Buscar

Textos_-_direito_internacional

Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original

7295-Texto do artigo-23423-1-10-20170912.pdf
 
327 Hedley Bull e a Sociedade Internacional... 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
HEDLEY BULL E A SOCIEDADE INTERNACIONAL: A 
PERSISTÊNCIA DA DIMENSÃO INTERESTATAL 
Eduardo Barros Mariutti1 
 
Resumo: A despeito de toda a retórica, o pilar fundamental da perspectiva de Hedley Bull e 
de seus prognósticos sobre a política mundial repousa na defesa intransigente da soberania 
estatal como o alicerce básico da ordem mundial contemporânea. No entanto, pela erudição, 
versatilidade e abrangência de sua obra, trata-se de um autor de relevância fundamental para 
as Relações Internacionais. O objetivo básico deste artigo, no entanto, é destacar um aspecto 
que nem sempre se ressalta: a peculiar incursão de Hedley Bull pela antropologia social, 
particularmente no que diz respeito à análise da anarquia como elemento ordenador das (mal) 
chamadas “sociedades sem Estado”. 
 
Palavras chave: realismo, Hedley Bull, Teoria das Relações Internacionais. 
 
HEDLEY BULL AND INTERNATIONAL SOCIETY: THE PERSISTENCE OF THE 
INTERSTATE DIMENSION 
 
Abstract: The main argument of this paper is that, despite all rhetoric, the fundamental pillar 
of Hedley Bull's perspective rests on the intransigent defense of state sovereignty as the basic 
foundation of the contemporary world order. However, by the erudition, versatility and scope 
of his work, he is an author of fundamental relevance. The basic aim of this paper, however, 
is to highlight one aspect that is not always emphasized: Hedley Bull's peculiar incursion into 
social anthropology, particularly with regard to the analysis of anarchy as an organizational 
principle in “primitive” anarchical systems. 
 
Key Words: realism, Hedley Bull, Theory of International Relations. 
 
 
 
 
 
1 Professor Doutor do Instituto de Economia da Unicamp. Sociólogo, Mestre em História Econômica e Doutor 
em Economia. Docente no pós-graduação em Desenvolvimento Econômico na Unicamp e do programa San 
Tiago Dantas (Unicamp, Unesp e Puc-sp). Email: eduardomariutti@gmail.com 
 
Eduardo Barros Mariutti 328 
 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
I. Introdução 
 
De acordo com seus defensores, a “escola Inglesa”2 almeja se situar no meio da tensão 
entre o realismo e o idealismo, constituindo deste modo uma espécie de via intermediária 
entre estes dois polos em constante antagonismo. Como ponto de partida eles tomam do 
realismo o pragmatismo derivado da lógica do poder que se supõe ser típica de sistemas 
formalmente anárquicos, povoados por Estados em constante rivalidade, orientados pelo 
princípio da soberania e da não-intervenção sobre os seus assuntos internos. No entanto, se 
levado ao limite, o pensamento realista pode tornar-se essencialmente estático e, deste modo, 
incapaz de captar as transformações que ocorrem em outras dimensões da realidade social 
(CARR, 2001: 14-5; 117-23). É exatamente para tentar superar esta posição - conservando 
parte de seus elementos constitutivos - que esta corrente busca apoio também na tradição 
idealista, onde a ênfase recai na dimensão normativa, fato que altera as percepções sobre o 
sistema internacional: ele deixa de ser concebido como uma espécie de mecanismo reificado e 
automático, cuja ultima ratio repousa na luta pela sobrevivência dos Estados, entendidos 
como entidades discretas e refratáveis à moral, mas como uma arena que também deve estar 
sujeita à justiça e aos princípios éticos. O risco, neste caso, é o voluntarismo que, ao perder 
aderência com os fundamentos do status quo, pode elevar demais as expectativas e acabar por 
minar a ordem vigente sem proporcionar bases sólidas para a construção de uma nova. É a 
partir deste ponto que Hedley Bull passa a tratar da questão de forma bastante original. Sua 
proposta envolve partir exatamente da ampliação e efetivação dos focos de cooperação que 
despontam regularmente no Sistema Internacional, mas sem perder de vista um aspecto que 
ele julga crucial: a questão prioritária é a compreensão dos fundamentos da ordem 
internacional, entendida essencialmente como uma ordem entre Estados, que enseja um 
conjunto particular de instituições que, em última instância, alicerçam a ordem internacional 
(BULL, 2002: 1). Neste ponto, precisamente, surge a tensão básica que anima o seu 
pensamento: nenhuma ordem internacional consegue se manter por muito tempo sem 
assimilar algumas demandas e transformações que se situam fora do horizonte do status quo, 
particularmente as demandas por justiça no plano interestatal. Logo, o problema prático se 
encontra precisamente no limiar entre o realismo e o idealismo: como absorver e assimilar as 
 
2 Como todo rótulo, este também é bastante precário: como salientou Barry Buzan, este termo foi cunhado em 
1981, por um adversário (JONES, 1981) que propunha o seu “encerramento”. E, como era de se esperar, os seus 
defensores reagiram à crítica, mas, ironicamente, aceitaram o rótulo, que acabou se consagrando. Além disto, as 
fontes de financiamento iniciais, que ajudaram a consolidar esta tradição vieram de fundações estadunidenses 
(Rockfeller e Ford). (BUZAN, 2014:5-6) 
 
329 Hedley Bull e a Sociedade Internacional... 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
demandas por uma sociedade mais justa sem comprometer os fundamentos da ordem vigente. 
Ou, em outros termos: como equilibrar a tensão entre os aspectos pragmáticos e normativos 
da ordem (BUZAN, 2004: 36) 
 Neste artigo o foco incidirá quase que exclusivamente sobre A Sociedade Anárquica, 
seguramente o livro mais conhecido e influente publicado por Hedley Bull, obra bastante 
representativa das linhas gerais do seu pensamento e que adquire uma importância peculiar 
pelo modo como se articula de forma harmônica a um problema prático: como enfrentar a 
percepção generalizada de que a sociedade internacional enfrentava uma grave crise que, 
inclusive, podia destruí-la. É deste prisma que ele visa articular a questão formal da anarquia 
enquanto princípio de ordenação com o problema concreto da ordem internacional e sua tensa 
relação com a justiça. Portanto, trata-se de um excelente ponto de entrada para penetrar no seu 
pensamento e demarcar as suas principais características e tensões. E é a partir deste prisma 
que será apresentada uma dimensão do pensamento de Bull que não foi devidamente 
destacada pela bibliografia: o modo como ele se apropria seletivamente de alguns temas 
discutidos pela antropologia, particularmente no que diz respeito ao conflito social em 
sociedades anárquicas e transpõe para a sua análise da sociedade internacional de Estados. 
Bull retoma aspectos importantes do debate antropológico sobre as sociedades anárquicas, 
mas o faz enfatizando a ausência do Estado como o marco ou atributo principal destas 
organizações sociais, um procedimento bastante questionável, já que estas sociedades muitas 
vezes conseguem ser complexas - não são, portanto, necessariamente “homogêneas” – e, ao 
mesmo tempo, prescindir do Estado e de relações interestatais. Porém, como será apontado, 
esta lacuna é contornável, bastando para isto diluir um pouco o peso exagerado que as 
relações interestatais adquirem na perspectiva de Bull e, ao mesmo tempo, levar em conta os 
insights de outros autores que pensavam o mesmo problema, mas de outro
ponto de vista. 
 
II. A Ordem internacional e seus fundamentos 
 
O primeiro movimento teórico significativo que subjaz à perspectiva de Bull envolve 
delimitar o campo de investigação: ele não leva em consideração o conjunto da política 
mundial, mas apenas um de seus elementos: a ordem. Este é o critério norteador básico. As 
instituições por ele analisadas são pensadas em sua relação com a ordem entre os Estados e 
não tendo como referência o lugar que ocupam no “conjunto do sistema político mundial”. O 
segundo movimento envolve dissociar – pelo menos provisoriamente – o problema da ordem 
da espinhosa questão sobre o conflito e a hierarquia dos valores na vida social. A saída é, a 
 
Eduardo Barros Mariutti 330 
 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
princípio, bastante simples: basta tomar a ordem como uma situação efetiva – observável na 
realidade - e não como uma meta ou uma finalidade. É deste prisma que ele observa o papel 
das políticas e instituições, isto é, ressaltando o modo como elas ajudam a preservar esta 
ordem, presumivelmente deixando de lado as questões valorativas. Deste ângulo, afirma 
Hedley Bull, enquanto um elemento que confere um mínimo de previsibilidade às ações 
humanas, a ordem representa um interesse universal e, portanto, pode ser analisada à margem 
dos problemas éticos. Em linha com esta ideia, mas de forma não muito convincente, ele 
ressalta com certa ênfase que discutir o papel da instituição ou política X para a preservação 
da ordem não implica recomendá-la. 
 No plano formal, ordem deve ser entendida como uma estrutura, isto é, como um 
conjunto de relações entre as partes que não é totalmente governada pelo acaso, pois contém 
algum princípio discernível. Mas não é este tipo geral de ordem que ele tem em mente: Bull 
quer analisar a ordem social, um tipo bastante peculiar de ordem que compreende também a 
questão da finalidade e dos valores, pelo menos dos valores elementares. Partindo de Herbert 
Hart (HART,1961: 186-94) - que foi seu professor em Oxford - e de uma leitura muito 
peculiar de Hume, Bull afirma que toda sociedade repousa em três elementos fundamentais: 
1) a limitação da violência; 2) o cumprimento dos acordos e 3) estabilidade das posses. A 
despeito da variação na forma, tamanho e complexidade, todas as sociedades possuem pelo 
menos estres três elementos que, por conta disto, podem ser chamados de primários ou 
essenciais. Logo, na vida social, a ordem pode ser definida como um padrão da atividade 
humana que sustenta os seus objetivos primários: pelo menos estes 3, assim como outros 
elementos ou instituições, desde que os demais atributos não colidam de forma perene com 
esta tríade. 
 Deste ponto de vista, o Sistema Internacional contemporâneo também pode ser visto 
como uma sociedade, embora bastante peculiar: uma sociedade anárquica. Os Estados, 
embora preocupados prioritariamente com a segurança, possuem também o interesse na 
limitação do uso da força, na previsibilidade das relações internacionais (garantia dos 
acordos) e na estabilidade das posses. Sem estes interesses comuns a diplomacia seria 
impossível e, seguramente, não existiria uma economia mundial. A proposta política de 
Hedley Bull envolve a consolidação e o aprimoramento desta zona de interesses comuns, 
consubstanciada em uma “cultura diplomática” – embebida nas elites que comandam os 
postos chave dos seus respectivos aparelhos de Estado - que garantiria um nível 
qualitativamente superior de ordem no sistema internacional. 
 
331 Hedley Bull e a Sociedade Internacional... 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
 Porém, a despeito da retórica, o que realmente singulariza a perspectiva de Hedley 
Bull não é o quanto ele supostamente avança com relação ao realismo, mas, paradoxalmente, 
o quanto ela reafirma seus fundamentos: trata-se, essencialmente, da defesa intransigente da 
soberania estatal, entendida como a base verdadeiramente fundamental da ordem vigente. 
Isto fica particularmente claro quando ele anuncia as 5 instituições basilares que sustentam a 
sociedade internacional contemporânea: 1) equilíbrio de poder; 2) O direito internacional; 3) 
a diplomacia; 4) a Guerra e 5) a ação das grandes potências. Do modo como Bull as 
caracteriza todas elas são, no limite, interestatais e, a rigor, só operam de forma eficaz quando 
marcadas pela assimetria de poder entre os Estados. A única objeção possível envolveria o 
direito internacional, se entendido não como a sanção pragmática dos acordos entre os 
Estados e os atores privados que se movem nos interstícios das fronteiras estatais, mas como a 
tentativa de implantação da Justiça substantiva em escala mundial. Porém, ao destacar a 
existência de uma tensão fundamental entre a Justiça (imperativa e, portanto, potencialmente 
“subversiva”) e a Ordem (BULL, 2002: cap. 4), Bull é forçado a arrancar qualquer substância 
do direito internacional, convertendo-o em uma instituição que só opera realmente se emanar 
do conluio entre as Grandes Potências, que ele considera as “grandes responsáveis” pela 
ordem internacional (VINCENT, 1990: 46) e as suas principais guardiãs. 3 Uma posição que, 
na prática, reitera o espírito do realismo4 e, essencialmente, denota o caráter conservador de 
sua visão sobre a política mundial. No entanto, não deixa de ser importante o modo como Bull 
caracteriza a tensão entre a ordem e a justiça no plano internacional de um ponto de vista 
pragmático: incorporar o máximo de justiça possível dentro da ordem, de forma a aprimorá-
la, ao invés de comprometê-la (BUZAN, 2004:45-62; TOSTES & VALENÇA, 2017). 
 
III. A Sociedade Internacional – Características Gerais 
 
Mas, efetivamente, o que é uma sociedade internacional? Para responder a esta 
questão, precisaremos fazer um breve contraste entre Hedley Bull e seu mestre, Martin Wight. 
 
3 Nesta mesma página, Jon Vincent estabelece uma curiosa analogia com a posição de Burke que, como se sabe, 
defendia os privilégios da aristocracia nos seguintes termos: os aristocratas têm um especial interesse na 
preservação da distribuição existente das relações de propriedade [e de prestígio social], pois são seus principais 
beneficiários. Mas ao lutar pela preservação dos seus particularismos, eles são forçados a defender as instituições 
que os fundamentam e, deste modo, indiretamente os interesses de todos os proprietários. O mesmo poderia se 
dizer das elites que administram os postos chave do Estado e das principais instituições da sociedade interestatal. 
Defendem diretamente os seus privilégios e indiretamente as instituições que fundamentam os demais privilégios 
e monopólios sociais. 
4 Entendido aqui não como uma caricatura, mas como uma tradição viva, cuja base é o pragmatismo e que 
admite algumas mudanças e transformações, desde que não comprometam os fundamentos da ordem social, da 
qual o Estado é um dos seus principais baluartes. 
 
Eduardo Barros Mariutti 332 
 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
Para Wight (2002), todas as grandes sociedades internacionais registradas na história – China 
Antiga; Civilização Greco-Romana, o Concerto Europeu do século XIX etc. – surgiram em 
regiões marcadas por um elevado grau de unidade linguística e cultural. É muito mais fácil 
estabelecer relações entre grupos humanos que possuem concepções convergentes sobre a 
realidade, o universo, a tradição religiosa, a epistemologia
e sobre a conduta social. O reforço 
destes laços também ocorre pelo contraste, onde a identidade social é definida 
prioritariamente pela negatividade. Os “povos civilizados” julgam estar um degrau acima dos 
bárbaros e semicivilizados que os cercam. Este senso de superioridade facilita a comunicação 
e a interação entre os membros de uma mesma civilização e, portanto, favorece a constituição 
de uma Sociedade Internacional. O problema desta ideia é que, se acreditarmos que uma 
sociedade internacional só pode florescer dentro de uma certa unidade cultural, as diferenças 
entre o Ocidente e o Oriente, por exemplo, impediriam a formação de uma sociedade 
internacional realmente global. A única saída seria a imposição de um dos padrões culturais 
sobre as civilizações remanescentes. 
 Foi para contornar este problema que Hedley Bull salientou uma distinção que não 
existe de forma explícita na obra de seu mestre: a diferença entre Sistema Internacional e uma 
Sociedade Internacional em um sentido predominantemente pragmático. Um Sistema 
Internacional é a forma mais simples de interação entre unidades políticas: é formado quando 
dois ou mais Estados estabelecem relações tais que, para agir, cada um leva em 
consideração a posição e o comportamento dos demais.5 Assim, todas as unidades políticas 
agem como partes de um todo mais vasto. Uma sociedade de Estados é um sistema de 
Estados que, além das relações regulares que definem um sistema internacional, possui um 
conjunto de regras e instituições comuns - que emergem em grande medida de forma 
espontânea6 - que tendem a ser reiteradas. O elemento decisivo é que esta sociedade de 
Estados pode florescer e envolver Estados que não pertencem a uma única civilização (BULL, 
 
5 Como o próprio Bull afirma, esta definição é tomada de Raymond ARON (2002 p. 94) e ele a utiliza para 
salientar a diferença entre um simples sistema internacional e uma sociedade internacional de Estados. 
6 Aqui há uma clara coincidência com uma tradição do pensamento que começa com Ludwig Von Mises e 
desemboca na obra de Friedrich Von Hayek. Há uma grande similitude entre a noção de Great Society – uma 
macro sociedade que se forma espontaneamente a partir da concatenação entre diversas formas de organização 
social, constituída pela seleção cultural – e o princípio geral de ordenamento da sociedade internacional de 
Estados proposto por Bull. Mas há uma diferença importante: pelo menos em teoria, Hayek era profundamente 
hostil ao tipo de planejamento sugerido por Bull para gerir a ordem mundial. Além disto – e, mais uma vez, pelo 
menos no plano retórico – Hayek sempre desidratou o peso da dimensão interestatal e do Estado no 
ordenamento da Great Society. Porém esta diferença é atenuada quando Hayek –também ecoando Burke – 
insiste na necessidade de se preservar e até mesmo cultivar as diferenças culturais que, para ele, constituem a 
base da Great Society. É precisamente neste ponto – para garantir esse suposto pluralismo – que Hayek 
reconhece a importância basilar do Estado e do Sistema de Estados. Não é possível aprofundar este tema aqui, 
que é objeto de outro artigo em fase de elaboração. 
 
333 Hedley Bull e a Sociedade Internacional... 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
2002: 22;354-5). A simples ideia pragmática de que, apesar das diferenças, os Estados 
precisam encontrar uma forma de coexistência a mais pacífica possível é, para Hedley Bull, 
suficiente para definir uma sociedade internacional. Esta retificação das possíveis implicações 
do raciocínio de Wight evita a crítica ao imperialismo cultural: é possível, pelo menos em 
teoria, criar uma sociedade internacional baseada na “tolerância”, sem a imposição dos 
valores ocidentais. Mas aí repousa a armadilha. Na prática, é o modelo “herdado da 
renascença” e consolidado pela “sabedoria” do século XIX (no Ocidente, é claro) que deve 
moldar essas relações: uma lógica dos procedimentos e da negociação dos interesses 
formados na cúpula das diversas sociedades.7 
 Portanto, na verdade, não há muita diferença entre Sociedade Internacional atual e o 
que, como já foi aludido, Hedley Bull denomina “cultura diplomática”. Isto fica 
particularmente claro na seguinte passagem: 
 
Podemos dizer que nesta sociedade internacional há pelo menos uma cultura 
diplomática, ou de elite, abrangendo a cultura intelectual comum da 
modernidade: as línguas comuns, principalmente o inglês; uma compreensão 
científica do mundo e certas noções e técnicas comuns que derivam da 
aceitação universal do desenvolvimento econômico por todos os governos 
do mundo moderno, assim como o seu envolvimento universal com a 
tecnologia moderna. No entanto, esta cultura intelectual comum só existe na 
elite. (BULL, 2002: 355 grifo meu) 
 
Logo, nesta visão, o que sustenta a Sociedade Internacional atual não é a 
homogeneidade, mas uma cultura diplomática que articula a sociedade internacional de cima 
para baixo, isto é, a partir de uma “cultura” que amarra principalmente as grandes potências 
e, por decorrência, pode articular as elites das potências intermediárias e dos Estados menos 
poderosos. Exatamente por isto Bull defende o primado das relações interestatais sobre as 
relações transnacionais como mantenedoras da ordem. 
 E, deste prisma, o próprio Bull destaca um delicado problema que precisa ser 
enfrentado: 
Precisamos reconhecer também que a cultura cosmopolita nascente que 
temos hoje, como a sociedade internacional que ela ajuda a sustentar, 
inclina-se a favor das culturas dominantes do Ocidente. Como a sociedade 
internacional, a cultura cosmopolita de que depende pode precisar absorver 
elementos não-ocidentais em escala muito maior para que se torne 
genuinamente universal, e para que proporcione base sólida a uma sociedade 
internacional verdadeiramente universal. (BULL 2002: 355) 
 
 
7 Neste ponto é ainda mais explícita a analogia com Burke, tal como foi proposta por Jon Vincent. 
 
Eduardo Barros Mariutti 334 
 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
A rigor, portanto, o “cosmopolitismo” é apenas aparente. São alguns traços da “cultura 
do Ocidente” que penetram na cúpula das sociedades não-ocidentais e, desse modo, ajudam a 
sedimentar a ordem vigente. Na verdade, uma leitura atenta irá mostrar que o que se difundiu 
no século XIX não foi exatamente a “cultura” ocidental, mas o princípio genérico do 
reconhecimento mútuo da soberania estatal. A tentativa de ultrapassar este limiar é que tem 
gerado um conjunto significativo de tensões, a famigerada “revolta contra o Ocidente”.8 Esta 
é a dificuldade básica: como incorporar de forma mais acelerada elementos não-ocidentais (os 
quais ele sequer menciona) sem que isto ameace a ordem mínima que sustenta o status quo. 
Portanto, a despeito das tergiversações, para Hedley Bull a ordem radicada principalmente na 
trama das relações interestatais representa o princípio fundamental a ser defendido e, em caso 
de conflito, ela deve prevalecer sobre a liberdade ou sobre qualquer outro valor. Este tema 
será retomado logo à frente. No entanto, como já foi adiantado no final da sessão anterior, o 
simples fato de explicitar esta tensão garante a importância e a necessidade de se revitalizar o 
seu pensamento, particularmente no que diz respeito ao intricado debate sobre a justiça 
internacional e os fundamentos e a natureza dos direitos humanos.
IV. A incursão pela antropologia e o reforço do primado das relações interestatais 
 
Para destacar este aspecto de seu pensamento é necessária uma caracterização mais 
precisa do que Hedley Bull entende por sociedade internacional. Duas coisas são 
extremamente claras em sua visão: 1) a sociedade internacional moderna depende muito 
pouco da esfera transnacional. A sua base fundamental reside na relação oficial entre os 
Estados - o reconhecimento recíproco das suas esferas de soberania - que, por sua vez, se 
estrutura predominantemente em torno da posição privilegiada das Grandes Potências, que 
definem a legitimidade internacional. O outro sustentáculo é a cultura diplomática que, como 
foi apontado, é uma cultura compartilhada pelas elites que fazem parte ou gravitam em torno 
da burocracia dos Estados; 2) Do modo como Bull constrói o seu argumento, somos levados a 
concluir que, de uma perspectiva classificatória, a sociedade internacional é singular, pois é a 
única a reunir simultaneamente características aparentemente incongruentes. Ela é uma 
sociedade extremamente vasta (reúne, embora de forma indireta, praticamente toda a 
população do globo), complexa, heterogênea e, mesmo assim, assume a forma de uma 
 
8 Este tema já figura em A Sociedade Anárquica, mas é aprofundado em Justice in International Relations 
(BULL, 1984a) e em “The Revolt against the West” (BULL, 1984b), fato que denota a importância e a 
atualidade da obra de Hedley Bull. 
 
335 Hedley Bull e a Sociedade Internacional... 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
anarquia “ordenada”. Porém, existem outros tipos de ordenamento anárquico que, 
supostamente, se baseiam fundamentalmente na homogeneidade. É por esta via que Hedley 
Bull faz uma incursão pelo campo da antropologia, argumentando que um ordenamento 
anárquico tende a prevalecer apenas em sociedades pouco complexas e culturalmente 
homogêneas, onde inexiste um papel político claramente definido por uma instituição 
destacada da vida social (não existe Estado), de modo que a os 3 princípios basilares da vida 
social são exercidos diretamente por grupos e mantidos por costumes que, geralmente, 
encontram-se alicerçados em crenças morais ou religiosas de caráter imperativo. Já a 
sociedade internacional tem na heterogeneidade – ele prefere o termo pluralidade (BUZAN, 
2004: 45-61) - uma de suas características principais. Formulando nestes termos o problema, 
no horizonte temporal previsível, tudo parece apontar para a inevitabilidade da assimetria de 
poder. As grandes potências atuam como as guardiãs da ordem e, no plano interno dos 
diversos Estados, a elite da administração pública e os setores privados articulados à trama 
das relações transnacionais (comércio, investimento externo direto, finança internacional, 
etc.) ajudam a sustentar o status quo. É exatamente por isto que esta sociedade está 
constantemente ameaçada pelas Revoluções Internacionais e pelo dissenso no seio das 
Grandes Potências que geralmente desemboca nas perigosas “guerras mundiais”, onde a linha 
entre a guerra e a revolução tende a desaparecer. 
 Esta incursão pelo campo da antropologia precisa, contudo, ser devidamente 
qualificada. Devido à arraigada – e incorreta - visão de que o Estado é a manifestação natural 
de qualquer sociedade complexa, sempre houve resistência nos círculos científicos à ideia de 
que o Sistema Internacional poderia ser concebido como uma sociedade internacional. Mas, 
apesar disto, o cenário internacional apresenta regras e padrões de conduta que vigoram até 
nos momentos de crise internacional aguda. Logo, embora formalmente anárquico, o sistema 
internacional é provido de um tipo de ordem que não pode ser concebida como um mero 
reflexo da interação de Estados. Esta suposta ambiguidade sempre trouxe dificuldade para a 
disciplina Relações Internacionais. Um estímulo importante veio de outro ramo do 
conhecimento: a antropologia que, durante as décadas de 1950 e 1960, renovou as 
perspectivas em torno do clássico tema das “sociedades primitivas”. Diversos preconceitos 
foram derrubados. Em primeiro lugar, tanto na economia quanto na política, muitas destas 
sociedades não são tão simples assim. O termo “economia natural” perdeu a aura pejorativa: é 
exatamente pelo fato das unidades econômicas terem elevado grau de autarquia que a 
economia – no sentido que os economistas atribuem ao termo - é marginal na reprodução da 
sociedade e, portanto, está sempre subordinada a outras relações sociais, que engendram 
 
Eduardo Barros Mariutti 336 
 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
sistemas sofisticados de troca, que podem prescindir da moeda ou da mediação dos mercados 
(CLASTRES, 1990: 11-5; POLANYI, 1969). Não se trata, portanto, de uma “economia da 
miséria”, isto é, de baixa produtividade e sem poupança (SAHLINS, 1972: 1-40). Além disto, 
praticamente todas as sociedades ditas “sem Estado” possuem algum grau de segmentação 
social e mecanismos de disputa de poder e de organização das relações sociais. Logo, são 
sociedades políticas, mesmo que desprovidas de um aparelho baseado no monopólio da 
violência e especializado na manutenção da ordem social. Isto deflagrou um intenso debate 
sobre a tendência à padronização em sistemas anárquicos (ver, por exemplo, PRITCHARD, 
1978 [1940] & GLUCKMAN, 1963) que despertou o interesse de alguns adeptos das 
Relações Internacionais, Bull em particular. 
 Mas a incursão de Hedley Bull pela antropologia, embora potencialmente promissor, 
acaba ofuscado por sua fixação na ordem entre os Estados. Além disto, se olharmos por este 
ângulo - nem sempre destacado pela bibliografia – a sua originalidade precisa ser matizada. 
O próprio Bull reconhece a sua dívida com Roger D. Masters, um dos pioneiros na 
comparação do sistema internacional com as sociedades “primitivas” (MASTERS, 1964). 
Masters parte da sagaz análise de E. E. Evans-Pritchard (1978) sobre os Nuer para comparar a 
anarquia ordenada dos “sistemas políticos primitivos” com o Sistema Internacional. As 
semelhanças são óbvias. 
 
primeiro, [escreve Masters] a falta de um governo formal com poder para julgar e 
punir as violações da lei; segundo, o uso da violência e da ‘auto-ajuda’ pelos 
membros do sistema para atingir seus objetivos e reforçar as obrigações, terceiro, a 
lei e as obrigações morais são derivadas tanto dos costumes como das relações 
particulares de barganha (i.e., a falta de um corpo legislativo formal operando com 
base – e gerando – regras gerais); e quarto, um princípio organizacional 
preponderante que estabelece unidades políticas que cumprem várias funções no 
sistema social como um todo [difusão]. (MASTERS, 1964: 105) 
 
Ele desenvolve bastante esta analogia, a qual, de acordo com seu ponto de vista, não 
ocorre apenas de uma perspectiva classificatória imóvel, como também envolve uma 
similaridade na dinâmica social pois, em ambos os casos, não só os conflitos e a violência, 
mas também as regras gerais se estruturam em torno da relação competitiva entre grupos 
opostos, que acaba por produzir uma ordem social fundamentalmente baseada na combinação 
entre autoajuda, contenção e retaliação. Esta ordem social é, exatamente por causa destas 
características, marcada por contínuas transformações superficiais que, no entanto, não são 
capazes de eliminar o seu formato anárquico. São, portanto, sociedades (aparentemente) 
estáticas. 
 
337 Hedley
Bull e a Sociedade Internacional... 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
 Hedley Bull também não inovou muito ao explorar as diferenças entre a Sociedade 
Internacional e as Sociedades Sem Estado. Roger Masters contrapõe com alguma habilidade a 
suposta homogeneidade que caracteriza as sociedades primitivas com a heterogeneidade que 
singulariza o sistema internacional: 
 
Em contraste [com as sociedades “primitivas”], o sistema político internacional 
regularmente inclui culturas políticas radicalmente diferentes. Como Almond 
demonstrou, sistemas políticos nacionais que enfrentam a tarefa de integrar culturas 
políticas diferentes são sujeitas a abalos que não existem em sociedades mais 
homogêneas; a fortiori, este problema é ainda maior em um sistema que permite que 
várias culturas políticas antagônicas se organizem como estados-nacionais 
autônomos. De forma geral, portanto, podemos dizer que o princípio da autoajuda e 
a descentralização estrutural tendem a produzir um grau maior de instabilidade na 
política mundial do que na maioria das sociedades primitivas sem Estado 
(MASTERS, 1964:115). 
 
Masters também chama atenção para um tema que está no centro da obra de Hedley 
Bull: a ideia de que a difusão dos efeitos da ciência moderna ocidental acirrou as diferenças 
culturais entre as civilizações que participam da política mundial, não só por intensificar a 
interação entre os “povos”, mas também por possibilitar que as nações mais poderosas elevem 
o continuamente sua superioridade tecnológica, gerando um fosso intransponível entre os 
Estados proeminentes e os “subdesenvolvidos”. Assim, conclui Masters, a interação entre 
Estados avançados e Estados atrasados pode expor o sistema internacional “ao caos”. 
(MASTERS, 1964: 116). Hedley Bull, refletindo sobre o cenário do final da década de 1970, 
parte exatamente desta perspectiva para concluir que, sem a ampliação do clube das grandes 
potências e a incorporação das demandas de parte do terceiro mundo, a frágil sociedade 
internacional moderna poderá desaparecer e, junto com ela, a estabilidade e a ordem 
internacional. 
 Um pouco antes de Masters, Fred Riggs (1961) já havia explorado a comparação entre 
o sistema internacional e as sociedades primitivas ao afirmar que, ao contrário das sociedades 
sem Estado, o sistema internacional é um sistema prismático, isto é, uma estrutura 
intermediária entre dois extremos polares: de um lado, sociedades marcadas por uma 
estrutura que executa (ou delimita o espaço) todas as funções e, de outro, sociedades onde 
para cada função social existe uma estrutura correspondente (RIGGS, 1961: 149).9 Resta 
 
9 A analogia é com o prisma que, pela refração, decompõe a luz branca no amplo espectro de cores. O sistema 
internacional (que, no seu linguajar, configura uma macro regulação) exerce uma pressão sobre as suas várias 
unidades, que possuem capacidades variáveis de controle sobre a sua zona de jurisdição, que sempre é sujeita a 
dois conjuntos distintos, porém articulados de pressão: a pressão externa (isto é, proveniente de Estados rivais, 
das superpotências, etc,) e a “pressão interna”, isto é, dos “grupos de pressão” (que um marxista chamaria de 
classes e frações de classe em luta). O modelo é bastante complicado, mas uma imagem basta: o critério central é 
 
Eduardo Barros Mariutti 338 
 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
saber então porque Bull escolheu Roger Masters e não Riggs como ponto de partida. A 
resposta não é difícil de ser encontrada. Do modo como Masters propõe a analogia, é possível 
vislumbrar a sociedade internacional como uma sociedade composta essencialmente de 
Estados.10 A extrapolação da analogia de Riggs aponta para outra direção: a tensa relação 
entre os processos internacionais que ocorrem no ambiente difuso da arena internacional em 
combinação com os processos políticos que se desdobram no interior do Estado, em um meio 
formalmente hierárquico. Ou seja, partindo de Riggs – mas abandonando a sua perspectiva 
essencialmente funcionalista e, no limite, estática - é possível caminhar para a concepção da 
sociedade internacional como a resultante de interações societais e interestatais que destacam 
o relevo da dimensão transnacional, fato que abre o caminho para uma forma distinta de se 
colocar o problema da ordem internacional e das suas possibilidades. 
 Esta outra via tem pelo menos duas vantagens potenciais. A primeira é o reforço do 
potencial teórico inerente às Relações Internacionais como disciplina: nesta visão o jogo de 
dicotomias (interno x externo; interestatal x transnacional, Estado x sociedade; Estado x 
indivíduo etc.) que marca as interpretações mais triviais é superado, o que torna possível 
destacar com mais clareza os efeitos do ambiente internacional sobre os processos sociais: isto 
é, possibilita analisar os tipos de conexão que se estabelecem entre a estrutura interna das 
sociedades e o ambiente internacional, concebido em sua dupla dimensão, isto é, no 
imbricamento da lógica interestatal e transacional (HALLIDAY, 1994:94). A segunda 
vantagem está no âmbito da perspectiva da transformação social: se abandonarmos a 
centralidade das relações interestatais poderemos avaliar perspectivas radicalmente diferentes 
da mera preservação do status quo. Esta dupla orientação encontra-se latente na perspectiva 
de Hedley Bull, embora, como já foi exposto aqui (e exaustivamente explorado pela 
bibliografia especializada), o destaque e a defesa da dimensão interestatal deixam este tipo de 
desdobramento na penumbra. É isto que será explorado na próxima sessão do artigo. 
 
V. Do sistema interestatal para o Indivíduo: a ordem mundial e suas tensões 
 
Como já foi apontado, Bull começa o seu livro com uma falsa promessa: ele irá tratar 
da Ordem em termos predominantemente empíricos, e não como um valor desejável e que 
 
sempre a concentração de poder no interior e entre as unidades. A variação no sistema (no eixo uni-multipolar) 
entra em uma tensa relação com a distribuição e a variação do poder no interior das unidades, que também se 
diferenciam de acordo com a sua “estrutura econômica” (isto é, com graus variados de complexidade (i.é. 
sociedades agrárias, industriais etc.) e o seu potencial de autarquia). 
10 De fato, Roger Masters sequer menciona as relações transnacionais como parte da política mundial. O seu 
modelo pressupõe o Estado como a única unidade efetiva de análise. 
 
339 Hedley Bull e a Sociedade Internacional... 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
estaria acima dos demais. Porém, logo no final do capítulo 2 ele derrapa. Para evidenciar isto, 
o contexto precisa ser reconstruído. Ele afirma que, no passado, existiram formas de 
organização política universal em escala regional (grandes civilizações, impérios que 
expandiam sua influência no seu entorno, etc.) que operavam como uma alternativa à ordem 
internacional de Estados, tal como ele a concebe. Logo, dado este precedente, ele conjectura 
que talvez seja possível existir uma sociedade desta natureza, porém em escala mundial que, 
portanto, poderia substituir a mera ordem entre Estados que supostamente estrutura a 
sociedade internacional contemporânea. Mas há uma dificuldade significativa: “A ordem no 
conjunto
da Humanidade é mais abrangente do que a ordem entre os Estados: algo mais 
fundamental e primordial, e que moralmente a precede” (BULL, 2002: 28-9). O mistério aqui 
é duplo. Qual é o fundamento desta ordem? Ela existe de fato ou potencialmente? Bull é 
enigmático a esse respeito e, principalmente, em que sentido ela precede moralmente uma 
sociedade internacional de Estados (sobre este problema, ver VINCENT, 1990: 42-5). O 
argumento referente à sua abrangência não causa muitos problemas: 
A ordem mundial é mais ampla do que a ordem internacional porque para descrevê-
la precisamos tratar não só́ da ordem entre os Estados, mas também da ordem em 
escala interna ou local, existente dentro de cada Estado, assim como da ordem 
dentro do sistema político mundial mais amplo, em que o sistema de estados é 
apenas um componente (BULL, 2002: 29). 
 
Isto fugiria da alçada do seu livro, que trata essencialmente da ordem entre os Estados, 
mas não entra necessariamente em contradição com a sua postura teórica. O problema 
aparece, contudo, logo no próximo parágrafo: 
A ordem mundial é mais fundamental e primordial do que a ordem internacional 
porque as unidades primárias da grande sociedade formada pelo conjunto da 
humanidade não são os Estados (como não são as nações, tribos, impérios, classes 
ou partidos), mas os seres humanos individuais - elemento permanente e 
indestrutível, diferentemente dos agrupamentos de qualquer tipo. Hoje são as 
relações internacionais que estão em foco, mas a questão da ordem mundial surge 
qualquer que seja a estrutura política ou social do mundo (BULL, 2002: 29) 
 
E, logo à frente: 
Por fim, a ordem mundial precede moralmente a ordem internacional. Assumir esta 
posição significa propor a questão da ordem mundial e do seu papel na hierarquia 
dos valores humanos, tema que até este ponto evitei discutir, mas que será́ tratado no 
Capítulo 4. [o decepcionante capítulo onde aparece a já aludida tensão entre Ordem 
Interestatal e Justiça] No entanto, é preciso dizer aqui que se há algum valor na 
ordem na política mundial, é a ordem em toda a humanidade que precisamos 
considerar como tendo valor primário, não a ordem dentro da sociedade dos 
Estados. Se a ordem internacional tem algum valor, isto só́ pode ocorrer porque ela é 
um instrumento orientado para atingir a meta maior, da ordem no conjunto da 
sociedade humana (BULL, 2002: 29). 
 
 
Eduardo Barros Mariutti 340 
 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
Simplesmente ao levantar este problema, o próprio Bull colocou sob suspeição a 
validade de todo o seu esforço no livro. Em primeiro lugar, de que modo seria possível 
conciliar o indivíduo com a “ordem da humanidade”? E, mais importante do que isto, de que 
modo a sociedade internacional de Estados pode operar como um instrumento para a 
constituição da meta maior, isto é, a ordem no plano do conjunto da humanidade? 
 A primeira dificuldade aparece imediatamente. O modo como Hedley Bull caracteriza 
a sociedade internacional de Estados já coloca de antemão um conjunto de limites: trata-se de 
um tipo de ordenamento procedural que, a rigor, só funciona se conseguir evitar as questões 
realmente substantivas, as quais deflagram conflitos que envolvem outras formas 
radicalmente diferentes de ordem. Já foi apontada a sua ressalva com relação ao problema da 
Justiça Mundial (BULL, 2002: 99-101) que tende a conceber o status quo como um obstáculo 
à implantação de uma ordem moralmente “superior”. A passagem abaixo, muito citada, é 
bastante esclarecedora: 
As ideias da justiça mundial ou cosmopolita só são realizáveis (se o são) no contexto 
de uma sociedade mundial ou cosmopolita. Portanto, as demandas por uma justiça 
mundial são inerentemente revolucionárias e implicam transformação do sistema e 
da sociedade de Estados. Mas, em última análise, a justiça mundial pode ser 
conciliada com a ordem mundial no sentido de que é possível ter a visão de um 
mundo ou uma sociedade cosmopolita que assegure esses dois objetivos. Todavia, 
buscar uma justiça mundial no contexto do sistema e da sociedade de Estados é 
entrar em conflito com os mecanismos que mantém a ordem nos nossos dias. 
(BULL, 2002:104) 
 
Neste sentido, portanto, a sociedade internacional de Estados não é um instrumento, 
mas sim um obstáculo à construção de uma ordem justa em um sentido substantivo, isto é, 
calcada na eliminação dos privilégios e na equidade entre todos os indivíduos e povos. 
 Outro ponto bastante curioso é a referência aos “seres humanos individuais”, isto é, 
aos indivíduos. E, de forma quase velada, é também em nome do indivíduo que Bull defende 
o ordenamento anárquico da sociedade internacional de Estados (BUZAN, 2004a:48-50;53-
4). Isto aparece com clareza quando ele reflete sobre a implausível criação de um governo 
mundial. Para ele, nada garante que a eliminação do caráter anárquico do sistema 
internacional pela criação de um governo mundial seria vantajosa para os indivíduos e, por 
extensão, para os grupos sociais. No primeiro caso, a criação de uma estrutura política unitária 
com poder suficiente para atuar em escala global seria uma ameaça constante à liberdade 
individual pois, para ser efetivo, o governo mundial deveria apoiar-se em uma máquina 
repressora praticamente invencível. O poder desmesurado do centro político também poderia 
congelar a assimetria de riquezas e de poder que caracteriza o sistema internacional. E, 
enfatiza o autor, os Estados mais fracos são os que mais insistem na questão da soberania 
 
341 Hedley Bull e a Sociedade Internacional... 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
nacional: resistem aos órgãos e instituições transnacionais criados pelos Estados mais 
poderosos. Julgam que a OMC e o FMI, por exemplo, são ameaças à sua soberania. Para Bull, 
a luta primária dos fracos sempre foi a conquista da autonomia nacional, através dos 
movimentos de descolonização e dos projetos desenvolvimentistas. Logo, a máquina de 
Estado é a sua arma principal. Portanto, privar os desfavorecidos deste recurso provavelmente 
os condenaria a ruína. A porta que Bull supostamente abre para se pensar outras formas de 
ordenamento social fundamentados em uma noção mais substantiva de justiça é sempre 
abruptamente fechada por sua insistência na necessidade de preservar as instituições que ele 
crê fundamentarem a sociedade internacional vigente. 
 
VI. Conclusão 
A obra de Hedley Bull - e o livro A Sociedade Anárquica em particular – é 
incontornável para qualquer entusiasta das Relações Internacionais, dada a sua relevância 
teórica e, também, devido ao seu duradouro impacto político. Em primeiro lugar, como foi 
apontado, ele perturba as visões mais esquemáticas, que tendem a classificar o campo das RI 
como se fosse marcado por uma clivagem radical entre o “realismo” e o “idealismo”. Por 
reconhecer o papel decisivo da História não como uma mera fonte de dados e de exemplos, 
mas sobretudo como inspiradora da análise teórica, ele rompe com o formalismo das análises 
que reduzem tudo à “política de poder” centrada no choque entre os Estados, geralmente 
tomados como unidades discretas. Nesta linha, ao ressaltar o papel decisivo e dinâmico das 
instituições que fundamentam a sociedade internacional, Bull permite não apenas o 
arejamento do pensamento realista mais esquemático (a ênfase na correlação de forças não 
elimina o papel das normas e instituições que não são redutíveis ao equilíbrio de poder), 
como passa a influenciar
também – em menor escala, contudo - o institucionalismo e, de certo 
modo, o que hoje se chama de construtivismo (RUGGIE, 1998: 11; 24; BUZAN, 2004: 64). O 
simples fato de ter definido com enorme clareza a dinâmica e as características da sociedade 
internacional de Estados é suficiente para situar a obra de Bull como uma referência 
obrigatória na teoria das Relações Internacionais. E, a partir deste marco, foi possível deslocar 
o foco para tentar definir o que se entende ou se deveria entender por uma sociedade mundial, 
uma necessidade enfatizada tanto por adeptos da escola inglesa (VINCENT, 1990, BUZAN, 
2004a) como, também, por teóricos mais próximos do marxismo, mas que pensam este 
mesmo tipo de problema (HALLIDAY, 1994). Como foi aqui apontado, é a sua insistência no 
primado da soberania estatal que cria o decepcionante hiato entre a discussão da ordem e da 
justiça internacional e, também, entre a sociedade internacional e a hipotética sociedade 
 
Eduardo Barros Mariutti 342 
 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
mundial. Porém, a partir de sua obra este problema fica mais discernível e, portanto, mais 
fácil de ser abordado no plano teórico. 
 
VII. Referências Bibliográficas 
 
ARON, Raymond Paz e Guerra entre as Nações. Brasília & São Paulo: IPRI, UNB, 2002. 
 
BULL, Hedley A Sociedade Anárquica. Brasília & São Paulo: IPRI, UNB, 2002. 
 
______ Justice in International Relations: The 1983 Hagey Lectures. Waterloo: 
University of Waterloo, 1984a. 
 
______ The Revolt Against the West in BULL, H. & WATSON, A. The Expansion of 
International Society. Oxford: Oxford U. Press, 1984b. 
 
BUZAN, Barry An Introduction to the English School of International Relations. 
Cambridge: Polity Press, 2014. 
 
_____ From international to World Society? English School Theory and the social 
structure of globalization. Cambridge: Cambridge U. Press, 2004ª. 
 
CARR, Edward H. Vinte Anos de Crise. Brasília & São Paulo: IPRI, UNB, 2001. 
 
CLASTRES, Pierre A Sociedade contra o Estado São Paulo: Francisco Alves, 1990. 
 
EVANS-PRITCHARD, E. E. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1978. 
 
HART, Herbert The Concept of Law. Oxford: Oxford Univ. Press, 1961. 
 
HALLIDAY, Fred Rethinking International Relations. Londres: Macmillan, 1994. 
 
JONES, Roy E. The English School of International Relations: a case for closure. Review of 
International Studies Vol. 7, No. 1 Janeiro, 1981. 
 
MACHADO, Nuno Miguel Cardoso Karl Polanyi e o “Grande debate” entre substantivistas e 
formalistas na Antropologia Econômica. Economia e Sociedade Vol. 44, Abril 2012. 
 
MASTERS, Roger D. World Politics as a Primitive Political System. World Politics Volume 
16, No. 4, Julho, 1964. 
 
POLANYI Aristotle Discovers the Economy in: George DALTON (org.) Primitive, Archaic 
and Modern Economies. Essays of Karl Polanyi. Boston: Beacon Press, 1969. 
 
______ A Grande Transformação Rio de Janeiro: Campus, 2000. 
 
RIGGS, Fred International Relations as a Prismatic System. World Politics Vol. 14, No.1, 
Outubro, 1961. 
 
 
343 Hedley Bull e a Sociedade Internacional... 
BJIR, Marília, v. 6, n. 2, p. 326-343, maio/ago. 2017 
RUGGIE, Jon G. Constructing the World Polity: essays in international 
institucionalization. Londres: Routledge, 1998. 
 
SAHLINS, Marshall Stone Age Economics. Chicago: Aldine Atherton, 1972. 
 
TOSTES, Ana Paula & VALENÇA, M. M. Reflexões Teóricas sobre a Justiça Internacional: 
revisitando Hedley Bull Revista Eletrônica de Direito da UFSM Volume 12, No. 1, 2007. 
 
VINCENT, R. J. Order in International Politics in: MILLER, J.D.B. & VINCENT, R.J. 
Order and Violence: Hedley Bull and International Relations. Oxford: Clarendon Press, 
1990. 
 
WIGHT, Martin A Política do Poder. Brasília & São Paulo: IPRI, UNB, 2002. 
 
 
 
 
 
 
 
Recebido em: abril/2017; 
Aprovado em: agosto/2017. 
		Hedley Bull e a Sociedade Internacional Eduardo Barros Mariutti.fw
		5 - Hedley Bull com os pareceristas
n53a07.pdf
RELAÇÕES INTERNACIONAIS MARÇO : 2017 53 [ pp. 083-107 ] https://doi.org/10.23906/ri2017.53a07
INTRODUÇÃO
Há poucas dúvidas de que a superação de conflitos vio‑
lentos pelo globo é, atualmente, um dos mais prementes 
assuntos internacionais. Consequentemente, a paz inter‑
nacional torna‑se um pilar fundamental das relações inter‑
nacionais contemporâneas1. Assim, neste contexto, as 
operações de paz2 destacadas para cenários pós‑conflito 
tornaram‑se uma crucial política internacional. Na reali‑
dade, estas são atualmente o epicentro de uma narrativa 
triangular que funde noções, aparentemente distantes, de 
segurança, desenvolvimento e paz3. A lógica por detrás 
de tal narrativa é bastante simples. Segundo esta narrativa 
triangular, sem segurança não há a possibilidade de exis‑
tir qualquer forma de desenvolvimento; desenvolvimento, 
por sua vez, não apenas reforça, como, de fato, é uma 
condição indispensável para o incremento da segurança; 
ambos, juntos, são os pilares fundamentais para a trans‑
formação de conflitos violentos ao redor do globo e para 
a consolidação de uma paz sustentável em estados pós‑
‑conflito. Não por coincidência, as operações de paz são 
frequentemente retratadas como um mero instrumento 
técnico destacado para cenários pós‑conflito buscando 
superar a violência, direta e estrutural4, nestes locais, e 
reconstruir países devastados pela guerra. Consequente‑
mente, sob esta narrativa, as operações de paz são mera‑
mente um instrumento técnico internacional, projetado 
para restruturar as esferas política, social e econômica 
destes países, a fim de construir a paz. 
R E S U M O
Este artigo discute um dos mais importantes elementos da reali‑
dade internacional atual – a constru‑
ção da paz. Mais precisamente, o 
artigo problematiza o papel que as 
operações de paz têm na política 
internacional. Esta problematização 
é avançada por meio da aproximação 
de ferramentas analíticas desenvolvi‑
das pelo filósofo francês Michel Fou‑
cault e pela Escola Inglesa. O artigo 
argumenta que as operações de paz 
devem ser entendidas como um dispo‑
sitivo normalizador que, ao buscarem 
normalizar os estados pós‑conflito e 
suas populações, é central para o 
fomento e manutenção de uma socie‑
dade internacional em particular – 
uma sociedade internacional (neo)
liberal. 
Palavras-chave: Operações de paz, 
sociedade internacional, Michel Fou‑
cault, Escola Inglesa.
A B S T R A C T
Normalizing	abnormals	
in	the	international	
society:	peace	
operations,	Foucault	
and	the	English	School
This article discusses one of the most important elements of the 
Normalizando	anormais		
na	sociedade	internacional
Operações	de	paz,	Foucault		
e	a	Escola	Inglesa
Ramon	Blanco*
>
RELAÇÕES INTERNACIONAIS MARÇO : 2017 53 084
Normalmente, as operações de paz são problematizadas 
tendo o seu registro liberal em primeiro plano. Conse‑
quentemente, as mesmas são enquadradas, bastante cor‑
retamente, como uma prática que busca fomentar o 
liberalismo ao redor do globo. Tanto apoiadores quanto 
críticos desta dinâmica compartilham, de certo modo, 
este registro. Enquanto os primeiros afirmam uma carac‑
terística pacificadora do liberalismo, os últimos eviden‑
ciam o tom ideológico por detrás de tal prática. Este 
quadro está longe de ser inadequado. Não obstante, o 
mesmo retrata uma imagem de certa forma incompleta 
de todo o processo. Uma problematização deste processo 
por meio de um ponto de
vista diferente oferece a um/a 
observador/a atento/a um lado diferente de tal prática 
internacional. Este é o cerne deste artigo. 
Ao invés de focar‑se em identificar e discutir incoerências empíricas ou os fracassos 
dos esforços de reconstrução pós‑bélica, o que é algo certamente benéfico5, este artigo 
dá um passo atrás e preocupa‑se mais em delinear um enquadramento teórico mais 
adequado para melhor compreender e apreender o papel que as operações de paz têm 
na política internacional. Consequentemente, é aqui delineado um enquadramento que 
deve permitir aos/às analistas problematizar criticamente diferentes processos de recons‑
trução pós‑conflito. Este enquadramento é delineado percorrendo um caminho de certa 
forma inexplorado. O mesmo é operacionalizado por meio da aproximação de duas 
abordagens teóricas que são frequentemente posicionadas em polos epistêmicos dia‑
metralmente opostos – as ferramentas analíticas desenvolvidas por Michel Foucault e 
pela Escola Inglesa. Dentro deste enquadramento teórico proposto, o artigo argumenta 
que as operações de paz possuem uma função muito precisa no atual cenário interna‑
cional – a manutenção da ordem internacional. Mais precisamente, o artigo argumenta 
que as operações de paz devem ser entendidas como um dispositivo6 internacional – por 
agora, um conjunto heterogêneo de atores, conceitos, instituições e práticas – que é 
central e fundamental para o fomento e para a manutenção da ordem dentro de uma 
sociedade internacional em particular – uma sociedade (neo)liberal‑democrática. 
Conforme prossegue o argumento, esta função é tornada operacional por meio da 
tentativa de normalizar os estados pós‑conflito e suas populações. A busca desta nor‑
malização é operada por meio do governo, a «conduta das condutas» no sentido fou‑
caultiano, dos estados pós‑conflito e das vidas de suas populações na sociedade 
internacional. Segundo este argumento, esta tentativa de normalização ocorre em dois 
níveis. No nível internacional, este governo opera por meio da disciplina, recompen‑
sando e punindo os estados pós‑conflito, buscando moldar seus comportamentos 
enquanto indivíduos na sociedade internacional. No nível nacional, o governo opera 
current international reality – the 
construction of peace. More precisely, 
the article problematizes the role that 
peace operations have in the interna‑
tional politics. This problematization 
is advanced through the approxima‑
tion of the analytical tools developed 
by the French philosopher Michel 
Foucault and the English School. The 
article argues that peace operations 
should be understood as a normali‑
zing dispositif that, by seeking to 
normalize post‑conflict states and 
theirs populations, is pivotal to the 
fostering and the maintenance of an 
international society in particular – a 
(neo)liberal international society. 
Keywords: Peace operations, interna‑
tional society, Michel Foucault, 
English School.
Normalizando	anormais	na	sociedade	internacional			Ramon	Blanco 085
por meio da biopolítica, a qual funciona por meio da administração e controle dos 
processos de apoio e suporte à vida das grandes massas populacionais nestes estados 
pós‑conflito. Logo, aproximando as ferramentas analíticas desenvolvidas por Michel 
Foucault e pela Escola Inglesa, pode‑se perceber que as operações de paz são, na ver‑
dade, um dispositivo	normalizador que busca a manutenção de uma ordem (neo)libe‑
ral na sociedade internacional.
De modo a tornar a análise operacional, o artigo está estruturado em duas seções. Na 
primeira, o artigo delineia as ferramentas conceituais que permitem a análise em ques‑
tão. A seção apresenta as ferramentas analíticas desenvolvidas pela Escola Inglesa e 
pelo filósofo francês Michel Foucault. A seção conceitualiza noções como: sociedade 
internacional, dispositivo, normalização, governo, disciplina e biopolítica. Na segunda 
seção, o artigo delineia o enquadramento teórico que, como argumentado, é mais 
adequado para entender e apreender o papel que as operações de paz possuem na 
política internacional. A seção discute o fato de que, na sociedade internacional, as 
operações de paz funcionarem como um dispositivo normalizador. A mesma proble‑
matiza o fato de que este processo de normalização que é executado na sociedade 
internacional pressupõe, subjacente ao mesmo, um entendimento do que deve ser 
um comportamento «normal» e «anormal» na sociedade internacional. A seção, por um 
lado, problematiza que o primeiro é construído enquanto tal, apoiando‑se: (1) em um 
entendimento que posiciona o processo de formação do Estado que ocorreu na Europa 
Ocidental enquanto o modo de se organizar entidades políticas; e (2) no argumento 
dos efeitos pacificadores do liberalismo. Finalmente, a seção também discute, por outro 
lado, o fato de que a construção do que é entendido enquanto um comportamento 
«anormal» na sociedade internacional é tornada operacional por meio da noção de 
«Estado falido».
A	SOCIEDADE	INTERNACIONAL	E	AS	TECNOLOGIAS	DE	PODER
Argumentar que operações de paz possuem uma função precisa no atual cenário inter‑
nacional, servindo como um dispositivo que é fundamental para o fomento e manu‑
tenção da ordem dentro de uma sociedade internacional em particular – (neo)
liberal‑democrática – pressupõe a aproximação de duas problematizações que não são 
frequentemente operacionalizadas em conjunto – as ferramentas teóricas e conceituais 
desenvolvidas pela Escola Inglesa e por Michel Foucault7. Isto certamente pode parecer 
um movimento, no mínimo, excêntrico. Afinal, ambas as problematizações possuem 
inúmeras diferenças. A maior delas é epistêmica e algumas destas diferenças talvez 
sejam inclusive irreconciliáveis. Não por coincidência, ambas as problematizações são 
frequentemente colocadas, bastante corretamente, em diferentes polos dos assim cha‑
mados «Grandes Debates»8 dentro da disciplina de Relações Internacionais.
Não obstante, buscando observar para além de suas distâncias, que são reais, certamente 
é possível buscar aproximá‑las um pouco e as operações de paz talvez sejam a prática 
RELAÇÕES INTERNACIONAIS MARÇO : 2017 53 086
internacional mais adequada para realizar tal movimento. Ambas as problematizações 
são aqui entendidas como tendo a capacidade de iluminar diferentes aspectos das 
operações de paz enquanto uma prática internacional e do processo de construção da 
paz ao redor do globo. É somente ao trazer as ferramentas conceituais e teóricas desen‑
volvidas pela Escola Inglesa e por Michel Foucault que pode‑se adequadamente apreen‑
der, por exemplo, o entendimento, embora às vezes inconsciente, que sustenta tal 
processo. O pressuposto subjacente ao mesmo, embora implícito, é o de que as relações 
internacionais são constituídas por uma sociedade internacional, onde seus membros, 
neste caso estados, compartilham determinados valores e comportamentos, neste caso 
(neo)liberais, e que os indivíduos desta sociedade que não possuem este tipo de com‑
portamento devem sofrer intervenções de modo a terem suas condutas moldadas nesta 
direção. Neste sentido, as ferramentas analíticas da Escola Inglesa fornecem o enten‑
dimento acerca do cenário e do ambiente nos quais as operações de paz operam, 
enquanto que as ferramentas conceituais desenvolvidas por Michel Foucault permitem 
a percepção da função e do papel que estas possuem neste cenário e ambiente. É pre‑
cisamente à elucidação destes elementos que este artigo agora se dirige. 
SISTEMA INTERNACIONAL E SOCIEDADE INTERNACIONAL
Talvez o primeiro delineamento importante a ser feito ao se trazer as ferramentas ana‑
líticas da Escola Inglesa seja a distinção que esta faz entre sistema internacional e 
sociedade internacional. Ambos os termos são parte de uma tríade básica de conceitos, 
que também inclui a noção de sociedade 
mundial,
de onde o pensamento da Escola 
Inglesa é desenvolvido9. Enquanto o último 
desempenha um papel mais marginal nas 
problematizações da Escola Inglesa, a dis‑
tinção entre os dois primeiros, ao contrário, 
possui um lugar fundamental dentro de tais 
problematizações10. Cada uma das três 
noções representa um entendimento parti‑
cular acerca do ambiente internacional e o tipo de relacionamentos que predominará 
entre os atores dentro do mesmo. Estes conceitos derivam‑se de três distintas tradições 
de pensamento11, respectivamente: (1) a tradição hobbesiana ou realista; (2) a tradição 
grociana ou internacionalista; e (3) a tradição kantiana ou universalista12. Para Hedley 
Bull, «[c]ada um destes padrões tradicionais de pensamento incorpora uma descrição 
da natureza da política internacional e um conjunto de prescrições acerca da conduta 
internacional»13. 
Consequentemente, a distinção entre sistema internacional e sociedade internacional14 
está precisamente em concepções de mundo essencialmente diferentes, e em distintos graus 
de relacionamentos entre os membros do mesmo, que ambos os conceitos preconizam. 
A DISTINÇÃO ENTRE SISTEMA INTERNACIONAL 
E SOCIEDADE INTERNACIONAL 
ESTÁ PRECISAMENTE EM CONCEPÇÕES 
DE MUNDO ESSENCIALMENTE DIFERENTES, 
E EM DISTINTOS GRAUS DE RELACIONAMENTOS 
ENTRE OS MEMBROS DO MESMO, 
QUE AMBOS OS CONCEITOS PRECONIZAM.
Normalizando	anormais	na	sociedade	internacional			Ramon	Blanco 087
Por um lado, na visão de Hedley Bull, o sistema internacional, ou um sistema de esta‑
dos, parte de uma tradição hobbesiana e emerge não como a mera existência de dois 
ou mais estados. Para Bull, «[d]ois ou mais Estados podem com certeza existir sem 
formar um internacional»15. A principal questão referente à noção tem a ver mais com 
o contato entre as unidades, os estados, do que com a mera existência dos mesmos. 
Para Bull, o sistema internacional emerge quando «dois ou mais Estados possuem 
suficiente contato entre si, e possuem suficiente impacto sobre as decisões um do outro, 
para levá‑los a comportarem‑se – pelo menos em certa medida – como partes de um 
todo»16. A emergência de um sistema internacional ocorre «onde os Estados estão em 
contato regular uns com os outros, e onde, além disso, existe uma interação entre eles 
o suficiente para fazer o comportamento de cada um deles um elemento necessário nos 
cálculos do outro»17.
No que toca às relações e contatos regulares estabelecidos entre os estados dentro do 
cenário internacional, quando este é entendido enquanto um sistema internacional, 
eles podem variar e também ocorrer em diferentes esferas. Bull entende que a relação 
entre os estados em um sistema internacional «pode tomar a forma de cooperação, 
mas também de conflito, ou mesmo de neutralidade ou indiferença em relação aos 
objetivos do outro»18. Além disso, para ele, «[a]s interações podem apresentar‑se sobre 
um grande espectro de atividades – políticas, estratégicas, econômicas, sociais – como 
o são hoje, ou apenas em uma ou duas»19. 
A sociedade internacional, por outro lado, parte de uma tradição grociana e pressupõe 
um grau mais denso de relacionamento entre os atores da cena internacional, que 
continuam sendo essencialmente estados. Na verdade, a existência de uma sociedade 
internacional pressupõe a existência de um sistema internacional. No entanto, o oposto 
não é verdadeiro. Um sistema internacional pode certamente existir sem a emergência 
de uma sociedade internacional20. A noção de sociedade internacional está no cerne do 
entendimento da Escola Inglesa acerca das relações internacionais. Uma sociedade 
internacional, na visão de Hedley Bull, está presente no cenário internacional «quando 
um grupo de estados, conscientes de certos valores e interesses comuns, formam uma 
sociedade, no sentido de que se concebem a si mesmos ligados por um conjunto comum 
de regras nos relacionamentos uns com os outros, e compartilham o funcionamento 
de instituições comuns»21. Portanto, a noção de sociedade internacional refere‑se à 
percepção, entre os estados, do compartilhamento de certas normas e tipos de com‑
portamentos e, consequentemente, também refere‑se à manutenção destas normas e 
condutas dentro desta sociedade internacional. 
Um paralelo normalmente feito para entender a noção de sociedade internacional, uma 
sociedade de estados nas palavras de Hedley Bull22, é observar o que ocorre dentro dos 
estados. Barry Buzan, por exemplo, faz esta conexão quando menciona que «a ideia básica 
de sociedade internacional é bastante simples: assim como os seres humanos enquanto 
indivíduos vivem em sociedades nas quais eles tanto as moldam quanto por elas são 
RELAÇÕES INTERNACIONAIS MARÇO : 2017 53 088
moldados, também os Estados vivem em uma sociedade internacional na qual a moldam 
e por ela são moldados»23. Neste sentido, enquanto uma sociedade onde seus membros 
são os seres humanos individuais é entendida como uma sociedade de primeira ordem, 
uma sociedade onde seus membros são coletivos de seres humanos individuais, como 
por exemplo os estados, é entendida como uma sociedade de segunda ordem24.
No entanto, ao fazer este tipo de associação, é necessário muito cuidado para não 
cometer o erro de esbarrar no que Bull nomeou como a «analogia doméstica»25, e que 
poderia muito bem ser referida como a falácia doméstica. Hedley Bull entendia o racio‑
cínio subjacente ao que nomeou de analogia doméstica como o cerne do contra‑argu‑
mento contrário à noção de sociedade internacional. De acordo com esta analogia, 
da qual a Escola Inglesa certamente discorda26, o próprio fato de que as relações inter‑
nacionais são anárquicas, no sentido da 
ausência de uma entidade política acima 
dos estados, impossibilita aos estados de 
formarem conjuntamente uma sociedade. 
Seguindo este raciocínio, os estados 
somente formariam uma sociedade se estes 
abdicassem de suas soberanias e se subor‑
dinassem à uma autoridade política 
comum27. Contudo, para a Escola Inglesa, 
ao contrário, os estados «formam uma sociedade, embora anárquica, na qual não têm 
que submeter‑se à vontade de um poder superior»28. Para a Escola Inglesa, há um grande 
nível de ordem, «um padrão ou disposição de atividade internacional que sustenta os 
objetivos da sociedade de Estados que são elementares, primários ou universais»29, 
apesar do cenário internacional ser anárquico30. Por esta razão, Bull argumenta acerca 
de uma «sociedade anárquica» na esfera internacional31. 
É precisamente o paralelo com a sociedade doméstica, certamente sem esbarrar nesta 
falácia doméstica acima mencionada, que permite a aproximação da reflexão desenvol‑
vida pela Escola Inglesa com as problematizações desenvolvidas pelo filósofo francês 
Michel Foucault. As ferramentas analíticas desenvolvidas por Foucault são instrumen‑
tos que possibilitam a reflexão acerca de certos mecanismos presentes no cenário 
internacional, que são fundamentais para a manutenção da ordem na sociedade inter‑
nacional. Como mencionado anteriormente, é neste artigo argumentado que as opera‑
ções de paz são um destes instrumentos. Para perceber isto, o artigo agora se direciona 
ao delineamento de algumas ferramentas analíticas desenvolvidas por Michel Foucault. 
ABRINDO A CA IXA DE FERRAMENTAS DE FOUCAULT
O filósofo francês Michel Foucault é um importante pensador do século xx. Devido à 
sua maestria ao analisar e desvendar ocultas relações de poder, um elemento‑chave do 
pensamento de Foucault é a força que a sua pesquisa possui em prover ferramentas 
AS FERRAMENTAS ANALÍTICAS DESENVOLVIDAS 
POR FOUCAULT SÃO INSTRUMENTOS QUE 
POSSIBILITAM A REFLEXÃO ACERCA DE CERTOS 
MECANISMOS PRESENTES NO CENÁRIO 
INTERNACIONAL, QUE SÃO FUNDAMENTAIS 
PARA A MANUTENÇÃO DA ORDEM NA SOCIEDADE 
INTERNACIONAL.
Normalizando
anormais	na	sociedade	internacional			Ramon	Blanco 089
analíticas e teóricas muito úteis para se investigar e escrutinar uma grande variedade 
de questões e assuntos em campos muito distintos. De fato, o uso das ferramentas 
analíticas foucaultianas possuí um forte impacto e é transversal à uma vasta gama de 
disciplinas das ciências sociais em geral. De certo modo, isto pode ser entendido como 
uma consequência da percepção que o próprio Foucault tinha acerca de seu trabalho, 
enquanto provedor de diferentes ferramentas analíticas. Isto é muito claro em suas 
próprias palavras quando Foucault diz: «eu gostaria que meus livros fossem um tipo 
de caixa de ferramentas que outros possam buscar	para encontrar uma ferramenta que 
possam utilizar do modo que quiserem em sua própria área […] eu escrevo para usuá‑
rios, não leitores»32.
Dentro da «caixa de ferramentas» de Foucault, dispositivo e normalização estão certa‑
mente entre estas úteis ferramentas. Dispositivo é um termo decisivo no pensamento 
de Michel Foucault. Contudo, curiosamente, Foucault nunca dedicou um grande tra‑
balho ou mesmo forneceu uma definição concreta acerca do termo33. Foram outros 
pensadores, como Gilles Deleuze34, por exemplo, que tentaram delinear um entendi‑
mento mais claro do termo. Embora não oferecendo uma definição completa, Foucault 
aproxima‑se disto quando delineou o que era um dispositivo	durante uma entrevista35. 
Ele disse: 
«O que estou tentando destacar com este termo é, primeiramente, um conjunto comple‑
tamente heterogêneo consistindo de discursos, instituições, formas arquitetônicas, deci‑
sões regulatórias, leis, medidas administrativas, declarações científicas, proposições 
filosóficas, morais e filantrópicas – em suma, tanto o dito quanto o não dito. Tais são os 
elementos do dispositivo. O dispositivo em si mesmo é o sistema de relações que podem 
ser estabelecidas entre estes elementos. […] Eu entendo pelo termo “dispositivo” um 
tipo de – digamos assim – formação que possui como sua principal função em determi‑
nado momento histórico a de responder à uma necessidade	urgente.»36
Alargando ainda mais o já pouco preciso entendimento foucaultiano de dispositivo, 
Giorgio Agamben compreende um dispositivo	 como «qualquer coisa que possui de 
algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, con‑
trolar, ou assegurar os gestos, comportamentos, opiniões, ou discursos de seres vivos»37. 
Portanto, um dispositivo	 é essencialmente um conjunto heterogêneo composto por 
diferentes, e muito frequentemente conflitivas e competitivas, práticas, instituições, 
medidas administrativas, legislações, atores, conceitos, teorias, tipos de conhecimento 
e assim por diante, que emerge com a finalidade de lidar com uma determinada ques‑
tão. Para ser mais preciso, um dispositivo	emerge em um determinado momento para 
lidar com algo que, naquele momento em particular, começa a ser percebido enquanto 
uma necessidade urgente, buscando moldar, conduzir e orientar esta questão de um 
modo específico e particular. 
RELAÇÕES INTERNACIONAIS MARÇO : 2017 53 090
Enquanto, por um lado, o dispositivo	pode ser entendido como a lente analítica que 
aglutina uma vasta gama de elementos que, embora díspares, conflitantes, e frequen‑
temente não relacionados, são parte de um mesmo todo abrangente, que emerge a fim 
de lidar com uma necessidade urgente, a normalização, por outro lado, pode ser com‑
preendida enquanto o processo de lidar com esta necessidade urgente. A normalização 
pode ser entendida enquanto a abordagem pela qual esta necessidade urgente é moldada 
e conduzida de um modo específico. Neste sentido, é preciso notar que, desde o prin‑
cípio, a noção de normalização tem inerente e subjacente a si, embora frequentemente 
silenciada, uma distinção entre o que entende por condições «normais» e «anormais».
No processo de normalização, a condição «normal» é o elemento primário e a «norma» 
é deduzida a partir desta. Logo, aqueles entendidos enquanto «anormais» devem sofrer 
intervenções, à luz desta «norma» deduzida a partir do que é entendido enquanto uma 
condição normal, a fim de tornarem‑se mais parecidos com aqueles que são «normais»38. 
Consequentemente, o processo de normalização busca fazer com que os elementos 
«anormais» assemelhem‑se mais com os elementos «normais». Portanto, os «anormais» 
sofrem intervenções, por intermédio de uma variedade de instituições, técnicas e prá‑
ticas, a fim de os fazerem comportar‑se como os «normais». Nos estudos de Michel 
Foucault, os «anormais» eram os doentes, os pervertidos, os delinquentes, os loucos, 
e assim por diante. De variados modos – como, por exemplo, por meio da hospitali‑
zação, da psicanálise, da escolarização, do encarceramento, de espancamentos, dentre 
outros – aqueles que eram entendidos como sendo «anormais» dentro de uma sociedade 
em particular, tinham os seus comportamentos e ações sofrendo constantes interven‑
ções, objetivando moldá‑los e condicioná‑los de tal modo que seus comportamentos 
começassem a assemelhar‑se mais com o que era percebido enquanto um comporta‑
mento «normal» dentro daquela sociedade.
Este processo de normalização é tornado operacional por uma série de tecnologias de 
poder39. As tecnologias de poder, para Foucault, relacionam‑se à conduta de indivíduos 
e a sua submissão a certos fins40. Elas são tecnologias que estão «imbuídas com aspi‑
rações para o modelamento da conduta na esperança de produzir certos efeitos dese‑
jados e de evitar certos efeitos indesejados»41. Quando Foucault fala sobre «poder», 
esta é uma mera abreviação para o que ele realmente tem como o objeto de sua análise 
– os «relacionamentos de poder»42. Estes, compreendidos por Foucault «como os meios 
pelos quais indivíduos tentam conduzir, determinar o comportamento de outros», 
estão presentes em qualquer sociedade43. Logo, Foucault problematiza o poder como 
um relacionamento onde um tenta produzir, direcionar ou determinar os comporta‑
mentos de outros44. Foucault enxerga que, ao longo do tempo, embora a natureza e a 
essência do poder não tenham mudado, o seu funcionamento tecnológico sim modi‑
ficou‑se45. Portanto, Foucault percebe que o que realmente muda ao longo do tempo, 
relativamente ao exercício do poder, é seu funcionamento, o modo pelo qual e através 
de quais instrumentos este é exercido (seus dispositivos «tecnológicos»), e não a sua 
Normalizando	anormais	na	sociedade	internacional			Ramon	Blanco 091
própria essência – a busca por moldar comportamentos. É aqui que Foucault diferen‑
cia as tecnologias de poder tais como governo, disciplina e biopoder46.
Ao posicionar a noção de governo como uma «diretriz»47 para as suas investigações, 
Foucault introduziu uma nova dimensão para investigar as relações de poder, que 
agora podem ser problematizadas a partir de um ângulo diferente, isto é, a perspectiva 
da «conduta das condutas»48. Sucintamente 
definindo governo enquanto a «conduta da 
conduta», Foucault notoriamente brinca 
com o duplo significado da palavra «con‑
duta» e conscientemente a vê como «um 
dos melhores auxílios para chegar a um 
acordo com a especificidade das relações 
de poder»49. Enquanto verbo, «conduzir» 
significa liderar, guiar ou dirigir; como 
substantivo, «conduta» refere‑se às ações e comportamentos humanos50. Ao associar 
estes dois significados, governo enquanto a «conduta da conduta» «implica qualquer 
tentativa de moldar com certo grau de deliberação aspectos de nosso comportamento 
de acordo com um conjunto particular de normas e para uma variedade de fins»51. 
Compreender governo como a «conduta das condutas» liberta do senso comum a 
reflexão acerca do exercício de poder. Governo, no sentido foucaultiano, é muito mais 
do que a imagem burocrática que pode emergir ao se ler a palavra. Para Foucault, o 
governo

Teste o Premium para desbloquear

Aproveite todos os benefícios por 3 dias sem pagar! 😉
Já tem cadastro?

Continue navegando