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Realismo Jurídico

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Evanuel F. Silva
O conceito de justiça de Javier Hervada toma como um dado evidente o fato de as coisas estarem repartidas. Pressupõe, portanto, uma ordem primeira, determinada de coisas. Assim, diz-nos Hervada: 
Puesto que la justicia consiste en dar a cada uno lo suyo, no será posible ejercer esta virtud allí donde no haya cosas de cada uno.
Esta fórmula traz implicada uma questão que parece passar despercebida pelo seu autor. Ela pode ser colocada da seguinte maneira: a ordem pressuposta na qual as coisas estão repartidas é uma ordem de fato ou uma ordem normativa? Dito de outro modo: o pressuposto da noção de justiça em Hervada é um pressuposto fático – as coisas realmente estão repartidas – ou simplesmente um pressuposto normativo – as coisas devem estar repartidas? A tomada de posição de Hervada frente a este problema é clara, visto que ele a manifesta expressamente:
Allí donde no hay lo mío, lo tuyo, lo suyo, la justicia no tiene lugar. Si se trata de dar lo suyo a cada uno, tiene que existir lo suyo (lo mío, lo tuyo); las cosas han de estar repartidas, distribuidas, asignadas a distintos sujetos.
No entanto, esta repartição à qual Hervada se refere não pode, de nenhuma maneira, ser uma repartição real; só é possível falar de repartição, neste contexto, em um sentido normativo, jamais em um sentido real, uma vez que a noção de justiça, como o próprio Hervada reconhece, só pode se materializar precisamente nos casos em que as coisas não estejam sob o domínio daqueles que devem sobre elas exercê-lo:
Y si se trata de dar las cosas a aquel a quien pertenecen, es evidente que la cosa está bajo el poder de otro, el cual, por ser justo, da -devuelve, restituye, etc.- la cosa a aquel a quien pertenece. Para que opere la justicia, las cosas han de estar o han de poder estar bajo la esfera de poder de otro, esto es, de un sujeto distinto de aquel de quien es la cosa.
Ora, o estar a coisa sob o poder de outrem constitui o pressuposto fático da realização da justiça, logo, sua base de concretude é, na verdade, o fato de as coisas estarem com quem não devem estar, e não o fato de as coisas estarem repartidas. Decorre disso que, na passagem reproduzida mais acima, o pertencer ao qual Hervada faz referência não pode significar um pertencer real, mas um pertencer no sentido jurídico, isto é, no sentido de dever estar com alguém. 
Dizíamos mais acima, que a posição de Hervada frente ao problema da natureza do pressuposto da noção de justiça é clara. De fato. Pois ele defende veementemente a ideia de que o dar é um ato e não um dever, pois a justiça refere-se a atos, não a deveres, uma vez que estes últimos são juízos deônticos, juízos da razão. Mas se a justiça consiste em dar a cada um o seu, e se o seu de cada um se encontra necessariamente (como já o demonstramos) no domínio de quem não é o seu titular, dar a cada um o seu só pode ser um ato devido, uma vez que já possui existência (ideal) no direito, que é uma ordem de normas. A justiça, portanto, existe única e tão somente enquanto ato devido – dever de dar, jamais podendo consistir no ato mesmo de dar, pois ao realizar-se no mundo da efetividade real tal ato desliga-se irremediavelmente de seu plano específico de existência; a partir daí poderá ser qualquer coisa, menos um ato de justiça. A fortiori, o estado em que as coisas estão repartidas não é, portanto, um estado real, mas um estado ideal (Sollen).
 2. As investigações acerca do que seja a justiça podem, objetivamente, ser agrupadas em duas grandes tradições de pensamento: uma de caráter eminentemente metafísico e outra de caráter eminentemente racionalista. Fundamentalmente, o cerne das infindáveis disputas entre estas duas correntes de pensamento é, nada mais nada menos, do que a noção de norma de justiça. 
De acordo com Hans Kelsen, podemos distinguir dois tipos de normas de justiça: normas de justiça do tipo metafísico e normas de justiça do tipo racionalista. As primeiras – normas de justiça do tipo metafísico – se caracterizam pelo fato de se apresentarem como derivações de uma instância transcendente e, portanto, incognoscível ao homem. Tais normas são metafísicas não só no que toca à sua origem, mas também no que toca ao seu conteúdo, “na medida em que não podem ser compreendidas pela razão humana”. Logo, embora os homens não possam compreender a justiça constituída por tais normas, devem acreditar na instância da qual elas se originam. As normas de justiça do tipo racionalista são caracterizadas pelo fato de não pressuporem uma instância superior como fonte da justiça, pois podem ser pensadas como manifestações de atos humanos postos no mundo da experiência e, portanto, concebidas racionalmente. 
No entanto, adverte Kelsen, as normas de justiça do tipo racionalista, não podem ser postas pela razão humana – pela chamada razão prática, embora tal possibilidade seja cogitada por aqueles que respondem à questão sobre o que é o justo pressupondo tais normas como evidentes. Sem sombra de dúvidas, a fórmula de justiça mais frequentemente utilizada é aquela que diz: “a cada um se deve dar o que é seu”. Kelsen a compreende como uma norma de justiça de tipo racionalista. 
Esta fórmula já aparece no pensamento de Santo Agostinho com um certo nível de aprimoramento. Em o Livre Arbítrio, livro escrito em forma de diálogo, diz Agostinho: “[...] E finalmente sobre a justiça, o que diremos ser ela, senão a virtude pela qual damos a cada um o que é seu?”, e, completa: [...] pessoa alguma pode praticar a justiça sem dar a cada um o que é seu”. É a justiça, portanto, uma virtude, pois assim Santo Agostinho a qualifica expressamente, ao incluí-la, junto com a prudência, a força e a temperança, na categoria das “virtudes cardeais”. 
Todavia, a qualidade da justiça não é exclusividade dos homens, as leis criadas por estes também podem ser justas; isso ocorre nos casos em que elas estão de acordo com o que Santo Agostinho chama de “Lei Eterna”. Na verdade, diz Agostinho, “uma lei que não seja justa não é lei”. Vê-se, pois, que a fórmula “dar a cada um o seu” apresenta-se, pelo menos na concepção de um de seus principais sistematizadores, como a forma de expressão de duas situações circunstancialmente diversas. Como expressão da justiça, “dar a cada um o seu” tanto pode significar criar leis conforme a Lei Eterna, quanto dar ou tirar de alguém aquilo que, em desobediência à mesma Lei Eterna, lhe fora tirado ou dado. Naturalmente, na citada obra de Agostinho, não é possível vislumbrarmos os exatos limites desta distinção, nem muito menos suas reais possibilidades práticas.
Para um dos mais importantes expoentes do realismo jurídico, Javier Hervada, a noção de virtude ocupa um lugar central na definição da justiça como “dar a cada um o seu”. Hervada define a justiça de forma categórica: a justiça é uma virtude, a de “dar a cada um o seu”. A fórmula da justiça pressupõe, pois, as seguintes partes: dar; a cada um; o seu. Dar tem aqui o sentido de uma ação ou omissão cuja virtude reside em devolver, restituir a alguém aquilo que está atribuído a sua esfera de domínio. A cada um, significa que a justiça não se refere a grupos ou estamentos, mas a indivíduos particularmente considerados; o seu, Hervada conceitua como uma coisa, res, “que, pertencendo – estando atribuída ou designada – a um sujeito lhe deve ser dada”. 
Esse seu pode ser uma coisa, um dinheiro, um semovente, uma função etc., e diz respeito a toda classe de direitos – propriedade, competência etc. Significa que algo está designado a um determinado sujeito em face de outros. 
A concepção de justiça como a virtude de “dar a cada um o seu” pressupõe a existência de uma ordem normativa válida – o direito – que, a priori, estabeleça o seu de cada um. Daí a certeira observação de Kelsen de que a fórmula do suum cuique conduz a uma tautologia do tipo: “a cada qual deve ser dado aquilo que lhe deve ser dado”. 
A principal implicação disso é que, absolutamente, qualquer ordem jurídica positiva possui o caráter de uma ordem justa, e osvalores jurídicos constituídos por tal ordem serão, necessariamente, valores da justiça. Nesse sentido, a justiça se identifica com o direito e, por pressupor este, padece de um total esvaziamento funcional, tornando-se, por isso, supérflua.
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. O livre arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995.
HERVADA, Javier. Apuentes para una exposicíon del realismo jurídico. Revista Persona y Derecho, Vol. 18, 1988.
HERVADA, Javier. O que é o direito? A moderna resposta do realismo jurídico. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 
KELSEN, Hans. O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Traduzido por João Baptista Machado. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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