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Por uma Nova Razªo Teológica. A Teologia na Pós-Modernidade Paulo SØrgio Lopes Gonçalves UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS Reitor Aloysio Bohnen, SJ Vice-reitor Marcelo Fernandes de Aquino, SJ Instituto Humanitas Unisinos Diretor InÆcio Neutzling, SJ Diretora adjunta Hiliana Reis Gerente administrativo Jacinto Schneider Cadernos Teologia Pœblica Ano 2 N” 17 2005 ISSN 1807-0590 ResponsÆvel tØcnica Cleusa Maria Andreatta Revisªo MardilŒ Friedrich Fabre Secretaria Caren Joana Sbabo Editoraçªo eletrônica Rafael Tarcísio Forneck Impressªo Impressos Portªo Editor Prof. Dr. InÆcio Neutzling Unisinos Conselho editorial Profa. Esp. Àgueda Bichels Unisinos Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta Unisinos Prof. MS DÆrnis Corbellini Unisinos Prof. MS Gilberto Antônio Faggion Unisinos Prof. MS Laurício Neumann Unisinos MS Rosa Maria Serra Bavaresco Unisinos Esp. Susana Rocca Unisinos Profa. MS Vera Regina Schmitz Unisinos Conselho tØcnico-científico Profa. Dra. Edla Eggert Unisinos Doutora em Teologia Prof. Dr. Faustino Teixeira UFJF-MG Doutor em Teologia Prof. Dr. JosØ Roque Junges, SJ Unisinos Doutor em Teologia Prof. Dr. Luiz Carlos Susin PUCRS Doutor em Teologia Profa. Dra. Maria Clara Bingemer PUC-Rio Doutora em Teologia Profa. MS Maria Helena Morra PUC Minas Mestre em Teologia Profa. Dra. Maria InŒs de Castro Millen CES/ITASA-MG Doutora em Teologia Prof. Dr. Rudolf Eduard von Sinner EST-RS Doutor em Teologia Universidade do Vale do Rio dos Sinos Instituto Humanitas Unisinos Av. Unisinos, 950, 93022-000 Sªo Leopoldo RS Brasil Tel.: 51.5908223 Fax: 51.5908467 www.unisinos.br/ihu Cadernos Teologia Pœblica A publicaçªo dos Cadernos Teologia Pœblica, sob a responsabilidade do Instituto Humanitas Unisinos IHU, quer ser uma contribuiçªo para a relevância pœblica da teologia na universidade e na sociedade. A Teologia Pœblica busca articular a reflexªo teológica em diÆlogo com as ciŒncias, culturas e religiıes, de modo interdisci- plinar e transdisciplinar. Busca-se assim a participaçªo ativa nos debates que se desdobram na esfera pœblica da sociedade. Os desafios da vida social, política, econômi- ca e cultural da sociedade hoje, especialmente a exclusªo socioeconômica de imensas camadas da populaçªo, constituem o horizonte da teologia pœblica. Os Cadernos de Teologia Pœblica se inscrevem nesta perspectiva. I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA Por uma Nova Razªo Teológica. A Teologia na Pós-Modernidade Paulo SØrgio Lopes Gonçalves Introduçªo Objetiva-se, neste texto, apontar a maneira de se produzir teologia na Pós-modernidade. Justifica-se este objetivo pela constataçªo de que hÆ uma crise da metafí- sica no contexto atual incidente no sistema teológico, questionando conceitos bÆsicos da teologia cristª e tra- zendo à tona o desafio de se formular um complexo teóri- co em um contexto marcado pela manifestaçªo da dife- rença, do pluralismo, da transversalidade, do nomadis- mo epistemológico. Assim sendo, nªo Ø mais possível à teologia fundamentar-se em categorias fixas, em concep- çıes imutÆveis e distantes da dialØtica subjacente na for- mulaçªo de pensamentos para desenvolver seus concei- tos e seus argumentos. Torna-se necessÆrio entrar no cli- ma intelectual atual, articulando as categorias emergen- tes com a fØ, cujo conteœdo estÆ presente na regula fidei1 que serve como elemento operacional na elaboraçªo de uma teologia, capaz de ser sempre contemporânea a um determinado período histórico. Para atingir esse objetivo, apresentar-se-Æ o status quaestionis da Pós-modernidade, sua relaçªo filial com a I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS 1 GON˙ALVES, P.S.L., Liberationis Mysterium. O projeto sistemÆtico da teologia da libertaçªo analisado à luz da Regula fidei. In: ANJOS, M.F. (ed.). Teologia em Mosaico. Sªo Paulo: SantuÆrio, Aparecida, 1998. p. 123-36. Regula fidei Ø um elemento antigo da teologia que permite professar a fØ no Deus criador de todas as coisas, no Filho, redentor e salvador de todos os seres humanos, no Espírito transformador e santificador de toda a cria- çªo e na Igreja uma, santa, católica e apostólica, presente no mundo para ser sacramento de salvaçªo universal. Modernidade, suas novidades epistemológicas, históricas e antropológicas, bem como se mostrarÆ a produçªo teo- lógica, marcada pela conceituaçªo de teologia como ciŒncia e como reflexªo crítica da fØ, pela constataçªo da historicidade da teologia e pela necessÆria incidŒncia na teologia na Pós-modernidade, sem fundamentar-se em preconceitos, mas total espírito de abertura e diÆlogo, tendo em vista assumir os sinais dos tempos. Em seguida, desenvolver-se-Æ o significado da teo- logia na Pós-modernidade, assumindo a hermenŒutica teológica como via teórica a ser seguida na referida pro- duçªo e suscitando os pontos subjacentes ao estatuto epistemológico da teologia na atualidade. 1 O status quaestionis da Pós-modernidade Conceituar a Pós-modernidade nªo Ø tarefa fÆcil em funçªo da diversidade epistemológica em torno do próprio conceito. Em termos interrogativos: SerÆ a Pós-modernidade uma total recusa da Modernidade? Com a emergŒncia da Pós-modernidade, decreta-se o fim da Modernidade? Ou serÆ que a Pós-modernidade Ø uma outra face da Modernidade? É possível afirmar a Pós-modernidade como um verdadeiro paradoxo de ruptura e continuidade com a Modernidade? Intui-se que responder a essas questıes, implica suscitar as características fundamentais da Modernida- de, porque, sem sua compreensªo, Ø impossível concei- tuar Pós-modernidade. A Modernidade Ø filosoficamen- te um estado de espírito denotativo de um profundo an- tropocentrismo que superou histórica e filosoficamente o teocentrismo característico do período medieval e do cosmocentrismo da Antigüidade. A proposiçªo cartesia- na penso logo existo explicitou que o pensar moder- no, centrado no ser humano livre, autônomo, funda- mentado na matemÆtica moderna, sustentada no limite metódico da dœvida, Ø condiçªo da existŒncia humana. Dessa forma, o conhecimento oriundo da relaçªo do su- jeito com o objeto, Ø inato ao ser humano e imbuído do poder de externar, no objeto, o conteœdo da subjetivi- dade racional humana2. Em contraposiçªo a essa pro- posiçªo, mas simultaneamente presente na rota da Mo- dernidade, o pensamento empirista afirmou ser todo o 6 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA 2 DESCARTES, R. Discurso sobre o mØtodo. Para bem conduzir a própria razªo e procurar a verdade nas ciŒncias. In:. Descartes. Sªo Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 25-71. (Os Pensadores). conhecimento oriundo do objeto, tornando, assim, o su- jeito humano œnica e exclusivamente reflexo do mesmo objeto3. Diante dessas posiçıes antagônicas, o idealismo kantiano emergiu como um pensamento sintØtico que deu primazia ao sujeito humano no ato conhecimento. Admitiu-se, entªo, a existŒncia de um grau de conheci- mento inato ao ser humano, mas um outro grau presente no objeto cognoscível. Em sua capacidade de elaborar juízos, o ser hu- mano produz os juízos sintØticos a priori e os juízos sintØti- cos a posteriori. Os primeiros correspondem àqueles co- nhecimentos inatos ao ser humano e uma capacidade de manter autonomia diante do objeto. Os segundos deno- tam a capacidade humana de formular conhecimentos, cuja origem se encontra no objeto cognoscível. Essa teo- ria do conhecimento denotou a primazia da subjetivida- de humana na constituiçªo da razªo moderna, superan- do a razªo teocŒntrica prØ-moderna e equivalendo à mo- ral com a religiªo4. Desse racionalismo idealista de cono- taçªo moral, emergiu o racionalismo idealista sistŒmico, apoiado na dialØtica de pólos conflitivos, cuja existŒncia só Ø possível quando hÆ o conflito. Assim,a tese jÆ con- tØm dentro de si a sua antítese, e o conflito entre ambas origina a síntese concebida como nova tese que, por sua vez, jÆ possui intrinsecamente uma nova antítese, e o novo conflito propicia a emergŒncia de uma nova sínte- se. Essa dialØtica denota um sistema em que existem dois pólos opostos, cujo sentido estÆ na contraposiçªo entre eles a fim de que surja, mediante a contradiçªo, a síntese cognitiva5. A Modernidade criou nªo apenas uma nova teoria do conhecimento fundamentada na subjetividade e no empirismo, com primazia do idealismo, mas tambØm uma nova concepçªo de ciŒncia. Na perspectiva prØ-mo- derna, a ciŒncia era baseada na filosofia platônico-agosti- aniana que admitia a existŒncia de dois mundos, um ideal e um real, um superior e um inferior, estabelecidos hie- rarquicamente, bem como na metafísica aristotØli- co-tomista que, fundamentada na especulaçªo, conce- beu um mundo ontologicamente constituído e visto, com base em um conceito previamente formulado. A concep- çªo moderna de ciŒncia apoiou-se no racionalismo sub- jetivista e empirista e elaborou uma tríplice dimensªo ci- entífica: a hipótese, a observaçªo e a verificaçªo. A subje- 7 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS 3 HUME, D. Investigaçªo acerca do entendimento humano. In:. Berkeley e Hume. Sªo Paulo: Nova Cultural, 1992. p. 55-145. (Os Pensadores). 4 KANT, I. Crítica da Razªo Pura. In: Kant(II). Sªo Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 5-245. (Os Pensadores). 5 HEGEL, F. Fenomenologia do Espírito(I-II). Petrópolis: Vozes, 1992. tividade se corporifica na experiŒncia, compreendida como objetivaçªo das potencialidades humanas obser- vadas pelo próprio sujeito humano, verificando-se a pla- usibilidade em sua eficÆcia prÆtica. A ciŒncia moderna emergiu, entªo, com um profundo carÆter messiânico, capaz de superar todos os outros dois estÆgios jÆ experi- mentados pelos seres humanos, o religioso efetivamen- te arcaico e ultrapassado, porque afirmava a fØ no sobre- natural, comprovada pela ciŒncia moderna como nªo existente e o filosófico denominado tambØm como contemplativo e visto modernamente como inadequado aos novos tempos e solucionar todos os problemas sus- citados pela humanidade6. AlØm do racionalismo subjetivista e do cientificis- mo positivista, a Modernidade trouxe à tona uma nova fi- losofia política, fundamentada em uma concepçªo antro- pológica e social de cunho liberal. Ao dar-se conta de sua subjetividade e de sua condiçªo de sujeito, o homem mo- derno concebeu a história como campo dos aconteci- mentos humanos, vendo a si mesmo como sujeito e pro- dutor de história. Compreendeu, entªo, a possibilidade de levar a cabo uma nova concepçªo de estado, fundada nªo mais no teocentrismo, que possibilitou a organizaçªo de sociedades teocrÆticas e de um estado dependente da religiªo hegemônica. O estado moderno surgiu com uma característica liberal, alicerçada na condiçªo natural do ser humano carente de sistematizaçªo e de proteçªo. Vis- to, œnica e exclusivamente, em sua natureza, o ser huma- no Ø miserÆvel e selvagem, efetuando um conjunto de guerras de uns homens contra outros. Nesse sentido, nªo hÆ paz entre os homens, mas apenas e tªo somente a guerra. Diante dessa anÆlise naturalista do homem, surgiu a teoria do Leviatª, um estado visto como totalidade so- berana imbuída de todo poder sagrado e profano e que tem nos homens os seus sœditos. Na luta contra a nature- za hostil e guerrilheira, se estabelece uma aliança, um contrato entre o estado cabeça e os homens sœditos corpo , tendo em vista pôr fim à guerra de todos contra todos7. No entanto, essa concepçªo naturalista de ho- mem nªo foi inteiramente aceita. Emergiu a concepçªo acerca da desigualdade social, física e social. A primeira compreendia as diferenças apoiadas na natureza de ida- de, força corporal e disposiçªo anímica; a segunda cor- 8 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA 6 COMTE, A. Curso de filosofia positiva. In: Comte. Sªo Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 1-39. (Os Pensadores). 7 HOBBES, T. O Leviatª. In: Hobbes. Sªo Paulo: Nova cultural, 1997. (Os Pensadores). respondia à preocupaçªo com a desigualdade moral e política. Constatava-se que o primeiro nível de desigual- dade era aceito por qualquer perspectiva de pensamen- to, mas o segundo escapava à lógica leviatana e surgia, entªo, uma concepçªo liberal de política. Aderia-se a uma idØia paradisíaca de natureza hu- mana, pela qual se poderia imaginar uma saœde univer- sal que anularia a debilidade, o predomínio das virtudes da sensibilidade, das relaçıes sexuais puramente animais e sem complicaçıes, da independŒncia dos homens em sua linguagem e em sua produçªo jÆ que nªo existem as indœstrias e as conseqüentes relaçıes de trabalho. Quando os homens ultrapassam o estado natural, criam situaçıes de senhorio e de servidªo, de violŒncia e de rou- bo, mostrando-se como maus e cheios de avareza e am- biçªo. Ademais, deu-se continuidade ao mal emergente após a saída do estado natural e, por meio das leis e do estado, foram criados outros trŒs grandes males: a proprie- dade privada, que possibilitou a criaçªo de ricos e po- bres; a autoridade, que propiciou a emergŒncia de domi- nadores e dominados; a degeneraçªo do poder na arbi- trariedade, que deu origem aos senhores e aos escravos. A superaçªo dessa desigualdade social ocorreu por meio da elaboraçªo da concepçªo de governo civil, isento do substrato religioso regulador e capaz de estabe- lecer uma crítica às teorias da monarquia absoluta e de fundamentar a autoridade política à luz da liberdade mo- derna. Todos os homens sªo livres e, pelo seu trabalho, possuem o direito à propriedade privada e ao reconheci- mento de sua individualidade, porØm, sem a sociedade política, torna-se impossível a efetividade dos direitos e dos deveres humanos. Assim, o governo civil emerge pela vontade e determinaçªo da maioria dos homens, portanto possui uma fisionomia consensual, tendo sus- tentaçªo na maioria eleitora8. Paralelamente à concepçªo de governo civil, sur- giu a idØia de contrato social que coloca a liberdade na- tural em consonância com a ordem estatal. O contrato social ocorre quando cada indivíduo se entrega a si mes- mo, com tudo o que possui, como um bem comum à di- reçªo de suprema vontade geral. Emerge, entªo, uma pessoa pœblica, uma corporaçªo total animada, deno- minada povo, o œnico portador de soberania. Para que seja efetivado o contrato social, torna-se necessÆria a rea- 9 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS 8 LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o Governo. Ensaio relativo à verdadeira origem, extensªo e objetivo do Governo civil. In:. Locke. Sªo Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 212-313. (Os Pensadores). lizaçªo de uma educaçªo correta, pela qual o ser huma- no deve ser mantido distante das influŒncias de defor- maçªo e próximo de todo elemento disponível ao ama- durecimento da boa disposiçªo natural que reside em cada homem9. Diante do exposto, constata-se que, em sua teo- ria do conhecimento, em sua concepçªo de ciŒncia e de estado, a Modernidade emergiu com uma acentuada característica messiânica. A Modernidade mostra-se ca- paz de resolver todos os problemas humanos e de supri- mir toda a busca de sentido da existŒncia humana. No entanto, a crítica à Modernidade que propicia a origem da Pós-modernidade apontava para um horizonte sus- tentado em uma filosofia materialista-histórica, na visªo psicanalítica do homem e no niilismo que trouxe à tona uma nova perspectiva de cultura fundamentada no super-homem. Para a psicanÆlise, o homem nªo se reduz ao posi- tivismo científico, defensor de atitudes altruístas, nem ao racionalismo idealista apologeta de um conhecimento de predomínio da subjetividade. O homem Ø psique e cons- titui-se para alØm do que Ø historicamente visível e expe- rimentÆvel em sua sensibilidade de consciŒncia. A psique Ø a profundidadehumana na qual estªo presentes os de- sejos denotativos do carÆter libidinoso que constitui o ho- mem. Dessa forma, o homem ultrapassa o visível, o su- perficial, manifesta o seu inconsciente e passa a conhecer o significado de seus sonhos. Na descoberta de sua psi- que, o homem passa a compreender o significado da civi- lizaçªo como elemento que possibilita a repressªo e a ne- cessidade de se pautar pelos seus desejos. O niilismo caracterizou-se como a conclusªo final da lógica dos grandes valores e ideais humanos. Em sua profundidade, o niilismo tornou-se o convencimento da absoluta inconsistŒncia da existŒncia, quando se trata dos grandes valores reconhecidos e do direito de estabe- lecer um alØm do em si das coisas em relaçªo ao divino e à personificaçªo moral. Assim, o niilismo Ø o produto his- tórico de um período histórico ocidental, convertido em forma de vida, pois se trata de uma diminuiçªo de poder, uma fraqueza ou doença, cuja origem se encontra no to- tal extravio da humanidade no que diz respeito a seus instintos fundamentais. Ele Ø tambØm o sentimento da ausŒncia de valor e de permissªo para que o ser humano 10 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA 9 ROUSSEAU, J.J. Do Contrato social. In: ROSSEAU, Sªo Paulo: Abril Cultural, 1978 p. 15-145. (Os pensadores). Id. Discurso sobre a origem e os fun- damentos da desigualdade entre os homens. In: Ibidem, p. 201-310. considere a globalidade da existŒncia por meio dos con- ceitos-fim, unidade e verdade. Diante disso, tem-se a teoria do eterno retorno como reposta para superar a metafísica que gerou o niilis- mo, redimindo o ser humano da vingança, por intermØ- dio da mudança do sentimento de tempo e do valor do devir. Para isso, torna-se necessÆrio abarcar, pela criativi- dade, o perecível, os símbolos denotativos do tempo e do devir, iluminando um novo horizonte para a liberdade, entrecruzando vontade criadora e destino. A verdade nªo mais impera para tornar o ser humano livre, mas a vontade de gerar e o devir. Dessa forma, a vida Ø vontade de poder. A justiça e o amor pós-metafísicos sªo os novos sinais que indicam a superaçªo da igualdade teórico-prÆ- tica. Ao redimir-se da vingança e do sofrimento, o ser hu- mano se abre à liberdade criativa e a uma nova forma de vida sem a metafísica, em funçªo de um pensamento aberto aos sentidos que reafirmam a experiŒncia niilista que imerge o ser humano no fatalismo lœcido e lœdico e que inaugura um pensamento efetivamente trÆgico. A tragØdia tornou-se um novo horizonte de vida, marcado pela tensªo entre o real e o ideal, a necessidade e a liber- dade, o acaso e a necessidade. Implica ainda viver uma radical rebeliªo, que gera um estado crítico crônico em todos aqueles que almejam transmutar os valores sem outra razªo para a esperança. Dessa forma, a tragØdia Ø um novo modo de degustar a facticidade e de se apren- der a viver as contradiçıes e o absurdo vital. Da tragØdia, aflora o humanismo feito de rebeldia à injustiça e a tudo aquilo que perverte a vida humana. Para alØm do niilis- mo, o humanismo pode apurar a experiŒncia e despertar o ser humano do sono niilista, ligando-o ao verdadeiro fundamento que o sustenta e o faz ser o que Ø, desde a mais profunda realidade humana10. A crítica materialista-histórica concebeu o ho- mem como um animal social que, ao trabalhar, objetiva a sua potencialidade. Ocorre que essa alienaçªo do tra- balho se desenvolveu historicamente em um processo de luta de classes, estabelecendo o domínio de uns ho- mens sobre os outros. O trabalho alienado, desenvolvi- do em uma história movida pela luta de classes, propicia um processo de emergŒncia efetiva de mais-valia, de predomínio do capital sobre o trabalho, havendo perda efetiva da corporeidade e do valor do ser humano. 11 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS 10 NIETZSCHE, F.W. La nascita della tragedia In: NIETZSCHE. OPERE 1870/1881, Roma: Newton, 1993 p. 105-87; Id. Umano, troppo umano. Un libro per spiriti liberi. In: Ibidem, p. 505-886; Id. Ecce Homo. Come si diventa ciò che si Ø. In: Ibidem, p. 821-901. Assim, o ser humano Ø despersonalizado e dominado pelo sistema social vigente. Diante disso, torna-se necessÆrio transformar a so- ciedade, nªo pela formaçªo de um estado leviatano, nem por um governo civil fundamentado na lei natural, nem mesmo por meio de um contrato social, mas pela organi- zaçªo e pela ditadura do proletariado rumo à construçªo de uma sociedade que seja um efetivo reino de liberdade. Resgata-se a subjetividade do ser humano perdida nas relaçıes mercantis, em que o produto efetuado pelo tra- balhador torna-se uma mercadoria independente de seu criador a partir da centralidade afirmativa da comuni- dade, cuja funçªo Ø controlar, com justiça, a relaçªo do homem com a natureza11. A conseqüŒncia das críticas da Modernidade Ø fundamentalmente o processo de emergŒncia de uma sØ- rie de elementos que desembocaram no que se denomi- nou Pós-modernidade. Trata-se de reconhecer critica- mente, de um lado, a precariedade do carÆter messiânico da Modernidade, sua limitada universalidade e o questio- namento acerca de seu carÆter sistŒmico fechado; de ou- tro, a afirmaçªo da subjetividade, da ciŒncia fundamen- tada em base empírica, de uma história com centralidade antropológica que passou a ser uma realidade cada vez mais presente e fortalecida. Emerge com esse paradoxo, uma razªo sensível marcada por uma lógica de abstraçªo denotativa da crise da metafísica, da nova relaçªo entre ciŒncia e vida e da emergŒncia de novos jogos de lingua- gem caracterizados pela ambigüidade cotidiana. Com isso, tem-se uma razªo interna vivificada por uma racio- nalidade aberta e marcada pela pluralidade de realida- des, pelo entrelaçamento das mœltiplas partes que consti- tui um todo, pela complementaridade dos fragmentos e pela conseqüente flexibilidade aí presente. Trata-se de um raciovitalismo selado por uma ambivalŒncia que gera a unidade orgânica dos diversos elementos que com- pıem a vida humana12. Essa razªo sensível estÆ profundamente ligada ao niilismo em sua condiçªo de destino, pelo qual os valores supremos compreendidos como o valor supremo: Deus sªo desaparecidos e o ser da metafísica se dissolve completamente no discorrer do valor, nas transforma- çıes indefinidas da equivalŒncia universal. Trata-se de compreender o mundo que fora reduzido a valor de tro- 12 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA 11 MARX, K., Il Capitale Roma: Newton, 1996. 12 LYOTARD, F. O Pós-Moderno. Rio de Janeiro: JosØ Olympio, 1993; MAFFESOLI, M., Elogio da razªo sensível. Petrópolis: Vozes, 2005; ZYGMUNT, B. Modernidade e ambivalŒncia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. ca como fÆbula e constatar a debilidade do ser, possibi- litando a massificaçªo e o desenvolvimento do processo de comunicaçªo midiÆtica, e a mobilidade do simbólico ao invØs do estabelecimento de novos valores supremos. Com isso, surge a crise do humanismo, cuja compreen- sªo se efetua no contexto da denominada morte de Deus e da emergŒncia da tØcnica moderna. Ocorre que o hu- manismo era compreendido, tendo como fundamento a metafísica clÆssica, cuja credibilidade foi questionada jÆ com o surgimento do racionalismo moderno em sua for- ma idealista e em sua forma empirista. A tØcnica moderna aparece como causa de um processo de desumanizaçªo, de perda da subjetividade nos mecanismos de objetividade e na procura de uma humanidade tecnicamente perfeita. Irrompe, entªo, a ne- cessidade de se repensar a condiçªo do sujeito moderno ou pós-moderno em sua qualidade de Ser. Isso implica fugir da ontologia estÆtica e elaborar uma concepçªo de Ser na perspectiva do evento como significado para o próprio sujeito13. Do niislimo como destino, surge a ver- dade da arte, cuja característica fundamental Ø ser profØ- tica e utópica. Constata-se uma explosªo da estØtica em sua inte- gralidade, especialmentepor meio do desenvolvimento da tecnologia e da expansªo da mídia, propiciando a efe- tividade da verdade periódica, pois o mundo de cada Øpoca Ø um sistema de significados. Por meio da arte, a verdade jÆ nªo Ø um conjunto de complexos verbais pre- viamente estabelecidos e aplicados às situaçıes históricas dos seres humanos, mas evento de linguagem levado a cabo de diferentes formas. A linguagem torna viva uma realidade, inclusive a realidade da morte, e, na arte, sua maior incidŒncia estÆ situada na poesia, cuja fórmula lin- güística Ø a abertura de nova possibilidade. No entanto, a linguagem Ø uma fórmula nªo plena que proporciona re- correr a um outro elemento importante da arte: o monu- mento. Por meio dele, espaço e tempo tornam-se verda- deiramente eventos, porque sªo deslocados e sªo vivazes em funçªo da recordaçªo evocada nele. Realiza-se, as- sim, uma revoluçªo artística que tem, na fluidez e na li- berdade das artes, um modelo de historicidade, capaz de superar a historicidade moderna, fundamentada em um mecanismo normal de intelectualidade denotativo de um estado de espírito. 13 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS 13 HEIDEGGER, M. Carta sobre o Humanismo. Sªo Paulo: Moraes, 1991; VATTIMO, G. O fim da Modernidade. Niilismo e hermenŒutica na cultura pós-moderna. Martins Fontes. p. 3-36; Id. Depois da Cristandade. Por um Cristianismo nªo religioso. Rio de Janeiro; Sªo Paulo: Record, 2004. p. 17-35. Introduz-se uma nova historicidade, constituída da genialidade que abre novos caminhos e novos hori- zontes, marcados pela valorizaçªo da novidade, pela se- cularizaçªo extrema que prima pela descentralizaçªo in- terpretativa da vida mundana, pela verdade agora fraca, pois nªo Ø mais selada pela solidez da metafísica clÆssica. Assim, o pós-moderno da arte Ø, fundamentalmente, um meio privilegiado de expressªo da crise social, histórica e cultural da Modernidade, bem como a abertura a um novo horizonte vital do diÆlogo do pensamento com a rea- lidade lœdica14. A Pós-modernidade se manifesta tambØm na her- menŒutica em sua relaçªo com o niilismo, com a retórica e com antropologia, formatando, dessa maneira, uma efetiva filosofia da diferença em sua qualidade de pensa- mento diverso e nômade. Sabe-se que a hermenŒutica surgiu no contexto de crítica da Modernidade, especial- mente no que se refere à preocupaçªo com a compreen- sªo e a interpretaçªo do discurso denotativo de uma pro- duçªo de conhecimento15. Entretanto, a hermenŒutica desenvolveu-se tambØm no âmbito da filosofia e da co- municaçªo social, tendo em vista levar a cabo o conceito de comunidade ilimitada da comunicaçªo16, no âmbito das necessidades de se elaborar uma hermenŒutica filo- sófica fundamental, capaz de compreender a verdade na arte, nas ciŒncias do espírito17, na elaboraçªo de uma on- tologia hermenŒutica18 e na formulaçªo de uma filosofia da linguagem consistente, hÆbil para explicitar o carÆter conflitivo da interpretaçªo e o papel do símbolo no ato de interpretar19. Em sua relaçªo com o niilismo, a hermenŒutica, vista como ontologia, tem como base o Ser aí, em sua condiçªo de totalidade hermenŒutica como Ser no mun- do que articula uma tríplice estrutura: compreensªo-in- terpretaçªo-discurso. Esse círculo hermenŒutico Ø a es- trutura constitutiva central do Ser no mundo que caracte- 14 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA 14 VATTIMO, G. O fim da Modernidade, p. 39-106; MORRA, G., Il quarto uomo. Postmodernità o crisi della modernità?, Armando, Roma 1992, p. 114-17. 15 SCHLEIERMACHER, F.D.E. HermenŒutica. Arte e tØcnica da interpretaçªo, Sªo Francisco, Bragança Paulista, 2003. 16 APEL, K.O. Transformation der Philosophie. Frankfurt: Surkamp, 1973. 17 GADAMER, H.G. Verdade e MØtodo (I). Traços fundamentais de uma hermenŒutica filosófica. Petrópolis; Bragança Paulista: Vozes; Sªo Francisco, 2003; Id. Verdade e MØtodo (II).Complementos e índice. Ibidem. 18 HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Petrópolis; Bragança Paulista: Vozes; Sªo Francisco, 2003. 19 RICOEUR, P. Le conflit des interpretations Paris: Seuil, 1969; Id. Ermeneutica filosófica ed ermeneutica bíblica. Brescia: PaidØia, 1983. riza o Ser aí. O Ser no mundo deve estar familiarizado com uma totalidade de significados e com um contexto referencial bÆsico de sua existŒncia. No entanto, hÆ de se entender que o Ser aí Ø projeto e, por isso, Ø ligado à mortalidade. Assim se estabelece a relaçªo entre o Ser aí e o Ser para a morte, sendo o primeiro totalidade à me- dida que se antecipa para a morte. Nessa proximidade, realiza-se a interpretaçªo e o passo para o discurso de- notativo de um contexto caracterizado de sentido pró- prio de uma totalidade. Desse modo, a fundaçªo do Ser aí Ø vista em sua mobilidade e no evento do Ser. Com a experiŒncia da morte, esvai-se a idØia de funda- mento e de solidez, emergindo a idØia de fraqueza e de debilidade. Diante desse novo horizonte, a hermenŒu- tica possibilita recordar o passado tornado vivo medi- ante a tradiçªo, cuja vivacidade se efetiva pelo proces- so de transmissªo ocorrido somente em funçªo do ciclo de nascimento e morte. O anœncio intrínseco ao pro- cesso de transmissªo e conteœdo explícito desse mesmo processo Ø o próprio Ser. Ao desenvolver uma relaçªo com a retórica, a her- menŒutica leva a cabo a conexªo entre ser e linguagem. Na verdade, o ser se dissolve na linguagem e Ø compre- endido nela, porque o mundo Ø mediado totalmente pela linguagem. Essa mediaçªo Ø um logos que desemboca em um ethos, cuja teleologia Ø o bem. Esse logos Ø simul- taneamente mundo e linguagem e Ø dialØtico à medida que se manifesta como entendimento e consciŒncia so- cial. Nesse caminho da linguagem, a hermenŒutica rela- ciona-se à retórica compreendida como a arte da per- suasªo mediante os discursos20 , tendo em vista dar à ciŒncia um uso social. Nessa perspectiva, a ciŒncia Ø si- multaneamente lingüística e Øtica em seu carÆter social, evidenciando, assim, sua natureza retórica, pœblica, his- tórica e cultural. A relaçªo entre a hermenŒutica e a an- tropologia explicita a relevância dos acontecimentos his- tóricos, enquanto sªo provenientes da atuaçªo do ser hu- mano em sua condiçªo de sujeito e de produtor de cultu- ra. Trata-se aqui de compreender o ser humano na pers- pectiva de uma ontologia hermenŒutica que permite vi- sualizar o Ser como evento e como projeto. Isso significa que nªo se verÆ mais o ser humano segundo modelos fi- xos e previamente determinados conceitualmente, mas ele serÆ concebido em sua dialØtica entre singularidade e 15 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS 20 Segundo Foucault (A ordem do discurso. Aula inaugural no CollØge de France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970. Sªo Paulo: Loyola, 1996), os discursos podem ser passageiros e permanentes e possuem uma ordem controlada pelas instituiçıes, pela vontade de verdade, pela es- pecificidade do autor marcado pela necessidade de se ter disciplina e equilibrar a relaçªo entre o desejo e o poder. pluralidade, particularidade e universalidade, em sua in- dividualidade e sociabilidade e em seu universo simbóli- co, jÆ notadamente reconhecido. Isso implica que o ser humano estÆ situado em um contexto específico, cujo co- tidiano Ø marcado pela ambigüidade e por um horizonte que ultrapassa a aparŒncia e alcança a profundidade de sua existŒncia, compreendida na concepçªo de incons- ciente coletivo e na busca de sentido vital. Por isso, a her- menŒutica propiciarÆ compreender o ser humano em sua tradiçªo, reavivando a atualidade, de modo que a archØ seja sempre significativa, eficaz e imbuída de sentido existencial à vida humana21. A Pós-modernidade traz à tona o fenômeno da globalizaçªo do estado. Nªo se reflete mais œnica e exclu- sivamente o estado nacional ou as relaçıes internacio- nais como política entre os estados, mas busca-se a efeti- vidade da mundializaçªo da Terra, configurando, dessemodo, um processo de superaçªo da visªo exclusiva- mente geogrÆfica de mundo e de emergŒncia de uma vi- sªo histórica e holística. É verdade que existem muitas metÆforas sobre a globalizaçªo22, mas todas indicam que as palavras complementaridade, interdependŒncia, en- trelaçamento, dinamismo e pluralismo sªo chaves à com- preensªo desse fenômeno. Trata-se de um fenômeno his- toricamente emergente no sØculo XX, especialmente a partir do final de Segunda Guerra Mundial, quando o mundo foi dividido em dois grandes blocos político-eco- nômicos o capitalista e o socialista , quando se estabe- leceu a guerra fria, cujo fim aconteceu somente no final dos anos 1980, com a crise do socialismo real e com o surgimento da nova configuraçªo dos países do Leste europeu. Do ponto de vista histórico, tem-se, entªo, um processo de globalizaçªo da economia de cunho neolibe- ral, criando-se, dessa maneira, uma economiamundo que fundamenta todas as economias nacionais, por meio da afirmaçªo do mercado de todo o universo e de sua apresentaçªo nas economias locais ou regionais. Ocorre, 16 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA 21 VATTIMO, G. O fim da Modernidade, p. 107-68. 22 IANNI, O. Teorias da globalizaçªo. Rio de Janeiro: Civilizaçªo Brasileira, 2002. p. 11-25. Este autor desenvolve a idØia de metÆforas da globaliza- çªo para demonstrar que a linguagem referente a esse fenômeno Ø marcada por títulos figurativos denotativos de seu real significado. Assim, a glo- balizaçªo Ø denominada de aldeia global, fÆbrica global, TerrapÆtria, nave espacial, nova Babel. Ao lado dessas metÆforas, estªo outras, tais como economia-mundo, sistema-mundo, shopping center global, Disneylândia global, nova visªo internacional do trabalho, moe- da global, cidade global, capitalismo global, planeta Terra, hegemonia global, fim da história. ainda, a superaçªo política da soberania do estado mo- derno, surgindo uma política de interdependŒncia dos estados-naçıes, mas que aponta a hegemonia de um de- terminado grupo de força política e econômica23, fortale- cendo a tese de que, em geral, a economia Ø determinan- te no encaminhamento político. Forjou-se tambØm o conceito de comunidade con- tinental, baseado na formaçªo e na organizaçªo da co- munidade europØia, inclusive com a possibilidade de se ter uma constituiçªo œnica, bem como levou-se a cabo a concepçªo de organizaçıes de cunho econômico e políti- co Tratado de Livre ComØrcio da AmØrica do Norte, Mercado Sul-americano, Associaçªo do Sudoeste AsiÆti- co, Cooperaçªo Econômica da `sia e do Pacífico e Co- munidade dos Estados Independentes. Ademais, foram criadas organizaçıes como a Organizaçªo das Naçıes Unidas e o Fundo MonetÆrio Internacional, por exemplo denotativas de um sistema mundial de interdependŒn- cia das naçıes. A supracitada hegemonia de um grupo determinado de naçıes ocorre em funçªo da detençªo do poder de recursos materiais por parte desse grupo, realizando a equivalŒncia entre mundializaçªo e moder- nizaçªo nos moldes do capitalismo ocidental. No entan- to, hÆ de se compreender que, se o espírito moderno bus- cou realizar um processo de ocidentalizaçªo do mundo, o espírito pós-moderno demonstra paradoxalmente a força política do Oriente, sustentada por um forte teocentris- mo, alimentando a possibilidade de um processo de glo- balizaçªo que supere o ocidentalismo e seja efetivamente mais justa, capaz de superar a pobreza jÆ presente em todo o mundo.24 Contudo, a Pós-modernidade Ø um estado de es- pírito em que se manifesta um paradoxo de ruptura e continuidade com a Modernidade. Dessa forma, emergiu um sujeito autônomo e livre diante de Deus ou dos deu- ses, mas que vive o drama do significado de sua liberda- de e clama novamente pela divindade ou divindades. Apareceu tambØm uma ciŒncia moderna pretensamente messiânica, mas incapaz de ter alcance a todos os proble- mas humanos e mundanos e, conseqüentemente, de re- 17 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS 23 Evidentemente aqui, acena-se para a hegemonia dos sete países mais ricos do mundo e da Rœssia, os quais, juntos, compıem o Grupo dos Oito (G8), no cenÆrio político-econômico mundial. 24 IANNI, O. Teorias da globallizaçªo, 27-256; CASTELLS, M. A era da informaçªo: economia, sociedade e cultura (III). Fim de milŒnio. Rio de Janeiro: Paz e Tera, 2000; ORTIZ, R. Mundializaçªo e cultura. Sªo Paulo: Brasiliense, 1994; DUPAS, G. Atores e poderes na nova ordem global. Assimetrias, instabilidades e imperativos de legitimaçªo. Sªo Paulo: UNESP, 2005. solvŒ-los. Por isso, a hermenŒutica adquiriu tanta impor- tância na teoria do conhecimento científico, trazendo à tona um conceito de verdade marcadamente interpretati- vo, processual, histórico, flexível e sensível ao novum do cotidiano. Ademais, em relaçªo à hermenŒutica e à an- tropologia, compreende-se que o ser humano experi- menta a crise da metafísica clÆssica, dÆ-se conta da rele- vância da categoria diferença e da diversidade dos jogos de linguagem e, por isso, elabora uma linguagem nova presente na arte, na retórica, nos símbolos e busca formu- lar uma cultura de alteridade denotativa do respeito entre os povos. A soberania tªo presente na concepçªo moder- na de estado enfraqueceu-se de sentido com o processo de globalizaçªo, o qual trouxe à tona a interdependŒncia dos estados e, por conseqüŒncia, a mundializaçªo eco- nômica e política. No entanto, constata-se o desafio de se efetuar uma globalizaçªo justa e efetivamente humana, jÆ que se verifica a mundializaçªo da pobreza e a hege- monia de alguns países sobre outros muitos países25. Diante do exposto, pergunta-se: Como produzir teologia nesse contexto pós-moderno, tªo complexo e que exige uma racionalidade sensível, flexível e aberta ao novum? 2 A produçªo teológica A Teologia Ø uma ciŒncia de fØ, efetuada à luz da fØ e tambØm uma reflexªo crítica da fØ compreendida em sua totalidade histórica. Como ciŒncia, a teologia Ø orga- nizada, sistematizada, metódica e possui um rigor que lhe confere credibilidade teórica. Como reflexªo crítica, ela nªo prescinde da experiŒncia histórica do ser humano, compreendida em seus conflitos e contradiçıes que pro- porcionam a emergŒncia do novum. Nesse sentido, a teo- logia jamais poderÆ deixar de ser contemporânea de um determinado período histórico, devendo constituir-se sempre em uma palavra de vida, cortante e eficaz. Por isso, o centro da teologia cristª, por excelŒncia, Ø a reve- laçªo de Deus realizada plenamente em Jesus Cristo, transmitida pela Igreja e efetivada por outros canais his- tóricos que, de alguma maneira, dªo continuidade à re- velaçªo cristª. 18 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA 25 Um fenômeno que se manifesta nesse paradoxo pós-moderno Ø o fundamentalismo de cunho religioso que legitima o terrorismo como os ataques às Torres GŒmeas norte-americanas em 11 de setembro de 2001 ou a ordem de guerra do presidente norte-americano G. Bush ao Iraque, em mar- ço de 2003, ambos contando com a bŒnçªo de Deus. Para que se constitua como ciŒncia e como refle- xªo crítica, a teologia necessita de um mØtodo capaz de dar-lhe consistŒncia epistemológica. Apesar dos diferen- tes modelos históricos de produçªo teológica, jamais a teologia prescindiu de dois elementos fundamentais em sua constituiçªo metodológica: o auditus fidei e o intellec- tus fidei. O primeiro pressupıe que o ser humano seja um auscultor da Palavra, capaz de experimentar a revelaçªo em funçªo de seu potencial tambØm transcendental que o possibilita encontrar-se com Deus. Por isso, a fØ Ø aqui escutada na revelaçªo da própria Palavra de Deus que estÆ testemunhada na Escritura e tem sua continuidade formal na Tradiçªo cristª e nas diferentes manifestaçıes históricas de Deus. Trata-se, entªo, de manusear os da- dos objetivos vistos como positivos pela teologia positi- va colhidos pelo teólogocom o auxílio de recursos me- tódicos da filologia, da crítica literÆria, do estruturalismo, da lingüística e da história, com a finalidade de objetivar o dado revelado, corrigindo especulaçıes apressadas, imprecisas e sem fundamentaçªo na Escritura e na Tradiçªo. Ao levantar os dados objetivos, surgem novas questıes e novos problemas, exigindo do teólogo, corri- gir afirmaçıes anteriores, relativizar determinadas posi- çıes e, acima de tudo, retornar às fontes da teologia, efe- tuando uma releitura que dŒ consistŒncia ao dado revela- do buscado. O exercício do auditus fidei propicia estudar um tema teológico acuradamente a Escritura, os padres da Igreja do Ocidente e do Oriente, a história do dogma relacionada à história da Igreja, para, ao final, sistemati- zar os elementos teológicos de tudo que foi examinado. Apesar da objetividade deste elemento epistemológico interno à teologia, determinados limites sªo presentes, tais como o dinamismo das categorias filosóficas e das ciŒncias com as quais a teologia deve manter-se em diÆlogo. O intellectus fidei corresponde à articulaçªo entre fØ e razªo. De fato, a teologia explicita o domínio da ra- zªo sobre a fØ à luz da fØ, objetivando a relaçªo da ratio fi- dei com a lumen fidei. Este elemento explica, ordena, or- ganiza os dados revelados pelo elemento anterior, por meio da disposiçªo de instrumentos filosóficos e científi- cos, tomados para levar a cabo o processo de aprofunda- mento e de inteligibilidade da fØ. Corporifica-se este pro- cesso pela criaçªo de sistemas teológicos, cujos dados sªo analisados criticamente e reinterpretados em novos esquemas e matizes. Dessa maneira, a revelaçªo Ø cons- tantemente atualizada, dado que sua expressªo Ø históri- ca e passível de mutaçªo no que se refere à sua forma. Por isso, este elemento se desenvolve mediante uma lin- 19 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS guagem acessível historicamente, capaz de explicitar ra- ciocínios, deduçıes, reflexıes teóricas convincentes e plausíveis à atualidade histórica. Os dados da fØ e o pen- samento humano sªo articulados, havendo uma coerŒn- cia intrínseca do discurso da fØ que se pretende ser cons- tantemente atual, œtil e necessÆrio ao ser humano conce- bido em sua totalidade histórica. Essa coerŒncia denota as funçıes de especulaçªo, explicitaçªo e atualizaçªo do intellectus fidei26. A articulaçªo entre auditus fidei e intellectus fidei denota a dialØtica epistemológica da teologia: escutar a fØ com base na história compreendida na perspectiva de um lócus congnitivo concreto e assimilÆ-la, teorizando a sua experiŒncia em forma de teologia. Por isso, Ø de fun- damental importância compreender a historicidade des- sa articulaçªo ao longo da história da teologia, cujo re- sultado Ø a diversidade de formas de produçªo teológi- ca: a teologia prÆtica, sistematizada, dogmatizada e aprofundada da Antigüidade; a teologia ontológica, his- tórica e personalista da Idade MØdia; a teologia da Re- forma e da Contra-reforma, a teologia dos manuais e as teologias filosóficas do período moderno; as teologias protestantes do Profundo, da Palavra, do Kerygma, da Esperança; as teologias católicas da história do movi- mento Nouvelle ThØologie, transcendental, da expe- riŒncia, política, da libertaçªo latino-americana e as teo- logias do gŒnero, da cultura e as formuladas em contex- to africano e asiÆtico27. Na história da teologia antiga, os trŒs primeiros sØ- culos sªo caracterizados pela formulaçªo de uma teologia prÆtica e por uma sistematizaçªo dos conteœdos da fØ. Com isso, anunciava-se o kerygma cristªo para converter novos membros ao cristianismo e criar novas comunida- des em regiıes constitutivas de pagªos. Ademais, emergi- ram correntes filosóficas que propiciaram controvØrsias ou heresias à fØ cristª, exigindo dos pensadores cristªos jÆ marcados positiva ou negativamente pelo helenismo o empenho pelo desenvolvimento da via apologØtica por 20 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA 26 GON˙ALVES, P.S.L. A relaçªo entre Teologia e Espiritualidade cristª. RCT 24 ,1998. p. 37-58; LIB´NIO, J.B.; MURAD., A. Introduçªo à Teologia. Per- fil, enfoques e tarefas, Sªo Paulo: Loyola. p. 57-109; RAHNER, K. Sulle vie future della Teologia. In: Nuovia saggi(V). Roma: Paoline, 1974. p. 52-93; PASTOR, F.A. Teologia e Modernidade: alguns elementos de epistemologia teológica. In: GON˙ALVES, P.S.L.; TRASFERETTI, J. Teologia na Pós-Modernidade. Abordagens Epistemológica, sistemÆtica e teórico-prÆtica. Sªo Paulo: Paulinas, 2003. p. 71-101. 27 LIB´NIO, J.B.; MURAD, A. Introduçªo à Teologia. p. 111-60; BOF, G. Teologia católica. Dois mil anos de história, de idØias, de personagens. Saca- vØm: Ediçıes Sªo Paulo; VILA NOVA, E. Historia de la teologia cristiana(I-III). Barcelona: Herder, 1992; SESBOÜE, B.;THEOBALD, C. ED. Histoire des dogmes(IV). La Parole du Salut. Paris: DesclØe, 1996. meio da sistematizaçªo dos conteœdos da fØ. Afirmou-se, entªo, o cristianismo como verdadeira filosofia, a teolo- gia como sabedoria efetivada por meio de símbolos e ale- gorias. Nesse período, declarou-se, com veemŒncia a au- toridade dos apóstolos, a articulaçªo entre Escritura e Tradiçªo com base na regula fidei trinitÆria. Os sØculos quarto e quinto sªo marcados pelo pro- cesso de dogmatizaçªo dos conteœdos da fØ, radicados nos concílios EcumŒnicos de NicØia (325), Constantino- pla I (381), Éfeso (431) e Calcedônia (451). O dogma ex- prime a verdade de fØ em uma perspectiva de valor nor- mativo fundamentado na regula fidei para proporcionar o desenvolvimento do kerygma. Por isso, foram elabora- dos decretos, cânones e artigos de fØ que deram um carÆ- ter jurídico à expressªo dogmÆtica da fØ. Nesse período, criaram-se as escolas teológicas de Alexandria (AtanÆsio, Cirilo), da Capadócia (Basílio, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa) e de Antioquia (Teodoro, Cirilo de Je- rusalØm, Joªo Crisóstomo). Essas escolas efetuaram um processo de inculturaçªo da fØ, porque acolheram, de al- guma maneira, o helenismo, e souberam fermentar o conteœdo do evangelho, em um processo de articulaçªo entre Escritura e Tradiçªo, sob uma forma criativa desen- volvida com base na cultura helŒnica, contribuindo para a edificaçªo de uma teologia marcada pela unidade refe- rendada no dado revelado e pela pluralidade de substra- tos teológicos. Do sØculo quinto atØ o oitavo, ocorreu o aprofun- damento dos conteœdos da fØ que haviam sido consoli- dados nas expressıes dogmÆticas dos concílios ecumŒni- cos. Na fase do esplendor, estavam Jerônimo, Ambrósio, Agostinho, Leªo Magno e EfrØm. Destaque maior Ø dado a Agostinho de Hipona, que uniu a fØ recebida de Ambrósio de Milªo com a experiŒncia filosófica herdada dos maniqueus. Com base no paradigma espiritualista via interior da filosofia antiga, procurava una verissi- mae philophiae disciplina. A filosofia Ø a ars bene vivendi, que procura a sabedoria e a verdadeira felicidade, supe- rando a regiªo do vício e do erro, atØ chegar à terra da virtude e da verdade. Assim, o estudioso bispo de Hipona supera a dœvida dos acadŒmicos e encontra-se com o Deus da revelaçªo da Nova Aliança. Com isso, a inteli- gŒncia se integra à fØ (intellige ut credas), a lumen rationis se une à lumen fidei, a fØ procura a inteligŒncia de si mes- ma (crede ut intelligas) e lumen fidei e intellectus fidei se articulam. Na fase final estavam Gregório Magno, Isidoro de Sevilha, BoØcio e Joªo Damasceno. Desses autores, surgiram especulaçıes teológicas em torno do tema da Trindade e todos os outros temas dele derivados, tais como a concepçªo de Pessoa trinitÆria, o significado de 21 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS substância divina, o entendimento do Filioque, a afirma- çªo de uma teologia pneumÆtica especialmente no que se refere às açıes litœrgicas da Igreja. A história da teologia medieval estÆ marcada pe- las etapas de gestaçªo, de iniciaçªoe de esplendor, bem como pela incidŒncia da matriz platônico-agostiniana que se tornou hegemônica na Antigüidade. Na primeira etapa, a teologia era assaz veiculada nas escolas de aba- dias e bispados por meio de obras compiladas e repro- duzidas, cujo princípio de autoridade dos textos, fazia acreditar que eles transmitiam, fiel e inviolavelmente, a Palavra de Deus. A teologia limitava-se à leitura e co- mentÆrio da Escritura, influenciados por textos dos pa- dres da Igreja. Na segunda etapa, compreendida entre os sØculos X e XII, descobriram-se os escritos de Aristóteles sobre o saber de demonstraçªo, os quais proporcionaram a com- preensªo da importância do confronto entre os pólos ne- gativos e positivos. Desse modo, elaborou-se a metodo- logia dialØtica de pensamento, cuja influŒncia Ø notÆvel na teologia, especialmente no que se refere ao esquema binominal conservador-inovador. Bernardo de Claraval, tido como conservador, pretenso em entender o mistØrio divino, encontra oposiçªo em Abelardo que codifica o sic et non e em Pedro Lombardo que consagra a dialØtica em seu Livro das Setenças. Por sua vez, Anselmo assume o pensamento monÆstico agostiniano, unindo-o à espe- culaçªo dialØtica. Por essa uniªo, esse teólogo desenvol- veu a teologia dialØtica de via interior, de cunho apofÆti- co, subordinando a razªo à fØ. Nessa etapa, seis elemen- tos foram constitutivos do ensino teológico: a Lectio, o Commnetarium, a Quaestio, a Disputatio, o Quodlibet, a Sententiae. O mestre explicava a liçªo aos alunos que de- veriam retŒ-la em sua memória, apresentava a exegese das grandes obras dos padres da Igreja, expunha a con- traposiçªo do que fora afirmado atØ entªo. Mestre e alu- nos discorriam juntos sobre temas e pensamentos de de- terminado autor ou obra, estendiam a disputatio e, en- fim, retomavam-se as sumas teológicas. Nesse contexto, tem-se a terceira etapa, conside- rada o esplendor da escolÆstica. O maior representante foi, sem dœvida, TomÆs de Aquino, cujo mØrito funda- mental esteve em assumir o aristotelismo e aplicÆ-lo em teologia, buscando formar uma síntese com o plantonis- mo agostiniano. O Aquinate relaciona o credere com o intelligere, distinguindo um do outro para uni-los por meio da via de relaçªo, afirmaçªo e negaçªo, articulando a ciŒncia de Deus comunicada pela revelaçªo teologia e a ciŒncia humana alcançada pela autonomia do pensa- mento humano filosofia. Afirma-se aqui uma teologia 22 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA catafÆtica e realista que, fundamentada na Escritura e na Tradiçªo, articula a razªo à fØ, dando prioridade à lumen fidei diante da lumen rationis. A escola franciscana tam- bØm surgiu nessa Øpoca e sua marca fundamental foi a de levar a cabo uma teologia personalista, especialmente com Boaventura de Bagnoregio companheiro do AngØlico em Paris que, seguindo o clima intelectual da EscolÆstica, escreveu suas obras em carÆter de Suma Teológica. Da mesma escola, destacaram-se tambØm Alexandre de Hales, RogØrio Bacon e Duns Scotto, este œltimo tendo sido um grande crítico dos grandes sistemas teológicos jÆ constituídos, em nome da separaçªo entre a consciŒncia racional e o conhecimento teológico. Ele concebia a teologia como uma disciplina eminentemente prÆtica, iluminadora, para se atender e atingir o fim œlti- mo do ser humano. A corrente mística Mestre Eckhart, G. Tauler, H. Suso tambØm deve ser recordada, pois trouxe à tona os temas da interioridade, do silŒncio, do recolhimento, do amor ativo e modesto, a conformidade com Cristo evangØlico e a fuga do mundo. Ademais, hÆ ainda o nominalismo de Guilherme de Ockan, uma cor- rente moderna da EscolÆstica, que radicalizou algumas orientaçıes escotistas como a separaçªo da religiªo da fØ, a œnica capaz de fundamentar o conhecimento de Deus, dado que os conceitos da razªo sªo meramente nomes. Indubitavelmente, a teologia medieval conce- be a teologia como uma ciŒncia da fØ, servindo-se da fi- losofia platônica e aristotØlica para se firmar como uma evidente apologia da revelaçªo, da graça e do sobrena- tural, possibilitando muitas discussıes e um claro plura- lismo teológico. A teologia moderna Ø marcada pela irrupçªo do espírito da modernidade, marcadamente antropocŒntri- co e cientificista, caminhos pelos quais se enveredaram a racionalidade filosófica, conforme jÆ explicitado acima. Nesse sentido, a teologia católica assumiu a perspectiva apologØtica, consolidada no Concílio de Trento e efetiva- da na emergŒncia da corrente dos espiritualistas Tereza D`vila, Joªo da Cruz, InÆcio de Loyola e nas escolas manualísticas dos dominicanos, dos jesuítas e dos fran- ciscanos. A teologia protestante, que surgiu com a Refor- ma inaugurada por Lutero, Calvino e Zuinglio, propiciou o surgimento de uma teologia com explícita marca filosó- fica, fundamentada na razªo moderna. Isso significa que o antropocentrismo moderno penetrou as teologias pro- testantes, de modo que elas apresentaram a equiparaçªo entre religiªo e moral, a autonomia da razªo em relaçªo à fØ, o carÆter dialØtico e transcendental da história e a fisio- nomia contextual e formal da exegese bíblica. Com isso, a teologia católica, caracterizada pela identidade apolo- 23 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS gØtica, emitiu a necessidade de encontrar uma posiçªo que fosse capaz de defrontar-se com os investimentos epistemológicos da Modernidade, incisivos na cultura. Por isso, o Concílio Vaticano I (1869-1870) tornou-se um evento fundamental à compreensªo da passagem da teologia católica apologØtica na era moderna para uma teologia em diÆlogo com a modernidade no perío- do contemporâneo. Por meio da constituiçªo dogmÆtica Dei Filius28, o Concílio Vaticano I refutou as posiçıes fideísta, raciona- lista, naturalista e panteísta, oriundas da Modernidade e abarcou a articulaçªo entre fØ e razªo. Nªo houve sobre- posiçªo da fØ à razªo e vice-versa, mas a articulaçªo su- pıe que a razªo explica a fØ à luz da fØ. Assim, nªo hÆ ra- tio fidei sem a lumen fidei. Por sua vez, Leªo XIII, de sua carta encíclica Aeterni Patris29 deu continuidade a essa articulaçªo, apontando o neotomismo como um substra- to filosófico-teológico, capaz de colocar a Igreja no con- texto da Modernidade, embora seu sucessor, Pio X por meio de sua carta encíclica Pascendi dominici gregis30 te- nha se tornado um protagonista importante da crise mo- dernista em que se sucedeu a condenaçªo de diversos as- pectos da Modernidade por parte da Igreja. No entanto, o movimento de renovaçªo teológica teve grande impulso no sØculo XX. Nesse período, a ver- tente teológica protestante desenvolve um caminho espe- culativo que reflete a verdade sobre Deus, tendo em vista o Profundo da realidade humana, individual e social, com base na encarnaçªo histórica do verbo divino deno- tativo da dialØtica da Palavra e assumindo a categoria história como relevante e pertinente à compreensªo da revelaçªo de Deus. Por sua vez, a teologia católica desenvolveu-se em percurso de contemporaneidade, efetuando-se como complexo teórico aberto, plural e dialógico. Nesse senti- do, emergiu a teologia transcendental que afirmou o ca- rÆter antropológico da teologia, demonstrando a impos- sibilidade da compreensªo de Deus sem voltar-se para a realidade do ser humano. O transcendental foi caracteri- zado como a condiçªo de possibilidade e estrutura do es- pírito infinito no mundo, presente a priorii no espírito hu- mano. Por isso, o ser humano Ø um auscultor da palavra, 24 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA 28 DZ 3000-3045. 29 DZ 3135-3140. 30 DZ 3475-3500. aberto à graça, imbuído de liberdade para atuar no mun- do em comunhªo com Deus. Para a afirmaçªo da teologia transcendental, foi im- portante tambØm o desenvolvimento da teologia da histó- ria, presente no movimento Nouvelle ThØologie das esco- las de Lyon e Saulchoir, levadas a cabo pelosjesuítas e pe- los dominicanos respectivamente. A história foi vista como uma categoria referente ao campo dos acontecimentos humanos em que o ser humano Ø manifestado como seu sujeito e produtor. Nessa produçªo, Deus se revela, utili- zando-se do tempo e do espaço em que o ser humano estÆ situado. Dessas correntes, emergem os temas do ecume- nismo, do diÆlogo inter-religioso, do relacionamento entre fØ cristª e ciŒncia, entre cristianismo e ateísmo. De todo esse movimento teológico acoplado aos movimentos de renovaçªo litœrgica, bíblica e pastoral, à criaçªo do Conselho Mundial das Igrejas e ao MagistØrio eclesiÆstico, que assumiu temas relativos à doutrina so- cial da Igreja, à dogmÆtica teológica e à Escritura, emer- giu o Concílio Vaticano II, evento profundamente reno- vador e catalisador das angœstias, tristezas, alegrias e es- peranças da humanidade, tendo em vista o aperfeiçoa- mento da presença da Igreja no mundo. A teologia saída do referido Concílio estÆ marcada pela dialØtica entre mistØrio e história presente no diÆlogo da teologia com as ciŒncias, na unidade dos cristªos, no diÆlogo inter-religio- so, na redescoberta do horizonte pastoral na teologia e uma espiritualidade que realça a historicidade da revela- çªo divina. Com base na perspectiva conciliar de abertura e de diÆlogo da teologia com o mundo, presente tambØm na vertente protestante, surgiram novas formulaçıes teo- lógicas comprometidas com a afirmaçªo da prÆxis. Assim devem ser entendidas as teologias da experiŒncia, da es- perança e política, as quais nªo sªo temas teológicos, mas novas perspectivas teológicas. Sªo novas teologias de cunho fundamental que apresentam a incidŒncia do sujeito humano na história, promovendo uma prÆxis efe- tivamente transformadora do mundo. Com isso, a expe- riŒncia modifica-se em um elemento crucial para a elabo- raçªo de tratados teológicos que nªo apenas expressem carÆter doutrinal, mas tambØm apresentam carÆter her- menŒutico de atualizaçªo da fØ positiva, teorizada com base em um locus experiencial efetivo da realidade hu- mana. A política permite à teologia ser narraçªo, memó- ria e solidariedade, relembrando o evento Jesus Cristo em contexto de vinda iminente do Reino, sendo um sinal eficaz desse mesmo Reino na história e proporcionando uma atuaçªo de proximidade com os seres humanos pri- vados de viver abundantemente na história. A esperança 25 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS Ø a categoria que permite dar carÆter histórico à escatolo- gia, visualizando os crucificados deste mundo para apre- sentÆ-los um Deus que sofre e ressuscita com eles. Da formulaçªo das teologias da prÆxis emergem as teologias da libertaçªo latino-americana, feminista, negra norte-americana, africana, sul-africana, asiÆtica e do plu- ralismo religioso. Essas teologias, denominadas contex- tuais, do gŒnero e da cultura denotam o espírito de histori- cidade e de diÆlogo desencadeado na formulaçªo de com- plexos teológicos pelo Concílio Vaticano II. Alguns pontos sªo comuns nessas teologias. O primeiro Ø a articulaçªo entre fØ positiva e o locus dos pobres no sentido econômi- co, político, social, cultural e religioso. O clamor dos po- bres pela justiça, o seu sofrimento, a sua morte prematura e a sua esperança de um novum mundano tornam-se o lu- gar epistemológico de produçªo teológica. A partir desse lugar, efetua-se uma nova leitura da Escritura e da Tradi- çªo teológica fØ positiva tornando efetivamente atuais e eficazes31. O segundo Ø a demonstraçªo de que a espe- rança possui um lugar concreto de realizaçªo e que os po- bres possuem força histórica transformadora e evangeliza- dora32. O terceiro Ø a nªo-reduçªo da categoria pobre ao seu status econômico, mas que abarca tambØm a condi- çªo política, social, cultural e religiosa. Pobre Ø o assalaria- do explorado em sua força de trabalho, Ø o negro margi- nalizado, Ø a mulher vítima do machismo uxoricida, Ø o anciªo visto em sua nªo-produtividade, Ø o jovem sem tra- balho e drogado, Ø a criança que vive nas ruas sem ter onde reclinar a cabeça, Ø todo aquele que nªo tem terra nem casa para habitar33. O quarto elemento Ø correspon- dente à dialØtica entre o universal e o particular, porque sªo teologias produzidas em totalidade contextual deter- minada e específica, mas sªo sempre complexos teológi- cos marcados pela articulaçªo entre o auditus fidei e o in- tellectus fidei. O œltimo elemento Ø denotativo da plurali- dade que caracteriza a atualidade da história, possibilitan- do a percepçªo do diferente religioso, cultural, Øtnico, polí- tico, bem como o de gŒnero34. 26 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA 31 BOFF, C. Epistemologia em la teologia de la liberación, MysL I, p. 79-115. 32 A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1979. 33 BOFF, C.; PIXLEY, J. Opçªo pelos pobres. Petrópolis: Vozes, 1987. 34 CHENU, B. ThØologies des Tiers Mondes. Latino-amØricaine, noire-amØricaine, noire sud-africaine, africaine, asiatique. Paris: Le Centurion, 1987; GON˙ALVES, P.S.L. A Teologia do Concílio Vaticano II e suas conseqüŒncias na emergŒncia da Teologia da Libertaçªo. In: GON˙ALVES, P.S.L.; BOMBONATTO, V.I. (ed.) Concílio vaticano II. AnÆlise e prospectivas. Sªo Paulo: Paulinas, 2004, p. 69-94. Ao considerar as diferentes formulaçıes históricas da teologia, afirma-se a necessÆria contemporaneidade do discurso teológico. Assim, a teologia deverÆ sempre buscar atender aos sinais dos tempos por objetivar de- monstrar com eficiŒncia e eficÆcia o novum do conteœdo revelado. Isso justifica a reflexªo epistemológica da pro- duçªo teológica na Pós-modernidade. 3 Teologia na Pós-modernidade De acordo com a exposiçªo acima, a eficÆcia da teologia estÆ em ser sempre contemporânea de seu perío- do histórico. Isso significa afirmar que a teologia nªo pode ser exclusivamente a sistematizaçªo ou dogmatiza- çªo de determinados conteœdos da fØ como na teologia antiga , nem se desenvolver como ciŒncia da fØ por in- termØdio do mØtodo descendente como na teologia es- colÆstica ou ser uma reflexªo crítica da fØ por intermØ- dio do mØtodo ascendente como nas teologias da histó- ria, transcendental e da prÆxis nem tampouco defender as inovaçıes filosóficas como a teologia apologØtica moderna. Trata-se de forjar um mØtodo epistemológico eficiente para compreender o significado da lógica da ra- zªo sensível, necessÆria ao contexto pós-moderno, capaz de ser complexa, nômade, aberta, transversal, plural e flexível35. AlØm disso, a teologia deverÆ tambØm ser mar- cada pela centralidade da vida, considerando a diversi- dade de vidas no universo e a peculiaridade do ser hu- mano colocada pela fØ. Para que a teologia seja efetivamente eficaz no in- terior do clima intelectual pós-moderno, torna-se neces- sÆrio enveredar-se pelo caminho da hermenŒutica, a qual foi assumida em diferentes Æreas teológicas, especial- mente na teologia bíblica e na teologia dogmÆtica. Por hermenŒutica teológica entende-se a via teórica pela qual se busca a verdade de uma experiŒncia textual ou oral de fØ, com base na compreensªo e na conseqüente interpre- taçªo, considerando o contexto vital em que essa expe- riŒncia foi produzida e a tradiçªo de sua transmissªo. Isso significa afirmar que as categorias teológicas demonstra- tivas da verdade da fØ estªo imbuídas de uma cultura in- cidente na linguagem filológica, no simbolismo estØtico e na postura Øtica. Essas categorias pertencem a um perío- 27 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS 35 OLIVEIRA, M.A. Pós-Modernidade. Abordagem filosófica. In: GON˙ALVES, P.S.L. TRASFERETTI, J. Teologia na Pós-Modernidade. Abordagens epistemológica, sistemÆtica e teórico-prÆtica. Sªo Paulo: Paulinas, 2003. p. 21-52. do histórico determinado e sªo capazes de reinterpretar o conteœdo de fØ presente na Escritura que, por sua vez, traz consigo uma determinada expressªo cultural. Uma vez quese faz a compreensªo do contexto vital do texto produzido, examina-se a efetividade desse texto em sua tradiçªo, passa-se à interpretaçªo que elimina a verdade, vista como adequatio ou como enunciado dogmÆtico fe- chado, e enuncia uma verdade aberta e acolhedora de melhores expressıes lingüísticas e estØticas consoantes à sua realidade. Dessa maneira, a hermenŒutica teológica proporcionarÆ buscar o conteœdo de fØ na Escritura, na Tradiçªo eclesial e teológica e nas diferentes expressıes históricas que contribuam para a descoberta e para a re- descoberta da verdade teológica36. Com isso, a hermenŒutica teológica supera todo tipo de fundamentalismo, cujo espírito Ø ler um texto com base na mera eficiŒncia da letra. No fundamentalismo, nªo se desenvolve a atividade de apropriaçªo de um tex- to em seu contexto nem a atividade crítica que dªo con- sistŒncia à hermenŒutica. O fundamentalismo tolhe o tex- to de seu contexto histórico e de sua historicidade espiri- tual, enraíza-se no tradicionalismo que, por sua vez, sa- craliza a letra e a desintegra do seu autŒntico espírito. AlØm disso, o fundamentalismo propicia a efetividade do integralismo, cujo objetivo Ø realizar o predomínio de uma determinada doutrina sobre um texto que estÆ sen- do interpretado. Em teologia, o fundamentalismo se efetua de dois modos: o escriturístico e o doutrinal. No primeiro, o texto bíblico Ø isento de uma interpretaçªo que considere o ca- minho hermenŒutico descrito acima, cuja conseqüŒncia Ø o esvaziamento do efetivo sentido da palavra de Deus contida na Escritura. A inerrância bíblica torna-se um ele- mento mal compreendido de modo que se impossibilita a atualizaçªo da palavra de Deus. No segundo tipo de funda- mentalismo, a doutrina da Igreja assume uma infalibilida- de sem espírito. O dogma Ø isento de anÆlise históri- co-crítica e sua atualizaçªo Ø œnica e exclusivamente a afir- maçªo de sua letra. O seu espírito distancia-se da letra e seu sentido atual torna-se inócuo. Nesses dois tipos de fun- damentalismo, hÆ uma concepçªo ingŒnua de inspiraçªo que garante como significado o significante. Entende-se que os textos escriturísticos foram ditados por Deus em seu conteœdo e em sua forma. Prevalece, entªo, o sentido lite- ral e discrimina-se o sentido espiritual da Bíblia. O mesmo acontece com o dogma. Ele Ø visto como verdade revela- 28 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA 36 GEFFRÉ, C. Le christianisme au risque de linterpretation. Paris: Cerf, 1983. da em seu sentido literal e seu significado nªo Ø atualizado, portanto nªo se torna efetivamente vital37. A efetividade da hermenŒutica teológica possui uma história na teologia cristª que acompanha a herme- nŒutica filosófica. Trata-se de compreender que a teolo- gia protestante do sØculo XIX trouxe à tona a história das formas que propiciou o mØtodo histórico-crítico na exe- gese bíblica, assumido no movimento de retorno às fon- tes do supracitado movimento Nouvelle ThØologie e no magistØrio eclesiÆstico pelo Papa Pio XII em sua carta en- cíclica Divino Afflante Spiritu38 e pelo Concílio Vaticano II em sua constituiçªo dogmÆtica Dei Verbum39. Em síntese, assumiu-se que os textos bíblicos pos- suem contextos específicos em que foram escritos, gŒne- ros literÆrios fÆbulas, contos, novelas, sagas, etc. e que Deus escreve por intermØdio dos hagiógrafos. A Bíblia Ø Palavra de Deus escrita por mªos humanas, cuja leitura necessita de uma interpretaçªo efetuada por uma herme- nŒutica correta denominada conciliar. A Tradiçªo eclesial e teológica possui tanto valor quanto a Escritura; ela Ø a transmissªo fiel da Palavra de Deus, de modo que essa Ø sempre viva, cortante e eficaz. A hermenŒutica conciliar concebe a Tradiçªo como ato de interpretaçªo criativa, capaz de superar as prÆticas tradicionalistas e integralistas subjacentes no fun- damentalismo. Assim concebida, a Tradiçªo eclesial e teo- lógica mantØm-se fiel ao passado, na medida em que o que Ø transmitido nªo Ø simplesmente um texto ou um evento do passado, mas um evento sempre atual, enrai- zado no passado, pertinente ao presente e aberto ao futu- ro. Dessa forma, a Tradiçªo fundamental da teologia cris- tª estÆ presente no novo testamento, cujo evento fundan- te Ø Jesus Cristo em sua revelaçªo aos apóstolos. A partir desse fato fundamental, tem-se a recuperaçªo da tradi- çªo oral neotestamentÆria e a tradiçªo veterotestamentÆ- ria interpretada segundo a chave cristª. Da mesma ma- neira, deve-se entender o dogma. Seu conteœdo Ø todo escriturístico, e sua forma Ø contextual, situada em deter- minados momentos do cristianismo que necessitaram de formulaçıes dogmÆticas. Para sua consistŒncia, a hermenŒutica conciliar interroga o texto bíblico ou dogmÆtico examinado de uma maneira que se aproxime o mÆximo possível da verdade acerca das interrogaçıes que o próprio texto 29 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS 37 GEFFRÉ, C. Crer e interpretar. A virada hermenŒutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 83-129. 38 DZ 3825-3831. 39 DZ 4201- 4235. busca responder. Torna-se necessÆrio, neste caso, fazer uma leitura crítica sobre o texto, jÆ que hÆ sempre uma dialØtica entre o texto lido e a tradiçªo de sua transmis- sªo e da relaçªo entre a fØ e a história original dessa mesma fØ. Afirma-se, entªo, que toda verdade Ø históri- ca e necessitada de movimento de interpretaçªo cons- tante. Por isso, Ø importante fazer a correlaçªo crítica entre a experiŒncia cristª fundamental e as experiŒncias humanas da atualidade, tendo em vista recepcionar cria- tivamente o texto lido, de modo que contribua na edifi- caçªo dos novos estados de consciŒncia dos seres hu- manos. Nesse sentido, a reinterpretaçªo de uma períco- pe bíblica ou de um enunciado dogmÆtico, pode levar a uma reformulaçªo do significado da mensagem e da fórmula dogmÆtica. Com isso, um novo jogo de lingua- gem torna-se possível: mais flexível, mais contundente, mais histórico e mais complexo40. A afirmaçªo da hermenŒutica teológica deverÆ consolidar e aprofundar o diÆlogo da teologia com as ciŒncias humanas. Este diÆlogo jÆ estÆ consolidado des- de o Concílio Vaticano II, especialmente, na constitui- çªo pastoral Gaudium et Spes em que se analisa a situa- çªo atual do mundo, os dramas da humanidade e os de- safios emergentes à Igreja, com a finalidade de oferecer à teologia melhores condiçıes de compreender sistemÆ- tica e rigorosamente o ser humano no atual momento histórico. Historicamente, foi a teologia da libertaçªo que melhor serviu-se desse diÆlogo, manifestando-se como um complexo teórico constituído das mediaçıes socioa- nalítica, hermenŒutica e teórico-prÆtica. Assim, analisa-se a realidade com auxílio das ciŒncias sociais e da história, interpreta-se essa realidade à luz da hermenŒutica que re- quer o uso da lingüística, da história, da arqueologia, da exegese bíblica e inferem-se elementos que fomentem uma prÆxis histórica libertadora41. A relaçªo da teologia com o marxismo, em suas diferentes formas, tornou-se instrumental, pois a eficÆcia da fØ estÆ em sua capacidade de compreender a realidade histórica em que estÆ situada de maneira precisa. Por isso, foi aprofundado o significa- do da categoria pobre em sua condiçªo de lugar de pro- duçªo teológica. Com a crise do socialismo real, a mediaçªo das ciŒncias sociais tornou-se insuficiente para compreender 30 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA 40 GEFFRÉ, C. Crer e interpretar, p. 29-129. 41 BOFF, C. Teologia e PrÆtica. Teologia do político e suas mediaçıes. Petrópolis: Vozes, 1978; BOFF, C.; BOFF, L. Da libertaçªo. O teológico das liber- taçıes sócio-históricas. Petrópolis: Vozes, 1985. a totalidade da realidade histórica, exigindo a utilizaçªo de outras mediaçıes das ciŒncias humanas, especialmen- te da psicologia e da antropologia profunda, tendo em vista à compreensªo de um ser humano integral, efetiva- mente livre e capazde criar relaçıes de solidariedade en- tre os povos42. O diÆlogo científico da teologia nªo se esgota nas ciŒncias humanas. Torna-se necessÆrio desenvol- ver tambØm o diÆlogo com a biologia e com a física, tendo em vista a evolutiva consciŒncia ecológica, cada vez mais presente no pensamento pós-moderno. Na verdade, houve a passagem do paradigma naturalista para o paradigma ambiental, acentuando a interaçªo do ser humano com a natureza. Nessa perspectiva, ela- bora-se uma teologia ecológica, capaz de denunciar a crise ecológica, na qual o ser humano surge como um dØspota, um tirano que destrói a natureza, assumindo a condiçªo de um senhor conquistador. Em contrapo- siçªo a essa crise estÆ a teologia ecológica que afirma, com base no desenvolvimento de uma espiritualidade cósmica, que recupera o Deus unitrinitÆrio da realiza- çªo efetiva da hipótese Gaia, que considera a terra como solo e como planeta, e da aliança entre Deus, o ser humano e a natureza43. Essa formulaçªo teológica nªo teria adquirido consistŒncia sem o diÆlogo com a biologia e com a física. De fato, essas duas ciŒncias muito evoluíram nas œltimas dØcadas e muito contri- buíram acerca da investigaçªo sobre o ser humano e sobre o mundo, tendo a vida como centro44. Dialogar com a biologia, implica, para teologia, defrontar-se com as teorias evolucionistas neodarwinistas e com outras correntes que denotam novas descobertas bio- lógicas a respeito da vida. O diÆlogo com a física, parti- cularmente com a física quântica, possibilita à teologia formular uma reflexªo ecológica de entrelaçamento dos seres vivos e desses com os seres nªo-vivos, propi- 31 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS 42 GUTIÉRREZ, G. La verdad los hara libres. Salamanca: Sígueme, 1990; SEGUNDO, J.L. Signs of the Times. Theological Reflections. Maryknoll; New York: Orbis Books, 1993. 43 MOLTMANN, J. Dio nel progetto del mondo moderno. Contributi per una rilevanza pubblica della teologia, Brescia: Queriniana, 1999. p. 91-114; Id. Gott in der Schöpfung. Ökologische Schöpfungslehre. München, Kaiser, 1985. 44 MARGULIS, L.; SAGAN, D. O que Ø Vida? Rio de Janeiro: Zahar, 2002; CAPRA, F. A teia da vida. Uma nova compreensªo científica dos sistemas vivos. Sªo Paulo: Cultrix, 1996; Id. As conexıes ocultas. CiŒncia para uma vida sustentÆvel. Sªo Paulo: Cultrix, 2002. ciando compreender a totalidade do universo como Mysterium Creationis45. HÆ de se ressaltar que, no diÆlogo científico, uma nova relaçªo da teologia com a filosofia hÆ de ser edifica- da. Deve-se superar a visªo clÆssica que colocava a filo- sofia como serva da teologia. As diferentes contribuiçıes e avanços da filosofia na modernidade, especialmente nas referŒncias à antropologia e à ciŒncia, e a emergŒn- cia de uma filosofia pós-moderna marcada pela diferen- ça, pela abertura sistŒmica, pelo pluralismo e pela trans- versalidade, proporcionam à teologia a efetividade do caminho hermenŒutico do diÆlogo com as diversas ciŒn- cias. No diÆlogo com a filosofia, a teologia encontrarÆ a mediaçªo necessÆria para dialogar com a biologia e a fí- sica com a finalidade de elaborar uma teologia da cria- çªo e uma antropologia teológica constitutivas de mati- zes que propiciam melhor compreensªo das implicaçıes da fØ e da revelaçªo nesses tratados teológicos. Dessa maneira, construir-se-Æ um horizonte interdisciplinar na teologia, reforçando a sua identidade como ciŒncia e re- flexªo crítica da fØ, visando à sua contemporaneidade científica46. TrŒs temas ainda modernos da hermenŒutica teo- lógica sªo pertinentes e relevantes ao complexo teórico teológico: o ecumenismo, o pluralismo religioso e a liberdade. O ecumenismo compreende a busca de superaçªo das divisıes presentes no cristianismo. As raízes das divi- sıes nªo sªo de carÆter teologal, mas de cunho histórico. Por isso, os esforços pela construçªo da unidade tŒm tambØm uma intensa história, especialmente a partir do sØculo XX, tanto no âmbito protestante quanto no católi- co. Assim sendo, nªo foram poucos os esforços da teolo- gia do Profundo para encontrar a verdade (Wharheit) na realidade mais profunda da existŒncia humana47; da teo- logia da Palavra, que afirmou a encarnaçªo do Verbo de 32 C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA 45 HAUGHT, J.F. Deus após Darwin. Uma teologia evolucionista. Rio de Janeiro: JosØ Olympio, 2003; ARNOULD, J. A Teologia depois de Darwin. Elmento para uma teologia da criaçªo numa perspectiva evolucionista. Sªo Paulo: Loyola, 2001; Id. Darwin, Teilhard de Chardin e Cia. A Igreja e a evoluçªo, Sªo Paulo: Paulus, 1999; SUSIN, L.C. (ed.). Mysterium Creationis. Um olhar interdisciplinar sobre o Universo. Sªo Paulo: Soter; Pauli- nas, 1999; BOFF, L. Ecologia. Grito da Terra, grito dos pobres, Sªo Paulo: `tica, 1996. 46 PANNENBERG, W. Questioni fondamentali di Teologia SistemÆtica. Brescia: Queriniana, 1974; SEGUNDO, J.L. QuØ mundo? QuØ hombre? QuØ Dios? Santander: Sal Terrae, 1993; NEUTZLING, I. (ed). A teologia na Universidade contemporânea. Sªo Leopoldo: UNISINOS, 2005. 47 TILLICH, P. Teologia sistemÆtica. Sªo Leopoldo; Sªo Paulo: Sinodal; Paulinas, 1984, p. 661-85. Deus na história para salvar todos os seres humanos48; da eclesiologia total, que elaborou a teologia do Povo de Deus messiânico, cuja presença no meio dos seres huma- nos Ø histórica, antropológica, missionÆria, dialogal e ecumŒnica49; da Øtica mundial que prevŒ que um ethos universal deverÆ unir as Igrejas cristªs e as religiıes todas para construir uma humanidade capaz de viver a fraterni- dade, a justiça e a paz50. Produzir a reflexªo teológica sobre a unidade dos cristªos em perspectiva ecumŒnica implica assumir o mØ- todo hermenŒutico da unidade que leva a cabo a centra- lidade da cristologia trinitÆriaia que afirma Jesus Cristo como o Senhor, o Salvador, o Messias, o Filho de Deus que redimiu toda a humanidade do pecado, o Verbo en- carnado, cuja origem estÆ eternamente no Pai e cuja for- ça estÆ no Espírito de amor. Dessa maneira, o carÆter ecumŒnico da teologia supera o fundamentalismo, o tra- dicionalismo e o integralismo, e abrange a catolicidade, a apostolicidade e a santidade, promovendo uma verdade- ira oikoumene, construída no fortalecimento de todos os movimentos históricos que impulsionam a unidade, no estabelecimento efetivo da hierarquia das verdades con- sistente à fØ, na coerente articulaçªo entre Escritura e Tra- diçªo, capaz de superar a tensªo entre a teoria das duas fontes e o princípio solo scriptura. Essa centralidade estÆ marcada por uma recepçªo hermenŒutica que exige abertura das diferentes igrejas cristªs ao diÆlogo, ao res- peito e à busca de caminhos efetivamente ecumŒnicos que denotem a revelaçªo da verdade cristª51. O pluralismo religioso, embora moderno, estÆ in- serido no clima tipicamente pós-moderno em que se su- pera o monismo excludente, reinterpretando a mensa- gem cristª e redescobrindo a veracidade de seu carÆter soteriológico. Isso se deve ao fato de que, no caminho da hermenŒutica teológica, descobre-se a universalidade da salvaçªo cristª como princípio fundamental para se ad- 33 I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS 48 BARTH, K. Die Kirchliche Dogmatik (I). Verlag; Zürich: EVZ, 1932. 49 CONGAR, Y. DiversitØs et communion. Dossier historique et conclusion thØologique Paris: Cerf, 1982, Id. ChrØtiens desunis. Principes dun oecumØ- nisme catholique. Paris: Cerf, 1937; Id. ChrØtiens en dialogue. Contribuitions catholique à loecumØnisme. Paris: Cerf, 1964. p.244-60. 50 KÜNG, H. Theologie im aufbruch. Eine öikumenische Grundlegung. München; Zürich: Pipper, 1999; Id. Projeto de Øtica mundial. Uma moral ecu- mŒnica em vista da sobrevivŒncia humana. Sªo Paulo: Paulinas, 1992. p. 147-96. 51 SANTA ANA, J. Ecumenismo e libertaçªo. Petrópolis: Vozes, 1987; GON˙ALVES, P.S.L. O sonho da unidade dos cristªos. Eclesiologia ecumŒnica elaborada a partir dos princípios católicos e das comissıes
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