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Por uma Nova Razªo Teológica.
A Teologia na Pós-Modernidade
Paulo SØrgio Lopes Gonçalves
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
Reitor
Aloysio Bohnen, SJ
Vice-reitor
Marcelo Fernandes de Aquino, SJ
Instituto Humanitas Unisinos
Diretor
InÆcio Neutzling, SJ
Diretora adjunta
Hiliana Reis
Gerente administrativo
Jacinto Schneider
Cadernos Teologia Pœblica
Ano 2 – N” 17 – 2005
ISSN 1807-0590
ResponsÆvel tØcnica
Cleusa Maria Andreatta
Revisªo
MardilΠFriedrich Fabre
Secretaria
Caren Joana Sbabo
Editoraçªo eletrônica
Rafael Tarcísio Forneck
Impressªo
Impressos Portªo
Editor
Prof. Dr. InÆcio Neutzling – Unisinos
Conselho editorial
Profa. Esp. Àgueda Bichels – Unisinos
Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta – Unisinos
Prof. MS DÆrnis Corbellini – Unisinos
Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos
Prof. MS Laurício Neumann – Unisinos
MS Rosa Maria Serra Bavaresco – Unisinos
Esp. Susana Rocca – Unisinos
Profa. MS Vera Regina Schmitz – Unisinos
Conselho tØcnico-científico
Profa. Dra. Edla Eggert – Unisinos – Doutora em Teologia
Prof. Dr. Faustino Teixeira – UFJF-MG – Doutor em Teologia
Prof. Dr. JosØ Roque Junges, SJ – Unisinos – Doutor em Teologia
Prof. Dr. Luiz Carlos Susin – PUCRS – Doutor em Teologia
Profa. Dra. Maria Clara Bingemer – PUC-Rio – Doutora em Teologia
Profa. MS Maria Helena Morra – PUC Minas – Mestre em Teologia
Profa. Dra. Maria InŒs de Castro Millen – CES/ITASA-MG – Doutora em Teologia
Prof. Dr. Rudolf Eduard von Sinner – EST-RS – Doutor em Teologia
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Instituto Humanitas Unisinos
Av. Unisinos, 950, 93022-000 Sªo Leopoldo RS Brasil
Tel.: 51.5908223 – Fax: 51.5908467
www.unisinos.br/ihu
Cadernos Teologia Pœblica
A publicaçªo dos Cadernos Teologia Pœblica, sob
a responsabilidade do Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, quer ser uma contribuiçªo para a relevância pœblica
da teologia na universidade e na sociedade. A Teologia
Pœblica busca articular a reflexªo teológica em diÆlogo
com as ciŒncias, culturas e religiıes, de modo interdisci-
plinar e transdisciplinar. Busca-se assim a participaçªo
ativa nos debates que se desdobram na esfera pœblica da
sociedade. Os desafios da vida social, política, econômi-
ca e cultural da sociedade hoje, especialmente a exclusªo
socioeconômica de imensas camadas da populaçªo,
constituem o horizonte da teologia pœblica. Os Cadernos
de Teologia Pœblica se inscrevem nesta perspectiva.
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
Por uma Nova Razªo Teológica. A Teologia na Pós-Modernidade
Paulo SØrgio Lopes Gonçalves
Introduçªo
Objetiva-se, neste texto, apontar a maneira de se
produzir teologia na Pós-modernidade. Justifica-se este
objetivo pela constataçªo de que hÆ uma crise da metafí-
sica no contexto atual incidente no sistema teológico,
questionando conceitos bÆsicos da teologia cristª e tra-
zendo à tona o desafio de se formular um complexo teóri-
co em um contexto marcado pela manifestaçªo da dife-
rença, do pluralismo, da transversalidade, do nomadis-
mo epistemológico. Assim sendo, nªo Ø mais possível à
teologia fundamentar-se em categorias fixas, em concep-
çıes imutÆveis e distantes da dialØtica subjacente na for-
mulaçªo de pensamentos para desenvolver seus concei-
tos e seus argumentos. Torna-se necessÆrio entrar no cli-
ma intelectual atual, articulando as categorias emergen-
tes com a fØ, cujo conteœdo estÆ presente na regula fidei1
que serve como elemento operacional na elaboraçªo de
uma teologia, capaz de ser sempre contemporânea a um
determinado período histórico.
Para atingir esse objetivo, apresentar-se-Æ o status
quaestionis da Pós-modernidade, sua relaçªo filial com a
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1 GON˙ALVES, P.S.L., Liberationis Mysterium. O projeto sistemÆtico da teologia da libertaçªo analisado à luz da Regula fidei. In: ANJOS, M.F. (ed.).
Teologia em Mosaico. Sªo Paulo: SantuÆrio, Aparecida, 1998. p. 123-36. Regula fidei Ø um elemento antigo da teologia que permite professar a fØ
no Deus criador de todas as coisas, no Filho, redentor e salvador de todos os seres humanos, no Espírito transformador e santificador de toda a cria-
çªo e na Igreja uma, santa, católica e apostólica, presente no mundo para ser sacramento de salvaçªo universal.
Modernidade, suas novidades epistemológicas, históricas
e antropológicas, bem como se mostrarÆ a produçªo teo-
lógica, marcada pela conceituaçªo de teologia como
ciŒncia e como reflexªo crítica da fØ, pela constataçªo da
historicidade da teologia e pela necessÆria incidŒncia na
teologia na Pós-modernidade, sem fundamentar-se em
preconceitos, mas total espírito de abertura e diÆlogo,
tendo em vista assumir os sinais dos tempos.
Em seguida, desenvolver-se-Æ o significado da teo-
logia na Pós-modernidade, assumindo a hermenŒutica
teológica como via teórica a ser seguida na referida pro-
duçªo e suscitando os pontos subjacentes ao estatuto
epistemológico da teologia na atualidade.
1 O status quaestionis da Pós-modernidade
Conceituar a Pós-modernidade nªo Ø tarefa fÆcil
em funçªo da diversidade epistemológica em torno do
próprio conceito. Em termos interrogativos: SerÆ a
Pós-modernidade uma total recusa da Modernidade?
Com a emergŒncia da Pós-modernidade, decreta-se o
fim da Modernidade? Ou serÆ que a Pós-modernidade Ø
uma outra face da Modernidade? É possível afirmar a
Pós-modernidade como um verdadeiro paradoxo de
ruptura e continuidade com a Modernidade?
Intui-se que responder a essas questıes, implica
suscitar as características fundamentais da Modernida-
de, porque, sem sua compreensªo, Ø impossível concei-
tuar Pós-modernidade. A Modernidade Ø filosoficamen-
te um estado de espírito denotativo de um profundo an-
tropocentrismo que superou histórica e filosoficamente
o teocentrismo característico do período medieval e do
cosmocentrismo da Antigüidade. A proposiçªo cartesia-
na “penso logo existo” explicitou que o pensar moder-
no, centrado no ser humano livre, autônomo, funda-
mentado na matemÆtica moderna, sustentada no limite
metódico da dœvida, Ø condiçªo da existŒncia humana.
Dessa forma, o conhecimento oriundo da relaçªo do su-
jeito com o objeto, Ø inato ao ser humano e imbuído do
poder de externar, no objeto, o conteœdo da subjetivi-
dade racional humana2. Em contraposiçªo a essa pro-
posiçªo, mas simultaneamente presente na rota da Mo-
dernidade, o pensamento empirista afirmou ser todo o
6
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
2 DESCARTES, R. Discurso sobre o mØtodo. Para bem conduzir a própria razªo e procurar a verdade nas ciŒncias. In:. Descartes. Sªo Paulo: Nova
Cultural, 1991. p. 25-71. (Os Pensadores).
conhecimento oriundo do objeto, tornando, assim, o su-
jeito humano œnica e exclusivamente reflexo do mesmo
objeto3. Diante dessas posiçıes antagônicas, o idealismo
kantiano emergiu como um pensamento sintØtico que
deu primazia ao sujeito humano no ato conhecimento.
Admitiu-se, entªo, a existŒncia de um grau de conheci-
mento inato ao ser humano, mas um outro grau presente
no objeto cognoscível.
Em sua capacidade de elaborar juízos, o ser hu-
mano produz os juízos sintØticos a priori e os juízos sintØti-
cos a posteriori. Os primeiros correspondem àqueles co-
nhecimentos inatos ao ser humano e uma capacidade de
manter autonomia diante do objeto. Os segundos deno-
tam a capacidade humana de formular conhecimentos,
cuja origem se encontra no objeto cognoscível. Essa teo-
ria do conhecimento denotou a primazia da subjetivida-
de humana na constituiçªo da razªo moderna, superan-
do a razªo teocŒntrica prØ-moderna e equivalendo à mo-
ral com a religiªo4. Desse racionalismo idealista de cono-
taçªo moral, emergiu o racionalismo idealista sistŒmico,
apoiado na dialØtica de pólos conflitivos, cuja existŒncia
só Ø possível quando hÆ o conflito. Assim,a tese jÆ con-
tØm dentro de si a sua antítese, e o conflito entre ambas
origina a síntese concebida como nova tese que, por sua
vez, jÆ possui intrinsecamente uma nova antítese, e o
novo conflito propicia a emergŒncia de uma nova sínte-
se. Essa dialØtica denota um sistema em que existem dois
pólos opostos, cujo sentido estÆ na contraposiçªo entre
eles a fim de que surja, mediante a contradiçªo, a síntese
cognitiva5.
A Modernidade criou nªo apenas uma nova teoria
do conhecimento fundamentada na subjetividade e no
empirismo, com primazia do idealismo, mas tambØm
uma nova concepçªo de ciŒncia. Na perspectiva prØ-mo-
derna, a ciŒncia era baseada na filosofia platônico-agosti-
aniana que admitia a existŒncia de dois mundos, um ideal
e um real, um superior e um inferior, estabelecidos hie-
rarquicamente, bem como na metafísica aristotØli-
co-tomista que, fundamentada na especulaçªo, conce-
beu um mundo ontologicamente constituído e visto, com
base em um conceito previamente formulado. A concep-
çªo moderna de ciŒncia apoiou-se no racionalismo sub-
jetivista e empirista e elaborou uma tríplice dimensªo ci-
entífica: a hipótese, a observaçªo e a verificaçªo. A subje-
7
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
3 HUME, D. Investigaçªo acerca do entendimento humano. In:. Berkeley e Hume. Sªo Paulo: Nova Cultural, 1992. p. 55-145. (Os Pensadores).
4 KANT, I. Crítica da Razªo Pura. In: Kant(II). Sªo Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 5-245. (Os Pensadores).
5 HEGEL, F. Fenomenologia do Espírito(I-II). Petrópolis: Vozes, 1992.
tividade se corporifica na experiŒncia, compreendida
como objetivaçªo das potencialidades humanas obser-
vadas pelo próprio sujeito humano, verificando-se a pla-
usibilidade em sua eficÆcia prÆtica. A ciŒncia moderna
emergiu, entªo, com um profundo carÆter messiânico,
capaz de superar todos os outros dois estÆgios jÆ experi-
mentados pelos seres humanos, o religioso – efetivamen-
te arcaico e ultrapassado, porque afirmava a fØ no sobre-
natural, comprovada pela ciŒncia moderna como nªo
existente – e o filosófico – denominado tambØm como
contemplativo e visto modernamente como inadequado
aos novos tempos – e solucionar todos os problemas sus-
citados pela humanidade6.
AlØm do racionalismo subjetivista e do cientificis-
mo positivista, a Modernidade trouxe à tona uma nova fi-
losofia política, fundamentada em uma concepçªo antro-
pológica e social de cunho liberal. Ao dar-se conta de sua
subjetividade e de sua condiçªo de sujeito, o homem mo-
derno concebeu a história como campo dos aconteci-
mentos humanos, vendo a si mesmo como sujeito e pro-
dutor de história. Compreendeu, entªo, a possibilidade
de levar a cabo uma nova concepçªo de estado, fundada
nªo mais no teocentrismo, que possibilitou a organizaçªo
de sociedades teocrÆticas e de um estado dependente da
religiªo hegemônica. O estado moderno surgiu com uma
característica liberal, alicerçada na condiçªo natural do
ser humano carente de sistematizaçªo e de proteçªo. Vis-
to, œnica e exclusivamente, em sua natureza, o ser huma-
no Ø miserÆvel e selvagem, efetuando um conjunto de
guerras de uns homens contra outros. Nesse sentido, nªo
hÆ paz entre os homens, mas apenas e tªo somente a
guerra.
Diante dessa anÆlise naturalista do homem, surgiu
a teoria do Leviatª, um estado visto como totalidade so-
berana imbuída de todo poder sagrado e profano e que
tem nos homens os seus sœditos. Na luta contra a nature-
za hostil e guerrilheira, se estabelece uma aliança, um
contrato entre o estado – cabeça – e os homens sœditos –
corpo –, tendo em vista pôr fim à guerra de todos contra
todos7. No entanto, essa concepçªo naturalista de ho-
mem nªo foi inteiramente aceita. Emergiu a concepçªo
acerca da desigualdade social, física e social. A primeira
compreendia as diferenças apoiadas na natureza de ida-
de, força corporal e disposiçªo anímica; a segunda cor-
8
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
6 COMTE, A. Curso de filosofia positiva. In: Comte. Sªo Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 1-39. (Os Pensadores).
7 HOBBES, T. O Leviatª. In: Hobbes. Sªo Paulo: Nova cultural, 1997. (Os Pensadores).
respondia à preocupaçªo com a desigualdade moral e
política. Constatava-se que o primeiro nível de desigual-
dade era aceito por qualquer perspectiva de pensamen-
to, mas o segundo escapava à lógica leviatana e surgia,
entªo, uma concepçªo liberal de política.
Aderia-se a uma idØia paradisíaca de natureza hu-
mana, pela qual se poderia imaginar uma saœde univer-
sal que anularia a debilidade, o predomínio das virtudes
da sensibilidade, das relaçıes sexuais puramente animais
e sem complicaçıes, da independŒncia dos homens em
sua linguagem e em sua produçªo – jÆ que nªo existem
as indœstrias e as conseqüentes relaçıes de trabalho.
Quando os homens ultrapassam o estado natural, criam
situaçıes de senhorio e de servidªo, de violŒncia e de rou-
bo, mostrando-se como maus e cheios de avareza e am-
biçªo. Ademais, deu-se continuidade ao mal emergente
após a saída do estado natural e, por meio das leis e do
estado, foram criados outros trŒs grandes males: a proprie-
dade privada, que possibilitou a criaçªo de ricos e po-
bres; a autoridade, que propiciou a emergŒncia de domi-
nadores e dominados; a degeneraçªo do poder na arbi-
trariedade, que deu origem aos senhores e aos escravos.
A superaçªo dessa desigualdade social ocorreu
por meio da elaboraçªo da concepçªo de governo civil,
isento do substrato religioso regulador e capaz de estabe-
lecer uma crítica às teorias da monarquia absoluta e de
fundamentar a autoridade política à luz da liberdade mo-
derna. Todos os homens sªo livres e, pelo seu trabalho,
possuem o direito à propriedade privada e ao reconheci-
mento de sua individualidade, porØm, sem a sociedade
política, torna-se impossível a efetividade dos direitos e
dos deveres humanos. Assim, o governo civil emerge
pela vontade e determinaçªo da maioria dos homens,
portanto possui uma fisionomia consensual, tendo sus-
tentaçªo na maioria eleitora8.
Paralelamente à concepçªo de governo civil, sur-
giu a idØia de contrato social que coloca a liberdade na-
tural em consonância com a ordem estatal. O contrato
social ocorre quando cada indivíduo se entrega a si mes-
mo, com tudo o que possui, como um bem comum à di-
reçªo de suprema vontade geral. Emerge, entªo, uma
pessoa pœblica, uma corporaçªo total animada, deno-
minada povo, o œnico portador de soberania. Para que
seja efetivado o contrato social, torna-se necessÆria a rea-
9
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
8 LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o Governo. Ensaio relativo à verdadeira origem, extensªo e objetivo do Governo civil. In:. Locke. Sªo Paulo:
Nova Cultural, 1991. p. 212-313. (Os Pensadores).
lizaçªo de uma educaçªo correta, pela qual o ser huma-
no deve ser mantido distante das influŒncias de defor-
maçªo e próximo de todo elemento disponível ao ama-
durecimento da boa disposiçªo natural que reside em
cada homem9.
Diante do exposto, constata-se que, em sua teo-
ria do conhecimento, em sua concepçªo de ciŒncia e de
estado, a Modernidade emergiu com uma acentuada
característica messiânica. A Modernidade mostra-se ca-
paz de resolver todos os problemas humanos e de supri-
mir toda a busca de sentido da existŒncia humana. No
entanto, a crítica à Modernidade que propicia a origem
da Pós-modernidade apontava para um horizonte sus-
tentado em uma filosofia materialista-histórica, na visªo
psicanalítica do homem e no niilismo que trouxe à tona
uma nova perspectiva de cultura fundamentada no
super-homem.
Para a psicanÆlise, o homem nªo se reduz ao posi-
tivismo científico, defensor de atitudes altruístas, nem ao
racionalismo idealista apologeta de um conhecimento de
predomínio da subjetividade. O homem Ø psique e cons-
titui-se para alØm do que Ø historicamente visível e expe-
rimentÆvel em sua sensibilidade de consciŒncia. A psique
Ø a profundidadehumana na qual estªo presentes os de-
sejos denotativos do carÆter libidinoso que constitui o ho-
mem. Dessa forma, o homem ultrapassa o visível, o su-
perficial, manifesta o seu inconsciente e passa a conhecer
o significado de seus sonhos. Na descoberta de sua psi-
que, o homem passa a compreender o significado da civi-
lizaçªo como elemento que possibilita a repressªo e a ne-
cessidade de se pautar pelos seus desejos.
O niilismo caracterizou-se como a conclusªo final
da lógica dos grandes valores e ideais humanos. Em sua
profundidade, o niilismo tornou-se o convencimento da
absoluta inconsistŒncia da existŒncia, quando se trata
dos grandes valores reconhecidos e do direito de estabe-
lecer um alØm do em si das coisas em relaçªo ao divino e
à personificaçªo moral. Assim, o niilismo Ø o produto his-
tórico de um período histórico ocidental, convertido em
forma de vida, pois se trata de uma diminuiçªo de poder,
uma fraqueza ou doença, cuja origem se encontra no to-
tal extravio da humanidade no que diz respeito a seus
instintos fundamentais. Ele Ø tambØm o sentimento da
ausŒncia de valor e de permissªo para que o ser humano
10
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
9 ROUSSEAU, J.J. Do Contrato social. In: ROSSEAU, Sªo Paulo: Abril Cultural, 1978 p. 15-145. (Os pensadores). Id. Discurso sobre a origem e os fun-
damentos da desigualdade entre os homens. In: Ibidem, p. 201-310.
considere a globalidade da existŒncia por meio dos con-
ceitos-fim, unidade e verdade.
Diante disso, tem-se a teoria do eterno retorno
como reposta para superar a metafísica que gerou o niilis-
mo, redimindo o ser humano da vingança, por intermØ-
dio da mudança do sentimento de tempo e do valor do
devir. Para isso, torna-se necessÆrio abarcar, pela criativi-
dade, o perecível, os símbolos denotativos do tempo e do
devir, iluminando um novo horizonte para a liberdade,
entrecruzando vontade criadora e destino. A verdade
nªo mais impera para tornar o ser humano livre, mas a
vontade de gerar e o devir. Dessa forma, a vida Ø vontade
de poder. A justiça e o amor pós-metafísicos sªo os novos
sinais que indicam a superaçªo da igualdade teórico-prÆ-
tica. Ao redimir-se da vingança e do sofrimento, o ser hu-
mano se abre à liberdade criativa e a uma nova forma de
vida sem a metafísica, em funçªo de um pensamento
aberto aos sentidos que reafirmam a experiŒncia niilista
que imerge o ser humano no fatalismo lœcido e lœdico e
que inaugura um pensamento efetivamente trÆgico. A
tragØdia tornou-se um novo horizonte de vida, marcado
pela tensªo entre o real e o ideal, a necessidade e a liber-
dade, o acaso e a necessidade. Implica ainda viver uma
radical rebeliªo, que gera um estado crítico crônico em
todos aqueles que almejam transmutar os valores sem
outra razªo para a esperança. Dessa forma, a tragØdia Ø
um novo modo de degustar a facticidade e de se apren-
der a viver as contradiçıes e o absurdo vital. Da tragØdia,
aflora o humanismo feito de rebeldia à injustiça e a tudo
aquilo que perverte a vida humana. Para alØm do niilis-
mo, o humanismo pode apurar a experiŒncia e despertar
o ser humano do sono niilista, ligando-o ao verdadeiro
fundamento que o sustenta e o faz ser o que Ø, desde a
mais profunda realidade humana10.
A crítica materialista-histórica concebeu o ho-
mem como um animal social que, ao trabalhar, objetiva
a sua potencialidade. Ocorre que essa alienaçªo do tra-
balho se desenvolveu historicamente em um processo
de luta de classes, estabelecendo o domínio de uns ho-
mens sobre os outros. O trabalho alienado, desenvolvi-
do em uma história movida pela luta de classes, propicia
um processo de emergŒncia efetiva de mais-valia, de
predomínio do capital sobre o trabalho, havendo perda
efetiva da corporeidade e do valor do ser humano.
11
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
10 NIETZSCHE, F.W. La nascita della tragedia In: NIETZSCHE. OPERE 1870/1881, Roma: Newton, 1993 p. 105-87; Id. Umano, troppo umano. Un libro
per spiriti liberi. In: Ibidem, p. 505-886; Id. Ecce Homo. Come si diventa ciò che si Ø. In: Ibidem, p. 821-901.
Assim, o ser humano Ø despersonalizado e dominado
pelo sistema social vigente.
Diante disso, torna-se necessÆrio transformar a so-
ciedade, nªo pela formaçªo de um estado leviatano, nem
por um governo civil fundamentado na lei natural, nem
mesmo por meio de um contrato social, mas pela organi-
zaçªo e pela ditadura do proletariado rumo à construçªo
de uma sociedade que seja um efetivo reino de liberdade.
Resgata-se a subjetividade do ser humano – perdida nas
relaçıes mercantis, em que o produto efetuado pelo tra-
balhador torna-se uma mercadoria independente de seu
criador – a partir da centralidade afirmativa da comuni-
dade, cuja funçªo Ø controlar, com justiça, a relaçªo do
homem com a natureza11.
A conseqüŒncia das críticas da Modernidade Ø
fundamentalmente o processo de emergŒncia de uma sØ-
rie de elementos que desembocaram no que se denomi-
nou Pós-modernidade. Trata-se de reconhecer critica-
mente, de um lado, a precariedade do carÆter messiânico
da Modernidade, sua limitada universalidade e o questio-
namento acerca de seu carÆter sistŒmico fechado; de ou-
tro, a afirmaçªo da subjetividade, da ciŒncia fundamen-
tada em base empírica, de uma história com centralidade
antropológica que passou a ser uma realidade cada vez
mais presente e fortalecida. Emerge com esse paradoxo,
uma razªo sensível marcada por uma lógica de abstraçªo
denotativa da crise da metafísica, da nova relaçªo entre
ciŒncia e vida e da emergŒncia de novos jogos de lingua-
gem caracterizados pela ambigüidade cotidiana. Com
isso, tem-se uma razªo interna vivificada por uma racio-
nalidade aberta e marcada pela pluralidade de realida-
des, pelo entrelaçamento das mœltiplas partes que consti-
tui um todo, pela complementaridade dos fragmentos e
pela conseqüente flexibilidade aí presente. Trata-se de
um raciovitalismo selado por uma ambivalŒncia que gera
a unidade orgânica dos diversos elementos que com-
pıem a vida humana12.
Essa razªo sensível estÆ profundamente ligada ao
niilismo em sua condiçªo de destino, pelo qual os valores
supremos – compreendidos como o valor supremo: Deus
– sªo desaparecidos e o ser – da metafísica – se dissolve
completamente no discorrer do valor, nas transforma-
çıes indefinidas da equivalŒncia universal. Trata-se de
compreender o mundo – que fora reduzido a valor de tro-
12
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
11 MARX, K., Il Capitale Roma: Newton, 1996.
12 LYOTARD, F. O Pós-Moderno. Rio de Janeiro: JosØ Olympio, 1993; MAFFESOLI, M., Elogio da razªo sensível. Petrópolis: Vozes, 2005; ZYGMUNT, B.
Modernidade e ambivalŒncia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
ca – como fÆbula e constatar a debilidade do ser, possibi-
litando a massificaçªo e o desenvolvimento do processo
de comunicaçªo midiÆtica, e a mobilidade do simbólico
ao invØs do estabelecimento de novos valores supremos.
Com isso, surge a crise do humanismo, cuja compreen-
sªo se efetua no contexto da denominada morte de Deus
e da emergŒncia da tØcnica moderna. Ocorre que o hu-
manismo era compreendido, tendo como fundamento a
metafísica clÆssica, cuja credibilidade foi questionada jÆ
com o surgimento do racionalismo moderno em sua for-
ma idealista e em sua forma empirista.
A tØcnica moderna aparece como causa de um
processo de desumanizaçªo, de perda da subjetividade
nos mecanismos de objetividade e na procura de uma
humanidade tecnicamente perfeita. Irrompe, entªo, a ne-
cessidade de se repensar a condiçªo do sujeito moderno
ou pós-moderno em sua qualidade de Ser. Isso implica
fugir da ontologia estÆtica e elaborar uma concepçªo de
Ser na perspectiva do evento como significado para o
próprio sujeito13. Do niislimo como destino, surge a ver-
dade da arte, cuja característica fundamental Ø ser profØ-
tica e utópica.
Constata-se uma explosªo da estØtica em sua inte-
gralidade, especialmentepor meio do desenvolvimento
da tecnologia e da expansªo da mídia, propiciando a efe-
tividade da verdade periódica, pois o mundo de cada
Øpoca Ø um sistema de significados. Por meio da arte, a
verdade jÆ nªo Ø um conjunto de complexos verbais pre-
viamente estabelecidos e aplicados às situaçıes históricas
dos seres humanos, mas evento de linguagem levado a
cabo de diferentes formas. A linguagem torna viva uma
realidade, inclusive a realidade da morte, e, na arte, sua
maior incidŒncia estÆ situada na poesia, cuja fórmula lin-
güística Ø a abertura de nova possibilidade. No entanto, a
linguagem Ø uma fórmula nªo plena que proporciona re-
correr a um outro elemento importante da arte: o monu-
mento. Por meio dele, espaço e tempo tornam-se verda-
deiramente eventos, porque sªo deslocados e sªo vivazes
em funçªo da recordaçªo evocada nele. Realiza-se, as-
sim, uma revoluçªo artística que tem, na fluidez e na li-
berdade das artes, um modelo de historicidade, capaz de
superar a historicidade moderna, fundamentada em um
mecanismo normal de intelectualidade denotativo de um
estado de espírito.
13
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
13 HEIDEGGER, M. Carta sobre o Humanismo. Sªo Paulo: Moraes, 1991; VATTIMO, G. O fim da Modernidade. Niilismo e hermenŒutica na cultura
pós-moderna. Martins Fontes. p. 3-36; Id. Depois da Cristandade. Por um Cristianismo nªo religioso. Rio de Janeiro; Sªo Paulo: Record, 2004.
p. 17-35.
Introduz-se uma nova historicidade, constituída
da genialidade que abre novos caminhos e novos hori-
zontes, marcados pela valorizaçªo da novidade, pela se-
cularizaçªo extrema que prima pela descentralizaçªo in-
terpretativa da vida mundana, pela verdade agora fraca,
pois nªo Ø mais selada pela solidez da metafísica clÆssica.
Assim, o pós-moderno da arte Ø, fundamentalmente, um
meio privilegiado de expressªo da crise social, histórica e
cultural da Modernidade, bem como a abertura a um
novo horizonte vital do diÆlogo do pensamento com a rea-
lidade lœdica14.
A Pós-modernidade se manifesta tambØm na her-
menŒutica em sua relaçªo com o niilismo, com a retórica
e com antropologia, formatando, dessa maneira, uma
efetiva filosofia da diferença em sua qualidade de pensa-
mento diverso e nômade. Sabe-se que a hermenŒutica
surgiu no contexto de crítica da Modernidade, especial-
mente no que se refere à preocupaçªo com a compreen-
sªo e a interpretaçªo do discurso denotativo de uma pro-
duçªo de conhecimento15. Entretanto, a hermenŒutica
desenvolveu-se tambØm no âmbito da filosofia e da co-
municaçªo social, tendo em vista levar a cabo o conceito
de comunidade ilimitada da comunicaçªo16, no âmbito
das necessidades de se elaborar uma hermenŒutica filo-
sófica fundamental, capaz de compreender a verdade na
arte, nas ciŒncias do espírito17, na elaboraçªo de uma on-
tologia hermenŒutica18 e na formulaçªo de uma filosofia
da linguagem consistente, hÆbil para explicitar o carÆter
conflitivo da interpretaçªo e o papel do símbolo no ato de
interpretar19.
Em sua relaçªo com o niilismo, a hermenŒutica,
vista como ontologia, tem como base o Ser aí, em sua
condiçªo de totalidade hermenŒutica como Ser no mun-
do que articula uma tríplice estrutura: compreensªo-in-
terpretaçªo-discurso. Esse círculo hermenŒutico Ø a es-
trutura constitutiva central do Ser no mundo que caracte-
14
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
14 VATTIMO, G. O fim da Modernidade, p. 39-106; MORRA, G., Il quarto uomo. Postmodernità o crisi della modernità?, Armando, Roma 1992, p.
114-17.
15 SCHLEIERMACHER, F.D.E. HermenŒutica. Arte e tØcnica da interpretaçªo, Sªo Francisco, Bragança Paulista, 2003.
16 APEL, K.O. Transformation der Philosophie. Frankfurt: Surkamp, 1973.
17 GADAMER, H.G. Verdade e MØtodo (I). Traços fundamentais de uma hermenŒutica filosófica. Petrópolis; Bragança Paulista: Vozes; Sªo Francisco,
2003; Id. Verdade e MØtodo (II).Complementos e índice. Ibidem.
18 HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Petrópolis; Bragança Paulista: Vozes; Sªo Francisco, 2003.
19 RICOEUR, P. Le conflit des interpretations Paris: Seuil, 1969; Id. Ermeneutica filosófica ed ermeneutica bíblica. Brescia: PaidØia, 1983.
riza o Ser aí. O Ser no mundo deve estar familiarizado
com uma totalidade de significados e com um contexto
referencial bÆsico de sua existŒncia. No entanto, hÆ de se
entender que o Ser aí Ø projeto e, por isso, Ø ligado à
mortalidade. Assim se estabelece a relaçªo entre o Ser aí
e o Ser para a morte, sendo o primeiro totalidade à me-
dida que se antecipa para a morte. Nessa proximidade,
realiza-se a interpretaçªo e o passo para o discurso de-
notativo de um contexto caracterizado de sentido pró-
prio de uma totalidade. Desse modo, a fundaçªo do
Ser aí Ø vista em sua mobilidade e no evento do Ser.
Com a experiŒncia da morte, esvai-se a idØia de funda-
mento e de solidez, emergindo a idØia de fraqueza e de
debilidade. Diante desse novo horizonte, a hermenŒu-
tica possibilita recordar o passado tornado vivo medi-
ante a tradiçªo, cuja vivacidade se efetiva pelo proces-
so de transmissªo ocorrido somente em funçªo do ciclo
de nascimento e morte. O anœncio intrínseco ao pro-
cesso de transmissªo e conteœdo explícito desse mesmo
processo Ø o próprio Ser.
Ao desenvolver uma relaçªo com a retórica, a her-
menŒutica leva a cabo a conexªo entre ser e linguagem.
Na verdade, o ser se dissolve na linguagem e Ø compre-
endido nela, porque o mundo Ø mediado totalmente pela
linguagem. Essa mediaçªo Ø um logos que desemboca
em um ethos, cuja teleologia Ø o bem. Esse logos Ø simul-
taneamente mundo e linguagem e Ø dialØtico à medida
que se manifesta como entendimento e consciŒncia so-
cial. Nesse caminho da linguagem, a hermenŒutica rela-
ciona-se à retórica – compreendida como a arte da per-
suasªo mediante os discursos20 –, tendo em vista dar à
ciŒncia um uso social. Nessa perspectiva, a ciŒncia Ø si-
multaneamente lingüística e Øtica em seu carÆter social,
evidenciando, assim, sua natureza retórica, pœblica, his-
tórica e cultural. A relaçªo entre a hermenŒutica e a an-
tropologia explicita a relevância dos acontecimentos his-
tóricos, enquanto sªo provenientes da atuaçªo do ser hu-
mano em sua condiçªo de sujeito e de produtor de cultu-
ra. Trata-se aqui de compreender o ser humano na pers-
pectiva de uma ontologia hermenŒutica que permite vi-
sualizar o Ser como evento e como projeto. Isso significa
que nªo se verÆ mais o ser humano segundo modelos fi-
xos e previamente determinados conceitualmente, mas
ele serÆ concebido em sua dialØtica entre singularidade e
15
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
20 Segundo Foucault (A ordem do discurso. Aula inaugural no CollØge de France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970. Sªo Paulo: Loyola,
1996), “os discursos podem ser passageiros e permanentes e possuem uma ordem controlada pelas instituiçıes, pela vontade de verdade, pela es-
pecificidade do autor marcado pela necessidade de se ter disciplina e equilibrar a relaçªo entre o desejo e o poder”.
pluralidade, particularidade e universalidade, em sua in-
dividualidade e sociabilidade e em seu universo simbóli-
co, jÆ notadamente reconhecido. Isso implica que o ser
humano estÆ situado em um contexto específico, cujo co-
tidiano Ø marcado pela ambigüidade e por um horizonte
que ultrapassa a aparŒncia e alcança a profundidade de
sua existŒncia, compreendida na concepçªo de incons-
ciente coletivo e na busca de sentido vital. Por isso, a her-
menŒutica propiciarÆ compreender o ser humano em sua
tradiçªo, reavivando a atualidade, de modo que a archØ
seja sempre significativa, eficaz e imbuída de sentido
existencial à vida humana21.
A Pós-modernidade traz à tona o fenômeno da
globalizaçªo do estado. Nªo se reflete mais œnica e exclu-
sivamente o estado nacional ou as relaçıes internacio-
nais como política entre os estados, mas busca-se a efeti-
vidade da mundializaçªo da Terra, configurando, dessemodo, um processo de superaçªo da visªo exclusiva-
mente geogrÆfica de mundo e de emergŒncia de uma vi-
sªo histórica e holística. É verdade que existem muitas
metÆforas sobre a globalizaçªo22, mas todas indicam que
as palavras complementaridade, interdependŒncia, en-
trelaçamento, dinamismo e pluralismo sªo chaves à com-
preensªo desse fenômeno. Trata-se de um fenômeno his-
toricamente emergente no sØculo XX, especialmente a
partir do final de Segunda Guerra Mundial, quando o
mundo foi dividido em dois grandes blocos político-eco-
nômicos – o capitalista e o socialista –, quando se estabe-
leceu a guerra fria, cujo fim aconteceu somente no final
dos anos 1980, com a crise do socialismo real e com o
surgimento da nova configuraçªo dos países do Leste
europeu.
Do ponto de vista histórico, tem-se, entªo, um
processo de globalizaçªo da economia de cunho neolibe-
ral, criando-se, dessa maneira, uma economia–mundo
que fundamenta todas as economias nacionais, por meio
da afirmaçªo do mercado de todo o universo e de sua
apresentaçªo nas economias locais ou regionais. Ocorre,
16
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
21 VATTIMO, G. O fim da Modernidade, p. 107-68.
22 IANNI, O. Teorias da globalizaçªo. Rio de Janeiro: Civilizaçªo Brasileira, 2002. p. 11-25. Este autor desenvolve a idØia de “metÆforas da globaliza-
çªo” para demonstrar que a linguagem referente a esse fenômeno Ø marcada por títulos figurativos denotativos de seu real significado. Assim, a glo-
balizaçªo Ø denominada de “aldeia global”, “fÆbrica global”, “TerrapÆtria”, “nave espacial”, “nova Babel”. Ao lado dessas metÆforas, estªo outras,
tais como “economia-mundo”, “sistema-mundo”, “shopping center global”, “Disneylândia global”, “nova visªo internacional do trabalho”, “moe-
da global”, “cidade global”, “capitalismo global”, “planeta Terra”, “hegemonia global”, “fim da história”.
ainda, a superaçªo política da soberania do estado mo-
derno, surgindo uma política de interdependŒncia dos
estados-naçıes, mas que aponta a hegemonia de um de-
terminado grupo de força política e econômica23, fortale-
cendo a tese de que, em geral, a economia Ø determinan-
te no encaminhamento político.
Forjou-se tambØm o conceito de comunidade con-
tinental, baseado na formaçªo e na organizaçªo da co-
munidade europØia, inclusive com a possibilidade de se
ter uma constituiçªo œnica, bem como levou-se a cabo a
concepçªo de organizaçıes de cunho econômico e políti-
co – Tratado de Livre ComØrcio da AmØrica do Norte,
Mercado Sul-americano, Associaçªo do Sudoeste AsiÆti-
co, Cooperaçªo Econômica da `sia e do Pacífico e Co-
munidade dos Estados Independentes. Ademais, foram
criadas organizaçıes – como a Organizaçªo das Naçıes
Unidas e o Fundo MonetÆrio Internacional, por exemplo
– denotativas de um sistema mundial de interdependŒn-
cia das naçıes. A supracitada hegemonia de um grupo
determinado de naçıes ocorre em funçªo da detençªo
do poder de recursos materiais por parte desse grupo,
realizando a equivalŒncia entre mundializaçªo e moder-
nizaçªo nos moldes do capitalismo ocidental. No entan-
to, hÆ de se compreender que, se o espírito moderno bus-
cou realizar um processo de ocidentalizaçªo do mundo, o
espírito pós-moderno demonstra paradoxalmente a força
política do Oriente, sustentada por um forte teocentris-
mo, alimentando a possibilidade de um processo de glo-
balizaçªo que supere o ocidentalismo e seja efetivamente
mais justa, capaz de superar a pobreza jÆ presente em
todo o mundo.24
Contudo, a Pós-modernidade Ø um estado de es-
pírito em que se manifesta um paradoxo de ruptura e
continuidade com a Modernidade. Dessa forma, emergiu
um sujeito autônomo e livre diante de Deus ou dos deu-
ses, mas que vive o drama do significado de sua liberda-
de e clama novamente pela divindade ou divindades.
Apareceu tambØm uma ciŒncia moderna pretensamente
messiânica, mas incapaz de ter alcance a todos os proble-
mas humanos e mundanos e, conseqüentemente, de re-
17
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
23 Evidentemente aqui, acena-se para a hegemonia dos sete países mais ricos do mundo e da Rœssia, os quais, juntos, compıem o Grupo dos Oito
(G8), no cenÆrio político-econômico mundial.
24 IANNI, O. Teorias da globallizaçªo, 27-256; CASTELLS, M. A era da informaçªo: economia, sociedade e cultura (III). Fim de milŒnio. Rio de Janeiro:
Paz e Tera, 2000; ORTIZ, R. Mundializaçªo e cultura. Sªo Paulo: Brasiliense, 1994; DUPAS, G. Atores e poderes na nova ordem global. Assimetrias,
instabilidades e imperativos de legitimaçªo. Sªo Paulo: UNESP, 2005.
solvŒ-los. Por isso, a hermenŒutica adquiriu tanta impor-
tância na teoria do conhecimento científico, trazendo à
tona um conceito de verdade marcadamente interpretati-
vo, processual, histórico, flexível e sensível ao novum do
cotidiano. Ademais, em relaçªo à hermenŒutica e à an-
tropologia, compreende-se que o ser humano experi-
menta a crise da metafísica clÆssica, dÆ-se conta da rele-
vância da categoria diferença e da diversidade dos jogos
de linguagem e, por isso, elabora uma linguagem nova
presente na arte, na retórica, nos símbolos e busca formu-
lar uma cultura de alteridade denotativa do respeito entre
os povos.
A soberania – tªo presente na concepçªo moder-
na de estado – enfraqueceu-se de sentido com o processo
de globalizaçªo, o qual trouxe à tona a interdependŒncia
dos estados e, por conseqüŒncia, a mundializaçªo eco-
nômica e política. No entanto, constata-se o desafio de se
efetuar uma globalizaçªo justa e efetivamente humana,
jÆ que se verifica a mundializaçªo da pobreza e a hege-
monia de alguns países sobre outros muitos países25.
Diante do exposto, pergunta-se: Como produzir
teologia nesse contexto pós-moderno, tªo complexo e
que exige uma racionalidade sensível, flexível e aberta ao
novum?
2 A produçªo teológica
A Teologia Ø uma ciŒncia de fØ, efetuada à luz da
fØ e tambØm uma reflexªo crítica da fØ compreendida em
sua totalidade histórica. Como ciŒncia, a teologia Ø orga-
nizada, sistematizada, metódica e possui um rigor que lhe
confere credibilidade teórica. Como reflexªo crítica, ela
nªo prescinde da experiŒncia histórica do ser humano,
compreendida em seus conflitos e contradiçıes que pro-
porcionam a emergŒncia do novum. Nesse sentido, a teo-
logia jamais poderÆ deixar de ser contemporânea de um
determinado período histórico, devendo constituir-se
sempre em uma palavra de vida, cortante e eficaz. Por
isso, o centro da teologia cristª, por excelŒncia, Ø a reve-
laçªo de Deus realizada plenamente em Jesus Cristo,
transmitida pela Igreja e efetivada por outros canais his-
tóricos que, de alguma maneira, dªo continuidade à re-
velaçªo cristª.
18
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
25 Um fenômeno que se manifesta nesse paradoxo pós-moderno Ø o fundamentalismo de cunho religioso que legitima o terrorismo como os ataques
às Torres GŒmeas norte-americanas em 11 de setembro de 2001 ou a ordem de guerra do presidente norte-americano G. Bush ao Iraque, em mar-
ço de 2003, ambos contando com a bŒnçªo de Deus.
Para que se constitua como ciŒncia e como refle-
xªo crítica, a teologia necessita de um mØtodo capaz de
dar-lhe consistŒncia epistemológica. Apesar dos diferen-
tes modelos históricos de produçªo teológica, jamais a
teologia prescindiu de dois elementos fundamentais em
sua constituiçªo metodológica: o auditus fidei e o intellec-
tus fidei. O primeiro pressupıe que o ser humano seja um
auscultor da Palavra, capaz de experimentar a revelaçªo
em funçªo de seu potencial tambØm transcendental que
o possibilita encontrar-se com Deus. Por isso, a fØ Ø aqui
escutada na revelaçªo da própria Palavra de Deus que
estÆ testemunhada na Escritura e tem sua continuidade
formal na Tradiçªo cristª e nas diferentes manifestaçıes
históricas de Deus. Trata-se, entªo, de manusear os da-
dos objetivos – vistos como positivos pela teologia positi-
va – colhidos pelo teólogocom o auxílio de recursos me-
tódicos da filologia, da crítica literÆria, do estruturalismo,
da lingüística e da história, com a finalidade de objetivar
o dado revelado, corrigindo especulaçıes apressadas,
imprecisas e sem fundamentaçªo na Escritura e na
Tradiçªo.
Ao levantar os dados objetivos, surgem novas
questıes e novos problemas, exigindo do teólogo, corri-
gir afirmaçıes anteriores, relativizar determinadas posi-
çıes e, acima de tudo, retornar às fontes da teologia, efe-
tuando uma releitura que dŒ consistŒncia ao dado revela-
do buscado. O exercício do auditus fidei propicia estudar
um tema teológico acuradamente a Escritura, os padres
da Igreja do Ocidente e do Oriente, a história do dogma
relacionada à história da Igreja, para, ao final, sistemati-
zar os elementos teológicos de tudo que foi examinado.
Apesar da objetividade deste elemento epistemológico
interno à teologia, determinados limites sªo presentes,
tais como o dinamismo das categorias filosóficas e das
ciŒncias com as quais a teologia deve manter-se em
diÆlogo.
O intellectus fidei corresponde à articulaçªo entre
fØ e razªo. De fato, a teologia explicita o domínio da ra-
zªo sobre a fØ à luz da fØ, objetivando a relaçªo da ratio fi-
dei com a lumen fidei. Este elemento explica, ordena, or-
ganiza os dados revelados pelo elemento anterior, por
meio da disposiçªo de instrumentos filosóficos e científi-
cos, tomados para levar a cabo o processo de aprofunda-
mento e de inteligibilidade da fØ. Corporifica-se este pro-
cesso pela criaçªo de sistemas teológicos, cujos dados
sªo analisados criticamente e reinterpretados em novos
esquemas e matizes. Dessa maneira, a revelaçªo Ø cons-
tantemente atualizada, dado que sua expressªo Ø históri-
ca e passível de mutaçªo no que se refere à sua forma.
Por isso, este elemento se desenvolve mediante uma lin-
19
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
guagem acessível historicamente, capaz de explicitar ra-
ciocínios, deduçıes, reflexıes teóricas convincentes e
plausíveis à atualidade histórica. Os dados da fØ e o pen-
samento humano sªo articulados, havendo uma coerŒn-
cia intrínseca do discurso da fØ que se pretende ser cons-
tantemente atual, œtil e necessÆrio ao ser humano conce-
bido em sua totalidade histórica. Essa coerŒncia denota
as funçıes de especulaçªo, explicitaçªo e atualizaçªo do
intellectus fidei26.
A articulaçªo entre auditus fidei e intellectus fidei
denota a dialØtica epistemológica da teologia: escutar a
fØ com base na história compreendida na perspectiva de
um lócus congnitivo concreto e assimilÆ-la, teorizando a
sua experiŒncia em forma de teologia. Por isso, Ø de fun-
damental importância compreender a historicidade des-
sa articulaçªo ao longo da história da teologia, cujo re-
sultado Ø a diversidade de formas de produçªo teológi-
ca: a teologia prÆtica, sistematizada, dogmatizada e
aprofundada da Antigüidade; a teologia ontológica, his-
tórica e personalista da Idade MØdia; a teologia da Re-
forma e da Contra-reforma, a teologia dos manuais e as
teologias filosóficas do período moderno; as teologias
protestantes do Profundo, da Palavra, do Kerygma, da
Esperança; as teologias católicas da história do movi-
mento Nouvelle ThØologie, transcendental, da expe-
riŒncia, política, da libertaçªo latino-americana e as teo-
logias do gŒnero, da cultura e as formuladas em contex-
to africano e asiÆtico27.
Na história da teologia antiga, os trŒs primeiros sØ-
culos sªo caracterizados pela formulaçªo de uma teologia
prÆtica e por uma sistematizaçªo dos conteœdos da fØ.
Com isso, anunciava-se o kerygma cristªo para converter
novos membros ao cristianismo e criar novas comunida-
des em regiıes constitutivas de pagªos. Ademais, emergi-
ram correntes filosóficas que propiciaram controvØrsias
ou heresias à fØ cristª, exigindo dos pensadores cristªos –
jÆ marcados positiva ou negativamente pelo helenismo –
o empenho pelo desenvolvimento da via apologØtica por
20
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
26 GON˙ALVES, P.S.L. A relaçªo entre Teologia e Espiritualidade cristª. RCT 24 ,1998. p. 37-58; LIB´NIO, J.B.; MURAD., A. Introduçªo à Teologia. Per-
fil, enfoques e tarefas, Sªo Paulo: Loyola. p. 57-109; RAHNER, K. Sulle vie future della Teologia. In: Nuovia saggi(V). Roma: Paoline, 1974. p.
52-93; PASTOR, F.A. Teologia e Modernidade: alguns elementos de epistemologia teológica. In: GON˙ALVES, P.S.L.; TRASFERETTI, J. Teologia na
Pós-Modernidade. Abordagens Epistemológica, sistemÆtica e teórico-prÆtica. Sªo Paulo: Paulinas, 2003. p. 71-101.
27 LIB´NIO, J.B.; MURAD, A. Introduçªo à Teologia. p. 111-60; BOF, G. Teologia católica. Dois mil anos de história, de idØias, de personagens. Saca-
vØm: Ediçıes Sªo Paulo; VILA NOVA, E. Historia de la teologia cristiana(I-III). Barcelona: Herder, 1992; SESBOÜE, B.;THEOBALD, C. ED. Histoire des
dogmes(IV). La Parole du Salut. Paris: DesclØe, 1996.
meio da sistematizaçªo dos conteœdos da fØ. Afirmou-se,
entªo, o cristianismo como verdadeira filosofia, a teolo-
gia como sabedoria efetivada por meio de símbolos e ale-
gorias. Nesse período, declarou-se, com veemŒncia a au-
toridade dos apóstolos, a articulaçªo entre Escritura e
Tradiçªo com base na regula fidei trinitÆria.
Os sØculos quarto e quinto sªo marcados pelo pro-
cesso de dogmatizaçªo dos conteœdos da fØ, radicados
nos concílios EcumŒnicos de NicØia (325), Constantino-
pla I (381), Éfeso (431) e Calcedônia (451). O dogma ex-
prime a verdade de fØ em uma perspectiva de valor nor-
mativo fundamentado na regula fidei para proporcionar
o desenvolvimento do kerygma. Por isso, foram elabora-
dos decretos, cânones e artigos de fØ que deram um carÆ-
ter jurídico à expressªo dogmÆtica da fØ. Nesse período,
criaram-se as escolas teológicas de Alexandria (AtanÆsio,
Cirilo), da Capadócia (Basílio, Gregório de Nazianzo,
Gregório de Nissa) e de Antioquia (Teodoro, Cirilo de Je-
rusalØm, Joªo Crisóstomo). Essas escolas efetuaram um
processo de inculturaçªo da fØ, porque acolheram, de al-
guma maneira, o helenismo, e souberam fermentar o
conteœdo do evangelho, em um processo de articulaçªo
entre Escritura e Tradiçªo, sob uma forma criativa desen-
volvida com base na cultura helŒnica, contribuindo para
a edificaçªo de uma teologia marcada pela unidade refe-
rendada no dado revelado e pela pluralidade de substra-
tos teológicos.
Do sØculo quinto atØ o oitavo, ocorreu o aprofun-
damento dos conteœdos da fØ que haviam sido consoli-
dados nas expressıes dogmÆticas dos concílios ecumŒni-
cos. Na fase do esplendor, estavam Jerônimo, Ambrósio,
Agostinho, Leªo Magno e EfrØm. Destaque maior Ø dado
a Agostinho de Hipona, que uniu a fØ recebida de
Ambrósio de Milªo com a experiŒncia filosófica herdada
dos maniqueus. Com base no paradigma espiritualista –
via interior – da filosofia antiga, procurava una verissi-
mae philophiae disciplina. A filosofia Ø a ars bene vivendi,
que procura a sabedoria e a verdadeira felicidade, supe-
rando a regiªo do vício e do erro, atØ chegar à terra da
virtude e da verdade. Assim, o estudioso bispo de Hipona
supera a dœvida dos acadŒmicos e encontra-se com o
Deus da revelaçªo da Nova Aliança. Com isso, a inteli-
gŒncia se integra à fØ (intellige ut credas), a lumen rationis
se une à lumen fidei, a fØ procura a inteligŒncia de si mes-
ma (crede ut intelligas) e lumen fidei e intellectus fidei se
articulam. Na fase final estavam Gregório Magno, Isidoro
de Sevilha, BoØcio e Joªo Damasceno. Desses autores,
surgiram especulaçıes teológicas em torno do tema da
Trindade e todos os outros temas dele derivados, tais
como a concepçªo de Pessoa trinitÆria, o significado de
21
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
substância divina, o entendimento do Filioque, a afirma-
çªo de uma teologia pneumÆtica especialmente no que
se refere às açıes litœrgicas da Igreja.
A história da teologia medieval estÆ marcada pe-
las etapas de gestaçªo, de iniciaçªoe de esplendor, bem
como pela incidŒncia da matriz platônico-agostiniana
que se tornou hegemônica na Antigüidade. Na primeira
etapa, a teologia era assaz veiculada nas escolas de aba-
dias e bispados por meio de obras compiladas e repro-
duzidas, cujo princípio de autoridade dos textos, fazia
acreditar que eles transmitiam, fiel e inviolavelmente, a
Palavra de Deus. A teologia limitava-se à leitura e co-
mentÆrio da Escritura, influenciados por textos dos pa-
dres da Igreja.
Na segunda etapa, compreendida entre os sØculos
X e XII, descobriram-se os escritos de Aristóteles sobre o
saber de demonstraçªo, os quais proporcionaram a com-
preensªo da importância do confronto entre os pólos ne-
gativos e positivos. Desse modo, elaborou-se a metodo-
logia dialØtica de pensamento, cuja influŒncia Ø notÆvel
na teologia, especialmente no que se refere ao esquema
binominal conservador-inovador. Bernardo de Claraval,
tido como conservador, pretenso em entender o mistØrio
divino, encontra oposiçªo em Abelardo que codifica o sic
et non e em Pedro Lombardo que consagra a dialØtica
em seu Livro das Setenças. Por sua vez, Anselmo assume
o pensamento monÆstico agostiniano, unindo-o à espe-
culaçªo dialØtica. Por essa uniªo, esse teólogo desenvol-
veu a teologia dialØtica de via interior, de cunho apofÆti-
co, subordinando a razªo à fØ. Nessa etapa, seis elemen-
tos foram constitutivos do ensino teológico: a Lectio, o
Commnetarium, a Quaestio, a Disputatio, o Quodlibet, a
Sententiae. O mestre explicava a liçªo aos alunos que de-
veriam retŒ-la em sua memória, apresentava a exegese
das grandes obras dos padres da Igreja, expunha a con-
traposiçªo do que fora afirmado atØ entªo. Mestre e alu-
nos discorriam juntos sobre temas e pensamentos de de-
terminado autor ou obra, estendiam a disputatio e, en-
fim, retomavam-se as sumas teológicas.
Nesse contexto, tem-se a terceira etapa, conside-
rada o esplendor da escolÆstica. O maior representante
foi, sem dœvida, TomÆs de Aquino, cujo mØrito funda-
mental esteve em assumir o aristotelismo e aplicÆ-lo em
teologia, buscando formar uma síntese com o plantonis-
mo agostiniano. O Aquinate relaciona o credere com o
intelligere, distinguindo um do outro para uni-los por
meio da via de relaçªo, afirmaçªo e negaçªo, articulando
a ciŒncia de Deus comunicada pela revelaçªo – teologia –
e a ciŒncia humana alcançada pela autonomia do pensa-
mento humano – filosofia. Afirma-se aqui uma teologia
22
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
catafÆtica e realista que, fundamentada na Escritura e na
Tradiçªo, articula a razªo à fØ, dando prioridade à lumen
fidei diante da lumen rationis. A escola franciscana tam-
bØm surgiu nessa Øpoca e sua marca fundamental foi a de
levar a cabo uma teologia personalista, especialmente
com Boaventura de Bagnoregio – companheiro do
AngØlico em Paris – que, seguindo o clima intelectual da
EscolÆstica, escreveu suas obras em carÆter de Suma
Teológica. Da mesma escola, destacaram-se tambØm
Alexandre de Hales, RogØrio Bacon e Duns Scotto, este
œltimo tendo sido um grande crítico dos grandes sistemas
teológicos jÆ constituídos, em nome da separaçªo entre a
consciŒncia racional e o conhecimento teológico. Ele
concebia a teologia como uma disciplina eminentemente
prÆtica, iluminadora, para se atender e atingir o fim œlti-
mo do ser humano. A corrente mística – Mestre Eckhart,
G. Tauler, H. Suso – tambØm deve ser recordada, pois
trouxe à tona os temas da interioridade, do silŒncio, do
recolhimento, do amor ativo e modesto, a conformidade
com Cristo evangØlico e a fuga do mundo. Ademais, hÆ
ainda o nominalismo de Guilherme de Ockan, uma cor-
rente moderna da EscolÆstica, que radicalizou algumas
orientaçıes escotistas como a separaçªo da religiªo da
fØ, a œnica capaz de fundamentar o conhecimento de
Deus, dado que os conceitos da razªo sªo meramente
“nomes”. Indubitavelmente, a teologia medieval conce-
be a teologia como uma ciŒncia da fØ, servindo-se da fi-
losofia platônica e aristotØlica para se firmar como uma
evidente apologia da revelaçªo, da graça e do sobrena-
tural, possibilitando muitas discussıes e um claro plura-
lismo teológico.
A teologia moderna Ø marcada pela irrupçªo do
espírito da modernidade, marcadamente antropocŒntri-
co e cientificista, caminhos pelos quais se enveredaram a
racionalidade filosófica, conforme jÆ explicitado acima.
Nesse sentido, a teologia católica assumiu a perspectiva
apologØtica, consolidada no Concílio de Trento e efetiva-
da na emergŒncia da corrente dos espiritualistas – Tereza
D’`vila, Joªo da Cruz, InÆcio de Loyola – e nas escolas
manualísticas dos dominicanos, dos jesuítas e dos fran-
ciscanos. A teologia protestante, que surgiu com a Refor-
ma inaugurada por Lutero, Calvino e Zuinglio, propiciou
o surgimento de uma teologia com explícita marca filosó-
fica, fundamentada na razªo moderna. Isso significa que
o antropocentrismo moderno penetrou as teologias pro-
testantes, de modo que elas apresentaram a equiparaçªo
entre religiªo e moral, a autonomia da razªo em relaçªo à
fØ, o carÆter dialØtico e transcendental da história e a fisio-
nomia contextual e formal da exegese bíblica. Com isso,
a teologia católica, caracterizada pela identidade apolo-
23
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
gØtica, emitiu a necessidade de encontrar uma posiçªo
que fosse capaz de defrontar-se com os investimentos
epistemológicos da Modernidade, incisivos na cultura.
Por isso, o Concílio Vaticano I (1869-1870) tornou-se
um evento fundamental à compreensªo da passagem
da teologia católica apologØtica na era moderna para
uma teologia em diÆlogo com a modernidade no perío-
do contemporâneo.
Por meio da constituiçªo dogmÆtica Dei Filius28, o
Concílio Vaticano I refutou as posiçıes fideísta, raciona-
lista, naturalista e panteísta, oriundas da Modernidade e
abarcou a articulaçªo entre fØ e razªo. Nªo houve sobre-
posiçªo da fØ à razªo e vice-versa, mas a articulaçªo su-
pıe que a razªo explica a fØ à luz da fØ. Assim, nªo hÆ ra-
tio fidei sem a lumen fidei. Por sua vez, Leªo XIII, de sua
carta encíclica Aeterni Patris29 deu continuidade a essa
articulaçªo, apontando o neotomismo como um substra-
to filosófico-teológico, capaz de colocar a Igreja no con-
texto da Modernidade, embora seu sucessor, Pio X – por
meio de sua carta encíclica Pascendi dominici gregis30 te-
nha se tornado um protagonista importante da crise mo-
dernista em que se sucedeu a condenaçªo de diversos as-
pectos da Modernidade por parte da Igreja.
No entanto, o movimento de renovaçªo teológica
teve grande impulso no sØculo XX. Nesse período, a ver-
tente teológica protestante desenvolve um caminho espe-
culativo que reflete a verdade sobre Deus, tendo em vista
o Profundo da realidade humana, individual e social,
com base na encarnaçªo histórica do verbo divino deno-
tativo da dialØtica da Palavra e assumindo a categoria
história como relevante e pertinente à compreensªo da
revelaçªo de Deus.
Por sua vez, a teologia católica desenvolveu-se em
percurso de contemporaneidade, efetuando-se como
complexo teórico aberto, plural e dialógico. Nesse senti-
do, emergiu a teologia transcendental que afirmou o ca-
rÆter antropológico da teologia, demonstrando a impos-
sibilidade da compreensªo de Deus sem voltar-se para a
realidade do ser humano. O transcendental foi caracteri-
zado como a condiçªo de possibilidade e estrutura do es-
pírito infinito no mundo, presente a priorii no espírito hu-
mano. Por isso, o ser humano Ø um auscultor da palavra,
24
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
28 DZ 3000-3045.
29 DZ 3135-3140.
30 DZ 3475-3500.
aberto à graça, imbuído de liberdade para atuar no mun-
do em comunhªo com Deus.
Para a afirmaçªo da teologia transcendental, foi im-
portante tambØm o desenvolvimento da teologia da histó-
ria, presente no movimento Nouvelle ThØologie das esco-
las de Lyon e Saulchoir, levadas a cabo pelosjesuítas e pe-
los dominicanos respectivamente. A história foi vista como
uma categoria referente ao campo dos acontecimentos
humanos em que o ser humano Ø manifestado como seu
sujeito e produtor. Nessa produçªo, Deus se revela, utili-
zando-se do tempo e do espaço em que o ser humano estÆ
situado. Dessas correntes, emergem os temas do ecume-
nismo, do diÆlogo inter-religioso, do relacionamento entre
fØ cristª e ciŒncia, entre cristianismo e ateísmo.
De todo esse movimento teológico acoplado aos
movimentos de renovaçªo litœrgica, bíblica e pastoral, à
criaçªo do Conselho Mundial das Igrejas e ao MagistØrio
eclesiÆstico, que assumiu temas relativos à doutrina so-
cial da Igreja, à dogmÆtica teológica e à Escritura, emer-
giu o Concílio Vaticano II, evento profundamente reno-
vador e catalisador das angœstias, tristezas, alegrias e es-
peranças da humanidade, tendo em vista o aperfeiçoa-
mento da presença da Igreja no mundo. A teologia saída
do referido Concílio estÆ marcada pela dialØtica entre
mistØrio e história presente no diÆlogo da teologia com as
ciŒncias, na unidade dos cristªos, no diÆlogo inter-religio-
so, na redescoberta do horizonte pastoral na teologia e
uma espiritualidade que realça a historicidade da revela-
çªo divina.
Com base na perspectiva conciliar de abertura e
de diÆlogo da teologia com o mundo, presente tambØm
na vertente protestante, surgiram novas formulaçıes teo-
lógicas comprometidas com a afirmaçªo da prÆxis. Assim
devem ser entendidas as teologias da experiŒncia, da es-
perança e política, as quais nªo sªo temas teológicos,
mas novas perspectivas teológicas. Sªo novas teologias
de cunho fundamental que apresentam a incidŒncia do
sujeito humano na história, promovendo uma prÆxis efe-
tivamente transformadora do mundo. Com isso, a expe-
riŒncia modifica-se em um elemento crucial para a elabo-
raçªo de tratados teológicos que nªo apenas expressem
carÆter doutrinal, mas tambØm apresentam carÆter her-
menŒutico de atualizaçªo da fØ positiva, teorizada com
base em um locus experiencial efetivo da realidade hu-
mana. A política permite à teologia ser narraçªo, memó-
ria e solidariedade, relembrando o evento Jesus Cristo
em contexto de vinda iminente do Reino, sendo um sinal
eficaz desse mesmo Reino na história e proporcionando
uma atuaçªo de proximidade com os seres humanos pri-
vados de viver abundantemente na história. A esperança
25
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
Ø a categoria que permite dar carÆter histórico à escatolo-
gia, visualizando os crucificados deste mundo para apre-
sentÆ-los um Deus que sofre e ressuscita com eles.
Da formulaçªo das teologias da prÆxis emergem as
teologias da libertaçªo latino-americana, feminista, negra
norte-americana, africana, sul-africana, asiÆtica e do plu-
ralismo religioso. Essas teologias, denominadas contex-
tuais, do gŒnero e da cultura denotam o espírito de histori-
cidade e de diÆlogo desencadeado na formulaçªo de com-
plexos teológicos pelo Concílio Vaticano II. Alguns pontos
sªo comuns nessas teologias. O primeiro Ø a articulaçªo
entre fØ positiva e o locus dos pobres no sentido econômi-
co, político, social, cultural e religioso. O clamor dos po-
bres pela justiça, o seu sofrimento, a sua morte prematura
e a sua esperança de um novum mundano tornam-se o lu-
gar epistemológico de produçªo teológica. A partir desse
lugar, efetua-se uma nova leitura da Escritura e da Tradi-
çªo teológica – fØ positiva – tornando efetivamente atuais
e eficazes31. O segundo Ø a demonstraçªo de que a espe-
rança possui um lugar concreto de realizaçªo e que os po-
bres possuem força histórica transformadora e evangeliza-
dora32. O terceiro Ø a nªo-reduçªo da categoria pobre ao
seu status econômico, mas que abarca tambØm a condi-
çªo política, social, cultural e religiosa. Pobre Ø o assalaria-
do explorado em sua força de trabalho, Ø o negro margi-
nalizado, Ø a mulher vítima do machismo uxoricida, Ø o
anciªo visto em sua nªo-produtividade, Ø o jovem sem tra-
balho e drogado, Ø a criança que vive nas ruas sem ter
onde reclinar a cabeça, Ø todo aquele que nªo tem terra
nem casa para habitar33. O quarto elemento Ø correspon-
dente à dialØtica entre o universal e o particular, porque
sªo teologias produzidas em totalidade contextual deter-
minada e específica, mas sªo sempre complexos teológi-
cos marcados pela articulaçªo entre o auditus fidei e o in-
tellectus fidei. O œltimo elemento Ø denotativo da plurali-
dade que caracteriza a atualidade da história, possibilitan-
do a percepçªo do diferente religioso, cultural, Øtnico, polí-
tico, bem como o de gŒnero34.
26
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
31 BOFF, C. Epistemologia em la teologia de la liberación, MysL I, p. 79-115.
32 A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1979.
33 BOFF, C.; PIXLEY, J. Opçªo pelos pobres. Petrópolis: Vozes, 1987.
34 CHENU, B. ThØologies des Tiers Mondes. Latino-amØricaine, noire-amØricaine, noire sud-africaine, africaine, asiatique. Paris: Le Centurion, 1987;
GON˙ALVES, P.S.L. A Teologia do Concílio Vaticano II e suas conseqüŒncias na emergŒncia da Teologia da Libertaçªo. In: GON˙ALVES, P.S.L.;
BOMBONATTO, V.I. (ed.) Concílio vaticano II. AnÆlise e prospectivas. Sªo Paulo: Paulinas, 2004, p. 69-94.
Ao considerar as diferentes formulaçıes históricas
da teologia, afirma-se a necessÆria contemporaneidade
do discurso teológico. Assim, a teologia deverÆ sempre
buscar atender aos sinais dos tempos por objetivar de-
monstrar com eficiŒncia e eficÆcia o novum do conteœdo
revelado. Isso justifica a reflexªo epistemológica da pro-
duçªo teológica na Pós-modernidade.
3 Teologia na Pós-modernidade
De acordo com a exposiçªo acima, a eficÆcia da
teologia estÆ em ser sempre contemporânea de seu perío-
do histórico. Isso significa afirmar que a teologia nªo
pode ser exclusivamente a sistematizaçªo ou dogmatiza-
çªo de determinados conteœdos da fØ – como na teologia
antiga –, nem se desenvolver como ciŒncia da fØ por in-
termØdio do mØtodo descendente – como na teologia es-
colÆstica – ou ser uma reflexªo crítica da fØ por intermØ-
dio do mØtodo ascendente – como nas teologias da histó-
ria, transcendental e da prÆxis – nem tampouco defender
as inovaçıes filosóficas – como a teologia apologØtica
moderna. Trata-se de forjar um mØtodo epistemológico
eficiente para compreender o significado da lógica da ra-
zªo sensível, necessÆria ao contexto pós-moderno, capaz
de ser complexa, nômade, aberta, transversal, plural e
flexível35. AlØm disso, a teologia deverÆ tambØm ser mar-
cada pela centralidade da vida, considerando a diversi-
dade de vidas no universo e a peculiaridade do ser hu-
mano colocada pela fØ.
Para que a teologia seja efetivamente eficaz no in-
terior do clima intelectual pós-moderno, torna-se neces-
sÆrio enveredar-se pelo caminho da hermenŒutica, a
qual foi assumida em diferentes Æreas teológicas, especial-
mente na teologia bíblica e na teologia dogmÆtica. Por
hermenŒutica teológica entende-se a via teórica pela qual
se busca a verdade de uma experiŒncia textual ou oral de
fØ, com base na compreensªo e na conseqüente interpre-
taçªo, considerando o contexto vital em que essa expe-
riŒncia foi produzida e a tradiçªo de sua transmissªo. Isso
significa afirmar que as categorias teológicas demonstra-
tivas da verdade da fØ estªo imbuídas de uma cultura in-
cidente na linguagem filológica, no simbolismo estØtico e
na postura Øtica. Essas categorias pertencem a um perío-
27
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
35 OLIVEIRA, M.A. Pós-Modernidade. Abordagem filosófica. In: GON˙ALVES, P.S.L. – TRASFERETTI, J. Teologia na Pós-Modernidade. Abordagens
epistemológica, sistemÆtica e teórico-prÆtica. Sªo Paulo: Paulinas, 2003. p. 21-52.
do histórico determinado e sªo capazes de reinterpretar o
conteœdo de fØ presente na Escritura que, por sua vez,
traz consigo uma determinada expressªo cultural. Uma
vez quese faz a compreensªo do contexto vital do texto
produzido, examina-se a efetividade desse texto em sua
tradiçªo, passa-se à interpretaçªo que elimina a verdade,
vista como adequatio ou como enunciado dogmÆtico fe-
chado, e enuncia uma verdade aberta e acolhedora de
melhores expressıes lingüísticas e estØticas consoantes à
sua realidade. Dessa maneira, a hermenŒutica teológica
proporcionarÆ buscar o conteœdo de fØ na Escritura, na
Tradiçªo eclesial e teológica e nas diferentes expressıes
históricas que contribuam para a descoberta e para a re-
descoberta da verdade teológica36.
Com isso, a hermenŒutica teológica supera todo
tipo de fundamentalismo, cujo espírito Ø ler um texto com
base na mera eficiŒncia da letra. No fundamentalismo,
nªo se desenvolve a atividade de apropriaçªo de um tex-
to em seu contexto nem a atividade crítica que dªo con-
sistŒncia à hermenŒutica. O fundamentalismo tolhe o tex-
to de seu contexto histórico e de sua historicidade espiri-
tual, enraíza-se no tradicionalismo que, por sua vez, sa-
craliza a letra e a desintegra do seu autŒntico espírito.
AlØm disso, o fundamentalismo propicia a efetividade do
integralismo, cujo objetivo Ø realizar o predomínio de
uma determinada doutrina sobre um texto que estÆ sen-
do interpretado.
Em teologia, o fundamentalismo se efetua de dois
modos: o escriturístico e o doutrinal. No primeiro, o texto
bíblico Ø isento de uma interpretaçªo que considere o ca-
minho hermenŒutico descrito acima, cuja conseqüŒncia Ø
o esvaziamento do efetivo sentido da palavra de Deus
contida na Escritura. A inerrância bíblica torna-se um ele-
mento mal compreendido de modo que se impossibilita a
atualizaçªo da palavra de Deus. No segundo tipo de funda-
mentalismo, a doutrina da Igreja assume uma infalibilida-
de sem espírito. O dogma Ø isento de anÆlise históri-
co-crítica e sua atualizaçªo Ø œnica e exclusivamente a afir-
maçªo de sua letra. O seu espírito distancia-se da letra e
seu sentido atual torna-se inócuo. Nesses dois tipos de fun-
damentalismo, hÆ uma concepçªo ingŒnua de inspiraçªo
que garante como significado o significante. Entende-se
que os textos escriturísticos foram ditados por Deus em seu
conteœdo e em sua forma. Prevalece, entªo, o sentido lite-
ral e discrimina-se o sentido espiritual da Bíblia. O mesmo
acontece com o dogma. Ele Ø visto como verdade revela-
28
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
36 GEFFRÉ, C. Le christianisme au risque de l’interpretation. Paris: Cerf, 1983.
da em seu sentido literal e seu significado nªo Ø atualizado,
portanto nªo se torna efetivamente vital37.
A efetividade da hermenŒutica teológica possui
uma história na teologia cristª que acompanha a herme-
nŒutica filosófica. Trata-se de compreender que a teolo-
gia protestante do sØculo XIX trouxe à tona a história das
formas que propiciou o mØtodo histórico-crítico na exe-
gese bíblica, assumido no movimento de retorno às fon-
tes do supracitado movimento Nouvelle ThØologie e no
magistØrio eclesiÆstico pelo Papa Pio XII em sua carta en-
cíclica Divino Afflante Spiritu38 e pelo Concílio Vaticano II
em sua constituiçªo dogmÆtica Dei Verbum39.
Em síntese, assumiu-se que os textos bíblicos pos-
suem contextos específicos em que foram escritos, gŒne-
ros literÆrios – fÆbulas, contos, novelas, sagas, etc. – e que
Deus escreve por intermØdio dos hagiógrafos. A Bíblia Ø
Palavra de Deus escrita por mªos humanas, cuja leitura
necessita de uma interpretaçªo efetuada por uma herme-
nŒutica correta denominada conciliar. A Tradiçªo eclesial
e teológica possui tanto valor quanto a Escritura; ela Ø a
transmissªo fiel da Palavra de Deus, de modo que essa Ø
sempre viva, cortante e eficaz.
A hermenŒutica conciliar concebe a Tradiçªo
como ato de interpretaçªo criativa, capaz de superar as
prÆticas tradicionalistas e integralistas subjacentes no fun-
damentalismo. Assim concebida, a Tradiçªo eclesial e teo-
lógica mantØm-se fiel ao passado, na medida em que o
que Ø transmitido nªo Ø simplesmente um texto ou um
evento do passado, mas um evento sempre atual, enrai-
zado no passado, pertinente ao presente e aberto ao futu-
ro. Dessa forma, a Tradiçªo fundamental da teologia cris-
tª estÆ presente no novo testamento, cujo evento fundan-
te Ø Jesus Cristo em sua revelaçªo aos apóstolos. A partir
desse fato fundamental, tem-se a recuperaçªo da tradi-
çªo oral neotestamentÆria e a tradiçªo veterotestamentÆ-
ria interpretada segundo a chave cristª. Da mesma ma-
neira, deve-se entender o dogma. Seu conteœdo Ø todo
escriturístico, e sua forma Ø contextual, situada em deter-
minados momentos do cristianismo que necessitaram de
formulaçıes dogmÆticas.
Para sua consistŒncia, a hermenŒutica conciliar
interroga o texto bíblico ou dogmÆtico examinado de
uma maneira que se aproxime o mÆximo possível da
verdade acerca das interrogaçıes que o próprio texto
29
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
37 GEFFRÉ, C. Crer e interpretar. A virada hermenŒutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 83-129.
38 DZ 3825-3831.
39 DZ 4201- 4235.
busca responder. Torna-se necessÆrio, neste caso, fazer
uma leitura crítica sobre o texto, jÆ que hÆ sempre uma
dialØtica entre o texto lido e a tradiçªo de sua transmis-
sªo e da relaçªo entre a fØ e a história original dessa
mesma fØ. Afirma-se, entªo, que toda verdade Ø históri-
ca e necessitada de movimento de interpretaçªo cons-
tante. Por isso, Ø importante fazer a correlaçªo crítica
entre a experiŒncia cristª fundamental e as experiŒncias
humanas da atualidade, tendo em vista recepcionar cria-
tivamente o texto lido, de modo que contribua na edifi-
caçªo dos novos estados de consciŒncia dos seres hu-
manos. Nesse sentido, a reinterpretaçªo de uma períco-
pe bíblica ou de um enunciado dogmÆtico, pode levar a
uma reformulaçªo do significado da mensagem e da
fórmula dogmÆtica. Com isso, um novo jogo de lingua-
gem torna-se possível: mais flexível, mais contundente,
mais histórico e mais complexo40.
A afirmaçªo da hermenŒutica teológica deverÆ
consolidar e aprofundar o diÆlogo da teologia com as
ciŒncias humanas. Este diÆlogo jÆ estÆ consolidado des-
de o Concílio Vaticano II, especialmente, na constitui-
çªo pastoral Gaudium et Spes em que se analisa a situa-
çªo atual do mundo, os dramas da humanidade e os de-
safios emergentes à Igreja, com a finalidade de oferecer
à teologia melhores condiçıes de compreender sistemÆ-
tica e rigorosamente o ser humano no atual momento
histórico.
Historicamente, foi a teologia da libertaçªo que
melhor serviu-se desse diÆlogo, manifestando-se como
um complexo teórico constituído das mediaçıes socioa-
nalítica, hermenŒutica e teórico-prÆtica. Assim, analisa-se
a realidade com auxílio das ciŒncias sociais e da história,
interpreta-se essa realidade à luz da hermenŒutica que re-
quer o uso da lingüística, da história, da arqueologia, da
exegese bíblica e inferem-se elementos que fomentem
uma prÆxis histórica libertadora41. A relaçªo da teologia
com o marxismo, em suas diferentes formas, tornou-se
instrumental, pois a eficÆcia da fØ estÆ em sua capacidade
de compreender a realidade histórica em que estÆ situada
de maneira precisa. Por isso, foi aprofundado o significa-
do da categoria pobre em sua condiçªo de lugar de pro-
duçªo teológica.
Com a crise do socialismo real, a mediaçªo das
ciŒncias sociais tornou-se insuficiente para compreender
30
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
40 GEFFRÉ, C. Crer e interpretar, p. 29-129.
41 BOFF, C. Teologia e PrÆtica. Teologia do político e suas mediaçıes. Petrópolis: Vozes, 1978; BOFF, C.; BOFF, L. Da libertaçªo. O teológico das liber-
taçıes sócio-históricas. Petrópolis: Vozes, 1985.
a totalidade da realidade histórica, exigindo a utilizaçªo
de outras mediaçıes das ciŒncias humanas, especialmen-
te da psicologia e da antropologia profunda, tendo em
vista à compreensªo de um ser humano integral, efetiva-
mente livre e capazde criar relaçıes de solidariedade en-
tre os povos42.
O diÆlogo científico da teologia nªo se esgota
nas ciŒncias humanas. Torna-se necessÆrio desenvol-
ver tambØm o diÆlogo com a biologia e com a física,
tendo em vista a evolutiva consciŒncia ecológica, cada
vez mais presente no pensamento pós-moderno. Na
verdade, houve a passagem do paradigma naturalista
para o paradigma ambiental, acentuando a interaçªo
do ser humano com a natureza. Nessa perspectiva, ela-
bora-se uma teologia ecológica, capaz de denunciar a
crise ecológica, na qual o ser humano surge como um
dØspota, um tirano que destrói a natureza, assumindo
a condiçªo de um senhor conquistador. Em contrapo-
siçªo a essa crise estÆ a teologia ecológica que afirma,
com base no desenvolvimento de uma espiritualidade
cósmica, que recupera o Deus unitrinitÆrio da realiza-
çªo efetiva da hipótese Gaia, que considera a terra
como solo e como planeta, e da aliança entre Deus, o
ser humano e a natureza43. Essa formulaçªo teológica
nªo teria adquirido consistŒncia sem o diÆlogo com a
biologia e com a física. De fato, essas duas ciŒncias
muito evoluíram nas œltimas dØcadas e muito contri-
buíram acerca da investigaçªo sobre o ser humano e
sobre o mundo, tendo a vida como centro44. Dialogar
com a biologia, implica, para teologia, defrontar-se
com as teorias evolucionistas neodarwinistas e com
outras correntes que denotam novas descobertas bio-
lógicas a respeito da vida. O diÆlogo com a física, parti-
cularmente com a física quântica, possibilita à teologia
formular uma reflexªo ecológica de entrelaçamento
dos seres vivos e desses com os seres nªo-vivos, propi-
31
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
42 GUTIÉRREZ, G. La verdad los hara libres. Salamanca: Sígueme, 1990; SEGUNDO, J.L. Signs of the Times. Theological Reflections. Maryknoll; New
York: Orbis Books, 1993.
43 MOLTMANN, J. Dio nel progetto del mondo moderno. Contributi per una rilevanza pubblica della teologia, Brescia: Queriniana, 1999. p. 91-114; Id.
Gott in der Schöpfung. Ökologische Schöpfungslehre. München, Kaiser, 1985.
44 MARGULIS, L.; SAGAN, D. O que Ø Vida? Rio de Janeiro: Zahar, 2002; CAPRA, F. A teia da vida. Uma nova compreensªo científica dos sistemas vivos.
Sªo Paulo: Cultrix, 1996; Id. As conexıes ocultas. CiŒncia para uma vida sustentÆvel. Sªo Paulo: Cultrix, 2002.
ciando compreender a totalidade do universo como
Mysterium Creationis45.
HÆ de se ressaltar que, no diÆlogo científico, uma
nova relaçªo da teologia com a filosofia hÆ de ser edifica-
da. Deve-se superar a visªo clÆssica que colocava a filo-
sofia como serva da teologia. As diferentes contribuiçıes
e avanços da filosofia na modernidade, especialmente
nas referŒncias à antropologia e à ciŒncia, e a emergŒn-
cia de uma filosofia pós-moderna marcada pela diferen-
ça, pela abertura sistŒmica, pelo pluralismo e pela trans-
versalidade, proporcionam à teologia a efetividade do
caminho hermenŒutico do diÆlogo com as diversas ciŒn-
cias. No diÆlogo com a filosofia, a teologia encontrarÆ a
mediaçªo necessÆria para dialogar com a biologia e a fí-
sica com a finalidade de elaborar uma teologia da cria-
çªo e uma antropologia teológica constitutivas de mati-
zes que propiciam melhor compreensªo das implicaçıes
da fØ e da revelaçªo nesses tratados teológicos. Dessa
maneira, construir-se-Æ um horizonte interdisciplinar na
teologia, reforçando a sua identidade como ciŒncia e re-
flexªo crítica da fØ, visando à sua contemporaneidade
científica46.
TrŒs temas ainda modernos da hermenŒutica teo-
lógica sªo pertinentes e relevantes ao complexo teórico
teológico: o ecumenismo, o pluralismo religioso e a
liberdade.
O ecumenismo compreende a busca de superaçªo
das divisıes presentes no cristianismo. As raízes das divi-
sıes nªo sªo de carÆter teologal, mas de cunho histórico.
Por isso, os esforços pela construçªo da unidade tŒm
tambØm uma intensa história, especialmente a partir do
sØculo XX, tanto no âmbito protestante quanto no católi-
co. Assim sendo, nªo foram poucos os esforços da teolo-
gia do Profundo para encontrar a verdade (Wharheit) na
realidade mais profunda da existŒncia humana47; da teo-
logia da Palavra, que afirmou a encarnaçªo do Verbo de
32
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
45 HAUGHT, J.F. Deus após Darwin. Uma teologia evolucionista. Rio de Janeiro: JosØ Olympio, 2003; ARNOULD, J. A Teologia depois de Darwin.
Elmento para uma teologia da criaçªo numa perspectiva evolucionista. Sªo Paulo: Loyola, 2001; Id. Darwin, Teilhard de Chardin e Cia. A Igreja e
a evoluçªo, Sªo Paulo: Paulus, 1999; SUSIN, L.C. (ed.). Mysterium Creationis. Um olhar interdisciplinar sobre o Universo. Sªo Paulo: Soter; Pauli-
nas, 1999; BOFF, L. Ecologia. Grito da Terra, grito dos pobres, Sªo Paulo: `tica, 1996.
46 PANNENBERG, W. Questioni fondamentali di Teologia SistemÆtica. Brescia: Queriniana, 1974; SEGUNDO, J.L. QuØ mundo? QuØ hombre? QuØ
Dios? Santander: Sal Terrae, 1993; NEUTZLING, I. (ed). A teologia na Universidade contemporânea. Sªo Leopoldo: UNISINOS, 2005.
47 TILLICH, P. Teologia sistemÆtica. Sªo Leopoldo; Sªo Paulo: Sinodal; Paulinas, 1984, p. 661-85.
Deus na história para salvar todos os seres humanos48; da
eclesiologia total, que elaborou a teologia do Povo de
Deus messiânico, cuja presença no meio dos seres huma-
nos Ø histórica, antropológica, missionÆria, dialogal e
ecumŒnica49; da Øtica mundial que prevŒ que um ethos
universal deverÆ unir as Igrejas cristªs e as religiıes todas
para construir uma humanidade capaz de viver a fraterni-
dade, a justiça e a paz50.
Produzir a reflexªo teológica sobre a unidade dos
cristªos em perspectiva ecumŒnica implica assumir o mØ-
todo hermenŒutico da unidade que leva a cabo a centra-
lidade da cristologia trinitÆriaia que afirma Jesus Cristo
como o Senhor, o Salvador, o Messias, o Filho de Deus
que redimiu toda a humanidade do pecado, o Verbo en-
carnado, cuja origem estÆ eternamente no Pai e cuja for-
ça estÆ no Espírito de amor. Dessa maneira, o carÆter
ecumŒnico da teologia supera o fundamentalismo, o tra-
dicionalismo e o integralismo, e abrange a catolicidade, a
apostolicidade e a santidade, promovendo uma verdade-
ira oikoumene, construída no fortalecimento de todos os
movimentos históricos que impulsionam a unidade, no
estabelecimento efetivo da hierarquia das verdades con-
sistente à fØ, na coerente articulaçªo entre Escritura e Tra-
diçªo, capaz de superar a tensªo entre a teoria das duas
fontes e o princípio solo scriptura. Essa centralidade estÆ
marcada por uma recepçªo hermenŒutica que exige
abertura das diferentes igrejas cristªs ao diÆlogo, ao res-
peito e à busca de caminhos efetivamente ecumŒnicos
que denotem a revelaçªo da verdade cristª51.
O pluralismo religioso, embora moderno, estÆ in-
serido no clima tipicamente pós-moderno em que se su-
pera o monismo excludente, reinterpretando a mensa-
gem cristª e redescobrindo a veracidade de seu carÆter
soteriológico. Isso se deve ao fato de que, no caminho da
hermenŒutica teológica, descobre-se a universalidade da
salvaçªo cristª como princípio fundamental para se ad-
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I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
48 BARTH, K. Die Kirchliche Dogmatik (I). Verlag; Zürich: EVZ, 1932.
49 CONGAR, Y. DiversitØs et communion. Dossier historique et conclusion thØologique Paris: Cerf, 1982, Id. ChrØtiens desunis. Principes d’un oecumØ-
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50 KÜNG, H. Theologie im aufbruch. Eine öikumenische Grundlegung. München; Zürich: Pipper, 1999; Id. Projeto de Øtica mundial. Uma moral ecu-
mŒnica em vista da sobrevivŒncia humana. Sªo Paulo: Paulinas, 1992. p. 147-96.
51 SANTA ANA, J. Ecumenismo e libertaçªo. Petrópolis: Vozes, 1987; GON˙ALVES, P.S.L. O sonho da unidade dos cristªos. Eclesiologia ecumŒnica
elaborada a partir dos princípios católicos e das comissıes

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