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Hellen Rayanara Pereira dos Santos A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO, COMO UMA VISÃO MUNDIAL E VISTO COMO UM PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA Centro Universitário Toledo ARAÇATUBA 2018 2 Hellen Rayanara Pereira dos Santos A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO, COMO UMA VISÃO MUNDIAL E VISTO COMO UM PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA Monografia, apresentada no curso de Graduação em Direito do Centro Universitário Toledo, como requisito necessário para obtenção do título de graduação em bacharel em Direito. Orientador: Prof. Me. Moacyr Miguel de Oliveira Centro Universitário Toledo ARAÇATUBA 2018 3 Dedico esse trabalho de conclusão de curso à minha pessoa pelo esforço e persistência empregados em sua elaboração, bem como durante os cinco anos dessa graduação. 4 AGRADECIMENTOS A Deus por ter me dado saúde e força para seguir em frente. Ao meu orientador Prof. Me. Moacyr Miguel de Oliveira, pela paciência e pelo tempo disposto para correções. A minha mãe, pelo incentivo e apoio. E a todos os meus amigos que fazem parte da minha formação. 5 RESUMO O presente trabalho de conclusão de curso, visa a exposição a respeito do aborto, por meio de um breve histórico, bem como a evolução dos pensamentos através dos anos. Busca demonstrar por meio de uma visão geral, os tipos de aborto, o aborto dentro do ordenamento jurídico, o início da vida, e os conflitos entre os princípios da autonomia, da reprodução e da sexualidade da mulher com o Código Penal em vigência, além de analisar o contexto mundial do aborto. Analisamos também que o fato do Estado ser laico deve ser levado em consideração e portanto, não é interessante a interferência da religião no que se refere a esse assunto, visto a separação entre o Estado e religião. Por fim buscamos analisar a situação por meio da visão de que se trata de uma questão de Saúde Pública diante disso, é dever do Estado proteger essas mulheres que a muito tempo lutam e continuam diariamente batalhando para que seus direito sejam respeitados. Palavras-chave: Aborto; Saúde pública; Autonomia; Direito de escolha. 6 ABSTRACT The present work of conclusion of course, aims at the exposition regarding abortion, through a brief history, as well as the evolution of the thoughts through the years. It seeks to demonstrate, through an overview, the types of abortion, abortion within the legal system, the beginning of life, and conflicts between the principles of women's autonomy, reproduction and sexuality with the Penal Code in force, in addition to the global context of abortion. We also analyze that the fact that the State is secular should be taken into account and therefore, the interference of religion in this matter, since the separation between the State and religion, is not interesting. Finally, we seek to analyze the situation through the view that it is a matter of Public Health, and it is the duty of the State to protect those women who have been fighting for a long time and who continue to struggle daily for their rights to be respected. Keywords: Abortion; Public health; Autonomy; Right to choose 7 LISTA DE TABELA Tabela 1 – Taxas de aborto segundo características das mulheres, Brasil, 2010 e 2016. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................9 I ABORTO ............................................................................................................................. 11 1.1 Conceito ............................................................................................................................ 11 1.2 Contexto histórico ............................................................................................................ 11 1.3 Considerações Gerais sobre o aborto ............................................................................... 14 1.3.1 Início da vida ..................................................................................................................... 14 1.3.2 Tipos de abortos ............................................................................................................... 15 1.3.3 Motivos para a interrupção da gravidez ........................................................................... 16 II O ABORTO COMO UM DIREITO E A TIPIFICAÇÃO DAS CONDUTAS DISPOSTAS NOS ARTIGOS 124 A 128 DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO ...................................................................... 20 2.1 Tipificação Penal ............................................................................................................... 20 2.1.1 Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento ......................................... 20 2.1.2 Aborto Provocado por Terceiro ........................................................................................ 21 2.1.3 Forma Qualificada ............................................................................................................. 21 2.1.4 Aborto Legal ...................................................................................................................... 22 2.2 O aborto como um direito ................................................................................................ 24 III ABORTO UMA QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA E A VISÃO MUNDIAL SOBRE A PRÁTICA DO PROCEDIMENTO ............................................................................................................... 34 3.1 O aborto no mundo .......................................................................................................... 34 3.2 Aborto, uma questão de saúde pública ............................................................................ 39 CONCLUSÃO ......................................................................................................................................... 48 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 50 9 INTRODUÇÃO O presente trabalho busca desvendar e compreender o aborto, por meio de um estudo aplicado, visando sanar as dúvidas e especulações que surgem quando esse tema é abordado, até mesmo porque essa problemática é difícil de ser discutida socialmente frente as posições morais distintas. Visa-se inserir o objeto de estudo sob uma perspectiva histórica, sendo possível observar sua evolução buscando descobrir qual o sentido de o aborto ser considerado crime, nos permitindo analisar o objetivo para que conclusões gerais ou universais não sejam buscadas aprioristicamente, até mesmo porque elas deverão sempre resultar da observação que confirme uma resposta para um problema. Ao longo do trabalho serão abordadas algumas questões como: o que é o aborto propriamente dito, os tipos de aborto, o aborto dentro do ordenamento jurídicobrasileiro, a formação do feto, dentre outras questões relevantes ao tema. A análise terá como base os direitos fundamentais presentes na constituição federal de 1988, bem como fatos comprovados pela ciência e também o direito penal brasileiro. O tema foi escolhido devido ao seu grande impacto na sociedade e pela grande abrangência tanto nacional, como internacional. Principalmente porque as discussões são voltadas para a forma superficial do tema, não se chegando assim a um consenso entre a ideias expostas. O presente trabalho busca socializar o assunto com toda a sociedade, por se tratar de um problemas enfrentado por uma grande quantidade de mulheres e em diversas faixas etárias. Por se tratar de um assunto delicado, não se deve levar em conta uma opinião preconceituosa por parte do espectador. A pesquisa visa apresentar o olhar jurídico para o tema abordado, utilizando se de opiniões de especialistas e da lei propriamente dita em busca de um fundamento consistente. As questões envolvendo o presente tema nos remetem a algumas indagações, as quais guiam para um pensamento de que as mulheres teriam o direito total sobre o seu corpo, para decidirem o que fazer com o mesmo ou ela estaria quebrando paradigmas já definidos a muitos anos, ferindo assim os valores impostos pela sociedade antiga, embora nem sempre o aborto fora visto de uma forma monstruosa pela maioria social. Como a vida e a morte são questões muito recorrentes e que possuem vários pontos de vista, nunca se terá uma teoria absoluta e incontestável para esses questionamentos. Devendo 10 sempre levar em conta renomados juristas e pesquisadores para se basear a favor ou contra o referido assunto. Portanto a possível contribuição dessa pesquisa visa administrar um paralelo entre os direitos à liberdade e os da individualidade da mulher, com os princípios éticos, o sentido da vida, bem como os direitos do feto em formação. Busca-se uma nova visão de acordo com os avanços tecnológicos e obviamente a sua importância para o direito. 11 I. ABORTO O aborto é um tema de grande discussão nos moldes atuais, visto que cada vez mais temos a abordagem sobre o referido assunto por pessoas no mundo inteiro, por meio de movimentos ou até mesmo de opiniões inseridas em redes sociais e sites de notícias, sendo tais opiniões e movimentos tanto quanto contrários ou a favor da descriminalização do aborto. A discussão se prolonga no tempo, eis que envolve várias ópticas, sendo dentre tais, a religião, a moral, o direito, dentre outros ângulos que podem ser abordados. 1.1. Conceito Etimologicamente a palavra aborto, isto é, o termo “ab-ortus”, traduz a ideia de privar do nascimento, vez que, “Ab” equivale a privação e “ortus” a nascimento. Entretanto, o termo aborto provém do latim “aboriri”, significando “separar do lugar adequado”, e conceitualmente é: “a interrupção da gravidez com ou sem a expulsão do feto, resultando na morte do nascituro” (PAULO, 2002. p. 13). Entende-se por aborto a interrupção (provocada ou natural) da gravidez antes que o feto possa existir por seus próprios meios, sem precisar de outro organismo. A Organização Mundial da Saúde define abortamento como sendo a interrupção da gestação antes de 20-22 semanas ou com peso inferior a 500 gramas. Subclassifica ainda em precoce, quando ocorre até 12 semanas e tardio quando entre 12 e 20-22 semanas. (MORAIS, 2008) Para Fragoso (1976, p.115-116) trata-se da cessação da gestação com a morte do embrião. 1.2. Contexto histórico A prática do aborto é tão antiga quanto a existência da humanidade, sendo muitas vezes motivo de incessantes manifestações e debates, possuindo citações sobre tal fato inclusive na bíblia que é considerada o livro mais antigo existente. No geral a referida realização não era bem aceita pelos povos, no entanto para alguns em determinadas épocas é totalmente admissível. 12 Existem circunstâncias de que desde os primórdios os povos existentes já se preocupavam com aborto, principalmente no que se refere à moral e aos bons costumes adotados por eles, podemos citar como exemplos os Israelitas, Romanos e Gregos, dentre outras nações. (MATIELO,1996) O código de Manu aplicado na Índia e no antigo Egito tratava o aborto como um ato ilícito. Mas, “se dele resultasse a morte de gestante pertencente a casta dos padres, o responsável sofreria castigos como se houvesse ceifado a vida de um “Brahmane”, sendo este submetido a penas corporais que, em grau máximo, levariam à morte” (MATIELO, 1996, p. 13). Analisando a história um pouco mais a frente, podemos ver que “Já no período da República Romana, o aborto foi considerado um ato imoral, todavia teve larga utilização entre as mulheres, principalmente entre aquelas que se preocupavam com a aparência física, o que neste período histórico tinha grande importância no meio social (herança do tempo do Império). Assim sendo, cresceu monstruosamente o número de aborto a ponto de os legisladores passarem a considera-lo um ato criminoso. Como conseqüência a Lei Cornélia cominou pena de morte à mulher que consentisse com a prática abortiva. Já em relação a quem praticasse o ato, previu- se pena igual, com a possibilidade de abrandamento caso a gestante não falecesse em função das manobras abortivas” (MATIELO, 1996, p. 14). Hipócrates, 400 antes de cristo, apesar de seu juramento no qual promete “Não dar à mulher grávida nenhum medicamento que possa fazê-la abortar”, não hesitava em aconselhar métodos tanto anticoncepcionais como abortivos. Sócrates, seu contemporâneo, era partidário de “facilitar o aborto quando a mulher o desejasse”, e seu discípulo, Platão, propunha em seu escrito. “A república” que as mulheres de mais de 40 anos deveriam abortar obrigatoriamente, e aconselhava o aborto para regulamentar o excessivo aumento de população. (BELO,1999, p. 23). De acordo com os ensinamentos de Hélio Gomes, podemos observar algumas das consequências para quem realizasse o aborto, vejamos: “A Lei Carolina (Carlos V, 1553) cominava a pena de morte pela espada a quem fizesse uma mulher abortar, e por afogamento para mulher que provocasse o auto-aborto, desde que o feto fosse reanimado.” (GOMES, 1997, p. 614). Na França, em 1556, Henrique II baixou um édio em que os culpados por aborto eram condenados à morte, fosse ou não animado o concepto. Com a Revolução Francesa, a lei passou a isentar a mãe de pena, sendo punidos apenas os seus cúmplices. (GOMES, 1997, p. 614). Com o surgimento do cristianismo, procurou-se abolir qualquer pensamento inerente à prática do aborto, visto o entendimento da igreja católica, no qual o homem possui uma alma imortal e que essa não deve ser manchada, não podendo assim, agir de forma diferente do que foi determinado por criador. De acordo com Matielo (1996, p. 20) o homem por ter sido criado 13 a imagem de Deus não poderia determinar quem vive ou quem morre e, portanto, seria proibida a prática do aborto. “A Igreja Católica não o aprovava por destruir o elo entre a procriação e o adultério. Em outras épocas o adultério recebia penas bem mais severas que o próprio aborto – catorze anos a pão e água, enquanto para a interrupção da gravidez resumia-se em três anos e meio, conforme cânones irlandeses que datam de 675.” (DE BARCHIFONTAINE,1999. p. 16). Não poderíamos deixar de mencionar a teoria do homúnculo1, a qual representa um marco importante, eis que após sua admissão em torno do século XIX, o aborto foi categoricamente proibido. Tivemos recentemente uma votação na Argentinaque visava legalizar a prática do aborto no país, no entanto após o projeto ser aprovado na câmara o mesmo foi recusado no Senado por um placar de 38 votos contra e 31 a favor, contando ainda com 2 abstenções. No Brasil não foi diferente, eis que no código de 1830, a grávida que abortava não era penalizada, sendo assim, somente quem realizasse a prática do ato, ou seja, o médico ou qualquer um que incorresse na prática seria responsabilidade pelo fato. Em 1890, a mulher gestante passou a responder conjuntamente com o médico ou quem praticasse o ato. Senão vejamos o que nos dizia o código penal brasileiro existente: Art.300. Provocar aborto haja ou não expulsão do fruto da concepção. Pena - de prisão celular por dois a seis anos. Pena de prisão celular por seis meses e há um ano. § 1º Se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-los, seguir à morte da mulher: Pena - de prisão celular de seis a vinte e quatro anos. § 2º Se o aborto for provocado por medico, ou parteira legalmente habilitada para o exercício da medicina: Pena - a mesma precedentemente estabelecida, e a de privação do exercício da profissão por tempo igual ao da condenação. (PIERANGELLI, 1992, p. 301). Art.301. Provocar aborto com anuência e acordo da gestante: Pena - de prisão celular por um a cinco anos. Pejado: Ficar prenhe, grávida, engravidar, gravitar, conceber. Parágrafo único. Em igual pena incorrerão a gestante, que conseguir abortar voluntariamente, empregado para esse fim os meios; e com redução da terça parte, se o crime for cometido para ocultar a desonra própria. (PIERANGELLI, 1992, p. 304) Dessa forma podemos nos basear nas palavras da jurista Maria Helena Diniz: “O atual diploma repressor tipifica o aborto como crime em qualquer caso, isentando a punibilidade os autores no caso de aborto terapêutico e do aborto de produto de concepção de estupro.” (DINIZ, 2001, p. 391). 1 Segundo Christian de Paul de Barchifontaine, em sua obra “Em defesa da vida humana” - Ed. Loyola. ed. 15ª. 1999. p. 15 -, “esta teoria pregava a existência do ser humano desde a concepção”. 14 Atualmente está em crescimento o número de países em que o aborto é legalizado podemos citar como exemplo: França, Uruguai, Canadá, Estado Unidos da América, Cuba e o caso peculiar da Cidade do México, onde apenas nesta cidade é permitido e não em todo território mexicano. (NEMGE,2011) Existem também os países em que a prática é totalmente proibida independentemente de qualquer circunstância, podemos citar El Salvador, Nicarágua, República Dominicana, Malta e Vaticano NEMGE,2011) 1.3. Considerações Gerais sobre o aborto 1.3.1. Início da vida Podemos visualizar o início da vida de dois seguimentos principais sendo por meio da ótica científica e por meio da ótica religiosa. Analisaremos inicialmente a ótica científica. A ciência não possui um posicionamento que prevalece, existindo assim vários pontos de vista, iremos analisar 5 correntes mais utilizadas com base nos ensinamentos de Heloisa Muto e de Leandro Narloch, sendo elas: Genética: que considera como início da vida a fertilização, ou seja, o momento em que o óvulo e espermatozoide se unem e dão origem a um novo ser. Embriológica: considera como início da vida o momento subsequente à individualidade humana, período esse compreendido após a 3ª semana de gravidez. É vista também como período posterior a gastrulação. OBS: teoria defendida por aqueles que são a favor da utilização da pílula do dia seguinte. Metabólica: afirma que não possui um marco inicial, por se tratar de um constante desenvolvimento e, portanto, seria essa discussão desnecessária. Ecológica: optado pela Suprema Corte dos EUA, entende que a vida se inicia com a capacidade do ser de existir no ambiente externo, devendo, portanto, se utilizar de seus pulmões. Neurológica: se baseia na atividade cerebral do indivíduo, se o mesmo não possui essa capacidade, portanto não pode ser considerado uma vida humana. No entanto existe divergência entre os cientistas no que se refere a partir de qual momento o feto já possui essa capacidade, podendo ser da 8ª a 20ª semana da gravidez. Iremos explanar agora a visão das principais doutrinas religiosas no que se refere ao tema abordado também por MUTO e NARLOCH: 15 Catolicismo: adota a teoria genética e considera o início da vida o momento em que óvulo e espermatozoide se juntam e formam, portanto, um novo indivíduo, ou seja, a fecundação. Budismo: por acreditarem na reencarnação e também devido a constante evolução em que estamos, para essa doutrina a vida não tem um marco inicial em específico. Judaísmo: para os praticantes da fé judaica, a vida se inicia 40(quarenta) dias após a fecundação. Islamismo: para essa corrente a vida tem seu início quando Deus a cria, ou seja, na fecundação. Hinduísmo: a exemplo dos budistas, esses também acreditam na reencarnação, no entanto para eles a vida se inicia quando corpo e alma se unem, ou seja, com a fecundação. Com base no apresentado à cima podemos então observar a mudança e evolução dos pensamentos relacionados ao tema tratado através das décadas, bem como as suas principais diferenças. 1.3.2. Tipos de abortos Existem dois tipos de abortos que se dividem entre dois principais grupos, sendo eles o aborto espontâneo e aborto provocado. Iniciaremos esse tópico abordando o que é aborto espontâneo, suas determinantes características, bem como suas subdivisões. O aborto espontâneo ocorre quando a gravidez é interrompida de forma despropositadamente e sem a interferência médica ou da gestante. Podemos observar duas divisões preponderantes sobre esse tipo. Trata-se do aborto iminente e o inevitável. O aborto iminente consiste apenas em uma ameaça de aborto (pode também ser chamado por essa terminologia), podendo ser observados pequenos sangramentos e dores, quase como se fosse uma cólica menstrual. Diante disso é um tanto quanto complicada a identificação desse fenômeno, principalmente por ocorrer nas primeiras semanas de gestação, período em que muitas vezes a mulher nem ao menos sabe que se encontra grávida. No entanto quando identificado esse tipo de fator poderá ser tratado com repouso. Nos casos em que a gestante se encontrar com cólicas poderá ser utilizado analgésicos, além do uso de progesterona natural por via vaginal. (MAILLARD, 2012 -online- ) Quanto ao aborto inevitável como o próprio nome já nos diz, nestes casos há a interrupção da gravidez propriamente dita, sendo dessa forma o feto expelido. 16 Os casos citados acima podem estar diretamente ligados a fatores genéticos dos pais, a má formação do feto, infecções, hipertensão, uso de drogas tanto lícitas como ilícitas, má formação uterina. O segundo tipo de aborto é o aborto provocado ou induzido, é o mais relevante para o estudo em questão, eis que para que ele ocorra deverá existir a intervenção gestante ou das pessoas que a cercam, ou seja, nestes casos existem a intervenção humana para que a gravidez seja interrompida, ocasionando assim a morte do feto/embrião. O aborto pode ser provocado por uso de drogas ou por intervenções pré-determinadas como a curetagem ou sucção, iremos detalhar em tópico posterior cada um dos métodos utilizados para se efetivar a realização do aborto. O procedimento poderá ser realizado com ou sem a anuência da gestante, podendo ser divididos em diferentes tipos penais de acordo com o código penal brasileiro(1940). O aborto provocado poderá ser terapêutico, sentimental ou “criminoso”. O terapêutico éutilizado quando existe algum risco para a vida da gestante (aborto necessário). E o sentimental de acordo com os ensinamentos da doutrina majoritária, é o que ocorre nos casos em que o feto é proveniente de estupro. Nesses dois casos não existe a responsabilização penal da gestante e nem do médico que fizer o procedimento, eis o disposto no art.128, I e II do código penal, senão vejamos: Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54) Aborto necessário I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (BRASIL,1940) Todos os demais casos que não se encontram descritos nesse artigo, são considerados ilegais e, portanto, não podem ser praticados dentro do território brasileiro, visto a proibição expressa adotada pela legislação penal brasileira. Eis que adepta da teoria genética (considera como início da vida o momento em que ocorre a fecundação). No entanto o STF já decidiu que será possível a interrupção da gestação de feto anencéfalo, desde que comprovada tal condição por meio de laudos médicos. 1.3.3. Motivos para a interrupção da gravidez Existem muitas razões que fazem uma mulher querer a interrupção da gravidez, que variam desde as condições sociais até a falta de preparo para assumir o papel da maternidade. 17 Segundo a Organização Mundial de Saúde a interrupção da gravidez se dão muitas vezes por falha dos métodos contraceptivos, incapacidade em utilizar contracepção de modo eficaz, gravidezes provenientes de relações sexuais forçadas, motivos de saúde e até uma gravidez desejada pode tornar-se indesejada, uma vez que as situações de vida da mulher podem mudar (OMS, 2013). No entanto, podemos observar também as alegações de possuírem filhos suficientes ou até mesmo não desejam ter filhos, falta de planejamento, muito jovem para assumir a maternidade, condições econômicas desfavoráveis, não possuir um emprego estável, estar em uma relação indefinida. De acordo com a pesquisa nacional do aborto realizada no ano de 2016, dirigida pelos professores Debora Diniz, Marcelo Medeiros e Alberto Madeiro, dentre 5 mulheres com a idade de 40 anos, ao menos 1 já realizou o aborto. (DINIZ; MEDEIROS e MADEIRO, 2016) 18 “A Tabela 1 apresenta características das mulheres que fizeram aborto. É possível observar que o aborto no Brasil é comum e ocorreu com frequência entre mulheres comuns...” (DINIZ; MEDEIROS e MADEIRO, 2016.p.657) 19 Fonte: DINIZ; MEDEIROS e MADEIRO, 2016, p.657 e 658. Com base na análise da tabela acima, podemos observar que o maior número de casos de aborto são praticados por mulheres com baixa escolaridade (4ª série), residentes nas regiões norte e nordeste do país, que possuem baixa renda familiar e que em sua maioria são negras e indígenas. (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2016) Segundo dados da OMS e Instituto Guttmacher são realizados ao ano mais de 25 milhões de abortos inseguros em todo o continente e a maioria em lugares que se encontram em desenvolvimento como a África, Ásia, América Latina. (Nações Unidas do Brasil,2017) Portanto a descriminalização do aborto trata-se de tema muito relevante para o período de transformações em que estamos vivendo. 20 II. O ABORTO COMO UM DIREITO E A TIPIFICAÇÃO DAS CONDUTAS DISPOSTAS NOS ARTIGOS 124 A 128 DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO 2.1. Tipificação Penal Dentro desse tópico, serão analisados mais afundo as condutas dispostas nos artigos 124 a 128 que se referem à pratica do aborto. 2.1.1. Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento De acordo com o previsto no referido artigo do código penal brasileiro de 1940, a gestante que praticar o auto aborto ou consentir que outra pessoa o pratique, incorrerá no crimes descritos no artigo 124 do código, podendo ser condenada a uma pena de detenção de 01(um) a 03(três) anos. Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: (Vide ADPF 54) Pena - detenção, de um a três anos. (BRASIL, 1940) No caso desse artigo deverá existir o dolo da gestante, seja ele direto ou eventual, eis que a forma culposa não foi prevista pelo legislador, portanto, o crime somente se configurará se houver a intenção de interromper a gravidez ou se assumir o risco de produzir tal efeito, por parte da grávida. Nos casos em que houver aborto na forma culposa, ou seja, por imperícia, negligência ou imprudência a gestante não responderá por nenhum crime. Trata-se de um crime próprio, tendo em vista que somente a gestante é quem poderá o praticar, eis o que nos ensina Bitencourt: (...) admite-se a participação como atividade acessória, quando o partícipe se limita a instigar, induzir ou auxiliar a gestante tanto a praticar o autoaborto como a consentir que lhe provoque. (...) Contudo, se o terceiro além dessa mera atividade acessória, intervindo na realização propriamente dos atos executórios, responderá não como coautor, que a natureza do crime não permite, mais como autor do delito do art. 126”. (2005, p. 432) Diante disso, podemos compreender que caso exista a intervenção de uma terceira pessoa no procedimento a conduta será enquadrada no artigo 126 desde código. No entanto, embora se trate de um crime próprio, admite-se a figura do partícipe. Aqui importante ressaltar que não é necessário a retirada do feto de dentro do útero para configurar o delito, basta apenas que ocorra a morte do mesmo. 21 2.1.2. Aborto Provocado por Terceiro Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos. (BRASIL, 1940) Nessa modalidade incorrerá quem provocar o aborto na gestante sem que ela saiba ou sem seu consentimento. O legislador ao determinar a pena desse artigo (reclusão de 3 a 10 anos) maior do que os demais que se referem ao aborto, quis demonstrar a possibilidade de maior lesividade, tendo em vista que a saúde/vida da gestante estar em um risco elevado supera as demais possibilidades apresentadas nos demais artigos do código penal referentes ao tema. Assim como no artigo anterior a forma culposa não foi prevista pelo legislador, no entanto quem praticar tais atos responderá por lesão corporal culposa, a qual possui pena prevista de detenção de dois meses a um ano (Art. 129, §6º, CP). Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide ADPF 54) Pena - reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência (BRASIL,1940) O artigo citado acima trata-se de uma continuação do artigo 124, pois prevê a pena do partícipe, ou seja, quem realiza o aborto consentido pela gestante responderá pelo artigo 126 e não pelo 124(crime próprio). Temos aqui um exemplo de exceção da teoria monista (todos os envolvidos respondem pelo crime igualmente) que é a adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro. No que se refere a primeira parte do parágrafo único do texto, observa-se que o consentimento da gestante não é válido nas três hipóteses prevista, eis que o legislador as considerou a ausência de discernimento por parte da gestante, e portanto, a sua anuência é considerada como viciada. Diante disso quempraticar o aborto nos casos em que a gestante for menor de 14 anos, alienada ou débil mental responderá pelo crime previsto no artigo 125, pois diante do vício de consentimento é como se o mesmo não existisse. Quanto ao apresentado na segunda parte do parágrafo único, nos casos em que existir o consentimento mas esse for atingido por meio de fraude, violência ou grave ameaça, aquele que praticar o aborto também responderá pelo artigo 125 do código vigente, visto o vício existente na manifestação de vontade da gestante sendo ela inválida para fins jurídicos penais. 2.1.3. Forma Qualificada Importante mencionar as causas de aumento de penas previstas no artigo 127 do código: Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante 22 sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. (BRASIL.1940) Nesse artigo as penas dos artigos 125 e 126 serão aumentas de 1/3 se do aborto resultar à gestante lesão corporal grave ou as penas serão aplicadas em dobro caso a gestante venha a falecer. Nos casos em que houver a presença do partícipe vejamos o que nos diz Mirabete, “o partícipe, se lhe for imputado o crime previsto no art. 124, não responderá pela qualificadora, pois não participou dos atos executórios do delito, razão pela qual seria uma solução forçosa o emprego desta prejudicial” (2008, p. 68-69). Dentro de contexto importante mencionar que o disposto nesse artigo somente será aplicado caso o resultado lesão ou o resultado morte não forem o almejado pelo agente, ou seja, o intuito era apenas a realização do aborto sem nenhum prejuízo à integridade física da gestante. Caso exista a vontade do agente de realizar o aborto e conjuntamente praticar lesão corporal ou ceifar a vida da gestante o mesmo responderá pelos dois crimes visto que tinha o intuito de realizar duas condutas, portanto responderá por lesão corporal ou homicídio em concurso com crime de aborto. 2.1.4. Aborto Legal Nesse tópico será analisado as modalidades descritas no artigo 128 do código: Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54) I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (BRASIL, 1940) O aborto não será punível nos casos em que for executado por um médico, observa-se se aqui que essa excludente incide apenas nos casos em que o agente for um médico, ou seja, não engloba qualquer outro indivíduo, tanto no inciso I, quanto no inciso II. Porém de acordo com Cezar Roberto Bitencourt em sua obra Código Penal Comendado de 2005, os auxiliares do médico no procedimento não poderão serem punidos, visto a teoria da acessoriedade limitada da participação. No que se refere disposto no inciso I, também chamado aborto necessário ou terapêutico, caso não houver outra forma de salvar a vida da gestante a prática do aborto não será punida, no entanto devemos ressaltar que só é possível nos casos em que existir risco concreto em face da vida da gestante, portanto, se a saúde da gestante for afetada, mas não existir o risco concreto de morte a excludente não se aplica. 23 Nos casos em que existir o iminente perigo de vida da gestante não é necessária a sua autorização ou de seu representante legal se for caso, pois expresso no art. 146, §3º, I do código penal: Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo: I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;(BRASIL,1940) Observando o disposto nesse artigo comtemplamos uma exceção à regra do consentimento Aqui é possível observar que ao precisar decidir entre uma vida já formada e o feto o legislador opta por preservar a vida da mãe ao invés da do feto, eis que o mesmo ainda está em formação. Quanto ao abordado pelo inciso II, chamado de aborto humanitário, sentimental ou ético, se a gravidez resultar de estupro o aborto poderá ser realizado por médico somente nos casos em que houver o consentimento prévio da gestante ou de seu representante quando está for incapaz. Caso não exista esse consentimento de acordo com o previsto em Lei, o médico que realizar o procedimento responderá pelo artigo 125 do código penal. ABORTO SENTIMENTAL. CONFLITO QUE SE ESTABELECE ENTRE OS VALORES VIDA (DO FETO) E DIGNIDADE HUMANA (DA GESTANTE). ADOLESCENTE COM SEVERAS DEFICIÊNCIAS MENTAIS QUE SE VIU SUBMETIDA A RELAÇÕES SEXUAIS COM O PRÓPRIO TIO E PADRASTO, QUE DETINHA SUA GUARDA FORMAL, DO QUE RESULTOU A GRAVIDEZ. REVOGAÇÃO DA GUARDA QUE CONFERIU AO MINISTÉRIO PÚBLICO, PELA FALTA DE REPRESENTANTE LEGAL, 29 LEGITIMIDADE PARA ATUAR EM SEU NOME. O Código Penal declara impunível o aborto praticado pelo médico com o consentimento da gestante vítima de estupro. Assim, fazendo o legislador, no exercício de suas atribuições constitucionais, a opção pelo interesse da dignidade humana em detrimento da mantença da gravidez, ao magistrado compete, acionada a jurisdição, assumir a responsabilidade que lhe cabe no processo, fazendo valer a lei. Se a realidade evidencia que médico algum faria a intervenção sem a garantia de que nada lhe ocorreria, não tem como o magistrado cruzar os braços, sob o argumento de que só após, se instaurada alguma movimentação penal, lhe caberia dizer que não houve crime. Omissão dessa natureza implicaria deixar ao desabrigo a vítima do crime, jogando-a à própria sorte. Não há valores absolutos. Nem a vida, que bem pode ser relativizada, como se observa no homicídio praticado em legítima defesa, por exemplo. E nessa relativização ingressa também o respeito à dignidade da mulher estuprada. Ainda mais se, adolescente, com graves problemas mentais, vê agravada sua situação de infelicidade pelo fato de ser o próprio tio e padrasto o autor do crime, o que a colocou também em situação de absoluta falta de assistência familiar e de representação legal, exigindo abrigamento e atuação de parte do Ministério Público. Manifestação do Ministério Público, autor da medida, indicada também pela área técnica do serviço do Município encarregado de dar atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência. Recurso provido. (Agravo de Instrumento Nº 70018163246, Câmara Medidas Urgentes Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: 30 Marcelo Bandeira Pereira, Julgado em 03/01/2007) (TJ-RS - AI: 70018163246 RS, Relator: Marcelo Bandeira Pereira, Data de Julgamento: 24 03/01/2007, Câmara Medidas Urgentes Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 08/01/2007) Dentro desse tópico necessário acrescentar o que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar a Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54), no qual considerou que o abortamento de feto anencefálico não se enquadra nas hipóteses previstas nos artigos 124,126 e 128 do código penal de 1940. “ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS– CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. Decisão: Após o voto do Senhor Ministro Marco Aurélio (Relator), que julgava procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, Incisos I e II, todos do Código Penal, no que foi acompanhado pelos Senhores Ministros Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Cármen Lúcia, e o voto do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski, que julgava improcedente o pedido, o julgamento foi suspenso. Impedido o Senhor Ministro Dias Toffoli. Falaram, pela requerente, o Dr. Luís Roberto Barroso e, pelo Ministério Público Federal, o Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Plenário, 11.04.2012. O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal, contra os votos dos Senhores Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello que, julgando-a procedente, acrescentavam condições de diagnóstico de anencefalia especificadas pelo Ministro Celso de Mello; e contra os votos dos Senhores Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (Presidente), que a julgavam improcedente. Ausentes, justificadamente, os...” (Supremo Tribunal Federal, acesso em: 10 de jul. de 2017). Com a decisão foi eliminado uma parte do problema, visto que era inviável a manutenção da gravidez devido à baixa ou quase nula perspectiva de vida do feto após o nascimento, muitas mulheres acabavam por realizar procedimentos para a interrupção da gravidez em clinicas clandestinas sofrendo assim várias consequências e podendo até inclusive chegar ao extremo com a morte da mulher. Diante da decisão apresentada pelo STF, uma das causas da mortalidade materna já foi resolvida, pois os procedimentos poderão ser realizados em clínicas especializadas ou até mesmo pelo Sistema Único de Saúde(SUS), sem que a mulher tenha que se sujeitar a situações degradantes. 2.2. O aborto como um direito Para análise desses direitos, deveremos inicialmente exemplificar o que são princípios. 25 Os princípios gerais são, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. O nome de princípio induz em engano, tanto que é velha questão entre jurista se os princípios são ou não normas. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as demais. E esta é a tese sustentada também pelo estudioso que mais 46 amplamente se ocupou da problemática, ou seja, Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas os argumentos vêm a ser dois e ambos válidos: antes de tudo, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê que não devam ser normas também eles: se abstraio de espécies animais obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para a qual são abstraídos e adotados é aquela mesma que é cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. Para regular um comportamento não regulado, é claro: mas agora servem ao mesmo fim para que servem as normas expressas. E por que então não deveriam ser normas? (BONAVIDES, 2004, p. 263-264). Para Celso Bandeira de Melo princípio é: Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico (apud ROTHERNBURG, 1999, p. 14). Portanto princípios são a base de um sistema, no nosso caso a base do ordenamento jurídico brasileiro, devendo os mesmos serem seguidos para que a ideia inicial do Estado seja desenvolvida de forma harmoniosa. Aqui importante mencionar o princípio da dignidade da pessoa humana, que visa proteger a todos as pessoas, senão vejamos o que nos diz Appio e Edilsom Farias: A dignidade da pessoa humana assume o valor nuclear de diversos sistemas jurídicos, organizados funcionalmente para a sua manutenção, a partir da proteção das minorias. (APPIO, 2008, p. 197) Já o professor Edilsom Farias no ensina que: “(...) hodiernamente os direitos fundamentais exercem o nobre papel de proteger os indivíduos e as minorias, impedindo, assim, que o critério da maioria converta-se num princípio absoluto, desviando a função legitimadora da soberania popular.” (FARIAS, 2008, p.47) Diante do apresentado, iremos iniciar a abordagem no que se refere ao tópico acima. A luta das mulheres por igualdade de direitos vem se estendendo através de muitos anos, acredita-se que teve início com os movimentos de liberdade, igualdade e fraternidade em meados de 1789, no entanto seu espaço começou a ser conquistado realmente com a Declaração dos Direitos Humanos em 1948. Os direitos das mulheres começaram a ganhar espaço dentro do Brasil após a promulgação da “Constituição Cidadã” visto que o papel da mulher era o de alguém que deve 26 ser submissa ao homem e desenvolver apenas atividades domesticas, bem como cumprir seu dever de reprodução, dogma esse defendido pela igreja. Vejamos o que nos diz Renata Gomes sobre tal fato: A Constituição Republicana de 1988 é um marco na luta pela igualdade de direitos entre os sexos, bem como na positivação de uma gama de “novos” direitos no que tange à situação jurídica da mulher que, tutelada em nível constitucional, passa a gozar de um outro status enquanto sujeito de direitos. Resultado de forças sociais antagônicas, em uma época de crescentes complexidades e transformações no cenário nacional e internacional, o mencionado Diploma Legal, seguindo inclusive a tendência alienígena, não se poderia furtar ao reconhecimento e positivação de demandas tão antigas como a isonomia entre os cônjuges na sociedade conjugal, a não discriminação da mão-de-obra. (Gomes, p.59/60) Mas, no que consiste os direitos sexuais e reprodutivos? Vejamos o descrito no artigo 96 da Conferência da Mulher que foi executada em Beijing: “Os Direitos humanos das mulheres incluem seu direito de controle e decisão, de forma livre e responsável, sobre questões relacionadas a sexualidade, incluindo-se a saúde sexual e reprodutiva, livre de coerção, discriminação e violência. A igualdade entre mulheres e homens no que diz respeito à relação sexual e reprodução, incluindo- se o respeito à integridade, requer respeito mútuo, consentimento e divisão de responsabilidades pelos comportamentos sexuais e suas conseqüências.” (Apud, Matar,2008) Os direitos sexuais e reprodutivos são uma conquista recente dado ao papel em que a mulher era colocada dentro da sociedade patriarcal exercida no século passado. Aqui importante demonstrar o que nos diz o artigo 226, §7º da nossa magna carta de 1988: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. A lei que regulamentao planejamento familiar é de 1996 e traz o seguinte texto em seu artigo 2º: Os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos, em outros documentos consensuais. Esses direitos se ancoram no reconhecimento do direito básico de todo casal e de 23 todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência. (§ 7.3). (BRASIL, 1996) Podemos observar que o planejamento familiar e de competência de quem a compõe não podendo o Estado interferir. 27 A percepção de integralidade nada mais é do que o resultado de que a reprodução não é uma dádiva ou um dom natural, mas parte do exercício da cidadania. Há uma inversão da relação reprodutiva, esta deixa de ser o principal adjetivo da mulher para ser parte da sua humanidade. A reprodução começa a ser percebida como algo de foro individual, devendo habitar no universo dos direitos civis. Além disso está linguagem representa um rompimento nas relações entre o Estado "controlista" de natalidade para o de "planejamento", o que implica numa ação substancialmente provedora de informações e acesso, ou seja, incrementando o princípio da cidadania que só se viabiliza através da autonomia. O direito de decisão não era possível sem o oferecimento, pelo Estado, de condições de escolha, eis a vinculação com os direitos sociais. (BUGLIONE, 2001) A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento realizada no Cairo em 1994 é tida como um marco no que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos, assim nos diz o seu artigo 4º, um de seus princípios: Promover a equidade e a igualdade dos sexos e os direitos da mulher, eliminar todo tipo de violência contra a mulher e garantir que seja ela quem controle sua própria fecundidade são a pedra angular dos programas de população e desenvolvimento. Os direitos humanos da mulher, das meninas e jovens fazem parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A plena participação da mulher, em igualdade de condições na vida civil, cultural e econômica, política e social em nível nacional, regional e internacional e a erradicação de todas as formas de discriminação por razões do sexo são objetivos prioritários da comunidade internacional. (CAIRO, apud, PIOVESAN) Outra conferência importante foi a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, Desenvolvimento e Paz realizada em Beijing em 1995, a qual agrupou a cúpula de desenvolvimento social de 1995, a Conferência de Direitos Humanos de 1993, deixando claro que os direitos das mulheres são direitos humanos, bem como tratando o aborto como uma questão de saúde pública. “Os documentos básicos dessas Conferências, mesmo não sendo textos legais, como os tratados internacionais, configuram-se, a partir de seus princípios básicos, aprovados por consenso pelos Estados-membros das Nações Unidas, como fonte do direito que devem ser incorporadas na sua interpretação e aplicação.” (BUGLIONE, 2001 – online-) Atualmente existem vários movimentos que almejam o empoderamento das mulheres para que elas não tenham medo de se expressar e façam valer seus direitos, bem como fazer com que sua voz seja ouvida. Embora tenhamos passado por uma evolução principalmente dado ao movimento feminista, no qual teve início a abordagem do tema exposto, ainda existem muitas pessoas com pensamentos retrógrados que acreditam que a mulher deve desempenhar os papeis que eram apregoados no século passado. O mais chocante dessa afirmação é que existem várias mulheres que defendem tais pensamentos, muitas vezes por simplicidade e ignorância. 28 Os movimentos servem para desmistificar isso, atualmente está em andamento a campanha “#ElaDecide”, desenvolvida por meio do site www.eladecide.org, na qual tem como ideia principal que o corpo é da mulher, e portanto, quem deve decidir o que acontece ou não é somente ela, portanto somente a mulher possui o poder de decidir seu presente e seu futuro. O referido site ainda possui tópicos relacionados a autoestima, saúde, sexualidade dentre outros. A autonomia nada mais é do que o direito de decidir sobre seus próprios atos, inclusive o que acontece com a seu corpo. Sobre isso vejamos o entendimento de Heloisa Barbosa e Vitor Júnior “A autonomia sobre o próprio corpo encontra-se, ainda, diretamente vinculada ao controle e interferência da sociedade, na medida em que o ato de disposição não pode contrariar os bons costumes.” (BARBOSA; JUNIOR, 2017,p. 254) No entanto vemos eventos flagrantes que são contrários a essa informação, principalmente com relação às mulheres, que são as maiores prejudicadas por tais pensamentos. Com a constituição de 1988, ficou determinado a igualde de gêneros, porém na prática a Magna Carta não é respeitada. Segue um exemplo claro de violação à igualdade de gênero e à autonomia da mulher: Um dos exemplos marcantes é o disposto no § 5º do art. 10 da Lei n. 9.263/96, que determina que, na vigência da sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges26. Embora o mencionado dispositivo pareça, a priori, compatível com a igualdade de gênero, eis que exige o consentimento de ambos os cônjuges para a esterilização voluntária durante a vigência da sociedade conjugal, além do preenchimento dos demais requisitos previstos no art. 10 da Lei do Planejamento Familiar, de maneira que uma interpretação histórico-relativa da norma não sustenta sua aparente constitucionalidade. (BARBOZA E JUNIOR, 2017, p. 261) Podemos observar assim que embora tenha existido uma evolução quanto aos direitos humanos das mulheres, ainda existem muitos fatores que precisam ser mudados, visto que muitos ainda seguem os princípios religiosos. A igreja foi uma das grandes responsáveis por esse pensamento que a sociedade possui atualmente, no entanto, devemos entender que de acordo com a constituição da república o Estado brasileiro é laico, e portanto, cada um pode exercer livremente o que acredita. Os dogmas que são vistos como um limite entre o moral e o imoral, não devem reger as Leis do País, visto que deve se fazer cumprir o disposto no texto constitucional. “Uma mulher que seja forçada pela sua comunidade a carregar um feto que ela não deseja não tem mais o controle do seu próprio corpo. Ele lhe foi retirado para objetivos que ela não compartilha. Isto é uma escravização parcial, uma privação de liberdade.” (DWORKIN,2009) 29 Embora o Brasil tenha celebrado vários tratados internacionais no que se refere aos direitos de reprodução das mulheres, sabemos que o código penal não segue essa lógica, visto que é uma Lei de 1940, ou seja, as ideias da população nessa época eram diferente do que temos hoje em dia, embora ainda exista uma grande parte da sociedade que são contrárias ao aborto que é o tema do presente trabalho. Em 2016 a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 124.306 decidiu que o aborto voluntário quando realizado até o 3º mês de gestação, ou seja, até a 12ª semana não é considerado crime e portanto os artigos 124 e 126 seriam inconstitucionais eis que são contrários a alguns direitos fundamentais, dentre eles os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a autonomia, a integridade física e psíquica da gestante e a igualdade. Vejamos o voto- vista do Ministro Luís Roberto Barroso:HABEAS CORPUS 124.306 RIO DE JANEIRO RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO PACTE. (S): EDILSON DOS SANTOS PACTE. (S): ROSEMERE APARECIDA FERREIRA IMPTE. (S): JAIR LEITE PEREIRA COATOR(A/S) (ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA VOTO-VISTA O MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO: Ementa: DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos. 2. Em primeiro lugar, não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação. 3. Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. 4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a 2 igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. 5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. 6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais 30 eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. 7. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália. 8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus. (Supremo Tribunal Federal, 2016, on-line) O HC citado acima possui eficácia inter partes, ou seja, se aplicou somente no caso concreto que foi apresentado ao Supremo. O Ministro Marco Aurélio da suprema corte ao proferir seu voto deixou claro que o Estado ao obrigar uma mulher a manter uma gravidez indesejada está ferindo seus direitos sexuais e reprodutivos, bem como ferindo o direito de autonomia, pois cada pessoa tem o direito de decidir sobre o que acontece em sua vida, bem como interfere também na integridade física e psíquica da mulher, visto que quem sofre as consequências de uma gravidez indesejada em sua maior parte é a gestante. Aqui também importante frisar o descrito pelo nobre Ministro Marco Aurélio no ponto 5, eis que quem sofre as consequências de praticar um aborto são as mulheres com situação econômica reduzida, visto que não possuem condições para pagarem clinicas especializadas, sofrendo assim os riscos inerentes às inúmeras clinicas clandestinas espalhadas pelo país. A proibição não inibe a prática do aborto, conforme acreditam muitas pessoas que são contra a sua descriminalização. A prática do aborto é constante, e portanto, a lei para que o mesmo não aconteça é ineficaz, eis que o mesmo é uma prática recorrente entre as mulheres que acabam por sofrer os danos colaterais que podem ser ocasionados dos procedimentos em situações irregulares e clandestinas. “A criminalização do aborto, longe de servir a causas socialmente meritórias, presta- se mais a reproduzir e aprofundar, num contexto humano de incomparável dramaticidade, as agudas diferenças sociais e econômicas que grassam nas paisagens do terceiro mundo. Sim, porque as mulheres da alta classe média e dos estamentos superiores encontram no bem assistido planejamento familiar, na abundância dos anticoncepcionais, nos exames ginecológicos regulares e até mesmo no aborto classista e profissional as soluções para comporem as conseqüências do sadio exercício da liberdade do ser e do corpo humano.” (CASTRO, apud, SARMENTO,2005, p.51) A prova de que a legislação não tem surtido o efeito desejado, são os dados preocupantes que nos mostram o número de abortos clandestinos no País. Para o Ministério da Saúde o número de mortes ocasionadas pelo aborto no país entre 1999 e 2002 foi de 518 mulheres, no 31 entanto sabemos que esse número é apenas uma estimativa e não se possui dados reais, visto a clandestinidade do aborto, e portanto, as informações não chegam às autoridades responsáveis. Em um estudo realizado pela pesquisadora Débora Diniz, ficou constatado que: Até o momento, as estimativas de aborto para todo o Brasil baseiam se em técnicas indiretas. Um estudo baseado em internações associadas ao aborto em serviços públicos de saúde, por exemplo, calcula que houve 2,07 abortos para cada 100 mulheres entre 15 e 49 anos em 2005. Todavia, estimativas desse tipo dependem de um parâmetro – a razão de internações por aborto – que neste caso foi estabelecido assumindo-se que 20% dos abortos resultaram em 42 internação registrada pelo Sistema de Internações Hospitalares do SUS. (DINIZ, 2010, p. 47) Ao criminalizar o aborto podemos perceber que ele não deixa de ocorrer, apenas acontecem em situações arriscadas e clandestinas sem nenhum apoio à saúde da mulher. Para os que se dizem em favor da vida, vale lembrar-lhes que diante da criminalização apenas estamos perdendo mais uma vida, visto o grande número de mulheres que falecem em decorrência do aborto. A omissão estatal em nada ajuda para diminuir os casos. O principal efeito da criminalização do aborto, no entanto, é justamente exacerbar as desigualdades socioeconômicas existentes entre nós. Na maioria das cidades, existem serviços de bom padrão, aos quais as mulheres podem pagar recorrem para induzir o aborto sem risco excessivo. No entanto, essa não é a realidade para muitas mulheres que, pela sua pobreza ou por razões de constrangimento social, terminam recorrendo a pessoal não-treinado, sendo o abortopraticado em precárias condições de higiene. Muitas vezes a própria mulher tenta primeiro induzir o aborto, usando procedimentos perigosos como a introdução de talos, agulhas de crochê, uso de permanganato, soda cáustica etc. (GUEDES E RANGEL,2018) De acordo com dados do ministério da saúde são causas predominantes no que se refere à mortalidade materna: a hipertensão, infecção puerperal, hemorragias e o aborto, bem como diz que todas as causas descritas aqui podem ser evitadas. (BRASIL,2005) A intenção aqui não é que somente seja descriminalizada a prática do aborto, devem ser implantas políticas públicas de orientação e prevenção de gravidez indesejada. Vejamos o que apresentou a Suprema Corte dos Estados Unidos da América em um julgamento de um caso de aborto: Nossa obrigação é definir a liberdade de todos, não impor o nosso código moral. A questão constitucional subjacente é se o Estado pode resolver essas questões filosóficas de uma tal maneira que a mulher fique sem escolha sobre o tema, exceto talvez (quando) a gravidez for ela mesma um perigo para a própria vida ou saúde dela, ou o resultado de estupro ou incesto. […] (Suprema Corte dos EUA, Planned Parenthood of Pennsylvania vs. Casey, 1992). O código penal brasileiro em seu artigo 128, ao dar capacidade da mulher decidir se irá ou não continuar com a gravidez, nos faz questionar o porquê de não ser possível em outras hipóteses. Vejamos que se a vida se iniciasse com a fecundação e o direito à vida do feto fosse superior aos demais direitos fundamentais conforme muitos alegam, não deveria ser possível realizar o aborto nem em casos de estupro ou com risco da morte da mãe. Além do que também 32 sabemos que não existe hierarquia entre princípios e portanto todos estão no mesmo patamar, sendo assim não posso alegar que o direito à vida é maior do que os outros direitos e garantias. Por outro lado devemos analisar que o nosso código penal que é a Lei que tipifica o crime de aborto é de 1940 e portanto ao autorizar o aborto nos casos de estupro, o que tinha-se intenção de tutelar era a honra da mulher que foi estuprada e de sua família, não sua saúde física e mental, eis que o estupro até a publicação da Lei nº12.015/2009 era considerado crime contra os costumes. Portanto a existência das duas formas é no mínimo contraditória. “As pessoas só são tratadas como iguais pelo Estado quando este demonstra por elas o mesmo respeito e consideração. Não há respeito e consideração quando se busca impor determinado comportamento ao cidadão, não por razões públicas, mas por motivações ligadas a alguma doutrina religiosa” (Sarmento, 2005 p.26). Por trás do falso objetivo explícito do Direito penal em tutelar e proteger a vida do feto desde o momento da concepção, jaz um objetivo “oculto” que não tem necessária implicação com os direitos do feto, mas sim com a relação ao controle social formal da sexualidade e a reprodução da mulher, a fim de perpetua-la em seus histórico papel social em uma sociedade histórica e socialmente autoritária, machista e patriarcal como a brasileira. (EMMERICK, 2008, p.2) No que diz respeito à constituição federal, podemos observar que a mesma não traz em nenhum de seus artigos algo relacionado ao aborto, portanto me arrisco a dizer que os artigos referentes ao código penal que regulamentam o aborto não foram recepcionados pela constituição federal de 1988, visto o que fere vários princípios, como já exposto anteriormente. Tendo em vista o referido pensamento, vejamos o que nos diz Ronald Dworkin: As leis que proíbem o aborto, ou que o tornam mais difícil e caro para as mulheres que desejam fazê-lo, privam as mulheres grávidas de uma liberdade ou oportunidade que é crucial para muitas delas. Uma mulher forçada a ter uma criança que não deseja porque não pode fazer um aborto seguro pouco depois de ter engravidado não é dona de seu próprio corpo, pois a lei lhe impõe uma espécie de escravidão. Além do mais, isso é só o começo. Para muitas mulheres, ter filhos indesejados significa a destruição de suas próprias vidas. (...) Decidir sobre um aborto não é um problema isolado, independentemente de todas as outras decisões, mas sim um exemplo expressivo e extremamente emblemático das escolhas que as pessoas devem fazer ao longo de suas vidas, todas as quais expressam convicções sobre o valor da vida e o significado da morte. (DWORKIN,2009, p.143) Segue uma visão de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira: “A Constituição não garante apenas o direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas. Protege igualmente a própria vida humana, independentemente dos seus titulares, como valor ou bem objectivo (...) Enquanto bem ou valor constitucionalmente protegido, o conceito constitucional de vida humana parece abranger não apenas a vida das pessoas mas também a vida pré-natal, ainda não investida numa pessoa (...). É seguro, porém, que (a) o regime de protecção da vida humana, enquanto simples bem constitucionalmente protegido, não é o mesmo que o direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas, no que respeita à colisão com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (v.g., saúde, dignidade, liberdade da mulher, direitos dos progenitores a uma paternidade e 33 maternidade consciente); (b) a protecção da vida intra-uterina não tem que ser idêntica em todas as fases do seu desenvolvimento, desde a formação do zigoto até o nascimento; (c) os meios de protecção do direito à vida – designadamente os instrumentos penais – podem mostrar-se inadequados ou excessivos quando se trate de protecção da vida intra-uterina.(CANOTILHO; MOREIRA, apud, SARMENTO,2005) Por fim, podemos entender que o Estado brasileiro ao obrigar uma mulher a manter uma gravidez indesejada, está em desacordo com as normas previstas no artigo 5º da Constituição, eis que prevalece o direito de quem já nasceu, bem como entra em conflito com diversos tratado internacionais a qual ele pertence. Outra questão importante é a de que ao deixarmos o destino de milhares de mulheres serem decididos por homens é no mínimo incoerente, visto que muitos adoram expressar suas opiniões, bem como a maioria no Congresso Nacional é composta de homens. Vejamos que a maternidade vincula a mulher, mas não vincula o homem, vemos diariamente na nossa sociedade que o pai ao abandonar uma criança é considerado apenas mais um dentre muitos e a mãe ao fazer isso é visto com um grande monstro por todos que a cercam. Esse é um reflexo do machismo que ainda existe em nosso meio. Como provo do apresentado é o crescente número de ações de indenização que possui como fundamento o abandono parental, bem como a grande quantidade de certidões de nascimento que não constam o nome do pai. Portanto inviável considerar as declarações contrárias expostas por homens que acreditam que a manutenção da gravidez deva ser obrigatória. 34 III. ABORTO UMA QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA E A VISÃO MUNDIAL SOBRE A PRÁTICA DO PROCEDIMENTO 3.1. O aborto no mundo O aborto é visto de diferentes formas em cada lugar do mundo, eis as diferentes culturas e diferentes formas de pensamentos. O gráfico a seguir (Gráfico 1) publicado pela revista exame nesse ano de 2018, nos mostra uma visão dos países e seus posicionamentos sobre tema: Fonte: Revista Exame 35 Podemos observar que os países mais desenvolvidos são os que possuem menos ou não possuem nenhuma restrição quanto ao aborto. Vale lembrar que a maioria dos países aonde não existem restrições, o procedimento deverá ser feito até a 12ª semana.Em alguns países como Malta, Vaticano, El Salvador, Republica Dominicana o aborto ainda é totalmente proibido, independentemente da situação ou do caso concreto. Na Alemanha, de acordo com Renata Martins(2017), desde 1976 o aborto pode ser realizado, desde que até a 12ª semana e três dias antes a gestante passe por aconselhamento médico ou junte boletim de ocorrência nos casos em que a gravidez for fruto de estupro. O procedimento poderá ser realizado após a 12ª semana, mas somente em casos excepcionais em que houver recomendação médica para tanto. Decisão da Corte Constitucional em 1993, alegando que a proteção ao feto não precisaria necessariamente ser feita por meio repressivo do direito (SARMENTO,2005) Os embriões possuem dignidade humana; a dignidade não é um atributo apenas de pessoas plenamente desenvolvidas ou do ser humano depois do nascimento... Mas, na medida em que a Lei Fundamental não elevou a proteção da vida dos embriões acima de outros valores constitucionais, este direito à vida não é absoluto... Pelo contrário, a extensão do dever do Estado de proteger a vida do nascituro deve ser determinada através da mensuração da sua importância e necessidade de proteção em face de outros valores constitucionais. Os valores afetados pelo direito à vida do nascituro incluem o direito da mulher à proteção e respeito à própria dignidade, seu direito à vida e à integridade física e seu direito ao desenvolvimento da personalidade... Embora o direito à vida do nascituro tenha um valor muito elevado, ele não se estende ao ponto de eliminar todos os direitos fundamentais das mulheres à autodeterminação. Os direitos das mulheres podem gerar situação em que seja permissível em alguns casos, e até obrigatório, em outros, que não se imponha a elas o dever legal de levar a gravidez a termo... Isto não significa que a única exceção constitucional admissível (à proibição do aborto) seja o caso em que a mulher não possa levar a gravidez até o fim quando isto ameace sua vida ou saúde. Outras exceções são imagináveis. Esta Corte estabeleceu o standard do ônus desarrazoado para identificação destas exceções ... O ônus desarrazoado não se caracteriza nas circunstâncias de uma gravidez ordinária. Ao contrário, o ônus desarrazoado tem de envolver uma medida de sacrifício de valores existenciais que não possa ser exigida de qualquer mulher. Além dos casos decorrentes de indicações médicas, criminológicas e embriopáticas que justificariam o aborto, outras situações em que o aborto seja aceitável podem ocorrer. Este cenário inclui situações psicológicas e sociais graves em que um ônus desarrazoado para a mulher possa ser demonstrado. ...Mas devido ao seu caráter extremamente intervencionista, o Direito Penal não precisa ser o meio primário de proteção legal. Sua aplicação está sujeita aos condicionamentos do princípio da proporcionalidade ... Quando o legislador tiver editado medidas adequadas não criminais para a proteção do nascituro, a mulher não precisa ser punida por realizar um aborto injustificado ..., desde que a ordem jurídica estabeleça claramente que o aborto, como regra geral, é ilegal (KOMMERS, apud, SARMENTO,2005) Na França, o aborto é permitido desde 1975, a permissão de abortar até a 12ª semana veio em 2012, no entanto necessário consulta com especialista para avaliar o caso e explicar 36 procedimentos dentre outras especificações. Nos casos em que a gestante for menor de idade deverá ser realizada uma entrevista psicossocial independentemente ela queira ou não. De acordo com um artigo de Suellen Kyl de 2015 publicado no guia do estrangeiro, segue a faixa de preços de um aborto nesse país. Aborto com uso de medicamentos em consultório médico: entre 187,92€ e 193,16€ Aborto com uso de medicamentos em clínica ou hospital: 257,91€ Aborto com intervenção cirúrgica: de 500,14€ à 664,05€ No México a situação é interessante, eis que “Cada um dos estados tem uma legislação própria sobre o aborto. Desde 2007, o aborto é permitido na Cidade do México até 12ª semana de gestação, por decisão da mulher.” (MARTINS/2017/on-line) Já na China segue-se o seguinte “O aborto é totalmente legalizado. Durante a vigência da chamada política do filho único, entre o fim dos anos 1970 e 2015, estima-se que foram realizados cerca de 336 milhões de abortos. A decisão de acabar com a política do filho único foi motivada pelo envelhecimento da população e pela queda na taxa de natalidade. Os casais podem agora ter no máximo dois filhos.” (MARTINS/2017/on-line) Outra caso curioso é o da Rússia que teve seus momentos de proibição, mas passou a entender que o procedimento nem tem porque ser proibido: Em 1920, a Rússia se tornou o primeiro país do mundo em permitir o aborto sob qualquer circunstância. Sendo proibido entre 1936 e 1954, a intervenção foi novamente legalizada, tornando-a permitida até a 12ª semana. Na União Soviética, pela falta de métodos anticoncepcionais e de educação sexual, o aborto era tido como a única ferramenta de planejamento familiar. Atualmente, a Rússia é o país com a maior quantidade de interrupções voluntárias da gravidez: calcula-se que, em média, são feitos 1 milhão de abortos voluntários por ano no país. (MARTINS/2017/on-line) O Uruguai passou a entender desde 2012, que a pratica do aborto não deve ser considerada crime, desde que a gestante passe por especialista para que tome uma decisão segura. O aborto é permitido até a 12ª semana, e em casos de estupro até a 14ª. Na Argentina, o aborto é permitido somente em casos de estupro ou em casos em que houver risco à vida gestante. Nesse ano de 2018 uma proposta que aumentaria os direitos ao aborto, foi aprovada pela Câmara dos Deputados em uma votação apertada com diferença de apenas 4 votos, no entanto foi rejeitado pelo Senado, e portanto continua da forma anterior. A reportagem do G1 com base nos dados do Instituto Guttmacher, organização dos Estados Unidos e parceira da Universidade Columbia e da Federação Internacional de Planejamento Familiar(IPPF), elaborou um gráfico (Gráfico 2) que nos mostra a diminuição do aborto no mundo: 37 Fonte: G1 Podemos assim a observar que a taxa de aborto em países desenvolvidos, que em sua maioria o aborto é legalizado, caiu com o passar dos anos, desta forma possível entender que a legalização do aborto não faz com que as mulheres abortem de forma desenfreada e por nenhum motivo, visto que possuem um acompanhamento por profissionais capacitados, sendo médicos, psicólogos, dentre outros e que não contam com o medo de estar praticando uma conduta ilícita. Para tal se submeter ao aborto a mulher deverá passar por consultas antes, para que seja analisado o caso concreto, bem como para que a mesma seja orientada das consequências e riscos, e também que seja colocada em prática uma política mais elaborada de prevenção a gravidez. O movimento feminista foi responsável por trazer à tona a questão sobre a viabilização do aborto de forma legal, sem que para realizar o método a mulher tenha que fazer escondida ou em lugares inapropriados. Esse movimento foi o ponto de partida para que as pessoas pudessem olhar a descriminalização do aborto de outra forma, não somente pela perspectiva do nascituro, mas também da mulher, que pode ter seu poder de escolha e sua autonomia, de forma que assim, possa decidir de acordo com sua vontade e individualidade, se deve ou não prosseguir com a gestação. (DAGER,2017, p. 31) 38 Podemos ver a seguir um gráfico (Gráfico 3) que nos mostra a taxa de aborto por regiões do Mundo. Fonte: G1 Esse gráfico também da reportagem do G1 e com base nos
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