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Semântica do Acontecimento

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Um Estudo Enunclatluo
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Eduardo Guimaráes
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30/11/11 R$10,87
Copyright @ Eduardo Guimarães
Indices para catálogo sistemático:
PONTES EDITORES
|1 P. Arlindo Joaquim de Lemos, 133313100-451 Campinas Sp Brasil
Fone (19) 3252.6011
Fax (19)32s3.0769
ponteseditores@ponteseditores. com. br
2005
Impresso no Brasil
Ernesto Guimarães
Capa: Eckel Wayne
sores da pontes Editores
Dados Internacionais de Catatogação na publicação (CIp)
Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil
Guimarães, Eduardo
Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo
da designação / Eduardo Guimarães _ Curnpinu., õp ,Pontes, 2" edição, 2005.
Bibliografia.
ISBN 85-71 I3_161_9
l. Lingüistica 2. Nomes de rua 3. Nomes geográficos
4. Nomes pessoais 5. porruguês _ semântica i. iit"l"
02-007 5 cDD-469.2
SUMARIO
APRESENTAÇÃO 
.....
TNTRODUÇÃo..........
C¡piruto I
ENTiNCIAçÃO B ACONTECTMENTO 
...
Ctpiruro II
O NOME PRÓPRIO DE PESSOA
C,qpírurc III
NOMES DE RUA
It
CtpÍrurc IV
NOMES DE RUA E O MAPA COMO TEXTO
C,qpiruro V
NOMES DA CIDADE
C¿pirurc VI
A CIDADE E OS NOMES DE ESPAçO 
....
CONCLUSÃO 
.......
BIBLIOGRAFIA...
5
7
l' Designação : Estudo enunciativo : Semântica : português : Lingüística 469.22. Nomes ; Sentido : Semântica : português , fi.rgi;Lìi"u +Ol.Z
11
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Caixa de texto
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APRESENTAÇAO
Como para todo semanticista, a questão da relação das palavras
com o mundo sempre rondou meus interesses. Esta questão se pôs para
mim pela via dos estudos argumentativos. Para esta posição o sentido das
expressões lingüísticas não é referencial, ou seja, não pode se apresentar
a partir do conceito de verdade. Neste sentido, as expressões lingüísticas
significam no enunciado pela relação que têm com o acontecimento em
quefuncionam.
Coloco-me deste modo, numa posição materialista, junto com aque-
les que não tomam a linguagem como transparente, considerando que sua
relacão com o real é histórica.
A partir do início dos anos 90 do século XX, ou seja, há pelo menos
dez anos, {ediquei-me ao estudo das questões relativas ao domínio da de-
signação e referência na linguagem. Inicialmente meu interesse se deveu ao
estudo da questão da cidadania nas constituições brasileiras. O que me
levou a analisar a designação de palavras como cidadão e república nos
diversos textos constitucionais da história do Brasil, motivo de viírios tex-
tos publicados nestes últimos 10 anos. Neste momento desenvolvi uma
primeira abordagem da questão dos nomes próprios e de sua relação com
os nomes comuns. Estes estudos eu os apresentei, no início dos anos 90, em
cursos na Pós-graduação de Lingüística do Instituto de Estudos da Lingua-
gem da Unicamp. Isto produziu, desde então, o envolvimento de outras pes-
soas nesta via de reflexão enunciativa para os problemas da designação.
Neste período meus contatos com outros países da América Lati-
na e com a lJnemat, em Cáceres, me levou a refletir mais especifica-
mente sobre as relações do Brasil com a América Latina, e sobre as
relações das línguas do Brasil (reflexão que venho fazendo como mem-
bro do Projeto História das Idéias Lingüísticas no Brasil: Ética e Polí-
tica de Línguas). Isto fqi decisivo para a melhor configuração do con-
ceito de espaço de enunciação.
5
Envolvido nos projetos do Laboratório de Estudos Urbanos da
Unicanp, levei este meu interesse para os estudos das palavras da cida-
de: cidade, município, comarca, rua, nomes de ruas, etc. E aqui a questão
dos nomes próprios acabou por assumir um lugar muito significativo.
Neste livro estarão presentes muitos aspectos deste percurso, pelo
qual espero poder contribuir para uma reflexão sobre os nomes e seus
sentidos configurada no interior de uma concepção enunciativa e históri-
ca da linguagem.
INTRODUÇAO
Colocar-se na posição do semanticista é inscrever-se num domínto
de saber que inclui no seu objeto a consideração de que a linguagem fala
de algo. Pour outro lado, não há como pensar uma semântica lingüística
sem levar em conta que o que se diz é incontornavelmente construído na
linguagem.
E no espaço conformado por estas duas necessidades que procura-
rei configurar o que é para mim uma semântica do acontecimento. Ou
seja, uma semântica que considera que a análise do sentido da linguagem
deve localizar-se no estudo da enunciação, do acontecimento do dizer'
Por outro lado, considerando aprópriaoperação de análise, tomar
o ponto de vista de uma semântica lingüística é tomar como lugar de
observação do sentido o enunciado. Deste modo, saber o que significa
uma fornia é dizer como seu funcionamento é parte da constituição do
sentido do enunciado. Mas para mim, considerar o processo no qual uma
forma constitui o sentido de um enunciado é considerar em que medida
esta forma funciona num enunciado, enquanto enunciado de um texto.
Ou seja, não há como considerar que uma forma funciona em um enunci-
ado, sem considerar que ela funciona num texto, e em que medida ela é
constitutiva do sentido do texto.
Deste modo, procuro ttilizar aqui o que Benveniste (1966)t consi-
derou como o movimento intregrativo de uma unidade lingüística. Para
ele esta relação (integrativa) dá o sentido da unidade. Ou seja, o sentido
de um elemento lingüístico tem a ver com o modo como este elemento faz
parte de uma unidade maior ou mais ampla. Vê-se que ao fazer este uso
da relação integrativa, a despeito de Benveniste ter dito que ela não per-
mitia passar do limite do enunciado, estou dizendo que há uma passagem
do enunciado para o texto, para o acontecimento, que não é segmental' E
esta é a relação de sentido.
76
l. Em "Os Níveis da Análise Lingüística"
Tratar a enunciação, coloca de saída a questão do sujeito que enun-
cia, e assim a questão do sujeito na linguagem. E para os meus propósi-
tos isto deve levar a uma recolocação do lugar dos estudos da enunciação
num espaço distinto do que eles tiveram ou têm ainda em certas de suas
formulações. Para mim o tratamento da enunciação deve se dar num es-
paço em que seja possível considerar a constituição histórica do sentido,
de modo que a semântica se formule, claramente, como uma disciplina do
campo das ciências humanas, fora de suas relações com a lógica ou a
gramática pensadas ou como o matematizável ou como uma estrutura
biologicamente determinada.
Este trabalho mantém assim um diálogo com domínios como a filo-
sofia da linguagem, notadamente a teoria dos atos de fala, apragmâtica,
a semântica argumentativaz. Por outro lado mantém também um diálogo
decisivo com a Análise de Discurso tal como praticada no Brasil3 e que
se organiza e desenvolve a partir dos trabalhos de Pêcheux.
Mais especificamente, tomo a enunciação como um acontecimento
no qual se dá a relação do sujeito com a língua. A questão é como descre-
ver e analisar esta relação.
Ao lado de tratar o sentido tal como acima exponho, vou considerar
a questão do político na linguagem, tômando como lugar de reflexão o
domínio da semântica, mais especificamente o domínio dos estudos da
enunciação. Isto quer dizer que para mim enunciar é uma prática política
em um sentido muito preciso, que procurarei apresentar a seguir, no pri-
meiro capítulo. Tanto a noção de político, que vou fazer operar aqui,
quanto minha concepção de sentido são pensadas historicamente e não
como uma açãoparticular numa situação particular.
Como objeto específico de reflexão vou estudar a designação,
constitutiva do sentido dos nomes. De um lado tratarei de nomes pró-
prios, ou seja, nomes que se apresentam como nomes de objetos úni-
cos. Para isso vou deter-me no estudo dos nomes próprios de pessoa e
dos nomes de ruas. Quero, ao tomar estes objetos de análise, enfren-
tar diretamente, em análises específicas, nomes que poderiam levar,
com alguma facilidade, a uma concepção segundo à qual estes nomes
funcionam meramente por suas relações com os objetos únicos que
nomeiam.
2. NestalinhadefiliaçãolembroBréal(1897),Bally(1932),Benvenisre(1966, 1974),Ducrot
(1972,1973,1984); Austin (1962),Grice(1957,t96j), Seæle (1969); entre ourros.3. Tal como ap¿rece na obra de E. Orlandi (ver, por exemplo, Orlandi (1983,1990,1992,
t996,1e99)).
Por outro lado vou me ocupar do estudo de um conjunto de nomes
comuns, que procurarei, de alguma forma, ligar à problemática dos no-
mes próprios aqui estudados. Vou estudar a designação de nomes como
cidade, nrunicípio, contarca, rua, ruela, nxorro.
O centro de meu interesse é o estudo do funcionamento dos nomes, e
especificamente da designação. Para configurar o que considero designação
vou distinguir esta palavra num conjunto de palavras muitas vezes usadas
umas pelas outras, ou distinguidas de modos diferentes dependendo do autor
ou da posição de cada um. Nonteação, designação, referência, denotação,
por exemplo, e palavras correlatas, são muitas vezes usadas como sinônimas
e às vezes como diferentes. Basta ver como denotaçcn pc/le ser usada como
sinônima ou não de designnção e referênclc. Vou aqui usar designação como
distinta de nomeação e de referência (denotação).
Anomeação é o funcionamento semântico pelo qual algo recebe um
nome (não vou aqui discutir este processo). A designação é o que se
poderia chamar de signifìcação de um nome, mas não enquanto algo abs-
trato. Seria a significação enquanto algo próprio das relações de lingua-
gem, mas enquanto uma relação lingüística (simbólica) remetida ao real,
exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história. É
neste sentido que não vou tomar o nome como um palavra que classifica
objetos, incluindo-os em certos conjuntos. Vou considerar, tal como con-
sidera Rancière (1992), que os nomes identificam objetos. Hipótese que
me intereqsafortemente tanto para os nomes comuns, como para os no-
mes próprios> como se verá. A referência será vista como a particulari-
zação de algo na e pela enunciação.
Se, do ponto de vista da filosofia e da lógica, a consideração da
linguagem diz respeito a que é preciso saber como uma expressão lin-
güística se relaciona inequivocamente com aquilo que ela significa (refe-
re), para a lingüística, e especificamente para a semântica lingüística, a
questão não é necessariamente essa.
Para a semântica lingüística o que interessa é saber, no que diz res-
peito à relação da linguagem com as coisas, como ao dizer algo fala-se
das coisas. Ou seja, a questão não é ontológica mas simbólica. Não pode-
mos esquecer de lembrar aqui que no nascimento da lingüística moderla
Saussure separou de modo absoluto estas duas questões (a lingüística e a
da relação com as coisas).
De certo modo pode-se ver, no que diz respeito à relação da lin-
guagem com o mundo, um debate diretamente afetado pela lógica. E
os problemas são consiilerados segundo tragamdificuldades próprias
para as hipóteses de unicidade e existência vindas desta disciplina.
8 9
Diante, por exemplo, de nomes como Super-homem, unicórnio em
frases como o unicórnio não existe, ou se admite que estes nomes têm
sentido, e assim se é levado a considerar como não tendo valor de
verdade uma frase claramente verdadeira, ou admite-se que estas ex-
pressões não têm nelas nenhum sentido, e tudo que uma expressão
referencial faz é, numa dada frase, denotar um objeto. Ou seja, toda a
significação é redtzida à referênciaa.
No entanto nada impede que tenhamos, como lingüistas, que res-
ponder como se pode falar de alguém, que não é um jogador de tênis,
dizendo o jogador de ránis. Assim como é perfeitamente possível falar de
uma mesma coisa usando expressões como meu carro e aquele carro da
esquerda, ao mesmo tempo em que a segunda expressão pode ser usada
para falar de um carro que não é meu e a primeira, em princípio, não.
Um outro aspecto importante aqui. O que significa dizer qlue o nome
próprio não tem sentido (tal como diz Russell)? Esta é uma solução que
esfâligada ao referencialismo e empirismo de sua posição e assim leva a
pensar que à linguagem cabe só indicar (de modo transparente) as coisas
existentes. Esta solução não considera que as coisas existentes são referi-
das enquanto significadas, e não simplesmente enquanto existentes. E é
isso que tomar a questão pela lingüística permite considerar. E, assim, a
partir do fato semântico de que as coisas são referidas enquanto
significadas e não enquanto simplesmente existentes, podemos conside-
rar que é possível referir porque as coisas são significadas e não simples-
mente existentes. Podemos referir algo com a palavra pedra porque a
linguagem significa o mundo de tal modo qte identificd os seres em vir-
tude de significá-los. E é isso que torna possível a referência a um ser
particular entre os seres assim identificados. É este tipo de questão que
queremos discutir ao estudar aqui a designação.
4. Esta discussão se dá entre, por exemplo, as posições de Frege e Russell.
C¡pírurc I
ENUNCIAÇAO E ACONTECIMENTO
A enunciação, enquanto acontecimento de linguagem, se faz pelo
funciönamento da língua. Inscrevo minha posição numa linha de filiações
próximas que passa por Benveniste (1970), em "O Aparelho Formal da
Enunciação",paraquem a enunciação é a língua posta em funcionamen-
to pelo locutor, e por Ducrot (1984), em "Esboço de uma Teoria Polifônica
da Enunciação",paÍaquem a enunciação é o evento do aparecimento de
um enunciado. Para mint' a questão é como tÍatar a enunciação como
funcionamento da língua sem remeter isto a um locutor, a uma centralidade
do sujeito.
Dois elementos são decisivos para a conceituação deste aconteci-
mento deJinguagem: a língua e o sujeito que se constitui pelo funciona-
mento da'lírigua na qual enuncia-se algo. Por outro lado, um terceiro
elemenio decisivo, de meu ponto de vista, na constituição do aconteci-
mento, é sua temporalidade. Um quarto elemento aindaé o real a que o
dizer se expõe ao falar dele. Não se trata aqui do contexto, da situação,
tal como pensada na pragmática, por exemplo. Trata-se de uma
materialidade histórica do real. Ou seja, não se enuncia enquanto ser
físico, nem meramente no mundo físico. Enuncia-se enquanto ser afetado
pelo simbólico e num mundo vivido através do simbólico.
1. ACONTECIMENTO E TEMPORALIDADE
Considero que algo é acontecimento enquanto diferença na sua pró-
pria ordem. E o que caracterizaa diferença é que o acontecimento não é
um fato no tempo. Ou seja, não é um fato novo enquanto distinto de
qualquer outro ocorrido antes no tempo. O que o caracteriza como dife-
rença é que o aconteciryento temporaliza. Ele não está num presente de
10
5. Ver Guimarães (1989 e 1995)
11
um antes e de um depois no tempo. O acontecimento instala sua própria
temporalidade: essa a sua diferença.
Antes de falar de como se dá a temporalidade do acontecimento, gos-
taria de recusar aqui a posição benvenistiana6, segundo à qual o tempo da
enunciação se constitui pelo locutor ao enunciar. Ou seja, o presente do
acontecimento não é, para mim, como quer Benveniste, o tempo no qual o
locutor diz eu e enuncia, a partir do qual se organizam um passado (um
antes) e um futuro (um depois), constituindo-se assim, a partir do Eu, uma
linha de sucessividade. O que quero dizer é que não é o sujeito que
temporaliza, é o acontecimento. O sujeito não é assim a origem do tempo
da linguagem. O sujeitoé tomado na temporalidade do acontecimento.
E o que é esta temporalidade? De um lado ela se configura por um
presente que abre em si uma latência de futuro (uma futuridade), sem a
qual não há acontecimento de linguagem, sem a qual nada é significa-
do, pois sem ela (a latência de futuro) nada hâ aí de projeção, de
interpretável. O acontecimento tem como seu um depois incontornável,
e próprio do dizer. Todo acontecimento de linguagem significa porque
projeta em si mesmo um futuro.
Por outro lado este presente e futuro próprios do acontecimento fun-
cionam por um passado que os faz significar. Ou seja, esta latência de
futuro, que, no acontecimento, projeta sentido, significa porque o aconte-
cimento recorta umpassado como memorável.
A temporalidade do acontecimento constitui o seu presente e um
depois que abre o lugar dos sentidos, e um passado que não é lembran-
ça ou recordação pessoal de fatos anteriores. O passado é, no aconteci- .
mento, rememoração de enunciações, ou seja, se dá como parte de uma
nova temporalização,tal como a latência de futuro. É nesta medida que
o acontecimento é diferença na sua própria ordem: o acontecimento é
sempre uma nova temporalização, um novo espaço de conviviabilidade
de tempos, sem a qual não há sentido, nãohâ acontecimento de lingua-
gem, não há enunciação.
Tomemos para ilustrar nosso ponto de vista o índice de uma revista.
Vou utilizar aqui uma parte do índice da Revista Vejade l7 de janeiro de
2001, especificamente sua Seção Brasll:
São Paulo
Justiça
Congresso
A doença marca as aparições públicas de Covas............36
Caso do ktlau abre a discussão sobre a prisão especial...39
Sucessão napresidência da Câmara e do \enado...............40
6. Benveniste (1974a),"A Linguagem e a Experiência Humana"
Municípios
Fórunt
Minas Gerais
Igreja
Acre
CPI
Receila
Privatização
P reþitos deixarant as cfula.des deperutdas.......................42
O s anticapitalistas se reúnem no 9ul............................44
A tenente diz que não está mais com 1tanm........45
Boctlo sobre rcnuatce afasta patlre de paróquia clique.,46
O plano paranlatar o governador Jorge Vana.........47
P e r g unt a s hil ári as do s de p utatlo s s o b re fut e b o1....... 47
Decreto escatxcara o sigilo bancário........................48
Umnegócio da China..... .....................49
Uma análise tradicional deste índice procuraria observar seu aspec-
to meramente informativo. Ou seja, o índice diz ao leitor quais são as
matérias da revista e em que páginas elas estão.
Do meu ponto de vista há aí bem mais do que isso. De um lado as
matérias aparecem como sendo de uma seção específica, "Brasil", entre
outras ("Internacional, Geral, Economia e Negócios, Guia, Artes e Espetá-
culos"). Sem utilizar aqui categorias de análise específicas, podemos dizer
que o que se diz na primeira coluna do índice pode ser considerado como o
dizer de um locutor que categoriza os espaços da revista, ao passo que a
segunda coluna é um dizer de um locutor que toma os títulos de matéria (á
enunciados por outros locutores) e indica suas páginas iniciais. Deste modo
o presente do acontecimento deste índice é o tempo em que o locutor da
formulação do índice atribui uma matéria a uma certa categoria, categoria
que aí est{ como um passado neste acontecimento, que se apresenta como
um rememoiado, que faz significar de um cerlo modo, e não de outro, o
título da matériae amatéria. E tudo isso projeta sentidos futuros, sentidos
capazes de movimentar, inclusive, outras enunciações. Por exemplo:
Municípios Prefeitos deixaram as cidades depenadas
O que aqui se rememora como categoria para amatéria (Municípi-
os) faz o título projetar como sentidos (futuridade do acontecimento),
entre outros, a) as cidades como sinônimo de municípios; b) a
irresponsabilidade das administrações das cidades como própria dos
municípios brasileiros; e c) um sentido de generalizaçã'o da
irresponsabilidade neste nível de governo: o município como lugar da
irresponsabilidade (o que sem dúvida localiza a atenção do leitor de um
modo muito particular).
Constitui-se no índice o que é o presente para esta edição daVeja-
Não há nada nele que relacione necessariamente uma matéria desta edi-
ção com qualquer outra da semana anterior. O presente aínão é um de-
12 13
pois da semana anterior, nem o passado é um antes da semana em ques-
tão, nem o futuro é aqui a semana posterior àquela em que se está.
Neste sentido diria que a significação do índice é uma instrução7 de
como saber de que trata a revista, onde isto está, e das conseqüências dos
sentidos aí tratados. O índice não é uma mera indicação de onde algo
.z
está. E uma indicação que passa pelo sentido que o acontecimento cons-
truiu. Deste modo o índice é uma instrução de como interpretar tanto um
modo de chegar à matéria, como a própria construção de algo como notí-
cia, que para ser notícia é constituído por uma temporalidade específica.
Esta caracterização datemporalidade do acontecimento não coincide,
portanto, com o tempo do ego que diz eu,que chamo aqui locutors. A confì-
guração do Locutor no acontecimento é a de que ele é a origem do dizer e
assim da temporalidade. Diria que Benveniste limitou-se a tratar desta repre-
sentação. Deste modo a temporalidade do acontecimento da ennciaçãotraz
sempre esta disparidade temporal entre o tempo do acontecimento e a repre-
sentação da temporalidade pelo Locutor. Esta disparidade significa direta-
mente a inacessibilidade do Locutor àquilo que enuncia. O locutor não estií
onde a enunciação signifìca sua unidade (tempo do Locutor).
Assim o Locutor está dividido no acontecimento. E está dividio por-
que falar, enunciar, pelo funcionamehto da língua no acontecimento, é
falar enquanto sujeito. Para caracterizar este aspecto recorro, neste pon-
to, à posição da análise de discurso paraa qual o sujeito que enuncia é
sujeito porque fala de uma região do interdiscurso, entendendo este como
uma memória de sentidos. Memória que se estrutura pelo esquecimento
de que já significa (Orlandi, 1999). Ser sujeito de seu dizer, ser suj eito, é
falar de uma posição de sujeito.
Esta tomada de posição teórica dá um sentido bem específico e forte
à consideração de que o acontecimento de linguagem não se dá no tempo,
nem no tempo do locutor, mas é um acontecimento que temporaliza: uma
temporalidade em que o passado não é um antes mas um memorável
recortado pelo próprio acontecimento que tem também o futuro como
uma latência de futuro. O sujeito não fala no presente, no tempo, embora
o locutor o represente assim, pois só é sujeito enquanto afetado pelo
interdiscuro, memória de sentidos, estruturada pelo esquecimento, que
faz alíngua funcionar. Falar é estar nesta memória, portanto não é estar
no tempo (dimensão empírica).
7. UsoaquianoçãodeinstruçãoapafirdosentidoquelhedáO.Ducrot(1984),emboranão
de maneira absolutamente igual.
8. Mais à frente vou ratil de modo mais específico das figuras da enunciação (locutor,
enunciador, etc), ao falar da cena enunciativa.
O acontecimento em que se fala é, do meu ponto de vista, espaço de
temporalização. Nesta medida o passado no acontecimento é uma
rememoração de enunciações por ele recortada, fragmentos do passado
por ele representados como o seu passadoe.
A questão para mim é poder descrever como se dá este aconteci-
mento de linguagem, como ele se constitui. E o que faremos mais à frente
ao falar de cena enunciativa e espaço de enunciação. Antes vou caracte-
rizar o que é para mim o político.
2. O POLITTCO: DTSTRIBLIçÃO DE DESIGUALDADES E A
AFIRMAÇÃO DE PERTENCIMENTO
Colocando-me no domínio das posições materialistas vou considerar
o político como algo que é próprio da divisão que afeta materialmente a
linguagem e, para o que me interessa aqui, o acontecimento da enunciaçãolO.
Começo por considerar o modo como Rancière (1995) caracteiza
as abordagens do político nafilosofia.Para ele estas abordagens tratam
do que ele chamou a arqui-política, a para-política e a meta-política. A
primeira (a arqui-política) temsua configuração no pensamento platôni-
co e, segundo Rancière, transforma a política em organização. Isto se
enuncia emPlatão em afirmações diretivas como "é necessário fazer seu
próprio trabalho" que aparecia já como um artifício retórico que formu-
lava a suþqissão do povo à distrìbuição ordenada dos papéis sociais. A
política é neste caso mentira. Cabia à arqui-políticaanular a "falsa polí-
tica", a democracia, pela constituição da República.
A para-política, qrue aparece na formulação de Aristóteles que não
aceitaadescaracterização da política feiø por Platão, integra e neutraliza o
conflito entre pobres e ricos, entre interesses opostos. A política é neste caso
aparência e ela encontra seu fim na pacificação social. Se, por exemplo, o
govemante está diante da possibilidade de um levante popula¡ então ele
devefazer como se governasse para o povo, neutralizando assim o conflito.
9. É preciso não confundir a memória de sentidos (memória discursiva: interdiscurso) do
passado no acontecimento (memorável de enunciações recortado pela temporalização do
acontecimento). O que procuro é desenhar a articulação, no quadro que aqui proponho,
entre o interdiscurso e o acontecimento.
10. Lembro aqui duas posições a respeito do político e da política que se desenvolveram no
domÍnio do materialismo e com as quais minha posição guarda relações evidentes. De um
lado a consideração do político como conflito, tal como Orlandi (1990) apresenta em
Terra à Vsta, e de outrq a consideração da política como disse¿so tal como apresenta
Racière (1995) em In méÍentenl¿. Evidentemente que estas duas posições não são iguais.
Valho-me aqui de um debate que se instala de pronto entre elas pa-ra formular o que segue.
l4 15
A meta-política denuncia o excesso das injustiças e das desigualda-
des relativamente ao que a política enuncia. Ou seja a meta-política de-
nuncia as mentiras da política, de modo que para ela a política é a mani-
festação da falsidade. Isto leva ameta-políticaaatacar direitos formula-
dos por instituições sustentadas no conceito de soberania, já que para
esta posição tudo o que vem do político é falso.
Assim estes três modos de conceþr o político o tomam como apráti-
ca do falso ou do aparente e assim procuram organizá-lo, ou integrá-lo ou
denunciá-lo. Como então considerar o político? Ele não é nem o falso nem
o verdadeiro. Procuro assim, a seguir, caractenzâ-lo fora destas concep-
ções negativas, para que possamos tratar do político como fundamento das
relações sociais, no que tem importância central a linguagem. Deste modo
importa, antes de ir à frente, uma observação: o político não é o que se fala
sobre a igualdade, sobre os direitos, etc. Colocar-se neste lugar é também e
ainda conceber o político negativamente, por tratá-lo como o lugar do en-
godo, da, na melhor das hipóteses, doce mentira.
O político, ou a política, é para mim caracterizado pela contradição
de uma normatividade que estabelece (desigualmente) um divisão do real
e aafrmação de pertencimento dos qge não estão incluídos. Deste modo
o político é um conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e
uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento. Mais
importante ainda para mim é que deste ponto de vista o político é
incortornável porque o homem fala. O homem está sempre a assumir a
palavra, por mais que esta lhe seja negada.
Esta concepção nos leva a algumas considerações aparentemente
contraditórias em princípio. O Político está assim sempre dividido pela
desmontagem da contradição que o constitui. De tal modo que o estabele-
cimento da desigualdade se apresenta como necessária à vida social e a
afirmação de pertencimento, e de igualdade, é significada como abuso,
impropriedade. Esta desmontagem é o esforço do poder em silenciarrr a
contradição, na busca de um político como ação homogeneizadora que
ora se esgota no administrativo, ora naquilo que Racière chamou de po-
lícia, e que ele opöe à política.
Tomemos aqui um exemplo. Em uma reunião de um colegiado uni-
versitário em que se discute a demissão de um aluno de seu posto de
estagiário há um embate que sintetizo:
a) A adminstração, em nome da decisão do funcionário que demitiu
o aluno, diz que aquele estava autorizado afazê-lo baseado nas regras
11. No sentido que este conceito tem para Orlandi (1992).
que regem a assiduidade dos funcionários. Aqui já poderíamos refletir
sobre esta divisão do real feito pelas designações que, no caso, ora
categorizam alguém como aluno, ora como funcionário.
b) Um outro aluno, que defende o aluno/funcionário demitido, con-
tra-argumenta, incessantemente, durante algo como duas horas ou mais,
que a questão não é se o aluno seu colega (aluno estagiário) deveria ser
demitido de seu posto enquanto funcionário, mas que ele o foi sem que
lhe fosse assegurado um direito mínimo, consignado na declaração uni-
versal dos direitos do homem, o de apresentar sua defesa.
O que temos aqui? De um lado a afirmação de uma distribuição de
papéis, desigualmente, onde alguns podem fazer coisas e outros devem obe-
decê-las, distribuição feita pela adminsitração, e de outro a afirmação de
pertencimento do aluno à categoria do humano na qual todos têm o direito
igual de se defender de qualquer acusação. Cafegoiadaqual, no sentido que
ele lhe dá, o aluno estagiário está sendo retirado. Esta afirmação de
pefencimento, por precisar se repetir como eco por um longo período de
discussão, significa a sua falta de sentido no acontecimento. Ou seja, afirmar
o direito é neste acontecimento sem sentido, para aqueles que falam do lugar
da normatividade, por mais sentido que a afirmação do aluno tenha para ele
e o demitido (a Declaração Universal dos Direitos do Homem não é aqui
memorável). Está-se diante, neste caso, do funcionamento da contradição
própria do político, e de tal modo, neste acontecimento, que o esforço
enunciatiyo do aluno defensor do colega é tomado sem sentido, e sua
enunciação por mais que afirme o pertencimento do aluno à categoria do
humano, não consegue aí significá-lo, pela sopreposição "gloriosa" do
adminstrativo, e do homogêneo. O Político é para mim não o dizer normati-
zado da adminstração, nem simplesmente a afirmação de pertencimento do
aluno. E a contradição que instala este conflito no centro do dizer. Ele se
constitui pela contradição enfre a normatividade das instituições sociais que
organizam desigualmente o real e a afrmação de peftencimento dos não
incluídos. O político é a aftrmação da igualdade, do pertencimento do povo
ao povo, em conflito com a divisão desigual do real, para redividi-lo, para
refazêlo incessantemente emnome do perlencimento detodos no todos.
Com esta concepção de político voltamos à consideração dos aspec-
tos enunciativos. Com ela pretendemos uma melhor configuração do po-
lítico na linguagem.
. O acontecimento de linguagem por se dar nos espaços de enunciação
é um acontecimento políticot2. Ou seja, a constituição da temporalidade
t6
12. TraIei desta questão em Guima¡ães (2000a).
t7
do acontecimento se faz pelo funcionamento da língua enquanto numa
relação com línguas e falantes regulada por uma deontologia global do
dizer em uma certa língua.
3. ESPAçO DE ENTTNCTAçAO
Considerar a configuração do acontecimento, tal como fizemos em 1.,
coloca uma relação por todos os aspectos decisiva: a relação entre a língua e
o falante, pois só há línguas porque há falantes e só há falantes porque há
línguas. E esta relação não pode ser tomada como uma relação empírica do
tipo: em uma cerla situação as pessoas faldm na língua x, em outra, na língua
y. Por exemplo, no Brasil se fala Português, na França, Francês, etc. Ou
ainda, no Paraguai se fala o Espanhol e o Guarani. Esta relação entre falan-
tes e línguasinteressa enquanto um espaço regulado e de disputas pela pala-
vra e pelas línguas, enquanto espaço político, poftanto. A língua é dividida
no sentido de que ela é necessariamente atravessada pelo político: ela é
normativamente dividida e é também a condição para se afirmar o
pertencimento dos não incluídos, a igualdade dos desigualmente divididos.
Os falantes não são os indivíduos, as pessoas que falam esta ou aquela
língua. Os falantes são estas pessoas enquanto determinadas pelas línguas
que falam. Neste sentido falantes não são as pessoas na atividade físico-
fisiólogica, ou psíquica, de falar. São sujeitos da língua enquanto constituí-
dos por este espaço de línguas e falantes que chamo espaço de enunciação.
Deste modo considero que o falante, tal como o conceituo, é uma
categoria lingüística e enunciativa. Neste ponto diferencio minha posição
da de Ducrot. Mas num sentido muito preciso. Primeiro devo dizer que
concordo que o falante, tal como Ducrot o conceitua (como figura físico-
fisiológica e psíquica), não é um personagem da enunciação. Minha dife-
rença está em que considero que o falante não é esta figura empírica,
mas uma figura política constituída pelos espaços de enunciação. E nesta
medida ela deve ser incluída entre as figuras da enunciação.
Os espaços de enunciação são espaços de funcionamento de lín-
guas, que se dividem, redividem, se misturam, desfazem, transformam
por uma disputa incessante. São espaços "habitados" por falantes, ou
seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de
dizer. São espaços constituídos pela equivocidade própria do aconteci-
mento: da deontologiat3 que organiza e distribui papéis, e do conflito,
indissociado desta deontologia, que redivide o sensível, os papéis soci-
13. Tomo aqui esta noção a partir da formulação que lhe deu Ducrot (1972) em Dire et ne
pas Dire.
ais. O espaço de enunciação é um espaço político, no sentido em que
considerei há pouco o político.
Tomemos um exemplo. O que éfalar Porluguês na América Latina
hoje?ta Primeiro aspecto: é falar uma língua oficial de um Estado, que
nesta medida está numa relação de convivência e de disputa na América
Latina com o Espanhol, também língua oficial de vários Estados vizi-
nhos do Brasil15.
Segundo aspecto. Consideremos, por exemplo, um fato como a de-
rivação que em Português forma palavras como cces.rar. Esta palavra,
tal como deletar e tantas outras, entra no Português do Brasil por uma
relação com o Inglês.
Se tomamos acessar, podemos vê-la como um derivado de acesso,
o que seria perfeitamente possível em virtude dos procedimentos de deri-
vação da Língua Portuguesa. Mas é preciso ver aítambém, mesmo neste
caso (o caso de deletar envolve o fato de que não hâ delet emPortuguês),
que ûcessar é um derivado em Português de to acess do Inglês. Estamos
diante de uma divisão tal que o espaço de enunciação do Português do
Brasil inclui uma relação com o Inglês. Em outras palavras, o espaço de
enunciação do Português é também ocupado pela língua inglesa.
Tomemos um outro exemplo interessante. Houve, durante umpe-
ríodo recente, em Campinas, um estabelecimento comercial cujo nome
era Center Frutas Broto. Estamos aqui diante de um procedimento de
nomeação há, já algtmtempo em funcionamento no Brasil.
O qu'e témos nesta nomea çã,o? Elase constrói por uma relação dire-
ta entre falante e as línguas portuguesa e inglesa. Não simplesmente por-
que há empréstimo de uma palavra, center, ou porque se construiu um
nome com uma frase inglesa, o que seria também um simples emprésti-
mo. Estamos diante de um embate em que o falante está divido por sua
relação com duas línguas: veja como a presença do center não define a
sintaxe nem como inglesa nem como portuguesa: no primeiro caso seria
Broto Frutas Center e no segundo Center de Frutas Broto. Há algo em
frutas (Português) que impede a primeira construção, e há algo em center
(é uma palavra "emprestada" com sua sintaxe) que impede a segunda
construção. Ou seja, esta nomeação se dá num espaço de enunciação em
que o Inglês fornece modelos ao Português. Mas este modelo não se cum-
14. Vou retomar e ampliar, segundo a especificidade desta pergunta, uma análise que fiz em
"Política de Línguas na Améria Latina" (Guimæães, 1997) sobre o espaço de enunciação
latino-americano.
15. Para não me ater muito na questão da disputa, podemos lembrar, por exemplo, a prática de
incompreensão dos falantds de Espanhol relativamente ao Português, oposta à prática de
brasileiros com o espanhol.
18 19
pre completamente porque ele é refeito pelo embate das línguas na rela-
ção com o falante no espaço de enunciação.
Um outro caso deste tipo, com uma configuração diversa, é o nome
de um outro estabelecimento do mesmo gênero, em um outro bairro de
Campinas: Cambuí Fruit Center. Neste caso o falante está tomado, no
espaço de enunciação, pela língua que não é a sua.
Nesta medida não se pode deixar de levar em conta que línguas
como Português e Espanhol não são, no espaço de enunciação latino-
americano, legítimas tal com a língua inglesa, que tem, neste espaço com
o Português e o Espanhol, uma legitimidade especial, notadamentepara
relações internacionais de um certo tipo: comércio, ciênciar6, etc.
Não estou aqui levando em conta um conjunto de tantos outros
problemas extremamente relevantes, como, por exemplo, no Brasil se
falam ainda em torno de 150 línguas indígenas, várias línguas européi-
as e orientais, aí incluindo o Espanhol, notadamente em regiões de fron-
tefta.Há no Brasil, inclusive, índios que falam Espanhol preferencial-
mente.
Dada a descrição acima, com a devida ressalva, podemos dizer
que o espaço de enunciação latino-americano caracteriza-se por uma
disputa pela palavra regulada por umâ distribuição de papéis que colo-
ca brasileiros e latino-americanos dos demais países como falantes que
excluem a língua do outro e incluem o Inglês como "língua franca",
mesmo que uma pessoa em particular não a fale. A questão aqui não é
individual.
Neste espaço, trabalhar o ensino do Português do Brasil nos países
vizinhos e do espanhol no Brasil é um modo de redividir o espaço para
torná-lo cadavezmais sul-americano e cada vez menos norte-americano
ou europeu, ao lado de trabalhar a resistência ao avanço do Inglês,
notadamente o americano, como língua de todos. É uma resistência a um
certo tipo de monolingüismo. Não se trata aqui de uma atitude quixotesca
e sem conseqüências como aquela que busca proibir o uso de palavras
estrangeiras no Porluguês. A questão política é noutro lugar, inclusive
porque os espaços de enunciação são espaços, divididos desigualmente,
de disputa pela palavra.
Podemos tomar a questão do espaço de enunciação através de uma
outra pergunta: o que é falar Português no Brasil? Sem dúvida que o
primeiro aspecto que devemos considerar é que o Português é alíngta
oficial do Estado Brasileiro, e é, nesta medida, a língua nacional do
I 6. Tratei deste aspecto específico de uma política de línguas em "Produção e Circulação do
Conhecimento sobre Lite¡atura e Linguagem" (Guimarães, 1999a).
Brasil. Ou seja, é elemento de identificação de sujeitos enquanto cida-
dãos do Estado. Mas falar Português no Brasil é falar uma língua que
são várias. Assim a relação dos falantes com a língua está regulada por
uma relação com a língua do Estado, enquanto uma língua, a língua
(una) do Estado: gramatizadatl,normatizada. Está por outro lado regu-
lada pelo fato de que há regiões em que se fala, por exemplo, [mutjo]
(como em Cuiabá), e outras em que se fala [muito]. Regiões em que se
fala [maI] (como em Piracicaba, São Paulo) e regiões em que se fala
[mar]. Consideremos, para os efeitos desta argumentação, que estes
poucos fatos sejam todas as diferenças existentes que temos neste espa-
ço enunciativo. Não há igual direito adizer [mutjo] ou [muito], ou [mai]
e [mar]. O direito à palavra é distribuído de talmodo que ele é um para
os que dizem [muito] e [mar] e outro para os que dizem [mutjo] epala
os que dizem [mai]. Assim falar Português é estar afetado por estas
divisões que caracterizamo espaço de enunciação da Língua Portugue-
sa no Brasil. Não estamos aqui considerando todo um conjunto mais
complexo de questões como o fato, jâ referido antes, de que se falam no
Brasil inúmeras línguas indígenas e diversas línguas européias e orien-
tais.
Isto me leva a dizer que, do ponto de vista que aqui assumo, uma
língua náo é variável, no sentido em que esta noção é tomada pela
sociolingüística quantitativa.
Para mim uma línga é dividida, de tal modo que ela é uma e é dife-
rente dissd. d esta divisão diz respeito exatamenteã relação dos falantes
com a língua, de tal modo que os falantes se identificam exatametne por
essa divisão. No caso do nosso pequeno exemplo, há os falantes que se
identificam pela divisão da língua que os faz dizer [mutio] de um lado ou
[muito] de outro.
E esta divisão é marcada por uma hierarquia de identidades. Ou
seja, esta divisão distribui desigualmente os falantes segundo os valores
próprios desta hierarquia. E aqui pode-se ver como a Escola, entre outras
instituições e instrumentos, é fundamental na configuração do espaço
enunciativo de uma língua nacional, no nosso caso o Português. Ou seja,
a Escola é fundamental no modo de dividir os falantes e sua relação com
a língua.
E estar identificado pela divisão da língua é estar destinado, por
uma deontologia global da língua, a poder dizer certas coisas e não ou-
tras, a poder falar de certos lugares de locutor e não de ouÍos, a ter
certos interlocutores e não outros.
20
17. No sentido que tem gramatizaçáo para Auroux (1992).
2I
Por exemplo, aquele que é identificado por falar lmutjo] ou [mai]
pode falar cotidianamente para seus familiares, amigos, colegas, habi-
tantes de sua cidade, mas não pode falar como locutor-jornalista, na tele-
visão, para os telespectadores. Mesmo que estejamos considerando a te-
levisão na região de Cuiabá e Cáceres, no Estado de Mato Grosso, de um
lado, ou de Piracicaba e Itu, no Estado de São Paulo, de outro. Ele só
poderá fazê-lo se aparecer como um personagem e não como um apre-
sentador. Ou seja, ele pode ser na mídia só o locutor-cuiabano, o locutor-
piracicabano. Aparecer como personagemé aparecer como locutor cita-
do na fala do locutor-jornalista que ele não pode ser. Este tipo de questão
é extremamente importante para dar um sentido muito fofte ao modo
como estamos considerando a divisão do Locutor que, ao desconhecer
que fala de um lugar social, desconhece que seus lugares de fala foram
dividos e interditados. Operar sobre e contra este desconhecimento é o
próprio do político no acontecimento de linguagem.
Antes de terminar estas considerações sobre o político quero reto-
mar as distinções entre arqui-política, para-política e meta-política.Dina,
ao retomá-la, que uma abordagem sociolingüística quantitativa, enquan-
to tal, opera com o conceito de parh-política, jâ que suas descrições
distribuem para cada um o que é seu, neutralizando o conflito por um
procedimento descritivo do que é de cada um. Ao lado disso ela pode
operar por acréscimo, não exatamente por seu dizer científico, como meta-
política, como forma de denunciar a distribuição do que é de cada um
para cada um. Ou seja, ou ela integra o conflito ou pode falar sobre ele.
O Espaço de enunciação é assim decisivo para se tomar a enunciação
como uma prática política e não individual ou subjetiva, nem como uma
distribuição estratificada de características. Falar é assumir a palavra nes-
te espaço divido de línguas e falantes. É semp.e, assim, uma obediência
e/ou uma disputa. Se é que se pode falar em simples obediência.
Enunciar é estar na língua em funcinamento. E a língua não funciona
no tempo, mas pelas relações semiológicas que tem. A língua funciona no
acontecimento, pelo acontecimento, e não pela assunção de um indivíduo.
Neste sentido, diríamos, a enunciação se dá por agenciamentos es-
pecíficos da língua. No acontecimento o que se dá é um agenciamento
político da enunciação. Neste embate entre línguas e falantes, próprio
dos espaços de enunciação, os falantes são tomados por agenciamentos
enunciativos, configurados politicamente.
A noção de agenciamento da enunciação está aqui a partir do que
Deleuze e Guattari (1980) colocam em Mille Plateaux, ao caracteiza-
22
rem a enunciação a partir da conceituação que Ducrot (1972) faz dos
atos ilocucionais. A diferença é que para mim este agenciamento é políti-
co. Ou seja, não é que ele é coletivo, como um "acordo" de um grupo. Ele
é, para mim, afetado politicamente por se dar segundo os espaços de
enunciação.
4. A CENA ENTINCIATIVA
Diante da concepção de político acima exposta é decisivo tratar de
como se dá a assunção da palavra. Diremos que ela se dá em cenas
enunciativas. Uma cena erumciativa se carac|enza por constituir modos
específicos de acesso à palavra dadas as relações entre as figuras da
enunciação e as formas lingüísticas.
Este conceito aparece definido pela primeiravez emTexto e Argu-
mentação (Guimarães ,1987), quando estudei as mudanças que levaram
o embora de expressão adverbial a conjunção. Cenas são especificações
locais nos espaços de enunciação.
A Cena enunciativa é assim um espaço paftictlarizado por uma
deontologia específica de distribuição dos lugares de enunciação no acon-
tecimento. Os lugares enunciativos são configurações específicas do
agenciamento enunciativ o para "aquele que fala" e "aquele para quem se
fala". Na cena enunciativa "aquele que fala" ou "aquele para quem se
fala" não qãopessoas mas uma configuração do agenciamento enunciativo.
São lugares constituídos pelos dizeres e não pessoas donas de seu dizer.
Assiméstudá-la é necessariamente considerar o próprio modo de consti-
tuição destes lugares pelo funcionamento da língua.
Esta distribuição de lugares se faz pela temporalização própria do
acontecimento. Neste sentido a temporalidade específica do acontecimento
é fundamento da cena enunciativa.
Na continuidade do que vimos colocando desdeTexto e Argumenta-
ção, podemos considerar que assumir a palavra é por-se no lugar que
enuncia, o lugar do Locutor que vou chamar de Locutor (com maiúscu-
la), ou simplesmente Lr8. L é então o lugar que se representa no próprio
dizer como fonte deste dizer.E desta maneira representa o tempo do dizer
1 8. Como se verá no que segue, retomo aqui o que Ducrot chamou de polifonia da enunciação,
aprofundando a diferença que eujá apresentavaemTexto e Argumentação, pela conside-
ração do locutor enquanto pessoa como socialmente constituído. Isto me levou a, inclusi-
ve, usar de maneira diferepte os termos locutor e enunciador que Ducrot distingue e que
também distingo, mas já ntrm outro quadro de categorias, onde procuro caracterisa¡ não a
multiplicação das figuras da enunciação, mas sua divisão.
23
como contemporâneo deste mesmo L, e assim representa o dizer como o
que está no presente constituído por este L.
Mas esta representação de origem d o dizer, na sua própria represen-
tação de unidade e de parâmetro do tempo se divide porque para se estar
no lugar de L é necessário estar afetado pelos lugares sociais autorizados
afalar, e de que modo, e em que língua (enquanto falantes). Ou seja, para
o Locutor se representar como origem do que se enuncia, é preciso que
ele não seja ele próprio, mas um lugar social de locutor. Tomemos um
exemplo inicial. Se o Presidente da República, ou um Governador de
Estado Decreta X, ele ofaz não porque alguém se dá a si ser a origem do
que Decreta, mas porque enquanto Presidente (falante de Português) ele
pode se dar como origem daquilo qlue Decreta, ou melhor, do próprio ato
de decretar. O que signifìca dizer que assumir a palavra para decretar só
é possível na medida em que o Locutor, que se dá como origem dodecre-
to, só o é enquanto constituído como um lugar social de locutor, ou seja,
o locutor-presidente que fala em Língua Portuguesa. Em outras palavras,
o Locutor só pode falar enquanto predicado por um lugar social. A este
lugar social do locutor chamaremos de locutor-x, onde o locutor (com
minúscula) sempre vem predicado p9r um lugar social que a variável x
representa (presidente, governador, etc). Assim é preciso distinguir o
Locutor do lugar social do locutor, e é só enquanto ele se dá como lugar
social (locutor-x) que ele se dá como Locutor. Ou seja, o Locutor é díspar
a si. Sem esta disparidade não há enunciação.
Deste modo, no acontecimento de enunciação há uma disparidade
constitutiva do Locutor e do locutor-x, uma disparidade entre o presente
do Locutor e a temporalidade do acontecimento.re
Esta distinção pode ser diretamente mostrada, no caso do ato de
decretar, pelo próprio modo de dizer o decreto, que se dá em formas do
tipo "O Presidente da República, no uso de suas atribuições, decreta...".
Neste caso o Locutor está diretamente separado do locutor-x que decreta.
O Locutor é sempre locutor-presidente, locutor-índio, locutor-consumi-
dor, locutor-jornalista, etc. No caso do decreto, o locutor-presidente é
falante da Língua Portuguesa. Ou seja, não há decreto do presidente a
não ser emLíngua Porluguesa. Esta configuração do espaço de enunciação,
pela exclusão de qualquer outra língua, está diretamente regulada pela
definição da Língua Portuguesa como língua do Estado Brasileiro. Neste
lugar de inseparabilidade da língua e do Estado está o ponto da máxima
resistência a outras línguas, o Inglês por exemplo, que pode até ser língua
19. Lembro aqui Ranc.ière (1992), qe numa análise enunciativa do discurso da história, diz
que o sujeito falante é anacrônico.
24
de ciência para cientistas brasileiros, mas não é a língua paraalegislação
brasileira, não é a língua de um ato de decretar, por exemplo.
Passemos para um outro aspecto da questão. Tomemos um enuncia-
do do cotidiano como "eu prometo que vou a sua casa". Aqui parece se
poder dizer que a promess a é do eu dado como origem da promessa, distin-
to do eu devou, aquele que deverá cumprir a promessa. Ao contrário disso
diria que neste caso a expressão da primeira pessoa em prometo é só a
marca da representação da origem, marca que representa seu presente como
o tempo d,o dizer. Ou seja, este eu é a representação de que não há lugar
social no dizer.E, de um lado, a marca do desconhecimento do Locutor a
propósito do lugar do qual fala: de amigo, de pai, de filho, de vendedor, etc.
Ou seja, de que lugar pode prometer algo a alguém? Em outras palavras, o
eu do Locutor é o eu que não sabe que fala em uma cena enunciativa. É
assim'um eu que desconhece que fala de algum lugar. A tal ponto que se
toma como a pessoa, meramente enquanto tal, que deverâ cumprir sua
própria promessa. Aqui o lugar de Locutor se representa como lugar de
dizer simplesmente. E neste caso tmlugar de dizer que se representa como
individual20. Vou chamar este lugar de dizer de enunciador. Considerare-
mos, no caso em análise, que se trata de um enunciador-individual. Ou
seja, estamos diante de uma enunciação que se dá como independente da
história pela representação desta individualidade a partir da qual se pode
falar. O enunciador-individual, enquanto um lugar de dizer, trazum aspec-
to especílçopara isto que estamos chamando lugares de enunciação.E a
representação de um lugar como aquele que está acima de todos, como
aquele que retira o dizer de sua circunstancialidade. E aofazer isso repre-
senta a linguagem como independente dahistória.
Um outro lugar de dizer, que se apresenta como o apagamento do
lugar social, é o do enunciador-genérico. Pensemos aqui em ditos popu-
lares como "Qugm semeia vento colhe tefnpestade". Neste caso o Locu-
tor também simula ser a origem do que aqui se diz. Mas o que aí se diz é
dito, não de um lugar individual, independente de qualquer contexto, mas
é dito do lugar de um acordo sobre o sentido de repetir o dito popular. O
que se diz é dito como aquilo que todos dizem. Um todos que se apresenta
como diluído numa indefinição de fronteiras para o conjunto desse todos.
O enunciador se mostra como dizendo com todos os outros: se mostra
como um indìvíduo que escolhe falar tal como outros indivíduos, uma
outra forma de se apresentar como independente da história.
20. Isto significa dizer que as æorias dos atos de fala têm operado sobre um desconhecimento
fundamental, o de que um aïo de linguagem não é uma ação individual, é a constituição de
um sentido, por um agenciamento enunciativo específico.
25
Ainda um outro caso. Quando se faz uma afirmação sem qualquer
modalização como "Todas as pessoas morrem", o enunciador, ao se apre-
sentar como o lugar do dizer, apresenta-se como quem diz algo verdadei-
ro em vinude da relação do que diz com os fatos. O que esta representa-
ção significa? Significa a identificação do lugar do enunciador com o
lugar do universal. Ou seja, um lugar de dizer que se apresenta como não
sendo social, como eslandofora da história, ou melhor, acima dela. Este
lugar representa um lugar de enunciação como sendo o lugar do qual se
diz sobre o mundo. O enunciador-universal é um lugar que significa o
Locutor como submetido ao regime do verdadeiro e do falso. Este lugar é
próprio do discurso científico, embora não seja exclusivo dele. A afirma-
ção acima, por exemplo,náo é exclusiva do discurso científico.
Consideramos, então, que a cena enunciativa coloca em jogo, de
um lado, lugares sociais do locutor, papéis enunciativos como locutor-
brasileiro, locutor-presidente, locutor-jornalista, locutor-professor, lo-
cutor-índio, locutor-consumidor, etc. O Locutor não se apresenta senão
enquanto predicado por um lugar social distribuído por uma deontologia
do dizer. De que lugares sociais é possível dizer o que se diz e deste
modo?
Por outro lado, a cena enunciativá coloca em jogo, também, lugares
de dizer quie estamos aqui chamando de enunciadores. E estes se apresen-
tam sempre como a representação da inexistência dos lugares sociais de
locutor. E embora sempre se apresentem como independentes da história
ou fora da história, são lugares próprios de uma história. Temos então
enunciadores como: enunciador-individual, quando a enunciação repre-
senta o Locutor como independente da história; enunciador-genérico,
quando a enunciação representa o Locutor como difuso num todos em
que o indivíduo fala como e com outros indivíduos; enunciador-univer-
sal, quando a enunciação representa o Locutor como fora da história e
submetido ao regime do verdadeiro e do falso.
5. ENUNCIAçAO, REESCRITURA, TEXTUALIDADE
Como dissemos anteriormente, para nós o sentido de uma expressão
pode ser analisado como seu modo de integração num enunciado, en-
quanto elemento de um texto. Deste modo, a relação integrativa é vista
aqui como uma relação não segmental. A seguir procuro constituir um
modo de operar esta relação.
Vamos, para nosso estudo da designação, observar a relação entre
designar e nomear, de um lado, e de designar e referir, de outro. Ou seja,
o modo de nomear, o agenciamento enunciativo específico da nomeação é
elemento constitutivo da designação de um nome. Da mesma maneira
que as referências feitas com um nome, ou as referências feitas por ou-
tros nomes, como substitutivos do nome, em um texto, são também ele-
mentos constitutivos da designação
No caso da relação entre designação e nomeação, o que se deve
observar é uma relação entre enunciações, entre acontecimentos de lin-
guagem. Num acontecimento em que um certo nome funciona a nomea-
ção é recortada como memorável por temporalidades específicas. Para o
estudo dos nomes próprios vamos tormar este aspecto como fundamento
de nossa análise.
No caso da relação entre designação e referência, o que se deve buscar
é como um nome aparece referindono texto em que ocoffe. Assim é funda-
mentalobservar como o nome eslá relacionado pela textualidade com outros
nomes ali funcionando sob a aparência da substituibilidade. Neste caso os
conjuntos de modos de referir organizados em tomo de um nome são um
modo de determináJo, de predicálo. E neste sentido é que constituem a de-
signação do nome em questão. Chamo a atenção aqui para o fato de que,
deste ponto de vista, arelação de predicação a que me refro aqui se dá por
sobre a segmentalidade, ou seja, por sobre as fronteiras dos enunciados.
Para enfrentar este último tipo de análise, apresento a seguir o que
venho considerando como um processo de reescritura2t próprio, para
mim, das rplações de textualidade. Com este tipo de análise vou estudar
um conjunto de designações de nomes comuns.
Para caracterizat aqtú o procedimento da reescrituração retomo a aná-
lise que fiz do os no texto da Constituição do Império do Brasil na seqüência
"São cidadãos Brasileiros
1" Os que no Brasil tiverem nascido..."
Esta análise (Guimarães,I99Ia) mostra pelo menos duas possibili-
dades de interpetação do os: uma anafórica e outra dêitica. Ela mostra
como, ao estabelecer um ponto de interpretação no texto (os) relativa-
mente a outro (o antecedente do os), o que se tem é uma falta de relação
unívoca entre estes dois pontos.
De acordo com esta análise, considero que procedimentos como
anâfora, catâfora, repetição, substituição, elipse, etc, são procedimen-
tos de deriva2z do sentido próprios da textualidade. O que significa di-
zer qtJe é este processo que constitui o sentido destas expressões, bem
21. Cf. Guimarães (1999b). 
1
22. A palavra deriva deve ser tomada no sentido que the deu Pêcheux (1983) em Di.scurso.
Estrutura ou Acontecimento.
26 2l
como que não há, texto sem o processo de deriva de sentidos, sem
reescrituração. Esta deriva enunciativa incessante é que constitui, a um
só tempo, os sentidos e o texto. O interessante desta deriva é que ela se
dá exatamente nos pontos de estabelecimentos de identificação de se-
melhanças, de correspondências, de igualdade, de retificações. Quando
uma forma se dá como igual/correspondente a outra (a anaforiza, a
substitui, etc), o sentido está se fazendo como diferença e constitui
textualidade. O procedimento de reescrituração no texto faz com que
algo do texto seja interpretado como diferente de si. E analisar a desig-
nação de uma palavra é ver como sua presença no texto constitui
predinações por sobre a segmentalidade do texto, e que produzem o
sentido da designação.
O que pretendo dizer é que as questões tomadas como procedi-
mentos de textualidade são procedimentos de reescritura. Ou seja, são
procedimentos pelos quais a enunciação de um texto rediz insistente-
mente o que já foi dito. Assim a textualidade e o sentido das expressões
se constitui pelo texto por esta reescrituração infinita da linguagem que
se dá como finita pelo acontecimento (e sua temporalidade) em que se
enuncia.
A reescrituraçãoéuma operação que significa, na temporalidade do
acontecimento, o seu presente. A reescrituração é, a pontuação constante
de uma duração temporal daquilo que ocoffe. E ao reescritrtrar, aofazer
interpretar algo como diferente de si, este procedimento atribui (predica)
algo ao reescriturado. E o que ele atribui? Aquilo que a própria
reescrituração recorta como passado, como memorável. No caso do exem-
plo acima, na medida que o rs reescritura cidadãos, nos dá, pela inter-
pretação anafónca, a preexistência do sentido de cidadão,que ao mesmo
tempo é predicado pela sobreposição da interpretação dêitica, que coloca
em circulação a preexistência do sentido de pessoa, de indivíduo. E esse
movimento de predicação na duração do presente pelo memorável signi-
fica porque projeta um futuro, o tempo da interpretação no depois do
acontecimento no qual o reescriturado é refeito pelo reescriturante.
Deste modo minha posição é radicalmente anticomposicional. Ou
seja, o sentido de uma expressão não é construído pelo sentido de suas
partes. O sentido é constituído pelo modo de relação de uma expressão
com ouffas expressões do texto, tal como exemplifiquei acima a propósi-
to de cidadão. Só assim se torna possível deixar intervir na descrição do
sentido os rememorados que os diversos pontos de um texto recortam.
Ou seja, a descrição do sentido não pode se limitar ao estudo do funcio-
namento do enunciado. Este é parte da questão e não seu lugar.
6. CENA ENTINCIATIVA E DIVISAO DO LOCUTOR
Voltemos ao enunciado "O Presidente da República, no uso de suas
atribuições, Decreta...". Se caracterizamos que o Locutor ai, enquanto
lugar social, é o locutor-presidente, que figura de enunciador aí fala?
Não parece ser um enunciador individual. Podemos dizer que se trata de
um enunciador-universal. Ou seja, a enunciação do enunciado acima é
um dizer que se apresenta como válido para todos e cada um e para todas
as situações descritas no Decreta... O que aí se enuncia não se enuncia
como independente da história, mas como fora da história, como válido
para qualquer fato como aquilo que vai dirigir os fatos. Podemos dizer
que o Locutor está aqui dividido por ser a um tempo o locutor-presidente
e o enunciador-universal.
O que isto coloca de saída é que o sentido da enunciação é produ-
zido por esta divisão, por esta disparidade do Locutor a si. A questão
está em como explicar esta divisão própria do Decreta, que seria dife-
rente, por exemplo, de um caso em que o Presidente da República dis-
sesse "Quem semeia vento colhe tempestade" (suponhamos que ele o
tenha dito como comentário a uma ação política da oposição). Como
poderíamos descrever esta enunciação? Diríamos que háraítmlocutor-
presidente que fala do lugar de enunciador-genérico (não se trata, en-
tão, de enunciador universal, como no caso anterior). Esta divisão se
faz num aÇo4tecimento cuja temporalidade recorta uma memória de
dizeres populares estereotipados. Uma enunciação como essa, ao pro-
duzir esta nova divisão do Locutor, produz sentidos como "o Presiden-
te ameaçou a oposição, acusou a oposição de semear vento, discórdia,
etc", a partir de um dizer que não é só seu, mas é de todos. O locutor-
presidente toma o enunciador-genérico como argumento para si. A sua
voz é como avoz de todos, por isso ele fala com razão. E este enunciador-
genérico produz aí o efeito de que ele não fala como presidente mas
como um do todos, do povo.
Como dissemos antes, esta distribuição de lugares se constitui pelo
acontecimento por sua própria temporalização. Ou seja, no caso do De-
creta-X a temporalidade do acontecimento enunciativo é o presente que
ele (acontecimento) constitui e é uma memória, um passado de dizeres,
que autoriza o Presidente decretar e decretar-x. Por exemplo, é preciso
que x não tenha sido decretado, que x não diga o contrário de algo cons-
titucional, etc. O decreta x tem como seu passado esta memória de leis,
que aí está com o presente do acontecimento. Por outro lado, esta me-
mória faz sentido no acontecimento porque para um depois nele pró-
28 29
prio. Ou seja, se o presente não inclui nele mesmo uma projeção de um
depois nãohâ Decreta X, não há"1e7" senão para projetar um futuro de
sentidos (de obrigações).
7. LUGARES DE ENUNCIAÇÃO E POSIÇÃO DE SUJEITO
Este funcionamento do Locutor dividido pelo próprio jogo de se
representar como idêntico a si, quando se lhe é díspare, é o processo pelo
qual a enunciação apaga seu caráter social e histórico. Poderíamos per-
guntar: por que o Locutor é significado no acontecimento como indepen-
dente ou fora da história? Por que este colocar-se à margem da história se
produz por este modo de representação dos lugares de dizer (enunciador)
como apagamento do lugar social do locutor (locutores-x)? O que expli-
ca estas divisões do Locutor que funcionam produzindo o apagamento do
social e da história?
Como colocamos antes, para nossoponto de vista, falat e fazer-se su-
jeito é estar numa região do interdiscurso, de uma memória de sentidos
(Orlandi, 1999). Assim ser sujeito é estar afetado por este esquecimento que
se significa nesta posição. Deste modo a.representação do Incutor se consti-
tui neste esquecimento e é isto que divide o Locutor e apaga o locutor-x.
Voltemos ao caso do Decreta de um lado e ao caso do dito popular
de outro. No primeiro caso o lugar social de presidente é apresentado
como voz universal e o sujeito fala de uma região do interdiscurso (da
posição de sujeitojurídico-liberal). Falar desta posição de sujeito e nesta
cena enunciativadâ sentido ao apagamento das configurações sociais e
assim às disputas, dissimetrias do dizer (os conflitos próprios do lugar
social do locutor-x), pela representação do Locutor enquanto enunciador-
universal. Já no caso do dito popular, o sujeito fala de uma ouÍa região
do interdiscurso (posição de sujeito), a do senso comum. Posição que dá
ao todos a sabedoria irrefletida pela qual o Presidente não se diz Presi-
dente mas umdos que lhe são historicamente dissimétricos.
As duas caracterizações acima poderiam levar a pensar que a figura
do enunciador não énada mais do que uma repetição da questão da posi-
ção do sujeito. Mas não é o caso. O enunciador-universal, por exemplo,
pode ser o lugar do dizer de enunciações para as quais a posição do
sujeito no interdiscurso é a do discurso jurídico-liberal, como no caso do
Decreta X. Poderia ser, por outro lado, o lugar de dizer de enunciações
em que o sujeito estivesse na posição de sujeito administrativo, ou cientí-
fico. E estas diferenças levam a relações diversas entre o lugar de dizer e
o lugar social do dizer. Da posição do discurso juídico e do discurso
administrativo, o enunciador-universal pode ser o lugar de dizer que apa-
ga o locutor-presidente. Mas este mesmo enunciador-universal pode ser
o lugar que fala a partir da posição do discurso científico. O que pode
tanto deslocar, por exemplo, Fernando Herinque Cardoso (que hoje ocu-
pa a Presidência da República no Brasil) do lugar de locutor-presidente
para o de locutor-sociólogo, como não. Nada impede que da posição de
sujeito científico o lugar do dizer seja o enunciador-universal e o lugar
social seja o de locutor-presidente. Tantas vezes o atual presidente mobi-
lizou argumentações próprias da economia, da sociologia, etc, enuncian-
do do lugar de presidente. Mas não deixa de ser interessante ver como
falar do lugar do presidente apartir de uma posição do discurso científi-
co é diferente de falar do lugar do presidente a partir de uma posição do
discurso jurídico, como no caso do Decreta, ou de uma posição no dis-
curso político, como no caso do dito popular "Quem semeia vento, colhe
tempestade". E observe-se que o passado (memorável) do acontecimento
é emcadacaso outro.
1i
30 3T
Cnpfruro II
O NOME PROPRIO DE PESSOA23
Tomemos agora o objeto de que nos ocuparemos de modo específi-
co, o funcionamento da designação. Inicio pelo estudo da designação dos
nomes próprios de pessoa.
Pensar o nome próprio de pessoa nos coloca diante da relação nome/
coisa, na qual se considera que se está diante dos casos em que se tem um
nome único para um objeto único. Por outro lado se coloca a questão de
que há uma relação particular: o nome único é nome de uma pessoa úni-
ca. Ou seja, estamos na situação em que o nome está em relação com
aqueles que falam, que são sujeito no dizer. Isto por si só resignifica a
questão darelação nome/coisa, na medida em que arelação é nome/pes-
soa, nome/falante, nome/sujeito.
Um dutfo aspecto importante a considerar é que a relação nome
único/objeto único pode levar a uma hipótese de unicidade do nome.
Vamos, neste capítulo, procurar discutir as questões acima a partir
de uma posição enunciativa tal como acabamos de configurar. Como se
verâ,, o estudo do nome próprio de pessoa leva a recolocar fortemente as
questões relativas ao domínio que pensa arelação da linguagem com o
mundo e como sujeito.
Observaremos, inicialmente, os aspectos morfossinLáticos (um modo
de construção) do funcionamento do nome próprio de pessoa e em segui-
da seus aspectos semântico-enunciativos.
1. FUNCIONAMENTO MORFOSSINTÁTICO
Se tomamos nomes próprios tal como os existentes na nossa socie-
dade, encontramos nomes como: Getúlio Domelles Vargas, João Belchior
23. Esta seção retoma parte do que disse em'Designação e Processos de Enunciaçáo", de 7993,
mimeo. Faz também parte, com algumas diferenças, de Guimarães (2000b). Cf. outros estu-
dos sobre designação em Guimarães (1991a, l99Lb e 1993)
JJ
Marques Goularl, Antônio Cândido de Melo e Souza, Joaquim Mattoso
Câmara Júnior João Café Filho.
Nestes nomes, como em outros, vamos encontrar nomeações que se
formam a partir da combinação de dois tipos de nome: Os nomes e os
sobrenomes. Ou seja, temos uma classe de nomes como Getúlio, João,
Belchiof Antônio, Cândido, Joaquim, e outra de nomes como Vargas,
Marques, Goulart, Melo, Souza, Mattoso, Câmara, Café.
Além disso temos nomes de uma terceira classe como Júnior e
Filho.
O que se observa é que o nome próprio de pessoa, que é apresentado
como umnome único para uma pessoa única,é na verdade uma construção
tal que um sobrenome determina lm nomeu. Por exemplo, Marques e
Goulart determinam João Belchior. Há que se considerar aqui que nome e
sobrenome podem ter uma relação de determinação interna através de um
procedimento de aposição de um nome ou sobrenome ao outro. Voltemos à
determinação do nome pelo sobrenome. Ela diz que este João Belchior é
tmMarques Goulart. É dapamitiaMarques Goulart. Ou seja, o funcio-
namento do nome próprio de pessoa é construído por uma determinação.
Se observarmos, ainda, o funcionamento de nomes da terceira clas-
se (Júnior, Filho), vamos ver que esteis palavras têm também um funcio-
namento determinativo que se caracterizapor estabelecer uma distinção
entre nomes iguais. Joaquim Mattoso Câmara Júnior é, o Joaquim dos
Mattoso Câmara que é filho de um oatro Joaquim dos Mattoso Câmara.
Ou seja, há uma constituição morfossintática do nome próprio de
pessoa e ela se dá como relações de determinação que especificam algo
sobre o que se nomeia. E estas relações são restrições que determinam o
modo de nomear alguém.
Um outro aspecto interessante a observar é que a relação entre o
sobrenome e o nome se dá tanto por uma justaposição, como em Getúlio
Dornelles Vargas quanto através de preposição, como é o caso de Antô-
nio Cândido de Melo e Souza, em que o de liga Melo e Souza a Antônio
Cândido. Aqui se observa também que os sobrenomes, quando mais de
um, podem vir justapostos como em Mattoso Câmara, ou articulados
por uma conjunção, como em Melo e Souza2s.
As ligações entre o nome e o sobrenome podem se dar ainda com
algumas variações como as que estão em Epitócio da Silva Pessoa,
24. Volta¡emos depois sobre esta questão da determinação, que do ponto de vista semântico-
enunciativo é mais complexa e contém também a determinação do nome sobre o sobrenome.
25. Não deixa de ter interesse observar como a ortografia, Souza ou Sousa, por exemplo, faz
parte destes mecanismos determinativos e identificadores.
34
Hermes Rodrigues da Fonseca. Nestes casos vê-se a ligação entre onome
e o sobrenome feita por uma preposição e um determinante (artigo) as-
simcomo uma ligação entre os sobrenomes, damesmaforma. Apresen-
ça do artigo traz mais um aspecto das determinações que se podem dar na
constituição do nome próprio
Esta observação inicial já nos leva a considerar que o nome próprio
de pessoa é, na nossa sociedade, uma construção em que relações semân-
ticas de determinação constituem o nome, o que já nos afasta de posições
estritamente referências ou cognitivas no estudo do nome próprio. Isto
ficará mais claro ainda pelas análises que se seguem.
2. O FI.]NCIONAMENTO SEMÂNTICO-ENUNCIATIVO
Antesde analisar aspectos específicos deste funcionamento, é pre-
ciso observar que a nomeação de pessoas se dá no espaço de enunciação
da Língua Oficial do Estado, aLíngtaNacional, como homogênea. Ob-
serve, por exemplo, os nomes acima apresentados, e considere a incum-
bência da autoridade responsável pelo registro de crianças em não aceitar
nomes "fora de propósito". É pensando neste espaço de enunciação que
vamos aqui observar como a nomeação constitui a designação de um
nome próprio de pessoa. Consideraremos, nos textos nos quais se apre-
senta, as relações do-funcionamento designativo do nome prórpio com as
enunciaçÕeq de nomeação (nas quais um nome é atribuído a uma pessoa).
Tomaremos para isso quatro aspectos.
A) O ato de dar nome a uma pessoa, na nossa sociedade, pelos pais;
B) Relativamente ao item A, o que nos diria o fato de que em cada
época há nomes predominantes, que são mais usados? (Reportagem de
jornal de cerca de quatro ou cinco anos dava conta de que o nome predo-
minante naquele momento era Bruno, para os meninos);
C) Por que alguém que foi nomeado
a) Antônio Cândido de Melo e Souza é no uso corrente Antônio
Cândido?
b) Maximino de Araújo Maciel é Maximino Maciel?
D) No serviço militar alguém que se charnaloão Roberto Rodrigues da
Silvapde ser João ot Roberto ou Rodrigues ou Silva, e mesmo da Silva?
A análise destes aspectos põe de início a questão sobre o funciona-
mento do nome próprio que se constitui como a busca de uma unicidade.
Ou seja, um nome para uma única pessoa. Unicidade que o funcionamen-
to morfossintático mostraqlue é, em verdade, uma construção de relações
lingüísticas e não uma relação diretaentre palavra e objeto. Como vimos,
35
um nome de pessoa é uma construção com determinações de um certo
tipo. A questão interessante é procurar saber o que significa esta constru-
ção de unicidade do nome próprio.
Minha hipótese aqui é que esta unicidade é um efeito do funciona-
mento do nome próprio como processo de identificação social do que se
nomeia. Isto ganha contornos especiais e muito particulares no caso dos
nomes próprios de pessoa porque neste caso o funcionamento do nome se
dá no processo social de subjetivação. Ou seja, passa a ser uma questão
do sujeito.
Vamos, então, para refletir sobre esta questão fundamental, tomar
os quatro aspectos há pouco colocados.
2. 1. Tomemos o caso A. Dar nome a uma criança é uma "obriga-
ção" dos pais que a devem registrar. E é uma "obrigação" estabelecida
pela lei (um conjunto de textos específicos), que obriga os pais a registra-
rem um recém-nascido. Os pais devem solicitar ao cartório a emissão de
uma certidão, um texto sustentado pela lei, que nomeia e inclui o nomea-
do no Estado, com as obrigações e direitos advindos desta inclusão. Dar
nome a uma pessoa se faz, então, do lugar da paternidade (locutor-pai)
que se configura como um lugar socialbem caracteizado. Não é a pater-
nidade biológica que interessa no processo, embora o direito coloque a
relação biológica como elemento do lugar da paternidade. Mas os pais
nomeiam como aqueles que escolhem, segundo querem, um nome. Te-
mos, então, um enunciador-individual. A representação deste enunciador
apaga a constituição do Locutor pela rede jurídica que o instala como
pai, no espaço enunciativo da Língua Portuguesa, com certas obrigações
de dizer (dar nomes aos filhos, por exemplo).
Dar nome é, assim, identificar um indivíduo biológico enquanto in-
divíduo para o Estado e para a sociedade, é tomá-lo como sujeito. Deste
ponto de vista ganha interesse o funcionamento determinativo da cons-
trução do nome próprio de pessoa. No caso de Antônio Cândido de MeIo
e Souza, por exemplo, nomeá-lo é colocá-lo na relação social como o
Antônio Cândido dos Melo e Souza. É colocá-lo na sociedade com uma
identificação.
2.2.Yejamos o aspecto B. Ele mostra, claramente, que a "escolha,,
do nome não é uma escolha. Sua "origem" não é nem o locutor-pai (lugar
social) nem o enunciador-individual (lugar de dizer). O Locutor se repre-
senta, na escolha do nome Bruno, como um enunciador-contemporâneo,
que se caracteizapor enunciar tal como se "escolhe" enunciar num certo
momento. Ou seja, a "escolha" do nome se dá segundo um agenciamento
enunciativo específico. Este acontecimento de nomear recorta como me-
moráveis os nomes disponíveis como contemporâneos, próprios de sua
época. Assim se este enunciador apaga o lugar do pai, o signficia, ao
mesmo tempo, como moderno.
O processo enunciativo da nomeação pode, então, envolver lugares
de dizer diferentes, o que diz respeito ao fato de que uma enunciação que
nomeia pode estar citando enunciações diversas. No caso de Bruno há
alguns anos, a enunciação do pai cita a enunciação daqueles que são
tidos como modernos, engajados no seu presente. Lembremos também
como muitas crianças chamaram-se Donizete, no Brasil, num celto mo-
mento, por causa de um padre cujo sobrenome era Donizete. As nomea-
ções dos pais citam as enunciações que nomearam tal padre Donizete.
Isto se dá por um acontecimento que recorta uma outra memorialidade de
nomes no espaço da contemporaneidade, o das celebridades. Em oposi-
ção a isso se pode ter, e se tem, casos de pais que adotam nomes que
parecem não estar disponíveis num certo momento. Neste caso são ou-
tras as enunciações citadas.
Esta questão mostra, ao mesmo tempo, que nas nomeações podem-
se cruzar Íegiões diferentes do interdiscurso (posições de sujeito diferen-
tes). No Caso do nome Bruno a posição de sujeito é a jurídico-liberal, no
caso de Donizete cruzam-se duas posições de sujeito, de um lado a jurídi-
co-liberal (aquela da qual se nomeia por obrigação do Estado) e de outro
a posição de sujeito religioso. O agenciamento enunciativo específico é
afetado pef a gremória do dizer, pelo interdiscurs o.
A análise acima nos leva a dizer qtJe o nome determina, na constru-
ção do nome de pes soa, o sobrenome. Se alguém é nomeado Donizete da
Silva, o é por uma memorialidade de nomes célebres enunciada de uma
posição de sujeito religioso. Assim Doni zete determina da Silva, na me-
dida em que particulariza um da Silva a partr desta posição religiosa.
Do mesmo modo que o da Silva, como qualquer sobrenome, ver o que
disse em2.1 ,pafüøtlarizatmDonizete,quenáoé só este. São muitos os
que naquele momento se chamaram Donizete, como em outro caso Brut -
no. Estar num lugar enunciativo e nomear uma criança é particularizat
um dos Silva, Melo, etc.E interessante observar aqui a articulação da
temporalidade do acontecimento, um memorável contemporâneo de cele-
bridades, e a posição de sujeito religioso no interdiscurso
Mais uma vez a construção do nome opera enunciativamente no
processo de identificação social do indivíduo. Um Donizete da Silva é
tm Donizete que configura os da Sl/va, mesmo que o lugar do dizer
(enunciador-individual) dpresente a nomeação como a escolha de um nome
para particularizar um ser biológico específico.
36 37
2.3. Agora o aspecto C. Primeiro há que se registrar que ao lado da
nomeação dos pais, há um processo de designação que se dá para alguém,
a partir da enunciação dos pais, mas numprocesso de certa forma distinto.
Deste modo o nome que é dado do lugar do pai é alterado no proces-
so da vida social em que o indivíduo está e acaba por se reduzir, modifi-
car. Por exemplo, Antônio Cândido de Melo e Souza torna-se Antônio
Cândido por um trabalho enunciativo sobre a enunciação inicial que re-
gistrou um nome para a pessoa. A mesma coisa se dâpara Maximino de
Araújo Maciel que se toma Maximino Maciel. São outros lugares de
enunciação que renomeiam o que se nomeou do lugar do pai. Este jogo de
enunciar a partir de outras enunciações refazatemporalidade do primei-
ro acontecimento, exatamente por tomáJo diretamente como o rememorado
que o presente do segundo acontecimento modifica.
Diríamos que há duas direções diferentes operando: em uma opera
uma "individtalização",

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