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F ILO SÓ FICAS MflRIÜ ARIEL GONZALEZ PORTA A F IL O S O F IA A P A A T IR D E S E U S P R O B L E M A S L E I T U R A S ^ FILOSÓFICAS L E I T U R A S 99 FILOSÓFICAS Aristóteles e o logos, Barbara Cassin Aristóteles no século XX, Enrico Berti Arte, política e educação em Walter Benjamin, Matha D ’Angelo Ceticismo, Charles Landesman Da natureza, ]osé Gabriel Trindade Santos Despertar da consciência na civilização medieval (O), Marie-Dominique Chenu Diálogos com a cultura contemporânea, W.AA Epicteto e a sabedoria estoica, Jean-Joël Duhot Eric Weil e a compreensão do nosso tempo, Marcelo Ferine Estudos de ética e filosofia da religião, Francisco Javier Herrero Filosofia a partir de seus problemas (A), 3a ed., Mario Ariel González Porta Filosofia da ciência — introdução ao jogo e a suas regras, 1 Ia ed., Rubem Alves Filosofia da natureza (A), Jacques Maritain Foucault e a fenomenologia, Marcos Alexandre Cornes Nalli Foucault, simplemente — textos reunidos, Salma Tannus Muchail Ler Platão, Thomas A. Szlezák Metáfora viva (A), 2a ed., Paul Ricoeur Movimento sofista (O), G. B. Kerferd Nietzsche e Freud — eterno retorno e compulsão à repetição, Rogério Miranda de Almeida Niilismo (O), Franco Volpi Ofício do filósofo estóico (O), Rachel Gazolla Ordem do discurso (A), 13a ed., Michel Foucault Para não 1er ingenuamente uma tragédia grega, Rachel Gazolla Quatro lições sobre a ética de Aristóteles, Marcelo Perine Que é a filosofia antiga? (O), 2a ed. Pierre Hadot Razões de Aristóteles (As), 2a ed., Enrico Berti Saber dos antigos — terapia para os tempos atuais, 2a cd., Giovanni Reale Sete lições sobre o ser, 3a ed., Jacques Maritain Sobre o político de Platão, Cornelius Castoriadis Sócrates, Denis Huisman Sócrates ou o despertar da consciência, Jean-Joel Duhot Sócrates, o feiticeiro, Nicolas Grimaldi Tempo em Platão e Aristóteles (O), Rèmi Brague Tempo e razão — 1.600 anos das Confissões de Agostinho, Carlos Arthur A. Nascimento Transformação da filosofia, vol. 1, 2a ed., Karl-Otto Apel Transformação da filosofia, vol. 2, Karl-Otto Apel Vontade de crer (A), William James Mario Ariel González Porta A FILOSOFIA A PARTIR DE SEUS PROBLEMAS Didática e metodologia do estudo filosófico Edições Loyola D ireção: Pe. Fidel García Rodriguez, SJ E dição: Marcos Marcionilo Preparação: Gisele Molinari D iagramação: Telma dos Santos Custódio Revisão: Carlos Alberto Bárbaro Joseli Nunes Brito Maurício Balthazar Leal Edições Loyola Rua 1822, ne 347 - Ipiranga * 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 - 04218-970 - São Paulo, SP © (11) 6914-1922 (3 ) (11) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: loyola@loyola.com.br Vendas: vendas@loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma dou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. ISBN: 978-85-15-02579-4 3a edição: fevereiro dc 2007 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2002 Para Rodrigo Agradecimentos A Lúcio Prado, Pedro Monticelli e ao implacável Ernesto Giusti, que leram a primeira versão deste texto. A Jean Siqueira, que fez a primeira tradução, e a Gisele Molinari, que, com sua infinita paciência, ajudou-me a des cobrir as melhores opções textuais em cada caso. Nota Prévia Para facilitar a leitura, estabelecemos alguns critérios com respeito aos destaques e referências usados no texto: a) termos que designam conceitos-chave para o traba lho são escritos em negrito na primeira vez em que são empregados no contexto no qual são relevantes. b) títulos de obras e palavras estrangeiras aparecem sem pre em itálico. c) as remissões a outras partes do texto foram assinala das com o número da Parte, seguido dos números do capítulo e da seção (por exemplo: Ia, 1, 1.1). Sumário Agradecimentos................................................................................ ' Nota prévia...................................................................................... 8 Introdução....................................................................................... 13 Finalidade do livro.................................................................. 13 Estrutura temática.................................................................. 15 I a Parte A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS C apítulo 1 - As diversas relações possíveis com a filosofia 21 1.1. Ensinar filosofia e ensinar a filosofar.......................... 21 1.2. As diversas relações possíveis com a filosofia........ 22 C apítulo 2 - Os momentos essenciais do “modo filosófico de pensar” ...................................................... 25 2.1. A primeira imagem da filosofia................................... 25 2.2. “O problema” como momento essencial do pensar filosófico (tema, problema, questão, pergunta)...... 26 2.3. Existem “problemas filosóficos”? ................................. 31 2.4. A tese............................................................................... 32 2.5. O argumento e a fundamentação................................ 36 9 2.6. Questões de sistematicidade intrafilosófica............ 38 2.7. -Resumo: resultados e perspectivas........................... 39 C apítulo 3 - Afinal, o que é filosofia? Primeiros elementos para uma resposta............................... 41 3.1. Introdução..................................................................... 41 3.2. O conceito de racionalidade...................................... 42 3.3. A filosofia como culminação da racionalidade....... 44 3.3.1. Filosofia e esclarecimento............................ 44 3.3.2. Filosofia e intersubjetividade........................ 45 3.3.3. Filosofia e algoritmo...................................... 46 3.3.4. Filosofia e reflexividade............................... 46 3.4. Filosofia, cultura e sociedade.............................. 49 Capítulo 4 - 0 texto ............................................................ 51 4.1. Como se lê um texto filosófico?.............................. 51 4.2. A compreensão do tex to ........................................... 53 4.2.1. O que é “entender” um texto?.................... 54 4.2.2. Por que às vezes não entendo e o que devo fazer quando isso acontece?........................... 57 4.2.3. Como sei se entendi “corretamente”? ......... 59 4.3. A análise do texto ...................................................... 62 4.3.1. Retradução semântico-gramatical: explicitação exaustiva dos recursos puramente lingüísticos . 63 Excurso......................................................... 64 4.3.2. Retradução técnica: substituição de definições 65 4.3.3. Taxonomia semântica: tipologia dos conteúdos presentes no texto.................. 67 4.3.4. Retradução lógica........................................ 69 4.3.5. Modalização veritativa da tradução alcançada 71 4.3.6. Entender e interpretar: para uma nova versão do texto ........................................... 73 C apítulo 5 - 0 contexto...................................................... 77 5.1. Texto e contexto..................................................... 77 5.2. A historicidade do pensar..................................... 78 5.2.1. O status quaestionis................................. 81 10 5.2.2. A recepção......................................................... 82 5.2.3. O “avanço direcionado” da história da filosofia 84 5.3. A reconstrução do problema.................................. 85 5.3.1. A reconstrução racional do problema.......... 87 5.3.2. A reconstrução histórica do problema......... 88 C apítulo 6 - 0 não-textual....................................................91 6.1. A noção de "texto”: texto e escrita........................ 91 6.2. Falácia da harmonia hermenêutica preestabelecida 94 6.3. Redimensionamento do “texto” como instrumento de aprendizagem e estudo filosófico, assim como da própria filosofia...................................................... 95 6.4. A atividade filosófica.................................................. 97 6.5. As modalidades não-textuais da atividade filosófica 98 6.6. Texto e tradição viva. O mestre e a escola............ 101 2a Parte EXEMPLOS C apítulo 1 - O problema da C rítica da razão pura.......... 107 1.1. Introdução........................................................................ 107 1.2. O problema crítico ........................................................ 107 1.2.1. O problema teórico...... .'................................... 108 1.2.2. O problema prático........................................... 118 1.3. O caminho da solução.................................................. 120 1.3.1. A solução do problema prático...................... 120 1.3.2. A solução do problema teórico...................... 123 1.3.3. Coincidências e diferenças entre as soluções das questões prática e teórica ....................... 127 1.4. O lugar de Kant na história da filosofia ................. 127 C apítulo 2 - 0 problema da “filosofia das formas simbólicas” 129 2.1. Introdução........................................................................ 129 2.2. Os pressupostos............................................................. 130 2.2.1. O idealismo alemão........................................... 130 2.2.2. O neokantismo................................................... 131 2.3. Cassirer e a filosofia das formas simbólicas............ 137 2.3.1. Introdução......................................................... 137 2.3.2. A filosofia cassireriana das matemáticas e da física......................................................... 137 2.3.3. O problema das ciências do espírito........... 140 2.3.4. A filosofia das formas simbólicas.................... 142 2.3.5. Estudo comparado de algumas formas simbólicas.......................................................... 151 2.4. A modo de conclusão: o pluralismo e o problema da objetividade............................................................. 153 C apítulo 3 - A unidade da filosofia contemporânea do ponto DE VISTA DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA......................................... 157 3.1. Introdução..................................................................... 157 3.2. Período metafísico....................................................... 159 3.3. Período transcendental................................................ 160 3.4. A filosofia contemporânea......................................... 162 3.4.1. A filosofia analítica.......................................... 162 3.4.2. Fenomenologia-hermenêutica......................... 166 3.4.3. Uma aproximação sistemática da questão da unidade do pensamento contemporâneo na perspectiva da história da filosofia............... 172 3.5. Consideração final....................................................... 178 Introdução Finalidade do livro Este livro se propõe um fim essencialmente prático, e será por sua utilidade que terá de ser julgado; se ajudar aqueles aos quais se dirige, terá cumprido o seu objetivo. E claro que pressuposições teóricas de todo tipo e natureza estão presentes no que se segue, sendo discutíveis enquan to tais. A fim de evitar que as propostas degradassem em receitas rígidas, não pude deixar de explicitar tais pressu postos em alguma medida, sobretudo enquanto se referiam à idéia de filosofia. Não obstante, não está no centro do meu interesse neste texto discuti-los, fundamentá-los ou polemizar com outros pontos de vista, senão, simplesmen te, por um lado, expô-los e, por outro, exemplificá-los. Em nenhum momento me propus a oferecer uma “teoria” dos temas tratados, mas apenas uma reflexão, que, ao temati- zar uma práxis efetiva, possibilitasse seu partilhamento. Creio, contudo, que o exposto não é tão polêmico a ponto de não suscitar uma aprovação, ainda que parcial, de um leitor de boa vontade que possua conhecimentos filosóficos não-escolares. Meu objetivo não foi escrever uma “introdução à filoso fia” para pessoas que nunca tiveram contato com essa disci plina, e que procuram uma primeira aproximação a ela. Cer tamente, o presente livro não é compreensível por qualquer leitor. Trata-se de um livro “básico”, mas não de uma “intro dução” de utilidade universal. Ele pressupõe um contato já presente com a filosofia (seja autodidata ou acadêmico) bem como, correlativamente, a experiência de uma certa frustra ção na busca de um acesso à “ingrata” que nos exige tanto esforço e nos recompensa com tão pouca generosidade. Quando o escrevo, tenho em mente um aluno de graduação que já sobreviveu a seus decisivos primeiros anos, um de pós-graduação cônscio de uma formação inadequada ou até um professor que experimenta desconforto com os resulta dos obtidos. Para esse grupo heterogêneo de leitores, as li nhas que seguem podem poupar algum tempo e esforço. Este livro tampouco é um “manual” que tenha por obje tivo oferecer uma síntese ou sistematização de informações fundamentais. O que aqui se propõe é uma perspectiva de acesso à filosofia, centrada em explicitar de modo instrumen talmente efetivo como podem ser melhorados o estudo e o ensino dessa disciplina. Uma vez que ensino e aprendizagem são correlatos, é possível entender as linhas que seguem tanto como uma metodologia do estudo filosófico quanto como uma didática do ensino da filosofia, ainda que, ao mesmo tempo, também sejam muito menos do que isso. Aqui não se responde a todas as perguntas, nem se toma posição com respeito a todos os assuntos usualmente compreendidos pelas disciplinas mencionadas. Em nenhum momento me propus a escrever um “tratado” (nem de didática, nem de metodologia filosófica), mas apenas esboçar uma abordagem acerca das I 4 | In t r o d u ç ã o duas questões. Trata-se, unicamente, tanto num caso como no outro, da fixação primeira e provisória de uma perspectiva básica, a respeito da qual se diz tanto quanto necessário e tão pouco quanto possível, optando-se por explicitá-la mediante a sua aplicação a casos concretos. O princípio que rege a perspectiva proposta (e do qual todo o resto são variações) é extremamente simples, tanto que, por momentos, creio que é por isso que tende a ser passado por alto. O objetivo primordial do ensino e da apren dizagem da filosofia é “entendê-la”. Ora, ela tem fama de difícil, obscura e, inclusive, arbitrária. Pois bem, grande par te das dificuldades usuais em sua compreensão deve-se ao não entender o “problema” do qual a filosofia trata1. Por tal motivo, proponho-me a oferecer uma opção à didática e metodologia do estudo filosófico com base no seguinte prin cípio: a compreensão do problema deve constituir o núcleo essencial, o eixo, tanto do ensino quanto da aprendizagem da filosofia. Não é possível “entender” filosofia se não se enten de “o problema” abordado por um filósofo. Entretanto, o “problema” tende a ser pressuposto ou simplesmente igno rado, sem que se dedique esforço específico algum para esclarecê-lo. Não poucas vezes, no lugar da sua explicitação aparece um rótulo vazio (“o ser e o devir” etc.). Estrutura temática Este texto contém duas partes claramente diferentes. Na Ia Parte (seis capítulos) explicita-se a idéia central pro posta e se estabelece reflexivamente o princípio básico já 1 1. Ou melhor, do qual um determinado filósofo ou uma determinada obra tratam. In t r o d u ç ã o | I 5 mencionado (sem pretender, repito, argumentar ou provar suas implicaçõesteóricas); na 2a Parte (três capítulos), ofe recem-se três exemplos que procuram evidenciar como tal princípio pode ser operacionalizado em casos singulares. Como este é um livro que não versa primariamente sobre certos conteúdos, mas sobre o método de sua aquisição, é claro que ele possui uma flexibilidade temática intrínseca, a qual, não obstante, tampouco é sinônimo de absoluta arbi trariedade. O capítulo 1 da 2a Parte oferece o exemplo de um pensador que, ao mudar o problema filosófico fundamental, muda também a própria idéia de filosofia. A escolha de Kant, para tanto, tem secundariamente por objeto eviden ciar que é de fato possível explicar de modo simples “o problema” de um autor tradicionalmente considerado difícil, abrindo, a partir de tal explicação, caminho a um estudo posterior gratificante. Uma vez escolhido Kant como exem plo de pensador "clássico”, optou-se por continuar, no capí tulo seguinte, com um outro autor que tivesse como pressu posto a virada crítica, de forma a poder exemplificar o caso, extremamente comum, de um problema construído sobre os supostos de uma tradição. O escolhido foi um neokantiano: Ernst Cassirer. Novamente aqui existe um motivo comple mentar na escolha. Cassirer não tem fama de incompreen sível como Kant. Todos “entendem” seu texto. Lamentavel mente, todos entendem coisas diferentes. Essa situação não é, de fato, tão-só culpa de seus leitores. Cassirer possui um estilo literário envolvente e fluido, porém impreciso do pon to de vista conceituai, proporcionando, por tal motivo, uma excelente oportunidade para o exercício do nosso método. O estudo do “caso Kant” e do “caso Cassirer” evidencia, como princípio geral, que em filosofia não há autores “fá ceis”, senão que há aqueles difíceis de ler e aqueles difíceis 16 | Introdução depois de lidos. O capítulo 3 da 2a Parte, finalmente, mostra em forma sucinta como se aplica a perspectiva proposta à história da filosofia em geral. Com tal fim, parto do que suponho sabido pelo leitor e o confronto com uma forma de ordenação um tanto diferente da que creio lhe seja usual. O ganho ali será possibilitar uma visão unitária da filosofia contemporânea. A forma de tratamento dos exemplos oferecidos nos capítulos 1, 2 e 3 da 2a Parte obedece ao critério de qual seja o mínimo necessário para que alguém com inteligência mé dia, e certa familiaridade com a disciplina, possa entender um determinado problema filosófico. Isso não quer dizer, contudo, que eles sejam “fáceis” e não exijam ser lidos com atenção, atenção que deve ser tanto maior quanto menor for a formação do leitor. Trata-se, certamente, de textos “introdu tórios”, mas não simplificadores; de textos “básicos”, mas não triviais. Trata-se, assim mesmo, de textos proposital mente enxutos, que respeitam com rigor o princípio de re duzir a exposição a um mínimo essencial. Essa brevidade mostra que é possível explicar problemas filosóficos não só de modo claro, mas também “econômico”. “O problema da Crítica da razão pura" foi inicialmente publicado pela revista Integração (USJT), com o título “Uma aula sobre Kant”, e constitui uma versão sem alterações de uma palestra oferecida no ano de 1999 no curso de “Intro dução à Filosofia” do Cogeae da PUC-SP, encontrando in tensa difusão através da versão html da referida revista. O texto sobre Cassirer foi publicado na revista Ethica, da Uni versidade Gama Filho do Rio de Janeiro. Uma versão subs tancialmente mais extensa e complexa do texto sobre a unidade da filosofia contemporânea foi publicada pela revis ta Reflexão, da UNESP. Introdução | I 7 l g Parte A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS Capítulo 1 As diversas relações possíveis com a filosofia 1.1. Ensinar filosofia e ensinar a filosofar E bem sabido que Kant, em citadíssima passagem, afirma que não se pode ensinar filosofia, mas apenas ensinar a filo sofar. O filósofo de Königsberg quer dizer outra coisa do que geralmente se lhe atribui; assim, por exemplo, ele jamais entenderia por filosofia “história da filosofia” (algo que hoje seria para nós uma primeira identificação). A oposição que lhe interessa é entre uma ciência constituída como um conjunto de verdades e uma atividade da razão. Como a filosofia não é a primeira, mas propriamente a segunda, não há aqui o que ensinar no sentido de uma transmissão de conteúdos. E um mérito kantiano o haver chamado a atenção sobre a diferença entre “ensinar conteúdos filosóficos” e “ensinar a filosofar”1. Sem embargo, sua distinção introduz mais proble- 1. E, pelo menos de modo indireto, mas genericamente, entre o "conteú do filosófico” e o "pensar filosoficamente”. mas que soluções. Kant supõe que é possível ensinar a filoso far, ainda que, a partir de seus pressupostos, não seja óbvio que isso possa ser “ensinado” e em que sentido o seja. Por outro lado, a pergunta principal fica de pé: se o ensinar filo sofia nos remete ao ensinar a filosofar, o como se filosofa e o como se ensina a filosofar ainda estão por ser esclarecidos. 1.2. As diversas relações possíveis com a filosofia Filosofar não é a única relação que se pode manter com aquilo que chamamos de “filosofia”. Por tal razão, devemos distinguir as seguintes perguntas: 1. Como se “filosofa”, ou seja, como se produz filosofia “original”? 2. Como se pensa “filosoficamente”, ou em que consis te the philosophical way o f thinking (“o modo fi losófico de pensar”)? 3. Como se investiga em filosofia com os critérios aca dêmicos de rigor? 4. Como se investiga em história da filosofia? 5. Como se ensina filosofia? 6. Como se estuda filosofia? 7. O que é, propriamente, “ensinar filosofia”? 8. O que é, propriamente, “estudar filosofia”? E óbvio que a forma de responder às perguntas acima depende, em última instância, da forma de responder à pergunta básica: 9. Afinal de contas, o que é “filosofia”? No que se segue, nossa análise se concentrará em 5, 6, 7 e 8; algumas reflexões a respeito de 1, 2, 3, 4 e 9 serão, todavia, imprescindíveis. “Filosofar” é um verbo que indica tanto uma atividade como seu produto. Conseqüentemente, há dois sentidos para 22 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS a pergunta "como se filosofa?”. Em um deles, trata-se de determinar como se tornar um filósofo original, apontando- se um certo resultado; no outro, como podemos nos apro priar do philosophical way of thinking, e alude a uma forma específica de proceder intelectual. Agora, se por “filosofar” entendemos produção de “co nhecimento filosófico ‘original’” e, inclusive, “de qualidade” (seja lá o que isso signifique), tal dádiva está certamente reservada a poucos mortais. “Como se forma um filósofo?”, nesse sentido, é uma pergunta tão pouco suscetível de res posta quanto a de como se forma um pintor ou um poeta. Talvez a única coisa que se possa é estabelecer de modo empírico algumas condições prováveis. Se a primeira pergunta permanecerá sempre sem ser resolvida, é possível dar uma resposta concreta à segunda. Deixando de lado a valoração acerca da qualidade, não ape nas os filósofos filosofam, mas também outros que jamais produziram um pensamento “original”. Comum a ambos é o exercício de um tipo de atividade intelectual que chamamos “filosófica”. Todas as formas de relacionar-se com a filosofia supõem em última instância (para serem frutíferas) a pre sença deste tipo de atividade. Isso nada tem a ver com ditos usuais como o de que todo homem é por natureza um filó sofo ou que as crianças filosofam. Refiro-me a um sentido mais exigente. Trata-se da capacidade de uma reflexão siste mática, metódica e (em maior ou menor medida) autônoma sobre certos problemas. Sem ela, jamais há filosofia em nenhum sentido, nem sequer no mais despretensioso de entender um texto. Existem diferentes tiposde trabalho filosófico, modos heterogêneos de relacionar-se com a filosofia. No entanto, não estão desvinculados, pois há entre eles uma identidade básica no “modo de pensar”, de forma tal que constituem As DIVERSAS RELAÇÕES POSSÍVEIS COM A FILOSOFIA | 23 um contínuo que se direciona a um grau crescente de “cria tividade”. Entre investigação e docência, trabalho acadêmico e produção filosófica, filosofia e história da filosofia, não há — necessariamente — um hiato absoluto nem, muito me nos, uma contradição. Mas em que consiste o philosophical way of thinking presente em todos eles? 24 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS Capítulo 2 O s momentos essenciais do "modo filosófico de pensar” 2.1. A primeira imagem da filosofia Para quem não se dedicou a um estudo sistemático da filosofia e tem um contato primário com essa disciplina, a impressão de um certo caos é inevitável. A filosofia é vista como um espaço onde reina o capricho, podendo cada um dizer o que quiser. Seu caráter não-empírico é entendido como pura arbitrariedade, quando não como confusão crô nica. Porém, essa impressão é falsa: a filosofia não é um caos de pontos de vista incomensuráveis, nem consiste sim plesmente em possuir certezas. Trata-se de ter opiniões sobre certos temas bem definidos e sustentá-las em algo diferente de uma convicção pessoal; mais ainda, o núcleo essencial da filosofia não é constituído de crenças temati- camente definidas e racionalmente fundadas, senão de pro blemas e soluções. 25 2.2. “O problema" como momento essencial do pensar filosófico (tema, problema, questão, pergunta) Se o público em geral não entende o que os filósofos fazem e crê que cada um simplesmente diz o que quer, isso se deve, em grande medida, ao fato de que não entende o problema ou, mais ainda, não toma consciência da existên cia de um problema. Esse é o dado da equação que tende a faltar e o motivo essencial da impressão de arbitrarieda de. O que o filósofo diz é tomado como “mero dizer”, co mo “irresponsável afirmar”, passando-se por alto seu origi nário caráter de “solução”. No entanto, a filosofia possui problemas, sendo a unidade dinâmica interna desses pro blemas o que está na base da multiplicidade e da mudança de temas e opiniões. Quando não há problema tampouco há filosofia. A lista dos problemas filosóficos está sempre incompleta e submetida a constante revisão. Não existe, por assim dizer, um catálogo deles fixado por uma instância externa à pró pria filosofia, e do qual ela poderia se servir. Os problemas da disciplina — e isso por sua própria natureza — não estão ali prontos, esperando simplesmente que o pensador os tome. A sua construção (e não tão-só e em primeira linha a sua resposta) é parte essencial do trabalho filosófico. O primeiro passo para entender filosofia é sempre esta belecer o problema. Diante de um filósofo particular, deve mos começar pela pergunta “qual é o problema por ele pro posto?” e, eventualmente, “por que ele o formula dessa ma neira?”. Entender um autor é ver sua filosofia como resposta “ao” problema que ele se coloca. Isso vale para qualquer filó • sofo, sem exceções. Do mesmo modo que pergunto qual é o problema de Husserl nas Investigações lógicas, devo perguntar qual é o problema de Heidegger em Ser e tempo, ou qual é o 26 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS problema de Nietzsche em Assim falou Zaratustra2. Às vezes os filósofos colocam diferentes problemas em diferentes obras. Geralmente, quanto mais os entendemos mais percebemos que problemas à primeira vista desconexos são apenas aspec tos de um só3. Por isso não devemos só nos perguntar qual é o problema de Heidegger em Ser e tempo, mas também qual é “o” problema de Heidegger. A compreensão do problema opõe-se à mera reunião de informações. Por “informações” não entendo unicamente da dos biográficos e/ou históricos, mas também “saberes” acerca do que o filósofo “diz”. Estudar filosofia não é possuir um conjunto de “saberes” a respeito do autor. Posso ter muitos “saberes” sobre Kant, Hegel ou Wittgenstein (saber, por exem plo, que Kant afirma que espaço e tempo são intuições, que 2. Vários leitores das primeiras versões deste texto expressaram estra nheza diante de minha afirmação, consciente e intencional, de que também em Nietzsche existe um "problema”. Por momentos pensei escrever um ca pítulo da segunda parte mostrando como minha tese também vale no caso de um autor como Nietzsche. Entretanto, logo compreendi que, desta forma, o texto corria perigo de não encontrar um fim, pois com base no mesmo critério outros exemplos poderiam ser considerados necessários. Por tal motivo, me limito a observar: 1. Na reflexão nietzschiana existe conteúdo, coisa que não acontece na maioria dos nietzschianos adolescentes, os quais não passam do modismo estilístico. 2. O problema de Nietzsche é evidenciar que da absoluta negação de toda trans cendência não se segue o pessimismo ou o niilismo como conseqüência "neces sária”, para o qual grande parte do esforço consiste em explicitar o que a transcendência significa. A impossibilidade de toda transcendência não tem que ser propriamente provada, senão explicitada. Na medida em que expli citamos, descobrimos o fenômeno da alienação e, com ele, o caminho para a resposta: justamente a negação da transcendência possibilita ao homem assu mir seu caráter criador e, deste modo, dar a si mesmo valores e sentidos. 3. Pode-se estabelecer em Nietzsche uma distinção, paralela à kantiana, entre “pré-crítico” e “crítico", a qual deve ser fixada em torno ao diferente trata mento do pessimismo e à ruptura com Schopenhauer. 3. Para o conhecedor é óbvia a inspiração, bergsoniana desta idéia; jus- tamente por isso solicito que não se a identifique. Os MOMENTOS ESSENCIAIS DO “ MODO FILOSÓFICO DE PENSAR” | 27 Hegel nega a existência das coisas em si, ou que Wittgenstein defende a teoria pictórica da proposição) e, não obstante, não ser capaz de fixar o problema desses autores; nesse caso, apesar de todos os meus esforços, simplesmente não os en tendi. O estudo da filosofia não deve se dirigir a “saber” o que os filósofos “dizem”, mas a entender o que dizem como so lução (argumentada) a problemas bem definidos. Se nossa tese é correta, então o conceito de uma filosofia puramente descritiva é uma contradição de termos. E certo que (como, segundo dizem, alguma vez alguém disse) toda filosofia deve estar referida à “experiência”. Outra questão, no entanto, é se o mero descrever a experiência alguma vez constituiu uma filosofia. Existem de fato filosofias que pre tenderam ser puramente “descritivas”, como, por exemplo, a fenomenologia. A análise husserliana da intencionalidade apre senta-se como não sendo mais que uma espécie de “inventá rio” de um certo estado de coisas. E, todavia, uma “feliz casualidade” que tal análise solucione tantos problemas, sem se propor problemas que se evidenciam como tais, quando observamos as dificuldades do conceito brentaniano de inten cionalidade e sua discussão subseqüente? Que a “teoria” da intencionalidade, assim como qualquer outra “teoria” filosófi ca, também é solução a problemas, põe-se de manifesto se observamos que há critérios para se estabelecer o que são boas e más teorias sobre o fenômeno intencional. Isso não significa que o descrever adequadamente não seja um fator decisivo na “solução”, reformulação e, inclusive, dissolução do problema original. Certamente, ele pode desempenhar um papel preponderante em vários sentidos; o que não pode é eliminar o problema enquanto tal (reduzindo, assim, uma tese filosófica a uma mera descrição). A filosofia não é um discur so descritivo. Toda descrição é para ela apenas um eventual problema a ser desenvolvido. 28 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS O não atentarao problema degrada o ensino ou o estu do filosófico a um contar ou escutar histórias. Tal tendência é tão forte que se assemelha a um vírus contra o qual parece não existir campanha preventiva eficaz. E comum, quando se pergunta aos alunos em que consiste a contribuição de cisiva de Hume ao problema da causalidade, obter-se como resposta que é o derivar a causalidade do hábito. Aqui temos um bom exemplo de redução de uma filosofia a uma tese, na qual não se considera o problema. A afirmação de que o nexo causal surge do hábito é uma resposta que esqueceu sua pergunta. O aporte de Hume se reduz, por conseguinte, ao ter “visto” (e descrito adequadamente) algo que outros pensadores não viram. Descrever um fenômeno, contudo, não é resolver um problema. Hume parece ser “um rapaz sem problemas”. Obviamente, isso está muito longe de ser verdade. Hume descobre o caráter não-racional do princípio de causalidade, ou seja, que ele não é suscetível de demons tração. Uma vez que isso fica claro, então, já que de fato dispomos de tal princípio, aparece a pergunta: de onde ele surgiu? Para responder a esta pergunta é que é elaborada a teoria do hábito, a qual ocupa, portanto, um lugar sistemá tico subordinado: ela substitui o inviável embasamento ra cional por uma explicação psicológico-causal. Os exemplos poderiam multiplicar-se. A dificuldade em se entender a diferença entre a priori e inato e a tendência a continuar reduzindo um ao outro, mesmo quando se é advertido de sua radical heterogeneidade, evidenciam outros modos de se apresentar a mesma questão básica (decorren te, em última instância, do esquecimento do problema): reduzir a um discurso descritivo um outro tipo de discurso absolutamente diverso. A filosofia não pode (mais precisa mente, não deve) ser “contada”; ensinar filosofia não é “con tar histórias”. Existe uma diferença categorial entre a histó Os MOMENTOS ESSENCIAIS DO “ MODO FILOSÓFICO DE PENSAR” | 29 ria dos três porquinhos e o Discurso do método. Nem Des cartes é uma espécie de “Prático”, nem o gênio maligno uma espécie de “lobo mau”. O problema de uma teoria filosófica é algo diferente tan to de seu tema como de toda “questão”. O tema é aquilo do que ou sobre o que o autor fala. Contudo, o autor fala sobre algo e diz alguma coisa a respeito, a saber, sua tese. Distinga mos, então, aquilo do que fala daquilo que diz a respeito; por exemplo, posso falar do conhecimento ou da verdade, e dizer que a verdade é o evidente ou que consiste no acordo entre pensamento e realidade etc. Em ambos os casos, trata-se apenas de “informações” que não determinam problema algum. Em português é fatídico o hábito acadêmico de falar da “ques tão”. Na linguagem comum, uma “questão” não é senão uma pergunta; um “questionário”, uma lista de perguntas. Em seu uso acadêmico, porém, o termo perde seu caráter interroga tivo e se torna extremamente vago. Em algumas (poucas) ocasiões, “questão” é usada como sinônimo de conceito: a “questão” do belo em Kant pode significar o conceito do belo em Kant. Na maioria dos casos, entretanto, “a questão” faz referência propriamente ao tema, um tema que, em tal caso, por sua vez, não é fixado, mas apenas aludido. Assim, por exemplo, se diz que Kant trata da “questão da metafísica” e Heidegger da “questão do ser”. Mas em que consiste “a ques tão da metafísica” e em que medida considerá-la pode nos ajudar a entender Kant? Se, à primeira vista, parece que Kant toma algo preexistente (e claramente definido) de um certo “reservatório”, uma mínima análise deixa patente que o clichê oculta aqui a mais absoluta vaguidade. Com a “questão do ser” o estado de coisas é ainda mais grave: os autênticos pro blemas desaparecem em uma nebulosa. Uma vaga vivência de insatisfação, por mais intensa que seja, não basta para que tenhamos um problema filosófico. 3 0 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS Ela pode ser o primeiro passo (e geralmente é), mas o que define o filósofo é o fato de que ali onde o entendimento comum se contenta com tal insatisfação (e crê, eventual mente, que ela, enquanto pura “resistência”, já é o pensa mento de um problema) o filósofo a conduz à forma de uma pergunta explícita bem definida e, por tal motivo, suscetível de resposta. Por conseqüência, o critério mínimo para decidir se es tamos ou não diante de um problema é a possibilidade de formulá-lo como uma pergunta gramaticalmente completa. Isto não quer dizer que toda pergunta: a. é uma pergunta filosófica; b. fixa o problema enquanto tal (sem degradá-lo a um novo saber); c. fixa o problema suficientemente4; d. e que nem sequer basta prestar atenção à pergunta que um autor explicitamente se faz em um texto para entender seu problema. 2.3. Existem “problemas filosóficos”? Propusemos uma metodologia de estudo e uma didática da filosofia centradas na idéia de problema. Ora, afirmar que a fixação do problema constitui o momento essencial do trabalho filosófico supõe dar como concedido que ele é efe tivamente tal. Porém, isto está longe de ser óbvio. Com efeito, diz-se que a tarefa da filosofia não é responder per guntas, mas sim dissolvê-las, evidenciando que elas, em úl tima instância, carecem de sentido. Esta tese possui uma 4. Compreender o problema da Crítica da razão pura, por exemplo, não é saber que a pergunta dela é "como são possíveis juízos sintéticos a priori Pode-se “saber” isso e não haver entendido o problema. Os MOMENTOS ESSENCIAIS DO “ MODO FILOSÓFICO DE PENSAR” | 31 sólida fundamentação e sua análise nos obrigaria a ir muito além. da questão limitada que agora discutimos. Não pode ser esse nosso objetivo. Apenas um ponto deve ser ressal tado, a saber, que, na dimensão restrita da qual aqui nos ocupamos, o que à primeira vista se apresenta como uma alternativa excludente se estabelece no seio de uma coinci dência básica: se o sem-sentido em questão não é mera mente o das teses filosóficas, senão o dos próprios proble mas, pelo menos no que concerne ao significado decisivo do problema, para definir o que a filosofia seja, há coincidência com o que temos afirmado. Mais ainda, uma vez que a filosofia, redimensionada mediante a crítica que considera mos, não é propriamente “teoria”, mas uma “atividade es clarecedora”, tampouco aqui é necessário assumir uma al ternativa excludente. 2.4. A tese Diferenciaremos a seguir "proposição”, “proposição afir mada”, “tese”, “hipótese”, “tese a ser refutada” e “definição”. A proposição é um enunciado capaz de ser declarado verdadeiro ou falso. No conjunto das proposições, podemos diferenciar dois grupos, o das afirmadas e o das não-afirma- das. Nem toda proposição é necessariamente afirmada. En tre as proposições afirmadas situamos a tese. Uma hipótese é um candidato a tese. A tese pode, eventualmente, se apre sentar, de início, como uma hipótese que se confirma pela ulterior argumentação. Dependendo do caso, o autor pode dedicar relativamente pouco espaço à sua tese, concentran do-se nas alternativas a serem negadas. Distinguir entre tese e definição merece cuidado especial: a maioria das defini ções são meramente nominais e, portanto, nem verdadeiras 32 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS nem falsas, não tendo sentido concordar ou discordar delas. Baseados no que foi dito anteriormente, afirmamos agora: ser uma proposição é uma propriedade que o enunciado possui “em si”; ser uma tese, hipótese ou definição é uma função que ele assume ou não conforme o contexto. No caso do que poderíamos chamar de “teses filosófi cas”, elas cumprem, além das condições mencionadas, ine rentes a toda tese enquanto tal, uma terceira, a saber: elas são solução de um problema. O estabelecimento da tese principal de uma determinada obra depende, portanto, da correlativa fixação do seu problema básico.O que foi dito é muito simples, mas tudo indica que está longe de ser óbvio. Não é incomum situar a tese em um lugar privilegiado do saber filosófico, centrando nela o estudo do autor. Querer entender a tese filosófica sem o problema é, contudo, algo assim como querer entender a resposta sem a pergunta. A tese filosófica é, originária e essencialmente, res posta; ela só pode ser entendida em correlação com a pergun ta à qual responde. O ser-resposta não é parte de seu entorno pragmático contingente, mas de sua natureza lógica intrínseca; não é um acidente, algo que casualmente lhe acontece, senão que lhe é hermeneuticamente constitutivo. A atividade filosófica primária não é a afirmação ou negação de “teses em si”, mas sempre em seu vínculo com o problema5. A aparência de que o afirmar proposições é a atividade básica em filosofia é muito forte e se deve a que, inclusive para o próprio filósofo, o problema é dado como parte do legado histórico do qual ele nem sempre é plena mente consciente ou que, por ser-lhe óbvio, não considera necessário explicitar. 5. Poder-se-ia inclusive afirmar, como já fizemos acima ( I a, 2, 2.2), que a atividade filosófica básica é a própria formulação do problema. Os MOMENTOS ESSENCIAIS DO “ MODO FILOSÓFICO DE PENSAR” | 33 A atenção ao problema não é necessária apenas para ente-nder um filósofo em particular, mas também para per ceber a dinâmica própria do movimento filosófico ao longo da história. Se nos atemos apenas à tese, o devir filosófico se torna uma mera sucessão de opiniões cujo caráter essen cial é o não poder decidir valores de verdade (um modo de ver que, como já indicamos [Ia 2, 2.1], é quase onipresente ao iniciante). Entretanto, não se pode entender filosofia se a reduzimos a uma seqüência de pontos de vista diversos, já que a exata fixação do problema é elemento essencial para precisar o sentido da própria tese. Como regra geral, em filosofia não se contrapõe simples mente uma tese a outra. Quando o movimento filosófico é interpretado dessa forma, cria-se uma compreensão epidér mica dele. Ali onde, à primeira vista, parece haver uma mera oposição de teses, uma análise mais acurada mostra, não pou cas vezes, uma mudança na própria pergunta. Com muito menos freqüência do que se tende a acreditar, teses contra ditórias são soluções do mesmo problema. Mais do que sim plesmente negar uma tese e a contrapor a outra, o movimen to filosófico característico é a explicitação dos supostos tanto da tese quanto do problema, a qual termina conduzindo, não poucas vezes, à reformulação destes últimos. O devir filosófico contém uma certa continuidade, um certo sentido, algo assim como uma sedimentação concei tuai. O pensamento anterior nunca é simplesmente negado ou esquecido; ele é sempre “superado” e “integrado” no posterior. O devir não suprime, mas supõe o anterior, e constrói sobre sua base de formas diversas6. E certo que muitos grandes filósofos pretenderam apagar tudo e come 6. Em tal sentido, a história da filosofia está sempre contida na filosofia contemporânea. 34 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS çar do zero, mas sempre se tratou de pura ilusão. Caso tal fato prove alguma coisa, é só que grandes filósofos podem ser pequenos homens. A consideração da unidade que tese e problema compõem permite ver naquilo que, a princípio, parecia puramente descontínuo uma dinâmica interna e, in clusive, uma certa direção constitutiva daquilo que a filoso fia é. Que o trabalho filosófico essencial ao longo da história se concentra na inter-relação tese/problema, existindo nele uma continuidade e até uma direção, tem a ver com a pró pria natureza desse tipo de discurso: explicitar supostos é a forma primária na qual se manifesta o movimento reflexivo, característica básica do modo particular de racionalidade presente na filosofia (Ia, 3, 3.4). Alguns exemplos talvez ajudem a iluminar diferentes aspectos do que foi dito: 1. Geralmente se estabelece o vínculo entre Kant e Frege a respeito da natureza da aritmética como se o segundo simplesmente negasse uma tese que o pri meiro afirma e afirmasse uma tese que o outro nega. Assim, enquanto para Kant os juízos aritméticos são sintéticos a priori, para Frege tais juízos são analíti cos. O simples opor de teses encobre aqui, todavia, o que é o verdadeiro assunto e que só pode ser adequadamente fixado no contexto de uma coinci dência básica: tanto Kant como Frege aceitam que os juízos aritméticos são “informativos”. Contudo, dado o conceito kantiano de analiticidade, um juízo analí tico não pode ser informativo. Daí surge o problema crítico: em que se sustentam os juízos aritméticos já que, por não serem analíticos, não podem fazê-lo na lógica? Daí, por outro lado, a solução kantiana me diante o recurso à “intuição pura”. Daí, finalmente, o problema de Frege: como um juízo analítico pode OS MOMENTOS ESSENCIAIS DO “ MODO FILOSÓFICO DE PENSAR” | 35 ser informativo? Colocando as coisas desta forma, - • vê-se com clareza que Frege não está meramente afirmando o que Kant nega, mas sim revisando seus supostos, supostos que, mediante o conceito de analiticidade, remetem, em última instância, à teoria da proposição e, por meio dela, à própria concepção de lógica. 2. Entendida como “mera” tese, a negação da mudança por parte de Parmênides parece ser mais uma daque las excentricidades tão peculiares aos filósofos. Todo aluno de graduação “sabe” que, “obviamente”, Herá- clito “está certo”. O que falta aqui é a adequada compreensão do problema do eleata e, sobretudo, a consciência de sua importância. Haver explicitado a própria idéia de Razão ao descobrir o princípio de identidade como o seu elemento primeiro e definidor e, inversamente, haver entendido o dito princípio como exigência básica de toda inteligibilidade, é jus tamente o aporte parmenidiano decisivo. Uma vez que se toma consciência disso, surge o problema de que todo tipo de mudança e alteridade constitui algo irracional. A solução de Parmênides é, por conse- qüência, não as reconhecer como reais. Dado que, por outra parte, os sentidos nos informam da exis tência de ambas, eles não podem nos brindar mais que pura aparência. 2.5. O argumento e a fundamentação A tese é uma solução ao problema e implica um optar em que outras alternativas são descartadas. Tal optar parte da exigência de que a resposta seja “pertinente”, o que limi- 36 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS ta em boa medida toda arbitrariedade. Entretanto, é óbvio que isso ainda não basta. As vezes há várias respostas igual mente “pertinentes” para a mesma pergunta. Por que, então, o filósofo se decide por uma e não por outra? E aqui que os argumentos desempenham um papel essencial. O que legi tima a opção por uma determinada tese são os argumentos. Convém, portanto, determo-nos no conceito de “argumen to” e precisar o sentido no qual ele é um elemento essencial do philosophical way of thinking. Entre filósofos de procedência analítica, costuma-se di zer que o discurso filosófico é “argumentativo”. No entanto, afirmar que a filosofia é discurso argumentativo pressupõe que ela é “solução de problemas”. O prioritário na ordem lógica é o estabelecimento do problema. Ele é suposto es sencial tanto da tese como dos argumentos que conduzem à sua aceitação ou ao seu rechaço. Todavia, se por “argumentar” entendemos algo preciso, então ele consiste em uma inferência de valores de verdade. Uma vez aceita a definição anterior, segue-se que a idéia de “argumento” não esgota nem caracteriza suficientemente a ra cionalidade filosófica. Existem modos de “fundamentação” que não podem ser reduzidos a “argumentos” em sentido estrito. A diferença essencial entre ambos reside no elemento de reflexividade radical, necessariamente presenteem um caso, mas não no outro7. Um desses modos mencionados é a expli citação, a qual consiste em clarificar e precisar conceitos, teses, problemas e supostos de todos os tipos e gêneros. A análise lingüística ou semântica é um caso particular de explicitação8. 7. Poderíamos formular a mesma idéia estabelecendo o ponto essencial de outra forma, por exemplo distinguindo entre argumento e algoritmo. 8. A simples, simplíssima, distinção entre sentido e valor de verdade, lixada e desenvolvida nos últimos dois séculos, mostrou-se extremamente fecunda. Toda evolução filosófica ulterior (inclusive aquela que, eventualmente, Os MOMENTOS ESSENCIAIS DO “ MODO FILOSÓFICO DE PENSAR” | 37 A idéia do filosofar como “discurso argumentativo” é uma boa descrição do que, de fato, muitos analíticos produ zem como filosofia, ou seja, partem irrefletidamente de problemas “dados” e refutam outros com um certo refina mento técnico. A filosofia, contudo, é algo diferente de um jogo de engenho. Ela não se limita a desenvolver conseqüên- cias de pontos de partida pressupostos. A fundamentação (e argumentação) da tese nem sempre tem um caráter linear e facilmente reconstruível; às vezes ela assume formas muito refinadas. Em algumas ocasiões, entre os argumentos, encontra-se a derivação de conseqüên- cias. Toda tese contém conseqüências e também elas têm que ser verdadeiras. Teses são rechaçadas muitas vezes não por si mesmas, mas por suas conseqüências, outras vezes aceitas pelas conseqüências de sua eventual negação, porque se descartou toda outra alternativa etc. Não é incomum, por outra parte, que o principal “argumento” passe por uma explicitação dos supostos da tese rival, ou seja, aqueles que dão sentido ao problema, caso em que a argumentação da tese e a reformulação do problema terminam confluindo. 2.6. Questões de sistematicidade intrafilosófica A filosofia possui, por sua própria natureza, um anseio de totalidade. “Totalização”, porém, não é necessariamente sinô nimo de unificação intra-sistêmica. O “sistema” não é mo a supere) deve partir dela. Ora, é curioso que justamente filósofos provenien tes de uma tradição que contribuiu de modo decisivo para estabelecer a dis tinção mencionada, constituindo-a no eixo de uma concepção do fazer filosó fico, possam, por momentos, reduzir sua tarefa a mostrar que se p é verda deira, então q é verdadeira. Querer contra-argumentar dizendo que a elucida ção do significado é justamente o modo principal da argumentação filosófica é brincar com as palavras. Pelo menos, deve-se conceder que se caracterizou o discurso filosófico de modo inexato. 38 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS mento essencial do pensar filosófico (e muito menos o é a pedante exaustividade). Não obstante, boa parte do esforço de alguns filósofos está dirigida a ajustes na estrutura do edifício que constroem e daí, em tal sentido, à solução de um certo tipo de problemas que poderíamos denominar “imanentes". Esta tendência se intensifica nos períodos “epigonais”, quando as grandes idéias perdem sua força e potencial criativo. Ora, todo trabalho intra-sistemático não tem sentido em si mesmo, supondo, em última instância, um problema que, ainda que não livre de supostos, é extrínseco à própria sistematização. 2.7. Resumo: resultados e perspectivas Resumamos os resultados alcançados até agora. Qualquer que seja o autor, sempre temos que fazer três perguntas: a) qual é o problema? (e, dado que todo problema se for mula em uma pergunta, qual é, pois, a pergunta do autor?); b) qual é a solução ou resposta? (ou seja, qual é a tese ou conjunto de teses que ele propõe?); c) quais são os argumentos e fundamentos? (por que ele escolhe uma resposta e não outra?). Entre estas três perguntas, a primeira é a decisiva e a que dá sentido às duas restantes. A questão intra-sistemáti- ca, enquanto derivada, não haverá de ocupar mais nossa atenção a partir de agora. Afirmamos que a filosofia “tem problemas”, que é mo mento essencial do trabalho filosófico formulá-los e que, por tal motivo, tanto sua didática como sua metodologia de es tudo devem concentrar-se neles. Destacaremos agora, na di reção inversa, que se a fixação do problema é o objetivo primário da aprendizagem e do estudo da filosofia, isso ocor re porque ela é essencial para a própria filosofia. Os MOMENTOS ESSENCIAIS DO “ MODO FILOSÓFICO DE PENSAR | 39 Capítulo 3 Afinal, o que é filosofia? Primeiros elementos para uma resposta 3.1. Introdução A forma de entender o ensino e a aprendizagem da fi losofia remete a uma fixação do philosophical way of thinking. Os momentos fundamentais deste dependem, por sua vez, de como se concebe a filosofia. Pois bem, afinal de contas, o que é “filosofia”? Se, retomando o resultado do capítulo anterior, partimos da base que o problema é momento es sencial da atividade filosófica, as próximas perguntas são: 1. Por que ele ocupa esse lugar preponderante no pensar filosófico? Por que o fazer perguntas é para a filosofia e, em particular, para o seu devir, mais fundamental que (ou pelo menos tanto quanto) o respondê-las? 2. Existe algo que caracterize os problemas filosóficos enquanto tais, algum traço inerente a eles? 3. Por que os problemas filosóficos não são simples mente “dados”? Por que é necessário que sejam “cons truídos”? A filosofia não é outra coisa que a consumação plena da racionalidade. Uma razão que não culmine em filosofia é uma razão mutilada; um discurso filosófico irracional, uma contradição de termos. Ora, o que é “racionalidade”? 3.2. O conceito de racionalidade Se a filosofia é originariamente discurso racional, é im prescindível fixar em que ele consiste. E óbvio que a questão proposta não é suscetível de ser seriamente tratada em pou cas linhas; o que podemos, no atual contexto, é somente sublinhar alguns pontos de relevância prioritária: a. Discurso (ou pensamento) racional não é sinônimo de discurso (ou pensamento) “lógico”. A razão, certamente, não se opõe à lógica1, nem entra em conflito com ela, mas tampouco se identifica com ela. A lógica explicita a legalidade da razão, mas não a esgota, nem, portanto, consegue reduzi-la a um conjunto de regras. Dian te de toda regra, a razão segue estando “além”. Ela não pode ser “mecânica”. Todo algoritmo, na medida em que desen volve conseqüências a partir de supostos dados, não passa de um proceder “técnico”. b. Racionalidade é “esclarecimento" O discurso racional é esclarecedor; ele contém em si um movimento rumo ao esclarecimento. Razão significa transpa 1. Por “lógica” entendo a ciência assim denominada usualmente. 42 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS rência, e a presença do opaco só pode ser razoavelmente indicada a partir do limite desta transparência. Aquele que apela ao opaco para limitar a “arrogância da razão” mostra a própria arrogância na sua (implícita) pretensão de ser capaz de chegar ao limite da transparência. Seu dogmatismo não é de modo algum menor do que aquele do qual acusa seu oponente. Ele não faz outra coisa que substituir um absoluto por outro, a saber, o absoluto da Razão pelo abso luto da não-Razão, sem assumir de modo conseqüente, en tretanto, o ponto de vista da finitude e sua imanência cons titutiva. Pretender chegar ao limite da Razão não é outra coisa que uma forma rancorosa de negar a própria finitude. A aspiração à transparência só tem sentido como “idéia” na acepção kantiana: um ser finito é sempre realização parcial da racionalidade. c. Racionalidade é intersubjetividade A intersubjetividade não é um atributo da razão, mas um momento integrante de seu conceito. Um discurso ra cional que não seja em princípio intersubjetivo (e, do mes mo modo, um discurso intersubjetivo que não seja em prin cípio racional) é uma contradiçãode termos. Agora, se racio nalidade implica intersubjetividade, um discurso intersubje tivo é, em seu limite ideal, estritamente universal. d. Racionalidade é reflexividade “Reflexividade” é qualidade primária da razão. Discurso racional, diferentemente de discurso algorítmico ou “intra- sistêmico”, é discurso reflexivo. A função esclarecedora da A f in a l , o q u e é f il o s o f ia ? P r im e ir o s e l e m e n t o s p a r a u m a r e s p o s t a | 4 3 razão exige explicitar e tematizar todo suposto, o qual im plica um princípio de reflexividade radical que inclui a pró pria auto-reflexão. 3.3. A filosofia como culminação da racionalidade 3.3.1. Filosofia e esclarecimento A filosofia é um esforço para pensar com clareza, para lançar luz na penumbra. O que diferencia o filósofo da maioria dos mortais não é que ele pensa mais coisas ou outras coisas, ou que as pensa de um modo especial2, mas sim que ele pensa, simplesmente, de um modo mais claro. Essa clareza não é um dom dos deuses, senão que resulta de árduo tra balho intelectual. O filósofo pensa de um modo mais claro porque aprendeu a pensar de forma disciplinada e precisa. Se a clareza é o objetivo, a diferenciação e a delimitação são seus instrumentos. “Pensar racionalmente” é, em boa medi da, separar, distinguir, diferenciar3. Porque a filosofia é um discurso “esclarecedor”, a cla reza não é uma propriedade meramente desejável dele, mas parte essencial de seu próprio sentido. Uma filosofia vaga ou nebulosa é, simplesmente, filosofia de má qualidade. 2. As investigações dos últimos anos têm evidenciado o que se suspeita va: os filósofos não possuem um "terceiro olho”. 3. E usual escutar que a análise congela e isola as idéias. Nada mais injusto que isto. A análise não detém o pensamento, nem implica atomismo. Distinguir não é isolar, senão o primeiro passo imprescindível para estabelecer relações bem definidas. O todo é assim clarificado em cada uma de suas articulações. Quanto mais vinculadas se encontram duas idéias, mais necessá ria é a sua distinção. Em realidade, a análise só se opõe a confusão e vaguidade: pensamento confuso ou vago é aquele que não distingue onde é possível. 44 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS Um discurso confuso não é profundo, é apenas confuso. Confusão e vaguidade só podem ser admitidas como pri meiro estágio no caminho rumo a uma transparência ainda a ser alcançada. “Profundidade” é transparência. O niilismo conceituai, o vazio elegante, o impressionismo imagético, o apelo sinestésico, o malabarismo estetizante ou simples mente oco: tudo isto não é filosofia. Onde há verdadeira filosofia — e não somente moda cultural de feuilleton — o conteúdo está presente e, com ele, a necessidade de sua clarificação. A tarefa esclarecedora não é privativa nem da epistemo- logia, nem da lógica (e ainda menos da análise da linguagem), mas inerente à filosofia enquanto tal; ela é própria também da estética e da teoria política. Nem o discurso filosófico sobre arte é artístico, nem o discurso filosófico sobre a po lítica é político; ambos são filosóficos: arte e política são seus objetos, não seus meios. 3.3.2. Filosofia e intersubjetividade A filosofia é de princípio “compreensível”; ela não supõe intuições especiais, aptidões extraordinárias ou uma inteli gência fora do comum. Todo ser humano, enquanto ser ra cional, pode entender o discurso filosófico se reúne os pres supostos necessários para isso, ou, pelo menos, tem a pa ciência necessária para reuni-los4. A intersubjetividade de princípio do pensamento filosófi co não está presente apenas no seu resultado, mas também no seu percurso construtivo. Ao contrário do que se tende a crer, 4. A ansiedade é inimiga da filosofia. O acompanhamento medicamentoso se torna, em alguns casos, recomendável. A f in a l , o q u e é f il o s o f ia ? P r im e ir o s e l e m e n t o s p a r a u m a r e s p o s t a | 45 o pensamento filosófico é uma atividade coletiva, não indivi dual; a filosofia, um modo de práxis essencialmente social. 3.3.3. Filosofia e algoritmo A filosofia não é um discurso nem puramente inferen- cial nem puramente algorítmico. A redução da racionalidade ao “lógico” assemelha de tal forma a filosofia a outros modos de pensar, que chega a ameaçá-la com a perda de sua espe cificidade. Todo modo de racionalidade não-filosófico con tém algo de inercial: ele “aplica” a Razão. Na filosofia, pelo contrário, a Razão não é apenas aplicada, é “construída”; não há nada “mais alto”. 3.3.4. Filosofia e reflexividade Por ser um discurso originariamente reflexivo, a filosofia é encarnação radical da razão. Diz-se que filosofar é pensar sem supostos. Essa tese é em si falsa, ainda que contenha um núcleo de verdade. Existem boas razões para crer que não é possível pensar sem supostos, e que nem sequer a filosofia o consegue. Porém, o que é certo é que o pensar fi losófico possui com a idéia de supostos uma relação sui generis: parte principal de sua tarefa é explicitá-los. Poder- se-ia dizer que a filosofia não ilumina aquilo que está em nossa frente, senão aquilo que fica a nossas costas. Nossas crenças mais básicas são ao mesmo tempo as mais difíceis de explicitar. A dificuldade específica de compreen são da filosofia, dificuldade que, paradoxalmente, reside em boa parte na extrema simplicidade de seu modo de pensar, começa com o reconhecimento de que seus problemas são 46 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS efetivamente tais. The philosophical way of thinking é tão difícil por ser tão simples. Em um certo sentido, o filósofo se ocupa com a explicitação do óbvio. Na medida em que ele descobre o suposto como suposto, tematiza e problematiza o óbvio, descobrindo que neste se encerra uma dificuldade. Agora, se a filosofia é explicitação do óbvio, ela não é certa mente uma coleção de trivialidades. A tomada de consciência do óbvio encontra-se nos antípodas de toda ingenuidade. A essencialidade do problema na filosofia não é um mero fato a ser constatado, senão uma necessidade que funde suas raízes na própria natureza do que a filosofia seja. Ela é a conseqüência do caráter primariamente reflexivo do discur so filosófico. Se a existência de um problema é condição mínima do filosofar, nem todo problema faz um grande filósofo. Com respeito à relevância de um problema, há algo assim como critérios objetivos. Os grandes filósofos são os grandes proble- matizadores: eles descobrem um problema decisivo ali onde não se percebia nenhum. A explicitação de supostos efetuada pela filosofia consu ma a reflexividade radical inerente à razão, sendo por inter médio desta que ela constitui seus problemas. O pensamen to filosófico é originariamente reflexivo. O filósofo jamais perde de vista o mundo; porém, isso é diferente de um permanente refazer a filosofia a partir da sua consideração direta ou de ignorar que ele só está dado ao pensamento como objeto a ser refletido. E por esse motivo, por derivar da reflexão, que o problema filosófico não é simplesmente dado, mas tem de ser “construído”. A explicitação de supos tos (e não apenas da tese, mas inclusive do problema ante rior) é o que conduz ao novo problema. Descartes muda o conceito aristotélico de substância. Uma vez estabelecido seu novo conceito, ele se pergunta A f in a l , o q u e é f il o s o f ia ? P r im e ir o s e l e m e n t o s p a r a u m a r e s p o s t a | 47 que substâncias há no mundo. Responde dizendo que há duas substâncias que são absolutamente heterogêneas: alma e corpo e, coloca assim a ulterior dificuldade de explicar como se relacionam. Tentar superar a mencionada dificulda de será o próximo movimento. Spinoza, radicalizando o conceito cartesiano, afirmará que só há uma substância e que alma e corpo nãosão mais que dois de seus atributos, entre outros; Malebranche, por sua vez, dirá que Deus cria permanentemente o mundo e, nesse sentido, a cada instante coloca de modo direto as substâncias em relação; Leibniz, insistindo na unidade como elemento definitório da substân cia, vai afirmar que existe uma harmonia preestabelecida entre elas; Berkeley, que só há uma substância, o espírito; Lamettrie, que só há uma substância, o corpo etc. Visto retrospectivamente, o que se opera ao longo desse movi mento é uma exploração sistemática de possíveis soluções às dificuldades do dualismo cartesiano. Se observamos mais detidamente, em todos os casos a nova tese não apenas se opõe à anterior, mas passa por uma revisão do próprio con ceito de substância. A validade deste, não obstante, perma nece fora de toda dúvida. O passo decisivo neste ponto será dado por Hume quando, em vez de tentar uma nova respos ta para o problema do vínculo entre as substâncias, estabe lece um questionamento de princípio quanto à legitimidade do próprio conceito de substância. Não se trata já de corrigi- lo, mas de abandoná-lo. Purgada por Hume, a questão alma- corpo deixa de ser metafísico-ontológica e passa a referir-se de forma exclusiva aos fenômenos. Contudo, ela não desapa rece totalmente, pois, ainda que neguemos o conceito de substância, físico e psíquico parecem ser incomensuráveis. Rebelando-se contra toda redução do segundo ao primeiro, mesmo aquela que pretende aceitar entidades psicofísicas, 48 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS Brentano afirmará a especificidade irredutível do físico e do psíquico enquanto fenômenos (com independência da ques tão de seu status substancial ou não). E óbvio que, em tal contexto, a dificuldade de dar conta da sua relação subsiste. Porém, se, retomando a inspiração spinozista, partirmos da unidade do físico e do psíquico (considerados agora enquan to fenômenos), parecerá então que tal dificuldade torna-se superável. Primeiramente Mach, sobretudo Natorp e, poste riormente, Scheler e Cassirer procurarão nessa direção. Teremos, agora sim, alcançado a solução definitiva do pro blema cujos estágios temos esboçado? De modo algum. Na realidade, a única coisa que fizemos foi reformular, em um novo nível, a dificuldade básica de todo “monismo”: não a união do diverso, mas a divisão do homogêneo. Se partirmos de uma unidade primitiva, os problemas não desaparecem, antes se deslocam para explicar como “do mesmo” surge “um outro”. A unidade fenomênica, portanto, longe de ha ver eliminado todo problema, simplesmente criou um novo. Na filosofia nunca chega o momento de dizer: "... e viveram felizes...”; para o trabalho reflexivo não há “redenção”. 3.4. Filosofia, cultura e sociedade Porque a racionalidade é sempre tomada de consciência, a filosofia é essencialmente libertadora. Ela não dá novos grilhões. Uma cultura que não possua filosofia ou uma edu cação que não a ensine (e que, não obstante, pretendam valorizar o “espírito crítico”) não são mais que uma incoe rência. A filosofia cumpre uma função imprescindível no conjunto da cultura e, por isso, no seio da sociedade. Al guém tem que assumir essa função. Se não queremos que A f in a l , o q u e é f il o s o f ia ? P r im e ir o s e l e m e n t o s p a r a u m a r e s p o s t a | 49 seja a filosofia, podemos lhe dar outro nome; o estado de coisas fundamental não se altera por isso. Isto implica, por outro lado, claro está, que quando o filósofo renuncia à sua tarefa, deixando de ser guardião da racionalidade, ele perde sua função social e a filosofia, sua legitimação como momen to necessário e irredutível da cultura. 5 0 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS Capítulo 4 O texto 4.1. Como se lê um texto filosófico? Existem duas perspectivas possíveis sobre um texto — leitura e produção —, sendo que uma percorre o movimento inverso da outra. A produção de um texto tem como ponto de partida uma estrutura lógica que tenta se realizar numa forma literária. Produzir um texto é proporcionar uma for mulação literária adequada a uma certa estrutura lógica; ler um texto é efetuar o movimento inverso, ou seja, partir de uma certa estrutura literária e tentar chegar a uma estrutura lógica1. Os manuais de metodologia filosófica concentram-se na primeira perspectiva. Um manual de aprendizagem e en sino da filosofia deve se concentrar na segunda (Ia, 4, 4.3.1). Há uma interação — embora esta não signifique identi dade ou implicação necessária — entre como se lê e como se produz um texto. Bons hábitos de leitura se refletem em uma produção satisfatória de texto, assim como vícios de 1. Mais adiante teremos que corrigir esta noção de “texto” à luz da proposta de uma distinção entre texto e escrita ( I a, 6, 6.1). produção são quase sempre também de leitura. Dois deles são extremamente comuns: o “periodismo filosófico” e o “literaturicismo”. 1. Um texto filosófico não é uma narração na qual se contam coisas, porém não é nada fácil perceber que não o seja. Podemos ler a “dedução transcendental” como um pas seio pelo bosque no qual, em vez de árvores, se descrevem “estruturas transcendentais”. O que está errado aqui é a “an tecipação hermenêutica”, a própria categorização do que esta mos lendo. Um texto filosófico não contém “notícias”, pois sua finalidade não é transmitir “informações”2. Conseqüente- mente, a sua leitura tampouco pode consistir em informar-se ou a respeito do texto ou daquilo que ele diz, nem em infor- mar-se com o autor, nem em informar-se sobre o autor (o autor fala de..., diz que...). Ao texto lido como “fonte de informa ções” devemos opor o texto como “objeto de análise”. 2. Ler ou produzir um texto filosófico é algo essencial mente diferente de ler ou produzir um texto literário. Assim como muitas leituras não passam de uma apreensão pura mente literária do texto, muitos textos “filosóficos” não são outra coisa que meras peças literárias. Eventualmente, eles são textos “bem escritos”, “oportunos”, ou o que se queira, mas não efetuam uma verdadeira contribuição no âmbito da pesquisa ou do aprofundamento conceituai. A formulação literária não é em filosofia a finalidade, mas apenas uma ferramenta de comunicação. Elegância de esti lo é desejável, porém não é essencial, sendo aquilo que, caso necessário, deve ser sacrificado. A elegância de estilo, não poucas vezes, se constitui em inimiga do rigor e da 2. E por isso que pode haver revistas filosóficas melhores ou piores, mas não “sensacionalistas” . 52 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS precisão. Fragilidades, saltos, carências e lacunas podem ser mascarados literariamente. Nível literário e nível lingüístico do texto não são a mes ma coisa. É provável que não exista pensamento sem lingua gem e que aquilo que temos chamado de estrutura “lógica” esteja essencialmente vinculado à estrutura lingüística. De qualquer forma, isso é diferente de dizer que a expressão literária é prioridade para o pensamento filosófico (e, muito menos, que a filosofia seja um gênero literário). E óbvio que um mesmo pensamento pode encontrar formulações literá rias diversas igualmente adequadas, assim como ordem de exposição e estilo, que são opções pessoais. Deveria ser óbvio, também, que um pensamento pode ser acabado, sutilmente elaborado e, não obstante, não lograr uma formulação literária satisfatória. Simples notas são capazes de conter idéias filo sóficas decisivas. 4.2. A compreensão do texto Ainda que seja possível diferenciar, em princípio, entre os modos de abordagem do estudo da filosofia e do texto filosófico, existe entre ambos um vínculo estreito. A idéia condutora será aqui, novamente, a de problema. O objetivo da leitura do texto filosófico deve ser, pri mordialmente, “entender”3. Isto não é óbvio, já que, de fato,há outros objetivos possíveis, como “informar-se”, “tomar conhecimento” ou “assumir posição” em relação ao escrito. O importante é que qualquer outro objetivo pressupõe com preender o texto, o que, como conseqüência, sempre é a 3. Uso os termos “entender” e “compreender” como sinônimos. O t e x t o | 53 finalidade básica, parte analítica do próprio conceito de “lei tura, de um texto filosófico”. No entanto, 1. O que é “entender" um texto? 2. O que é o “entendido”? 3. Por que às vezes não entendo e que devo fazer quan do isso acontece? 4. Quais são os critérios para saber se entendo ou não do modo correto? 4.2.1. O que é "entender" um texto? O termo “entender” possui um sentido subjetivo e um objetivo: no primeiro, ele é um sentimento de saber do que se trata, de não ter dúvidas; no segundo, uma habilidade intersub- jetivamente acessível e controlável, que pode assumir diferen tes formas em função de sua complexidade intelectual: a) Entender é “compreensão literal”, é ser capaz de repetir o texto. b) Entender é “parafrasear”, ou seja, ser capaz de efe tuar a reprodução não-literal do texto, substituindo alguns termos dele por sinônimos e equivalentes. Isto é o que usualmente se chama de “dizer com minhas próprias palavras”. No fundo, continuamos diante de uma repetição, na qual apenas foram introduzidas, de modo aleatório, algumas mudanças puramente literárias. c) Entender é assimilação das regras que possibilitam a reprodução de estilo. Tanto na repetição textual como na paráfrase, não se produz nada novo. Existe, contu do, um terceiro sentido do entender objetivo que con serva essa característica de um modo “refinadamente perverso”. O leitor não pretende, neste caso, tão-só 54 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS reproduzir o texto enquanto peça literária, mas elabo rar um novo discurso que atinja o próprio conteúdo. A pretensa novidade, no entanto, é um engano ou uma ilusão. Muitos textos que, presumivelmente, es tão destinados a falar de um autor, na realidade, falam “como” ele. Seu resultado efetivo não é entender o texto, mas imitá-lo. Do mesmo modo que diferencia mos entre “tema” e “problema”, temos de diferenciar também entre “problema” e “estilo”. O objetivo da análise filosófica não é falar “como”, mas falar “de” Heidegger ou “de” Hegel, entendendo o que eles di zem como resposta a seus respectivos problemas. Tam bém Heidegger ou Hegel têm um problema; também Ser e tempo ou A ciência da lógica são resposta. E simplesmente uma desculpa preguiçosa dizer que a doutrina de um autor não admite nenhuma outra formulação literária que aquela que ele efetivamente emprega. Se fosse assim, então só se poderia falar “como” Heidegger ou “como” Hegel, em alemão, que não é o que de fato se faz. d) O verdadeiro entender em sentido objetivo jamais se limita a reproduzir a literalidade do texto, senão que supõe uma independência em relação a ela, situando- se, por tal motivo, além de toda mera repetição, pa ráfrase e imitação. Entender é “traduzir”; ter enten dido um texto é ser capaz de poder oferecer uma “tradução” dele. No entanto, não é qualquer tradução que constitui um entender. Para que o seja, ela deve representar um ganho em relação ao original; deve ser mais explícita e, inclusive, se possível, mais clara e até mais precisa, que aquele. Justamente porque na tra dução se explicita o texto, todo texto tem, em prin cípio, infinitas traduções, não existindo uma que seja O TEXTO | 55 definitiva. Finalmente, é minha capacidade de tradu- . zir o texto o que me permite “explicá-lo” a outros, ou seja, fazê-lo compreensível para Maria e João. Se entender é traduzir, uma verdadeira tradução é capaz de “tornar comensurável”, dito de outro modo, de recodificar um texto escrito em uma linguagem para outra ou, eventual mente, para uma terceira linguagem comum a ambas, de forma tal a possibilitar a tematização de similitudes, identi dades, diferenças etc. Traduzir implica a possibilidade de retraduzir. Isto não quer dizer que exista algo assim como uma linguagem última, mas apenas afirmar que sempre são formuláveis linguagens comuns. Os mesmos problemas rea parecem de um lado e do outro do Rubicão, ainda que ves tidos em trajes diferentes. Fazer filosofia é poder mostrar as continuidades e identidades entre Frege e Husserl, não menos que entre Wittgenstein e Heidegger. No mundo das especia lizações é essencial não perder de vista que a filosofia foi e segue sendo uma. A razão desse fato é que a reflexão radical não pode ser “monádica” (compare-se Ia, 3, 3.3.2 e 3.3.4). “O entendido” é o sentido do texto. Tal sentido nada tem a ver com intenções subjetivas do autor, senão que constitui uma unidade objetiva4. O autor ingressa no texto unicamente como “fator de finitude” que delimita a parte do universo da significação presente nele. Da perspectiva de um acesso finito a esse universo, o elemento da facticidade nunca pode ser desconhecido, porquanto é a partir dele que é possível fixar a significação “realizada”5. Entretanto, enten 4. Peço ao leitor que não confunda a distinção entre o entender e o entendido com a distinção entre um sentido objetivo e um subjetivo do “enten der”. O entendido é sempre objetivo, o entender o é só às vezes. O conceito de “objetivo” presente em um caso e em outro não é exatamente o mesmo. 5. A historicidade é um modo básico de facticidade e está essencialmen te ligada à finitude ( I a, 5, 5.1 e 5.2). 56 | A FILOSOFIA E SEUS PROBLEMAS der não é explicar (nem histórica nem psicologicamente) o texto: é explicitar o seu sentido; não o porquê, mas o que é dito. O sentido do texto nunca está oculto ou para além do texto, mas presente nele, ainda que nem sempre de um modo explícito. O que o autor “queria dizer”, ele o disse. 4.2.2. Por que às vezes não entendo, e o que devo jazer quando isso acontece? O não-entender é sempre superável; não há um não- entender que seja “de princípio” e remeta a uma espécie de incompetência “crônica”. Este fato, certamente, possui um aspecto encorajador: devemos confiar sempre em nossa ca pacidade de vencer as eventuais dificuldades de leitura. Ora, não se trata de promover no leitor uma espécie de “heroís mo intelectual” que não desiste diante do adverso. Trata-se de algo diferente. O não-entender sempre é superável devi do a que ele sempre tem um porquê: quando não se enten de, não se entende por alguma razão. Em geral, o que se faz quando não se entende é simples mente voltar a ler. Este procedimento é, sem dúvida, reco mendável quando a dificuldade surgiu de uma mera falta de atenção. Não obstante, em outras situações extremamente comuns ele é cego. A atitude certa é sempre determinar com toda a precisão possível o que não entendo e, em segun do lugar, o porquê não entendo. Uma importante causa do não-entender não diz respeito à filosofia, mas à falta de conhecimentos adequados da pró pria língua. Não é esse não-entender que nos interessa agora. O não-entender de natureza propriamente filosófica é, em geral, a conseqüência de que algo não está explicitado no O TEXTO | 57 texto, ainda quando constitua sua premissa, ou, em termos mais -genéricos, de que, em realidade, não possuímos os pressupostos necessários. Em tal caso é recomendável sus pender de modo provisório a leitura do texto até possuir uma formação adequada. Ninguém ousaria tentar entender um tratado matemático sobre cálculo sem conhecer as re gras elementares da aritmética. Porém, algo assim é o que muitas vezes se pretende em filosofia. E pura perda de tem po insistir na leitura de textos para a compreensão dos quais ainda não se possui os pressupostos necessários. Se, mesmo assim, por um motivo contingente qualquer, não podemos deixar de procurar entender um texto específico,
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