maioria dos grupos desse tipo aparece como de organizações por 
direitos sociais. Sob esse guarda-chuva, eles podem criar formas organizativas menos 
restritas que as dos sindicatos convencionais. Agora, uma das coisas que vi em Baltimore foi 
que um movimento de sindicatos convencionais pode ser hostil a essas novas organizações. 
O movimento sindical convencional dividia-se: algumas vezes eles apoiavam; mas era mais 
comum considerarem essas formas de organização como uma ameaça a si próprio.
Penso que hoje, o movimento sindical convencional está preparado para enxergar essas 
organizações como cruciais para apoiar suas lutas. Começa a surgir um tipo de coalizão. Na 
marcha do Primeiro de Maio realizada em Nova York, há pouco, pessoas tradicionalmente 
ligadas ao movimento sindical juntaram-se aos movimentos sociais.
Sou muito a favor de uma forma diferente de organização sindical, de preferência local, e não 
por setor. Acredito que os sindicatos convencionais devem prestar mais atenção aos conselhos 
de comércio locais e aos conselhos municipais. Os sindicatos tendem a se preocupar apenas com 
o bem-estar de seus membros, e uma organização geográfica precisa pensar no proletariado em 
geral, na cidade. Desse ponto de vista, uma forma de organização diferente pode abranger uma 
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cidade inteira, e unir pessoas envolvidas em sindicatos diferentes, com todas as suas diferenças, 
em um tipo de sindicato da cidade, ou uma organização política da cidade.
Ed: No capítulo 5 do novo livro, você relaciona algumas de suas hipóteses sobre organização 
urbana às dificuldades enfrentadas pelas formas tradicionais de organização da esquerda. 
Não apenas no que diz respeito a diferente composição do proletariado, mas também nas 
relações com organizações autônomas, como cooperativas; ou na dificuldade para atuar na 
esfera estatal. Você parece sugerir que as cidades são locais de organização especialmente 
poderosos e, se fosse possível organizar uma cidade inteira, então possivelmente estaríamos 
muito empoderados. Por que você acha que as cidades são tão importantes? As cidades 
radicalmente isoladas não sofreriam da mesma vulnerabilidade das cooperativas?
David Harvey: Gosto de pensar nas cidades porque são uma escala maior que uma simples 
fábrica. Se você observar as fábricas recuperadas na Argentina, tomadas pelos trabalhadoresem 2001 – 2002, verá que uma das dificuldades que surgiriam desse movimento e das 
associações de trabalhadores envolvidas é que, em certo ponto, como estão imersas num 
sistema capitalista, veem-se envolvidas na competição e, em consequência, em práticas de 
auto exploração.
Marx tem uma série de passagens interessantes, onde se diz que o primeiro passo em 
direção a uma transformação revolucionária é a tomada dos meios de produção pelos 
trabalhadores; mas se ficarmos apenas nesse nível, não será suficiente. Se você começar a 
pensar em organizar uma cidade inteira (e isso está começando a acontecer um pouco na 
Argentina), as fábricas precisarão de matérias primas – se você está produzindo camisas, 
precisa de tecido. Mas de onde vem o pano? Bem, você começa a criar uma rede; monta 
uma rede de cooperativas produzindo coisas diferentes, interligadas.
Você pode imaginar que podem surgir, em uma área metropolitana, economias 
interligadas dessa forma, o que nos levaria além das possibilidades de tomar apenas uma 
fábrica específica. Outro fato interessante sobre as fábricas na Argentina é que quando 
foram tomadas, não permaneceram simplesmente como fábricas. Tornaram-se centros 
comunitários, integraram realmente os bairros próximos, tinham programas educacionais e 
culturais. Quando os donos voltaram, uns cinco anos depois, e disseram: “queremos nossa 
fábrica de volta ou levaremos as máquinas”, a população saiu de suas casas para impedi-los. 
Assim, é muito mais fácil de defender as fábricas tomadas.
Claro que se você tentar criar uma cidade totalmente comunista no meio do capitalismo, 
provavelmente irá sofrer uma repressão real e violenta. Estará numa situação como a da 
Síria, em uma cidade como Homs onde há um movimento de oposição muito forte. De 
certa forma, é uma cidade rebelde, cercada pelo exército e esmagada, com pessoas mortas 
e outras submetidas.
Penso que há perigo real em ir muito longe e muito rápido. Quão longe uma cidade pode 
ir, em relação a sua organização? Há exemplos disso: Porto Alegre construiu sua forma de 
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orçamento participativo, e agora há orçamento participativo em muitas cidades do mundo. 
Não é uma medida revolucionária, apenas uma medida transformadora que aprofunda a 
democracia urbana.
Esse movimento tornou-se significativo. Algumas inovações ocorrem no campo 
ambiental. Outra cidade brasileira muito interessante é Curitiba, que trabalhou questões 
ambientais e tornou-se conhecida por organizar seu sistema de transporte coletivo de 
uma forma ecológica e sofisticada As inovações que vieram de lá também estão sendo 
implantadas em outras cidades. Você pode imaginar uma situação como essa nos termos 
do que chamo de “teoria dos cupins” [Harvey refere-se aos casos em que é possível corroer 
por dentro uma estrutura capitalista, sem alarde, até que ela entre em colapso], para 
transformação social. Esta cidade agora tem uma estrutura institucional diferente, e você 
começa a ver tais mudanças como algo que se espalha pela rede urbana.
Ed: No entanto, você também é crítico da teoria dos cupins…
David Harvey: É preciso sempre ter cuidado. Quando sou crítico, não estou desprezando. 
Sustento que algumas estratégias são boas, que as pessoas poderiam adotá-las, mas por 
outro lado temos que considerar as limitações da realidade. Em que momento você passa 
de uma “estratégia dos cupins” para outra? Uma das coisas em que realmente me empenhei, 
no capítulo 5, foi tentar mostrar que há uma variedade de estratégias, para uma variedade 
de situações e propósitos. Não devemos, portanto, nos restringir dizendo: “esta é a única 
estratégia que vai funcionar”. Podemos adotar diversas, todas as que forem possíveis. Em 
alguns casos, não há outra opção além de se envolver em estratégia de cupins; e é possível, 
ainda assim, fazer um bom trabalho.
John: Você fala no livro sobre a cidade chinesa de Chongqing, onde Bo Xilai, líder 
do Partido Comunista, liderou processos muito interessantes, até ser afastado. Seria um 
exemplo dos riscos de ir “longe demais, rápido demais”?
David Harvey: Bem, eu não sou especialista em China, e me pergunto se ele era tão 
brutal e tão corrupta como está sendo pintada; ou se o retratam dessa maneira porque 
não gostam do modelo que estava desenvolvendo. Era maoísta na retórica; estava muito 
preocupado com a redistribuição da riqueza. Estava muito claro que sua tentativa de se 
tornar poderoso no Comitê Central baseava-se no desenvolvimento deste modelo urbano 
particular, radicalmente distinto do que se vê em Xangai, Shenzhen e lugares assim. Nesse 
aspecto, eu o achava muito interessante.
Agora, tanto quanto sei, o Comitê Central tem adotado, como políticas nacionais, algumas 
das práticas que Bo lançou em Chongqing. Isso é típico: como sabemos, há na China uma 
necessidade de incentivar o mercado interno e alguma preocupação sobre redistribuição da 
riqueza. Eles observaram um processo local bem-sucedido e talvez tenham decidido enfrentar 
estes problemas por meio de aumento salários ou construção de habitações, como Bo estava 
fazendo. Pode ser o modelo chinês de urbanização, que tem sido, na minha opinião, bastante 
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desastroso – ambiental e mesmo economicamente – mude nos próximos anos, nas mesmas 
linhas que o dirigente afastado estabeleceu. Mas ressalto que são apenas especulações.
Ed: Quero voltar para o que você afirmou sobre abraçar uma pluralidade de estratégias, e 
uma diversidade de formas organizacionais. Você tem participado de um debate permanente, 
e às vezes ácido, opondo “horizontalistas” a “centralistas”, ou “verticalistas”. Pode falar mais 
sobre isso, e como se relaciona a sua análise sobre capitalismo e cidade?
David Harvey: Acho que há hoje um grande apego pela horizontalidade. Tento dizer a 
meus alunos que gosto de passar grande parte da minha vida no horizontal, mas também 
gosto de ficar de pé de vez em quando e andar por aí! Porque acho que esta oposição não 
é útil. Sou a favor de ser tão horizontal quanto você puder. Mas há o que chamo no livro de 
uma espécie de fetichismo da forma de organização — o que foi terrível nas concepções de 
centralismo democrático dos partidos leninistas e comunistas.
Repito: a questão é para mim, identificar que tipo de organização será capaz de enfrentar 
e resolver cada tipo de problema. Acho que a horizontalidade pode ajudar a resolver alguns 
problemas, em certas escalas, mas não funciona em outras situações. Vivemos num mundo 
onde há sistemas muito estruturados, de maneira que você também precisa de estruturas de 
comando e controle para lidar com eles. Por exemplo, uma estação de energia nuclear é um 
sistema fortemente estruturado. Quando algo dá errado, você precisa reagir imediatamente, 
caso contrário tudo acontece muito rápido e explode. A universidade não é um sistema 
fortemente hierarquizado. Se algo der errado nela; se alguém não aparecer para uma 
palestra, por exemplo, isso importa pouco: a instituição sobrevive perfeitamente bem. Mas 
em sistemas fortemente hierarquizados, você precisa tomar decisões com rapidez.
Por isso, pergunto aos horizontalistas radicais: você quer organizar o controle de tráfego 
aéreo por meio de princípios horizontalistas? Quer ter assembleias o tempo todo, na torre 
de controle de tráfego aéreo? Será que funciona? Como você se sentiria se estivesse no 
meio de um voo cruzando o Atlântico, e de repente dissessem: “bem, os controladores de 
tráfego aéreo estão em assembleia, e eles vão nos informar amanhã o que decidiram”? Há 
muitas atividades que precisam, como essa, de formas bem diferentes de organização. Acho 
ótimos que as pessoas estejam debatendo horizontalidade, mas é ruim que digam algo 
como: “ou é horizontal, ou não é nada”.
Ed: Estas ideias vêm de um semianarquismo, de uma profunda suspeita diante de 
qualquer forma de autoridade. Você estádizendo, basicamente, que ser um radical, um 
anticapitalista, ainda é necessário reconhecer que às vezes a autoridade tem o seu papel?
David Harvey: Sim, claro, acho que a autoridade tem seu papel. O problema importantíssimo 
que se coloca é: como você controla uma autoridade? Quais são os mecanismos de revisão 
de mandatos e de controle? Porque uma estrutura hierárquica pode, de fato, tornar-se 
autoritária. Mas há uma grande diferença entre autoritarismo e autoridade. Eu acho que em 
certas situações, você precisa de alguém para exercer autoridade.
170
Unidade IV
O exemplo ilustre de que muitas pessoas lembrariam são os zapatistas. Mas eles, 
militarmente, não são horizontais. Sobrevivem até hoje precisamente porque, se você tentar 
mexer com os militares, eles têm um comando muito bom e estruturas de controle com 
os quais podem resistir. Se você não tiver isso, será muito vulnerável. Uma das críticas 
que sempre foram feitas à Comuna de Paris é que, devido a uma espécie de anarquismo 
filosófico, não havia nenhuma autoridade central para defender a cidade inteira.
As pessoas defendiam seu distrito, mas não toda a cidade. Por isso as forças da reação puderam 
atacar: não havia nenhuma estrutura de comando e controle para resistir militarmente à invasão.
John: Você fala, no novo livro, sobre Murray Bookchin, e sua abordagem sobre uma saída 
para este problema de escala.
David Harvey: Sou um geógrafo, e o pensamento anticapitalista na Geografia sempre foi 
predominantemente anarquista. Os anarquistas têm uma longa tradição de estarem muito 
mais interessados em questões ambientais e urbanas que os marxistas. Eles exerceram, 
ao longo do tempo, muita influência sobre as práticas de planejamento. Figuras como 
Lewis Mumford, que vêm dessa tradição, exerceram muita influência – inclusive sobre 
mim, obviamente. E Bookchin é seu herdeiro. Estou interessado em seus ensaios sobre 
municipalismo libertário: fala sobre formas horizontais de organização descentralizada, 
mas, em seguida, fala também sobre a confederação das assembleias regionais. Foca sobre 
as necessidades das bio-religiões, em vez de se limitar a comunidades particulares.
Ou seja, ele está disposto a pensar em uma estrutura hierárquica de algum tipo, tenta 
falar sobre como os poderes foram atribuídos e como devem ser. Recorre a um pequeno 
truque teórico de Saint-Simon: diz que pode haver gerenciamento das coisas, não de 
pessoas. Que se deve gerir, por exemplo, o abastecimento de água ou o saneamento de uma 
região – mas não o que as pessoas fazem. É muito diferente da política real, mas a ideia, – e 
o pensamento de Bookchin em geral – me parece muito interessante.
Participei, há duas semanas, de uma reunião em Nova York, com David Graeber. Murray 
Bookchin compareceu ao debate. Sua filha estava na plateia, e nós conversamos sobre reunir, 
num pequeno livro, uma seleção de escritos de Murray sobre o tema. Acho que é um momento 
muito bom para reintroduzir a tradição anarquista, que pode contribuir para o debate sobre 
algumas questões mais amplas. Por exemplo, como você realiza tantas assembleias municipais 
e não coloca em questão o fato de algumas pessoas, com muitos recursos, converterem-se em 
ultraricos – enquanto muitos, sem recursos, reduzem-se a ultrapobres?
Ed: Sua visão parece que, no fim das contas, será necessário um Estado. Parece que você 
acha que Bookchin talvez aceite isso, mas não pode admitir.
David Harvey: Sim. Você sabe: o que se parece com um Estado, é visto como um 
Estado, e se expressa como um Estado é um Estado! Há algo que se pode chamar de Estado 
capitalista, que poderíamos querer esmagar. Mas há, também, uma forma de organização 
171
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
que diz respeito às relações entre diferentes assembleias e grupos. E no plano mundial, você 
também tem que pensar sobre certas questões como o aquecimento global. Precisam ser 
abordadas e compreendidas em plano global. Significa que certas ideias sobre o que fazer 
têm de ser resultado de uma preocupação mundial.
John: Isso nos leva de volta a um ponto que abordamos antes, sobre as organizações 
com base geográfica. Existe uma oposição entre o urbano e o não urbano?
David Harvey: Muitas pessoas me fazem essa pergunta. Elas dizem “a cidade não existe realmente 
hoje. Você está falando sobre o direito a algo que não existe mais?” Ou: “você está falando sobre a 
cidade, por que não sobre o campo. Por que você não fala sobre as áreas rurais?”. Minha resposta 
é que, de fato, nos últimos cinquenta anos, nós nos tornamos um mundo totalmente urbano, 
e o que pode ter sido verdade há algum tempo – a existência de uma vida urbana e uma vida 
camponesa autossustentável, independente – desapareceu em grande parte. O que você vê é um 
contínuo entre o campo e a cidade. Na América Latina, por exemplo, se você está na área rural, as 
pessoas assistem aos mesmos canais na televisão, dirigem os mesmos carros. Isso é o que chamo de 
desenvolvimento geográfico desigual no interior do processo de urbanização.
E desse ponto de vista, você diz que as diferenças no interior das cidades são tão 
significativas quanto as diferenças entre a cidade e subúrbio, e o subúrbio e as zonas não 
urbanas. Há tantas diferenciações no interior do próprio processo de urbanização, que a 
diferença entre áreas ricas e favela é dramática – na realidade, mais dramática que a que 
existe entre o que acontece na cidade e fora dela.
Há formas de organização que refletem isso. O movimento dos trabalhadores sem-terra 
no Brasil tem conexões urbanas muito amplas e as leva muito em conta. Ele não se vê fora 
do mundo autônomo, mas como parte de um processo geral de urbanização. É como quero 
ver este processo. Há, em alguns lugares, tentativas de organizar uma cadeia de produção 
de alimentos para as cidades, que começa nos campos e passa por várias etapas. Vendendo 
a produção diretamente aos supermercados, por exemplo – o que me parece uma ideia 
muito interessante. Em El Alto (subúrbio popular de La Paz, Bolívia), um dos meus exemplos 
preferidos, a conectividade entre as pessoas que vivem na cidade e as que estão fora dela é 
muito, muito forte. Foi ampliada, nos últimos dez ou quinze anos, por causa do agronegócio 
e a forma com que o campo tem se transformado em uma paisagem capitalista.
Ed: Então um urbanismo revolucionário é uma forma universal de revolução política?
David Harvey: Eu diria que sim. A única razão pela qual me atenho a palavra “cidade” 
é que ela tem um significado icônico e é foco de sonhos e utopias. Ao mencioná-la, você 
está invocando o imaginário de uma cidade linda, uma cidade na colina etc. Continuo com 
o termo “cidade”, mas entendo perfeitamente que, em um sentido estrito, diferenciado de 
todo o resto, ela essencialmente desapareceu.
Fonte: Harvey (2012b).
172
Unidade IV
Dentre os problemas e as saídas anunciadas por Harvey para o estado de coisas de saber extrínseco 
e abstrato, estão aquelas que pleiteiam novas formas (e novas leituras de antigas formas) de relações e 
usos ambientais.
7.1 Diferenças, contrariedades ao modelo único de inserção no movimento global
A essa altura saltam aos olhos (narizes, ouvidos) as formas diferenciadas e as maneiras em que 
cada um toma para si o entorno imediato até os pontos mais distantes das cadeias de acontecimentos! 
E nos indagamos sobre essa fenomenologia, ou seja, o modo como os fenômenos são conhecidos pelo 
corpo-sujeito.
Algo dessas questões desafiadoras estão presentes no trecho sobre a poesia nos usos que Marcovaldo 
faz da capital, interiorano de vida rural, então em Roma. Italo Calvino (1994) em Marcovaldo ou As 
estações na cidade mostra a fruição e os usos que a personagem Marcovaldo faz da cidade em geral, 
e da praça, em particular, que é sempre possível ver além do texto imposto, da ordem imposta como 
norma. Ele vê coisas em todos os lugarespor onde passa, coisas que ninguém vê! É um belo exercício de 
percepção e lirismo. Segue trecho do posfácio sobre o curioso personagem em sua busca incessante 
de migrante no lugar atual (uma grande cidade) por elementos que ficaram para trás (as coisas do campo).
As estações da cidade [posfácio]
[…]
O livro Marcovaldo ou as estações na cidade se compõe de vinte contos. Cada conto 
é dedicado a uma estação; o ciclo das quatro estações se repete, portanto, cinco vezes no 
livro. Todos os contos têm o mesmo protagonista, Marcovaldo, e seguem mais ou menos o 
mesmo esquema.
O volume foi publicado pela primeira vez em 1963, em Turim, pela editora Einaudi, com 
ilustrações de Sergio Tofano. O texto de apresentação (escrito provavelmente pelo autor) dizia: 
“Dentro da cidade de concreto e asfalto, Marcovaldo vai em busca da Natureza. Mas ainda 
existe a Natureza? A que encontra é uma Natureza ardilosa, falsificada, comprometida com 
a vida artificial. Personagem engraçada e melancólica, Marcovaldo é o protagonista de uma 
série de fábulas modernas” que – dizia mais adiante a mesma apresentação – “se mantêm fiéis 
a uma estrutura narrativa clássica: a das histórias em quadrinhos das revistas infantis”.
O perfil do protagonista é apenas esboçado: é uma alma simples, um pai de família 
numerosa, trabalha como ajudante de pedreiro ou carregador numa firma, é a derradeira 
encarnação de uma série de cândidos heróis joão-ninguém, ao estilo de Charlie Chaplin. 
Com uma particularidade: a de ser um “Homem da Natureza”, um “Bom Selvagem” exilado 
na cidade industrial. De onde ele veio, de que lugar sente saudade, isso não é dito; poderiam 
defini-lo como um “imigrado”, embora essa palavra nunca apareça no texto; mas a definição 
talvez seja imprópria, porque todos nesses contos parecem “imigrados” num mundo estranho 
do qual não se pode fugir.
173
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
A melhor apresentação da personagem está no primeiro conto: “Esse Marcovaldo 
tinha um olho pouco adequado para a vida da cidade: avisos, semáforos, vitrines, letreiros 
luminosos, cartazes, por mais estudados que fossem para atrair a atenção, jamais detinham 
seu olhar, que parecia perder-se nas areias do deserto. Já uma folha amarelando num ramo, 
uma pena que se deixasse prender numa telha não lhe escapavam nunca: não havia mosca 
no dorso de um cavalo, buraco de cupim numa mesa, casca de figo se desfazendo na calçada 
que Marcovaldo não observasse e comentasse, descobrindo as mudanças da estação, seus 
desejos mais íntimos e as misérias da existência”.
Essas palavras podem servir de apresentação tanto da personagem quanto da situação 
comum a todos os contos, situação que poderia ser sintetizada da seguinte maneira: no 
meio da grande cidade, Marcovaldo 1) procura o revelar-se das estações nas alterações 
atmosféricas e nos mínimos sinais de vida animal e vegetal, 2) sonha a volta a um estado de 
natureza, 3) enfrenta uma decepção inevitável.
Os contos às vezes seguem esse esquema na forma mais simples, justamente como 
histórias em quadrinhos (assim os mais breves: “Cogumelos na cidade”, “O pombo municipal”, 
“O tratamento com vespas” etc.), com a surpresa no quadrinho final (aliás, surpresa ruim, 
porque esses contos se parecem com aquelas historinhas cômicas “sem palavras” que 
inevitavelmente acabam mal), às vezes como pequenos contos amargos, quase realísticos 
(como “A marmita”, “Ar puro”, “Uma viagem com as vacas”), e finalmente como contos 
em que estado de alma e paisagem prevalecem (como a solidão do animal em “O coelho 
venenoso” ou o desnorteamento na neblina em “O ponto errado”).
Talvez para salientar o caráter de fábula, as personagens dessas pequenas cenas de vida 
contemporânea – sejam elas varredores, guardas-noturnos, desempregados, carregadores – 
possuem nomes pomposos, medievais, quase de heróis de poemas de cavalaria, começando 
pelo protagonista. Apenas as crianças têm nomes normais, talvez porque apenas elas são 
mostradas como são, e não como caricaturas.
A cidade não é nomeada nunca; por alguns aspectos poderia ser Milão, por outros (o 
rio, os morros) pode-se reconhecer Turim (a cidade onde o autor passou grande parte da 
sua vida). Sem dúvida, essa indeterminação é procurada pelo autor para significar que não 
se trata de uma cidade, mas da cidade, uma metrópole industrial qualquer, abstrata e típica 
como abstratas e típicas são as histórias contadas.
Mais indeterminada ainda é a firma, a fábrica onde Marcovaldo trabalha: nunca 
conseguimos saber o que é fabricado ali, o que é vendido sob a misteriosa sigla SBAV, o 
que contêm as caixas que Marcovaldo carrega e descarrega oito horas por dia. É a firma, a 
fábrica, símbolo de todas as firmas, todas as fábricas, as sociedades anônimas, os logotipos 
que reinam sobre as pessoas e as coisas do nosso tempo.
Em contraste com a simplicidade quase infantil do enredo de cada conto, a postura 
estilística se baseia na alternância de um tom poético-rarefeito, quase precioso (a que a frase 
174
Unidade IV
tende, sobretudo quando alude a fatos da natureza), e do contraponto prosaico-irônico 
da vida urbana contemporânea, das misérias pequenas e grandes da vida. Diríamos, 
aliás, que o espírito do livro está essencialmente nesse contraponto estilístico: ele está 
presente até nos contos com enredo mais breve e elementar, concentrando-se às vezes 
na primeira frase, que tem a função de introduzir o tema da estação (“O vento, vindo 
de longe para a cidade, oferece a ela dons insólitos, dos quais se dão conta somente 
poucas almas sensíveis, como quem sofre de febre de feno e espirra por causa do pólen 
de flores de outras terras”). Em outros contos, ao contrário, ainda que o enredo não seja 
nada mais que a série habitual de quadrinhos, cada detalhe é pretexto para um trecho 
de elaboração estilística requintada (por exemplo, em “Férias num banco de praça” a 
comparação entre a cor da lua e a do semáforo amarelo). Chega-se assim aos contos 
em que o requinte da prosa corresponde a uma invenção narrativa quase igualmente 
elaborada, como na multicolorida visão final de “A chuva e as folhas”, ou, resultado 
ainda mais complexo, no início de “O jardim dos gatos obstinados”, em que vemos a 
cidade das empreiteiras engolir a “cidade dos gatos”, que constituía também para os 
homens o verdadeiro espaço vital.
Um fundo de melancolia tinge o livro do começo ao fim. Poderíamos dizer que, 
para o autor, o esquema das historinhas cômicas é apenas o ponto de partida e que, ao 
desenvolvê-las, ele se entregou a uma sua veia lírica amarga e dolorida. Mas Marcovaldo, 
apesar de todas as derrotas, nunca é um pessimista; está sempre pronto a redescobrir, 
dentro do mundo que lhe é hostil, a fresta de um mundo feito à sua medida; ele nunca 
se rende, está sempre pronto a recomeçar. Sem dúvida, o livro não convida a uma 
postura de otimismo superficial: o homem contemporâneo perdeu a harmonia entre ele 
e o ambiente onde vive, e superar essa desarmonia é uma tarefa árdua; as esperanças 
fáceis demais, idílicas, sempre se revelam ilusórias. Mas a postura que domina é a da 
obstinação, da não resignação.
Podemos agora definir melhor a posição deste livro frente ao mundo que nos cerca. É a 
nostalgia, a saudade de um idílico mundo perdido? Uma leitura nessa chave, comum a tanta 
literatura contemporânea que condena a desumanização da “civilização industrial” em nome 
de um sentimento nostálgico do passado, certamente é a mais fácil. Mas, observando com 
maior atenção, vemos que aqui a crítica à “civilização industrial” é acompanhada de uma 
crítica igualmente decidida a todo sonho de “paraíso perdido”. O idílio “industrial” é alvejado 
tanto quanto o idílio “campestre”; não apenas uma “volta atrás” na história é impossível, mas 
também aquele “atrás” nunca existiu, é uma ilusão. O amor de Marcovaldo pela natureza é 
aquele que pode nascer apenas num homemda cidade; por isso não podemos saber nada 
da sua origem extraurbana; esse estranho à cidade é o cidadão por excelência.
[…]
Fonte: Calvino (1994, p. 137-140).
175
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
 Saiba mais
Dentre os inúmeros trabalhos sobre cidades sustentáveis, destacamos 
o texto de Cecília Polacow Herzog, escrito pelo espectro de países com 
que trabalha.
HERZOG, C. P. Cidades para todos: (re)aprendendo a conviver com a 
natureza. 1. ed. Rio de Janeiro: Mauad X: Inverde, 2013.
7.2 Campos e cidades rebeldes, movimentos sociais urbanos
Se, por um lado, temos os processos homogeneizantes, por outro, há um apelo ou deveria 
haver, aos retratos etnográficos dos povos que, mesmo sendo misturados, até mesmo nivelados na 
base, estão fora da briga pelo topo. Sempre há especificidades, sempre devem ser resgatadas de 
nossas profundezas tribais, comunais, ancestrais dos fios culturais de cada sociedade.
Desse modo, surge a questão das possibilidades em meio à tanta vigilância e punição (Michel 
Foucault), elaborando racionalidades alternativas (Jürgen Habermas), entendendo o campo de forças 
envolvidas (Pierre Bourdieu) e as cifração do social (Milton Santos). Então, a questão é: como se 
apropriar dos aspectos que ora são requeridos pelo mercado, pelos agentes de mercado com poder 
classificatório e normativo?
Como privilegiar o republicanismo e a democracia nos âmbitos rurais e urbanos, diante da 
instrumentalização dos símbolos e discursos com vistas à sujeição, que se apropria das tradições, das 
posses e dos corpos, incorporando tudo ao universo das mercadorias? Por meio da educação diretiva, 
age o pensamento único, do modo como vê Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Henri Lefebvre, David 
Harvey e Milton Santos.
 Saiba mais
Há um grande poder nas narrativas, nas versões disseminadas pelos 
grupos controladores dos recursos de uma dada sociedade. Há verdadeiras 
“segundas realidades” (discursos paralelos de grupos que nomeiam e 
significam a realidade). Discursos que se tornam o verdadeiro mundo, o que 
antes acontecia no tempo longo de gerações, agora basta poucos meses e 
até dias, pelas redes sociais na Internet.
A seguir, um expressivo exemplo desse fenômeno de poder das histórias.
LE CLÉZIO, J. M. G. Raga. Rio de Janeiro: Record, 2011.
176
Unidade IV
Outro exemplo trata-se de uma ficção (histórico-arqueológica) de Allan 
Moore sobre milênios de um mesmo lugar no Reino Unido; mostrando 
nuances, sutilezas, especulações e desencontros a partir de materiais 
vestigiais e documentais, que falam pelo enredo e pelas personagens. 
Recomendável pelo alcance da arte no tema.
MOORE, A. A voz do fogo. São Paulo: Conrad, 2012.
Os movimentos e organizações sociais, além das manifestações de vários segmentos das sociedades 
em várias partes do mundo, são o melhor do exercício político, expressando a multiplicidade de projetos 
de sociedade. Aqui, é o trabalho de cada um, junto com as faces culturais do humano, que vão expor 
suas particularidades ou a essência do ser social, que podem amparar a construção da cidadania com 
bases públicas. O foco é a visão política.
A cidadania formal é aquela prometida no terreno normativo, enquanto a cidadania real é aquela 
constituída nos afazeres dos habitantes em seus próprios meios: os espaços rural e urbano. Os direitos e 
normas, quando necessários, segundo Hannah Arendt (2006) dificilmente garantirão justiça.
Aqui, o núcleo dinamizador dos eventos é o político. Experiências, práticas e percepções novas 
são requeridas, com novas organizações e grupos, eventuais e permanentes. O foco político descobre 
movimentos por ocupação de espaços (Occupy) da parte de diferentes grupos (identificados, agregados 
por idades, renda, representações, procura por lazeres, entre outros motivos). Os grupos perseguem 
ideias que nascem das possibilidades culturais, antes de a utopia constituir seu lugar político que 
garantirá sua reprodução.
A segurança, a violência real e a percebida em meio a esse jogo de forças são resultantes de idílios e distorções 
nas causas da segregação socioespacial, e tal percepção advém do foco na dimensão política da sociedade.
As soluções impostas, ao longo de nossa história, têm sido quase sempre privadas (mesmo quando 
provenientes do Estado, em suas várias esferas, da União, dos estados federados e dos municípios), 
normalmente parciais e dualistas; enquanto as públicas devem ser portadoras de legitimidade. É o que 
define o âmbito público, a própria ideia de república trata do que é de todos.
O direito à terra, no campo e na cidade, do modo como discutimos nesse trabalho, envolve leis, novas ou 
reformadas, planos reguladores das relações sociais com base nas noções de público (riqueza da vida social) e 
privado (relações sociais degradadas em benefício próprio), evidenciando as razões dos grupos políticos.
Emerge o trabalho coletivo que em tese seria como o Estado republicano com o ser social privado, 
corporativo; assim, a configuração econômica do Estado-territorial é o mercado nacional, isto é, agente 
das relações internacionais.
Mais adiante, traremos uma reflexão de Milton Santos sobre a seletividade do desenvolvimento pela 
difusão de inovações, desqualificando e precarizando o acesso aos recursos e ao próprio trabalho.
177
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Os agentes sociais buscam melhores condições para si, em meio à arena em que todos querem mais 
espaço para manobrar, portanto, é assim que surgem os agentes que cobram dívidas públicas, como aquelas 
garantidas constitucionalmente, tais quais: terra, habitação, segurança, educação, entre outros direitos.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no campo; ou sem-teto, na cidade, são 
expressões desses projetos que não se satisfizeram com a partilha automática de riquezas; querem 
participar ativamente. Vamos ilustrar o acesso seletivo à terra e o papel do Estado por meio de uma 
música do grupo Skank.
Sem Terra
Tenente Gama estará na barra do Brooklin atento
Zé da Navalha na boca do rio Urutu
Quatro patrulhas vão cobrindo os quatrorizonte
Nego DJ Adílio leva o rádio
Aurili bon bonga
A cobra vai pular
Aurili bon bonga
Permiso, êêêêêê!
Eles pitimbam, negarfam, então hão de ter
Bate o bongô, drum machine, bate o xequerê
Batecumã nego véi de guerra
Colono branco e a lua estratagema
Aurilibilim bajé pajé pai chamou
No cabo do teletrônico mensageou
Na terra dos sem-terra
A barra vai pesar
Quem ignora erra
Quem quer ignorar
Sofrer o baque todos eles já sofreram
No Paraná, no Pará, no Espírito Santo
Bate imigrante nego véi de guerra
Quebratabaque o atraso, o quebranto
Na terra dos sem-terra
A barra já pesou
Quem ignora erra
Quem ignora errou
Fonte: Rosa; Amaral (1996).
178
Unidade IV
As políticas governamentais, as práticas levadas adiante por empresas privadas e os trabalhos de 
inúmeras organizações sociais são responsáveis pela direção e pela qualidade do desenvolvimento do 
país (ABRAMOVAY, 2010). Esse autor reflete a relação desintegrada entre essas diversas instâncias com 
suas atribuições, não formando um todo coerente, o que lhes retira justamente o alcance estratégico. 
Para ele:
Desenvolvimento sustentável é o processo de ampliação permanente das 
liberdades substantivas dos indivíduos em condições que estimulem a 
manutenção e a regeneração dos serviços prestados pelos ecossistemas 
às sociedades humanas. Ele é formado por uma infinidade de fatores 
determinantes, mas cujo andamento depende, justamente, da presença de 
um horizonte estratégico entre seus protagonistas decisivos (ABRAMOVAY, 
2010, p. 97).
Para Abramovay, a sustentabilidade é de qualidade ética, estando em jogo “o conteúdo da própria 
cooperação humana e a maneira como, no âmbito dessa cooperação, as sociedades optam por usar os 
ecossistemas de que dependem” (ABRAMOVAY, 2010, p. 97).
Aindasegundo esse autor, embora tenham ocorrido melhorias sociais no Brasil, persistem graves 
problemas no acesso à educação, moradia, justiça, segurança. Ele vê graves problemas nos padrões 
dominantes de produção e de consumo que se apoiam na degradação ambiental muito mais vigorosa do 
que o poder da legislação voltada à sua contenção. Haveria de promover inovação tecnológica “cada vez 
mais orientada a colocar a ciência a serviço de sistemas produtivos altamente poupadores de materiais, 
de energia, e capazes de contribuir para a regeneração da biodiversidade” (ABRAMOVAY, 2010, p. 98). 
Indo direto ao ponto em sua análise da estrutura produtiva brasileira, o autor acrescenta que:
[…] os significativos progressos dos últimos anos são ameaçados pela 
ausência do horizonte estratégico voltado ao desenvolvimento sustentável, 
tanto por parte do governo como das direções empresariais: de um lado a 
redução no desmatamento da Amazônia não é acompanhada por mudança 
no padrão dominante de uso dos recursos. Assim, apesar da contenção da 
devastação florestal, prevalece entre os agentes econômicos a ideia central 
de que a produção de commodities (fundamentalmente carne, soja e madeira 
de baixa qualidade), minérios e energia é a vocação decisiva da região. Além 
disso, ao mesmo tempo em que se reduz o desmatamento na Amazônia, 
amplia-se de maneira alarmante a devastação do cerrado e da caatinga. 
De outro lado, o segundo exemplo aqui apresentado mostra que o trunfo 
representado pela matriz energética brasileira não tem sido aproveitado para 
a construção de avanços industriais norteados pela preocupação explícita 
em reduzir o uso de materiais e de energia nos processos produtivos. 
A consequência e o risco é que o crescimento industrial brasileiro – ainda 
que marcado por emissões relativamente baixas de gases de efeito estufa 
– se distancie do padrão dominante da inovação contemporânea, cada vez 
mais orientada pela descarbonização da economia (ABRAMOVAY, 2010, p. 98).
179
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Antes de mostrar processos agropecuários industriais com crescentes valores econômicos agregados 
à produção, muito impactantes nas organizações dos grupos humanos, em seus estilos de vida e sistemas 
ambientais, e nas alternativas mais sustentáveis; serão apresentadas, brevemente, formas de vida e 
produção que têm melhores relações com os ambientes, usando-as, mas mantendo-as, como agriculturas 
sustentáveis originais, com métodos vernaculares e que podem nos ensinar muito ainda hoje.
São formas de vida muito antigas, com aproximadamente 10.000 anos, (HAVILAND et al., 2011), 
que praticavam atividades de coleta (extrativismo) e cultivo (agricultura, pecuária) similares àquelas 
que hoje chamamos agroecologia: conjunto de conhecimentos e procedimentos inspirados nos baixos 
impactos negativos dos velhos saberes e usos. A agroecologia soube aprender.
O território, que é nossa porta de entrada para essas questões, é moldado pelos usos dos grupos 
sociais, suas ligações com a natureza, mais especificamente com aquilo que chamamos de ecossistemas 
ou conjunto ambientais, e mais organismos, identificando-os, classificando-os, inventariando-os, 
aplicando conhecimento, e também pelo modo como esses grupos representam tais usos na cultura que 
desenvolvem. Por usos, nos referimos a todo trabalho desenvolvido pelo ser humano sobre as coisas, 
mudando-as e também transformando a ele próprio.
Usar as coisas ao nosso redor é o que enraíza a história humana, portanto sigamos com uma 
palavrinha sobre como nos relacionamos com o ambiente circundante baseados na necessidade 
irrefletida de sobrevivência e no impulso de criar meios diferentes dos naturais que lhe antecedem.
Em busca dos sujeitos sociais, fazemos a mesma pergunta essencial que Maria José Carneiro (2000): 
em que consiste o “familiar” da chamada “agricultura familiar”?
A autora lembra que Weber ensina que os modelos classificatórios, ou as tipologias, não se referem 
à realidade empírica imediata; mas que nem por isso deixam de ser construídos em conformidade com 
essa realidade, encontrando nas relações sociais a matéria-prima para essas construções abstratas. 
Ou seja, o modelo não pode jamais ser reduzido a um conjunto de relações sociais observáveis em uma 
realidade dada. É necessário buscar, portanto, o significado dos fatos e das relações sociais (de trabalho, 
por exemplo) no contexto em que se expressam e na sua relação com a totalidade que os envolve, 
já que, em se tratando de sistemas, cada parte não pode ser entendida isoladamente da outra, daí a 
importância do debate e de suas causas subjacentes.
O debate sobre a agricultura familiar no Brasil nos chama a atenção para, ao menos, dois problemas 
que necessitam maiores investimentos dos estudiosos do assunto. Um deles diz respeito à dificuldade 
em se articular o modelo construído como definidor da agricultura familiar e a realidade da qual se está 
tratando. Aqui, encontramos duas alternativas: não é raro que se atribua a essa construção abstrata o 
status de realidade ou, no caminho inverso, que se tome uma determinada realidade, normalmente aquela 
que se está estudando, como modelo ou expressão do que se entende por agricultura familiar. Ambas as 
abordagens acabam dificultando ainda mais a já complicada tarefa de se trabalhar comparativamente 
e dar conta da heterogeneidade das formas através das quais a agricultura familiar se expressa no País 
(CARNEIRO, 2000).
180
Unidade IV
A autora adverte que a “abordagem e interpretação da realidade pressupõem, portanto, a escolha de 
uma estruturação teórica que irá definir os princípios de articulação entre os componentes do sistema, 
ou seja, a maneira como abordaremos um tal grupo, uma dada sociedade” (CARNEIRO, 2000, p. 153).
No que nos interessa particularmente nesta apresentação, caberia enfatizar que o significado das 
atividades não agrícolas deverá ser buscado na posição que elas ocupam no conjunto das estratégias 
familiares de reprodução social e, sobretudo, o contexto socioeconômico em que se mostre.
Nesse sentido, não podemos falar das atividades não agrícolas como um fenômeno único e 
homogêneo, da mesma maneira como seria inadequado se referir ao pluriativo como uma nova 
categoria social no meio rural (CARNEIRO, 2000).
Ela faz considerações teóricas e metodológicas sobre a pesquisa com os agentes e grupos em espaço 
rural. Uma estruturação é tão verdadeira quanto outra, pois:
[…] tratam-se de alternativas que irão orientar nosso olhar de maneira 
a enfatizar, ou a menosprezar, determinados aspectos da realidade. As 
classificações e as definições que lhes seguem são frutos, portanto de um 
determinado olhar e, como tai, são expressão de determinados interesses 
sobre o social já que informam, normalmente, práticas políticas ou propostas 
de intervenção. Aceitar a relatividade ideológica de uma classificação 
tipológica ou de um modelo (entendido aqui também como conceito) não 
significa, porém, abolir o rigor teórico-metodológico, mas, sim, atentar para 
os limites do conhecimento sobre a realidade.
Esta chamada teórica é importante quando estamos tratando das mudanças 
ou transformações em curso no meio rural e, especificamente das que 
dizem respeito â atividade não agrícola e sua relação com a agricultura 
familiar. Em relação a esse tema, a maior ou menor flexibilidade do modelo 
de agricultura familiar está associada também à noção de pluriatividade. 
Podemos perguntar, por exemplo, até que ponto o exercício da atividade 
extra-agrícola, por si só, seria suficiente para quantificar o fenômeno da 
pluriatividade entendido como expressão da secundarização da atividade 
se, historicamente, essa é uma prática recorrente em várias regiões do país? 
(CARNEIRO, 2000, p. 153-154).
Para pormenores sobre a análise “agricultura familiar”, vamos ao seguinte trecho de Carneiro:
Em que consisteo familiar da agricultura familiar?
[…] Como essa noção se refere de imediato a um setor da economia, a agricultura, é 
comum que as análises se voltem para a dinâmica de produção, ou seja, que se detenham 
nos fatores reconhecidos como da esfera do econômico e que interferem de maneira mais 
visível na produção tais como: a mão de obra utilizada, área plantada, a relação com o 
181
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
mercado e a ação da tecnologia sobre esse conjunto de fatores. É interessante observar que, 
nessas análises, o adjetivo “familiar” só é acionado para caracterizar a equipe de trabalho. 
O caráter familiar da chamada “agricultura familiar” se reduz, assim, ao “trabalho familiar” 
em oposição ao que é entendido como “não familiar”, ou seja, o trabalho assalariado.
A discussão então passa para a quantificação máxima possível de trabalho assalariado, 
dentro da unidade de produção agrícola, de maneira a não descaracterizá-la como 
“familiar”. Nestes termos, uma questão qualitativa, de caráter conceptual, passa a ser 
tratada como a uma questão quantitativa. Aqui caberiam várias perguntas que uma 
abordagem meramente quantitativa não apresenta resposta satisfatória. Por exemplo: 
uma exploração agrícola que utiliza mão de obra contrata, assalariada, apenas nos 
períodos de colheita pode ser considerada uma unidade de produção familiar? Ou, de 
outro lado, uma exploração agrícola em que alguns dos membros da família recorrem ao 
trabalho assalariado e com esse rendimento (às vezes melhor remunerado que o trabalho 
agrícola) contratam mão de obra extrafamiliar para realizar o trabalho que eles próprios 
não estão realizando perderia o seu caráter familiar? Uma unidade de produção sustentada 
na atividade do casal cujos filhos exerçam atividade extra-agrícola, assalariada ou não, 
seria considerada uma exploração pluriativa ou só seriam pluriativas as unidades em 
que o chefe da unidade de produção exerça, ele próprio, atividade fora da exploração 
agrícola? Bem, poderíamos continuar enumerando uma série de questões cujas respostas 
não seriam satisfatoriamente respondida da perspectiva unicamente quantitativa, ou 
seja, em termos de horas de trabalho dedicado fora da unidade de produção familiar ou 
em termos de número de braços extrafamiliar contratado.
Primeiramente é necessário definirmos a nossa unidade de análise quando o objeto de 
estudo é a dinâmica da agricultura familiar para então centrarmos na discussão da questão 
correlata, ou seja, do caráter familiar da agricultura familiar.
Fonte: Carneiro (2000, p. 153-154).
A expectativa de consumo ou acesso à riqueza social produzida, com um ideal de cidadania, está na 
base das relações entre os agentes concretos; o envelhecimento direcionado dos objetos e das ideias.
A autora fala de seu apreço pela produção orgânica, discorrendo sobre a situação brasileira. Ela traça 
um quadro evolutivo, que vai dos anos 1980 e 1990, com a multiplicação das organizações ligadas à 
produção orgânica, crescimento da quantidade de produtores e aumento da produção, da diversidade 
e da qualidade. Lembra-nos que, em duas décadas, (seu texto de referência é de 2000), o mercado fica 
restrito a poucas feiras e cestões ou sacolões com venda direta ao consumidor. Atualmente, essas feiras 
fixaram-se e algumas tornaram-se minimercados e estão presentes em praticamente todas as capitais 
do Centro-Sul do país.
[…] as feiras se enquadram perfeitamente na filosofia do movimento orgânico, 
que preconiza a comercialização direta do agricultor ao consumidor, de 
modo a: (1) estabelecer uma relação personalizada e de cooperação entre o 
182
Unidade IV
produtor e o consumidor e (2) possibilitar maiores ganhos aos agricultores e 
menores preços aos consumidores (KHATOUNIAN, 2001, p. 32).
O autor aponta o aumento da demanda por produtos orgânicos, levando “as grandes redes de 
supermercados a estabelecerem estandes específicos num número crescente de lojas no Centro-Sul” 
do país, requerendo “organização de um mercado atacadista”, sendo incorporados os produtos 
orgânicos às vias construídas de distribuição. Ele fala em estimativas de crescimento desse mercado 
em 30% ao ano (KHATOUNIAN, 2001, p. 32).
A produção orgânica no Brasil inclui hortaliças, soja, açúcar mascavo, 
café, frutas (banana, cítrus), cereais (milho, arroz, trigo), leguminosas 
(feijão, amendoim), caju, dendê, erva-mate, plantas medicinais e vários 
produtos de menor expressão quantitativa. A produção animal orgânica 
é ainda muito restrita, constituindo uma das áreas de maior possibilidade 
de retorno dentro do mercado orgânico. Há iniciativas na produção de 
aves de postura e de corte, bovinos de leite e carne, suínos e abelhas. Os 
principais produtos exportados têm sido a soja, o café e o açúcar, mas a 
evolução do mercado e das iniciativas de produção tem sido muito rápida 
(KHATOUNIAN, 2001, p. 32-33).
Khatounian faz importantes considerações sobre o que chama de “descompasso entre os anseios 
da população consumidora por produtos limpos e a percepção pelos agricultores e distribuidores 
das oportunidades de negócios que tais anseios representam” (p. 33). Acha que há “despreparo dos 
técnicos e agricultores”, ainda muito dependentes dos produtos agroquímicos. Daí indica o treinamento 
desses profissionais (técnicos e agricultores), já na primeira fase das iniciativas de produção orgânica, e 
arremata: “a agricultura orgânica utiliza menos insumos materiais que a agroquímica, mas exige muito 
mais de um produto intangível: o conhecimento” (KHATOUNIAN, 2001, p. 33).
A questão política dos interesses corporativos é fundamental e ajuda a entender por que não há 
disseminação e por que o mercado não é formado integralmente por produtos saudáveis:
Essa menor dependência de insumos materiais levanta contra a produção 
orgânica o peso econômico da indústria química, o que tem retardado o 
desenvolvimento de soluções que prescindam de produtos comprados. 
A própria indústria, por seu turno, tem investido no desenvolvimento 
de produtos biotecnológicos, supostamente mais simpáticos aos olhos 
dos consumidores. As primeiras indústrias com patentes de produtos 
biotecnológicos já alardeiam à opinião pública os danos que as concorrentes 
causam com seus produtos químicos tóxicos. Não obstante, a oposição entre 
o movimento orgânico e a indústria não cessou, posto que o movimento 
procura estimular o funcionamento dos controles naturais existentes em 
cada propriedade agrícola, enquanto a indústria continua trabalhando no 
sentido de os agricultores terem de comprar anualmente seus insumos 
(KHATOUNIAN, 2001, p. 32-33).
183
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Khatounian continua explicando que, “do ponto de vista técnico, a agricultura ecológica tem sido 
relativamente bem-sucedida, apesar de o apoio da investigação científica e assistência técnica oficiais 
terem sido quase nulos até muito recentemente” (KHATOUNIAN, 2001, p. 32-33). As políticas públicas 
voltadas para esse fim, seja no nível dos municípios ou dos estados, deveriam ser maciças, com vistas 
ao desenvolvimento.
O autor ainda afirma que, do ponto de vista da tecnologia, os cultivos orgânicos “costumam 
apresentar elementos recuperados de bons exemplos do passado, combinados com procedimentos de 
ponta em termos de manejo de microrganismos, controle fitossanitário, variedades, máquinas e insumos 
ecologicamente corretos” (KHATOUNIAN, 2001, p. 32-33).
Lembre-se de que há lacunas tecnológicas em algumas culturas, notadamente naquelas que também 
são as mais problemáticas na agricultura convencional, tais como a batatinha, o tomate, o algodão e as 
uvas europeias, dentre outras. Porém, afirma que há duas frentes:
• a pesquisa tem se voltado para a busca de soluções ambientalmente melhores, atacando os 
problemas mais persistentes;
• solução também possível, mas ainda incipiente, é a reeducação do consumidor,eliminando ou 
reduzindo os produtos cuja produção é mais problemática.
Embora estratégico, não parece simpático ao cultivo da biodiversidade esse segundo caminho, 
o da redução, sendo que o próprio autor acrescenta essa reflexão: “plantas bem adaptadas 
em ambientes bem manejados, normalmente produzem bem, a despeito de pragas e doenças” 
(KHATOUNIAN, 2001, p. 33-34).
É muito importante entendermos o debate sobre a “agricultura sem agrotóxicos” que tem, de 
um lado, aqueles de posição acadêmica cientificista com grande apelo aos avanços da química na 
nutrição artificial e no combate aos desequilíbrios ecológicos por envenenamento; e, de outro, 
aqueles com abertura tanto ao (re)aprendizado das tradições quanto para novas experiências 
com tecnologias limpas, naturais. E, assim, para tanto, devemos recorrer ao corpo conceitual 
desse questionamento:
No Brasil, houve grandes discussões no meio agronômico a partir do final 
da década de 1970 e que se estenderam por quase toda a de 1980. De um 
lado, estava um pequeno grupo, que salientava os efeitos indesejáveis da 
produção centrada em insumos industriais. Do outro lado, estava todo o 
establishment agronômico. Para o grupo majoritário, à época, os problemas 
causados pelo modelo convencional ao ambiente e à saúde humana eram 
vistos como um alarmismo sem fundamento. Quando muito, esses problemas 
eram considerados pequenos efeitos colaterais de um bom remédio. E, como 
supostamente não havia outra alternativa, era necessário aceitá-los como 
preço da solução (KHATOUNIAN, 2001, p. 34).
184
Unidade IV
 Saiba mais
Recomendamos a leitura do livro de Khatounian como contato inicial 
tanto com os aspectos técnicos quanto políticos do referido debate ligado 
à questão ambiental, em geral, e agrário-alimentar, especificamente:
KHATOUNIAN, C. A. A reconstrução ecológica da agricultura. Botucatu: 
Agroecológica, 2001.
 Lembrete
A ecologia não pode nos salvar sem a economia. O que é preciso fazer é 
submeter a economia aos ritmos e recursos ambientais, e não o contrário.
 Observação
Agrotóxicos (venenos cuja finalidade é matar organismos vivos associados 
às espécies cultivadas) provocam poluição e doenças (desequilíbrios nos 
sistemas), quer sejam ambientais, ecossistêmicos ou no corpo. Os usos de 
venenos nas atividades agrárias devem ser tomados no contexto de relações 
sociais mais amplas e do mercado. Tanto as várias formas de poluição quanto 
as doenças devem-se, por exemplo, a substâncias (como o CO2), que não são 
nocivas em si mesmas, mas que, em excesso ou em falta, provocam problemas.
As poluições e as doenças estão associadas às cadeias de valor e fluxo 
de serviços e mercadorias: poluições ambientais estão ligadas aos mercados 
de equipamentos de tratamentos, catalisadores, de certificadores desses 
equipamentos; enquanto da produção de doenças decorrem cadeias de 
drogas ou medicamentos, exames e consultoria médica, toda uma estrutura 
industrial e de serviços.
8 SOLUÇÕES, APONTAMENTOS E PERSPECTIVAS
Se nossos pesquisadores não levam em consideração a recomendação 
tantas vezes feita por Marcel Mauss, de que os fenômenos sociais devem 
ser estudados como “fenômenos totais”, é porque, desde o florescimento 
dos estudos de comunidade entre nós, mais e mais se avolumou aqui 
a influência americana: na sociologia americana, a multiplicação das 
pesquisas parceladas é incalculável, permanecem isoladas e fechadas sobre si 
mesmas, não levando a nenhuma formação sintética explicativa. Parece que, 
185
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
entre nós – herança infeliz da influência americana –, também aumentam 
aceleradamente os trabalhos que poderiam ser rotulados de “colheita de 
dados sem teoria” (QUEIROZ, 1972b, p. 523).
Seja como for, depois das dezenas de entrevistas que fiz, livros que li, documentários 
que vi e lugares que visitei para produzir este livro, uma coisa me parece certa: o 
futuro da comida é uma volta ao passado (KEDOUK, 2013, p. 214).
8.1 Visão ou percepção intencionada
Estamos no campo da experiência inteira, e nesse caminho ou método depositamos esperança 
(confiança nas estruturas científicas, ao modo de Charles Sanders Peirce ou Julían Marías) na 
aproximação das coisas procuradas. Ao seguir visando soluções alternativas, voltamos o olhar para o 
horizonte de possibilidades.
O corpo intenciona, deseja soluções e, desse modo, cada um perfaz com sua vida-projeto sua unidade 
(ou Gestalt), nem sempre democrática, nem sempre inclusiva. Mas a vida-projeto, como a vê Sartre, 
tem um movimento que envolve a todos na própria busca, pois se é meu projeto, e este logicamente 
é sempre bom, então será de igual modo bom para todos; é a ética do existencialismo sartreano, nos 
caminhos da “unidade”: o humano inteiro no horizonte das possibilidades.
Tendo marcado mais esse ponto em nosso mapa corporal, damos um salto para alguns projetos 
(de vida) de melhoria coletiva, que se propõem a irradiar benefícios nas relações próximas e pelos 
encadeamentos que devem conduzir tais benefícios.
Nossas soluções, como acredita Sartre, devem ser boas para todos. E são multidimensionais; atendem 
a todas as esferas da vida social, nas diversas escalas, desde o indivíduo motivado socialmente até as 
instituições. Falemos do comércio justo como solução que transborda, como veremos, da economia 
para as demais dimensões sociais. O objetivo político mais antigo é o da qualidade de vida; para tanto, 
seguiremos por casos expressivos de alternativas.
8.2 Urbanização, modernização e ambiente como recurso
Processos ubíquos, à conveniência e à revelia dos países historicamente periféricos, passam por onde 
interessa, seguindo a “lógica do gerente de banco”: no discurso, todos interessam, entretanto, quem se 
quer ver nas agências é o cliente (ou candidato a sê-lo) cuja demanda seja solvável, aquele que pode 
pagar pelos produtos e serviços.
Vimos o peso da norma para os habitantes dos espaços rural e urbano; agora vejamos as saídas pela 
cultura, pelas tradições preteridas, articuladas criticamente.
Se a história fenomênica, daquilo que aparece, é uma história de usos sociais do ambiente, então usos 
antropocêntricos geraram espaços sociais insustentáveis, pela simples ideia reinante de natureza infinita. 
Percebemos num determinado momento que as atividades, agrárias e industriais, estabeleceram-se 
186
Unidade IV
sob dinâmicas predatórias, tanto no que concerne às relações entre as pessoas quanto destas com os 
ambientes que as circundam e suportam.
Começamos seguindo a lógica da unidade social e ambiental e, portanto, precisamos tragar as 
metodologias de avaliação socioambiental (diagnóstico e prognóstico), para o seio das ciências humanas 
e sociais, relacionando sociologia e sustentabilidade.
Desse modo, uma avaliação de impacto ambiental pode ser posta a favor da população-alvo do 
levantamento, sendo instrumento (e procedimentos) de política ambiental capaz de assegurar que se 
faça um exame sistemático dos impactos ambientais de uma ação proposta (projeto, programa, plano 
ou política) e de suas alternativas, e que os resultados sejam apresentados de forma adequada ao 
público e aos responsáveis pela tomada de decisão, e por eles considerados em conjunto (BARBIERI, 
2010), (SEIFFERT, 2007).
As metodologias de diagnóstico socioambiental envolvem certa intersubjetividade e convívio para 
sua efetividade, pois a avaliação de impacto ambiental, além de ser instrumento da Política Nacional 
de Meio Ambiente que visa garantir “livre acesso às informações sobre o empreendimento, quanto ao 
envolvimento e à participação da comunidade nas decisões governamentais”. A avaliação de impacto 
ambiental, “de caráter preventivo, tem como objetivo principal subsidiar a decisão do órgão público 
como instrumento de gestão ambiental” (SEIFFERT, 2007, p. 161); e acrescentaríamos que deve ser de

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