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LEANDRO BISPO DA SILVA TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL PALMAS-TO, 2019 LEANDRO BISPO DA SILVA TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de DIREITO da FACULDADES OBJETIVO FAPAL como requisito à obtenção do grau de bacharelado em Direito. Orientadora: Profa. Maria de Fátima Xavier PALMAS 2019 TERMO DE APROVAÇÃO LEANDRO BISPO DA SILVA TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL Monografia intitulada “ TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL” apresentado ao Curso de Direito da Faculdades Objetivo como requisito à obtenção do grau de bacharelado em Direito, pela seguinte banca examinadora: Profa. Mestre Maria de Fátima Xavier Orientadora – Educação Profissional na Instituição. Faculdades Objetivo Fapal, Palmas-TO Prof. Mestre Educação Profissional na Instituição. Faculdades Objetivo Fapal, Palmas-TO Prof. Mestre Educação Profissional na Instituição. Faculdades Objetivo Fapal, Palmas-TO Palmas - To, 06 de Fevereiro de 2019 Aos nossos pais e familiares, que foram grandes incentivadores e que sempre acreditaram nos nossos sonhos AGRADECIMENTOS A Minha orientadora, Profa. Maria de Fátima Xavier Ribeiro, pelo acompanhamento, orientação e amizade. Ao Curso de Direito, da Instituição Faculdades Objetivo Fapal, na pessoa de seu Coordenador Prof. André Vanderlei Cavalcanti Guedes, pelo grande trabalho realizado nestes cinco longos anos. Ao colegiado do Curso de Direito, pela compreensão aos momentos difíceis. Agradecimentos aos meus colegas de sala, foram anos difíceis mais vencemos mais uma etapa das nossas vidas. Meus singelos agradecimentos a toda instituição, pelos serviços prestados, pelo apoio incondicional, todos fazem parte dessa nova história de nossas vidas. O que for a profundeza do teu ser, assim será teu desejo. O que for o teu desejo, assim será tua vontade. O que for a tua vontade, assim serão teus atos. O que forem teus atos, assim será teu destino. Brihadaranyaka Upanishad RESUMO A presente monografia, pautada no direito penal, e no princípio da dignidade humana, discorre sobre o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual, tendo em vista o consentimento da vítima maior e capaz. Para tanto, foi feita uma análise introdutória do direito penal sexual, buscando identificar o bem jurídico tutelado hodiernamente sem a influência de conteúdo estritamente moral, pois no tráfico de pessoas deve prevalecer a proteção da liberdade sexual. Foram examinados os principais acordos internacionais afeitos à matéria, em especial o Protocolo de Palermo, e também a legislação de países como Alemanha, Portugal, Espanha, Itália, Estados Unidos e Argentina. Neste contexto, fez-se uma leitura crítica da legislação brasileira (mormente o art. 231 do Código Penal), que está em falta com a agenda internacional por se limitar a tutelar o tráfico internacional quando se trata de exploração de índole sexual. Além disso, o dispositivo se mostra falho em sua essência, por não enxergar o tráfico como um fenômeno, um processo delitivo complexo e multifacetado. À ineficácia legislativa se soma a insuficiência das políticas públicas nesta seara para o efetivo enfrentamento do tráfico de pessoas, visando a sua prevenção, punição e também a proteção às vítimas. PALAVRAS-CHAVE: Tráfico de pessoas. Tráfico internacional de pessoas. Prostituição. Direito penal sexual. Lenocínio. Exploração sexual. Consentimento. ABSTRACT The present monography, based on criminal law and the principle of human dignity, deals with the international trafficking of persons for the purpose of sexual exploitation, in view of the consent of the largest and most capable victim. In order to do so, an introductory analysis of the sexual criminal law and of prostitution was carried out, seeking to identify the juridical right protected without any influence of strictly moral content, since the protection of sexual freedom should prevail in trafficking in persons. The main international agreements related to the matter, in particular the Palermo Protocol, as well as the legislation of countries such as Germany, Portugal, Spain, Italy, the United States and Argentina were examined. In this context, a critical reading of Brazilian legislation was made (mainly article 231 of the Penal Code), which is lacking in the international agenda because it is limited to protecting international trafficking when it comes to exploitation of a sexual nature. In addition, the device is flawed in its essence, for not seeing the trafficking as a phenomenon, a complex and multifaceted deli process. Legislative inefficiency adds to the insufficiency of public policies in this area for the effective confrontation of trafficking in persons, aiming at their prevention, punishment and also the protection of victims. KEY WORDS: Trafficking in persons. International traffic of people. Prostitution. Sexual criminal law. Littering. Sexual exploitation. Consent. LISTA DE ILUSTRAÇÕES/IMAGENS FIGURA 1 -................................................................................................. 49 FIGURA 2 -................................................................................................. 50 FIGURA 3 - ........................................................................... ..................... 51 LISTA DE ABREVIATURAS PNETP: Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. PNC: Panorâmica. PG: Plano Geral. PP: Primeiro Plano. FAPAL: Faculdade de Palmas. LISTA DE SÍMBOLOS @ - arroba © - copyright ® - marca registrada ¶ - parágrafo β - beta SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO. ..................................................................................................................... 15 2. ASPECTOS HISTÓRICOS DO TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS SEXUAIS ............... 16 2.1 O Que é Tráfico de Pessoas - Panorama Geral..................................................................16 2.2 Como Surgiu o Tráfico de Pessoas......................................................................................17 2.3 A partir de quando foi proibido o tráfico de pessoas............................................................18 2.4 A Sociedade Contemporênea e o Tráfico de Pessoas para fim de Exploração Sexual......19 3. LEGISLAÇÃO EM VIGOR.................................................................................................... .21 3.1 Constituição Federal............................................................................................................ 22 3.2 Princípios Constitucionais.................................................................................................... 24 3.2.1 Príncipio da Dignidade da Pessoa Humana................................................................. 24 3.2.2 Princípio da Liberdade................................................................................................. 25 3.2.3 Legislação Penal..........................................................................................................25 3.2.3.1 Lei 13.344/16 Tráfico de Pessoas”...............................................................................26 4. TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL.................................29 4.1 Evolução Legislativa: das Ordenações Filipinas à Reforma Penal de 2009..................... 29 4.2 Bem Jurídico Tutelado.......................................................................................................29 4.2.1 Sujeito Ativo................................................................................................................31 4.2.2 Sujeito Passivo............................................................................................................31 4.2.3 Tipo Objetivo................................................................................................................32 4.2.4 Elemento Subjetivo..................................................................................................... 34 4.2.5 Consumação e Tentativa.............................................................................................35 4.2.6 Finalidade de Lucro, Lavagem de Dinheiro e Crime Organizado................................36 4.2.7 Ação e Competência...................................................................................................39 4.2.8 Panorama Atual do Tráfico de Pessoas...................................................................... 39 4.2.8.1 A Politíca Nacional no Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.....................................40 4.2.8.2 Rede de Cooperação Júridica Internacional................................................................ 41 4.2.9 Volta ao Tempo, Resgate Histórico do Tráfico de Pessoas..........................................42 4.2.9.1 Extensão e Rota do Tráfico..........................................................................................43 4.2.9.2 Repressão, Denúncia, e Monitoramento do Tráfico.....................................................43 4.2.9.3 Elementos Fundamentais Constitutivos para a Definição do Tráfico de Pessoas........44 4.2.9.4 A Questão do Consentimento......................................................................................44 4.2.9.5 Situação de Vulnerabilidade.........................................................................................45 4.2.9.6 Modalidade do Tráfico de Pessoas...............................................................................46 * Tráfico de Pessoas para Fins de Exploração Sexual ............................................................ 46 4.2.9.7 Prostituição e Tráfico de Pessoas. .............................................................................. 46 4.2.9.8 Perfil das Vítimas. ....................................................................................................... 47 4.3 Dados Sobre Tráfico de Pessoas no Brasi ......................................................................... 48 4.3.1 GRÁFICOS .................................................................................................................. 49 Figura 1 .......................................................................................................... ....49 Figura 2 ............................................................................................................. 50 Figura 3 ............................................................................................................. 51 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................52 REFERÊNCIAS....................................................................................................................53 APENDICE 1 BRIEFING......................................................................................................54 15 1. INTRODUÇÃO O tráfico de pessoas não é um crime recente. Ao analisarmos a história das civilizações encontraremos várias passagens em que esse delito se fez presente, desde a escravidão por dívida na antiguidade até o tráfico negreiro da idade moderna, a diferença em relação a este último se faz porque os contemporâneos traficantes não fazem distinção de cor ou raça, o ser humano é a mercadoria exposta em prateleiras nas favelas e guetos. Esse crime revela-se um fenômeno multifacetado, razão pela qual também podemos relacioná-lo ao fenômeno das migrações. Os anseios por uma vida melhor levam inúmeras pessoas a mudarem de cidade, estado ou país e tornam esse migrantes vulneráveis a ação criminosa dos aliciadores, que se aproveitam dos seus sonhos para iludir e aprisionar suas vítimas a partir da retenção dos seus documentos pessoais, violência, ameaças constantes, inclusive, a familiares etc. Importante se faz diferenciar conceitualmente o contrabando de migrantes e o tráfico de pessoas. Com base na doutrina podemos conceituar o contrabando ou tráfico de migrantes como a prática ilegal de fazer o transporte clandestino de pessoas entre as fronteiras de países, esse transporte é consensual e verifica-se a ausência de violação dos direitos humanos, ocorrendo sim, o desrespeito as leis migratórias do país de destino. Diferentemente, o tráfico de pessoas apesar de também envolver o deslocamento, seja dentro de um mesmo território nacional, seja entre países, faz uso da ameaça ou da força ou a outras formas de coação para fins de exploração dos seres humanos traficados. As mulheres, meninas e travestis são as principais vítimas do tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. Apesar de todos os avanços conquistados pelos movimentos feministas do século XX, as desigualdades entre homens e mulheres ainda são frequentes nas sociedades modernas, principalmente, em países com baixo índice de desenvolvimento humano. Infelizmente, a realidade para os travestis não é diferente, estes vivenciam no cotidiano de suas relações o preconceito e a falta de humanidade. Não são poucos os que chegam a ser expulsos de suas próprias famílias, ou os que sofrem constantes humilhações, além disso, para quase a totalidade é negado acesso a empregos com carteira assinada. Diante desse quadro, a prostituição surge como a única e/ou melhor oportunidade para viver com dignidade, contudo, a partir dessa situação de vulnerabilidade, tornam-se facilmente vítimas dos traficantes de seres humanos. Essas desigualdades de poder baseadas no gênero fragilizam os direitos das mulheres e dos transgêneros, assim, é imperioso que a sociedade internacional conheça plenamente o significado desse crime e coopere para a sua prevenção, efetiva repressão dos criminosos e assistência às vitimas. Neste diapasão, o presente artigo científico busca analisar os aspectos criminológicos, jurídicos e as políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas para fim de exploração sexual, com o escopo de desenvolver um trabalho que sirva de parâmetro para novas discussões sobre o assunto. Para tanto, fez uso da abordagem de pesquisa fenomenológica (qualitativa), onde foram analisados os fundamentos doutrinários, conceituais, teóricos e legislação que fundamentam a aplicação de políticas públicas no combate ao tráfico de pessoas. Inicia-se a discussão a partir de uma analise geral sobre o crime de tráfico de pessoas, detendo-se em seguida a uma analise mais específica sobre o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. Em um terceiro momento, passa-se a discutir o contexto nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas, principalmente, em seu aspecto legal. Por fim, trazemos a lume uma analise das políticas públicas nacionais de enfretamento dos delitos tipificados nos artigos 231 e 231-A do Código Penal brasileiro. 16 2. ASPECTOS HISTÓRICOS DO TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS SEXUAIS: Otráfico internacional de pessoas para fins sexuais nos moldes como o conhecemos hoje é recente. Porém, a análise histórica mostra que desde os tempos de Colônia o Brasil padece desse mal. Dos séculos XVI a XIX as escravas negras foram obrigadas a se prostituir pelos seus senhores. Finda a escravidão negra, os fluxos migratórios trouxeram ao País as escravas brancas para serem exploradas sexualmente. Hoje, de local de destino, o Brasil tornou-se primordialmente exportador de escravos sexuais. 2.1 O QUE É TRÁFICO DE PESSOAS - PANORAMA GERAL. A Organização das Nações Unidas (ONU), no Protocolo de Palermo (2003), define tráfico de pessoas como o “recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração“. De maneira geral, o tráfico de pessoas consiste no ato de comercializar, escravizar, explorar e privar vidas, caracterizando-se como uma forma de violação dos direitos humanos por ter impacto diretamente na vida dos indivíduos. Se houver transporte, exploração ou cassação de direitos, o crime pode ser classificado como tráfico de pessoas, não importa se há supostamente um consentimento por parte da vítima. “O tráfico de pessoas é, em todo o mundo, o terceiro negócio ilícito mais rentável, logo depois das drogas e das armas. Essa prática não exclui nenhum país, nem indivíduos, mesmo que mulheres, crianças e adolescentes sejam as principais vítimas. Os países mais vulneráveis ao tráfico de seres humanos e à exploração sexual são os marcados pela pobreza, instabilidades políticas, desigualdades econômicas, países que não oferecem possibilidade de trabalho, educação e perspectivas de futuro para os jovens” ( Livro: A História do Tráfico) 17 2.2 COMO SURGIU O TRÁFICO DE PESSOAS. Seja nos limites nacionais ou por caminhos internacionais, o tráfico vem se avolumando em número de rotas para circulação, vítimas de distintos lugares e movimentação financeira. No entanto, o tráfico de pessoas, apesar de atual, acontece há séculos. Quando voltamos os olhos para a história percebemos que o tráfico de seres humanos, para distintas finalidades, está presente em diversas fases do desenvolvimento da humanidade. Existem relatos da comercialização de pessoas para trabalho escravo na Idade Média (de 476 a 1453), durante a república romana. Com as lutas entre diferentes povos para conquistar novas terras, os vencedores passavam a possuir formas de dominar os perdedores, que eram transformados em escravos para atuar na construção de cidades, na realização de serviços domésticos, dentre outras atividades. Durante os séculos das grandes navegações e das colonizações (XV a XVII), o trabalho escravo se tornou fundamental pois novas terras precisavam ser conquistadas e visando lucro rápido ao menor custo, a utilização do trabalho escravo era a saída ideal. O tráfico negreiro representa, portanto, o mais notório tráfico de pessoas com fins lucrativos. Por aproximadamente 400 anos (1501 a 1875), foi uma das principais atividades comerciais administradas pelos impérios inglês, português, francês, espanhol, holandês e dinamarquês. Durante essa fase, os negros africanos foram trazidos da África para serem suprimento da mão-de-obra não remunerada em diversas colônias, como ocorrido no Brasil, onde a escravidão foi base da economia durante os quatro séculos o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, rapto, fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração por prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, trabalho forçado ou serviços, escravidão ou práticas análogas à escravidão, servidão ou a remoção de órgãos; O consentimento de uma vítima do tráfico de pessoas para a exploração descrito na alínea (a), do presente artigo é irrelevante quando qualquer um dos meios previstos na alínea (a) têm sido utilizados. O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados "tráfico de pessoas", mesmo que isso não envolva qualquer um dos meios referidos na alínea do presente artigo. Criança” entende- se qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade. 18 2.3 A PARTIR DE QUANDO FOI PROIBIDO O TRÁFICO DE PESSOAS. A partir do século XIX, a legislação internacional passou a voltar seus esforços na proibição desse tráfico já que, com o tráfico negreiro, mulheres europeias eram trazidas por redes internacionais de traficantes para a Europa e Estados Unidos da América e para as colônias para trabalhar como prostitutas. O “tráfico de escravas brancas” se tornou preocupante devido a um pânico moral nesses locais, que passaram a reivindicar mecanismos de erradicação da prática. Surgem a partir de 1904 os primeiros instrumentos legais para combater o tráfico nacional e internacional de mulheres, que mais tarde foi chamado de tráfico de pessoas. As convenções compreendiam o tráfico como todo ato de captura ou aquisição de um indivíduo para vendê-lo ou trocá-lo. No século XX, a Organização das Nações Unidas (ONU) manteve a construção de diversas convenções e discussões sobre as ramificações do tráfico de pessoas. Em 1956, a Convenção de Genebra repetiu os conceitos que já tinham sido construídos no passado e ampliou o foco para outros pontos importantes, como o casamento forçado de mulheres em troca de vantagem econômica; a entrega, lucrativa ou não, de menores de 18 anos a terceiros para exploração. A Convenção de Genebra também confirmou a importância de os países membros estabelecerem medidas administrativas para modificar as práticas ligadas à escravidão, assim como definir como crime essa e outras condutas ligadas ao transporte de pessoas de um país a outro e a privação de suas liberdades. Em 1998 o Estatuto do Tribunal Penal Internacional passou a definir a escravidão sexual e a prostituição forçada como crimes internacionais de guerra, contra a humanidade. Assim, a Assembléia Geral da ONU criou um comitê intergovernamental para elaborar uma convenção internacional global contra esses crimes e examinar a possibilidade de elaborar um instrumento para tratar de todos os aspectos relativos ao tráfico de pessoas, em especial de mulheres e crianças. O comitê apresentou uma proposta intensamente discutida durante o ano de 1999, que foi aprovada como Protocolo de Palermo (2000) por meio do qual o tráfico de pessoas se tornou um crime organizado transnacional, ou seja, comum a várias nações. “A partir de 2000, vários protocolos e convenções foram adicionados a mecanismos da ONU para que os Estados- membros mantenham esforços de combater o tráfico de seres humanos. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), criado em 1999, passou a ressaltar também o envolvimento do crime organizado na atividade e promover medidas eficazes para reprimir ações criminosas relacionadas, passando a se basear em alguns mecanismos.” 19 2.4 A SOCIEDADE CONTEMPORÊNEA E O TRÁFICO DE PESSOAS PARA FIM DE EXPLORAÇÃO SEXUAL. O século XX observou uma inversão dos fluxos migratórios,separados pelo interregno que se estendeu da Segunda Guerra Mundial aos anos 80. Se, no início do século a preocupação era com as escravas brancas, as europeias trazidas para a prostituição nas capitais sul-americanas como Rio de Janeiro e Buenos Aires, desde o final do século XX o que se vê são os países pobres e subdesenvolvidos como fornecedores de pessoas para a exploração sexual em nações ricas, especialmente para o mercado europeu- ocidental164. Embora os tempos sejam outros, muitas características do tráfico de outrora se mantiveram. Segundo Lená Medeiros de Menezes165, algumas práticas e algumas razões guardam semelhanças impressionantes, como se tivessem permanecido congeladas no tempo. São elas: caráter transnacional, vítimas vulneráveis; engodo durante o aliciamento; situação de escravidão por dívida no local de destino etc. Hoje a globalização põe à disposição dos traficantes de pessoas todas as suas ferramentas utilizadas para fins lícitos, como a revolução dos meios de comunicação e a facilidade de transpor fronteiras. O tráfico é tratado como um negócio qualquer, e suas vítimas se transformaram em commodities. Os traficantes buscam suas mercadorias em ambientes vulneráveis, e as vendem nos mercados mais promissores. Diante desse cenário estarrecedor, hoje muito se fala em tráfico de pessoas, porém não há estatísticas167 suficientes para informar seu montante ou suas características. Lamentavelmente, trata-se ainda de um crime invisível. “Os dados existentes decorrem de diferentes fontes, colhidos por diferentes metodologias, em diferentes épocas, usando definições divergentes de tráfico de pessoas, por diferentes agências e por motivações muito diversas”168 e 169 A título ilustrativo, segundo dados disponíveis no site da Organização Internacional para as Migrações – OIM170, o tráfico internacional de pessoas é uma das três atividades mais lucrativas do crime organizado. Em 2005 se calculavam 2,4 milhões de vítimas de tráfico de pessoas trabalhando em condições de exploração no mundo todo. 20 O pesquisador Siddharth Kara171 afirma que em 2006 havia cerca de 28,4 milhões de pessoas vivendo como escravos em todo o mundo. São crianças indianas roubadas das famílias trabalhando 16 horas por dia no cultivo do chá ou na confecção de tapetes; adultos e crianças trabalhando no cultivo da cebola, abacate e milho nos Estados do Texas, Califórnia, Flórida e Carolina do Norte e do Sul; ou no cultivo do cacau na Costa do Marfim, do café na Etiópia e no Quênia e nas carvoarias no Brasil. Desses 28,4 milhões, Kara afirma que aproximadamente 1,2 milhão são jovens mulheres e crianças exploradas sexualmente. Segundo dados fornecidos em 2010 pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime – UNODC172, a movimentação financeira envolvida no delito de tráfico de pessoas com fim de exploração sexual para a Europa alcança 3 bilhões de dólares anuais, e o número de novas vítimas é 70.000 por ano. Ainda segundo dados do UNODC, 84% das vítimas traficadas para a Europa ocidental e central são destinadas à exploração sexual173. “Desse número, a maior parte174 é do leste europeu, em função dos problemas político-sociais que atingem essa região175. Das vítimas com origem na América do Sul, é cada vez maior o número de brasileiras, incluindo transexuais, provenientes principalmente das regiões mais pobres do País. Em segundo lugar aparecem as paraguaias176. e Suíça”. 21 3. LEGISLAÇÃO EM VIGOR. Os direitos humanos surgiram de lutas e exigências da sociedade frente ao Estado. Dentro de um contexto histórico, Pérez Luño (1979) afirma que eles consistem em “ um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, caracterizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humana, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional.” Dentro da evolução da humanidade, pode-se afirmar que os direitos humanos foram conquistados pelas guerras, revoluções e movimentos anárquicos, passando-se por três gerações distintas (BONAVIDES, 1996). Em um primeiro momento, o homem se opôs ao Estado, isto é, o direito inicialmente concebido foi o direito à liberdade. Em seguida, em um segundo momento, o homem procurou o seu bem-estar material, fazendo nascer os direitos sociais, culturais e econômicos. No terceiro estágio, ele buscou preservar a espécie humana, como decorrência do movimento denominado globalização (VIEIRA, 1998), que faz surgir na sociedade a busca das liberdades individuais e coletivas, não mais se restringindo ao seu território, mas ultrapassando as barreiras nacionais, sempre com uma visão universal. Em consequência desta evolução, depara-se com o surgimento dos direitos denominados de terceira geração (ALMEIDA, 1996). Princípios de Proteção à Pessoa Humana e sua Relação com o Tráfico Humano A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRÁFICO DE PESSOAS. Para Bobbio, os direitos fundamentais são direitos históricos. Os direitos humanos fundamentais deixaram de ser apenas questões filosóficas para estarem presentes nas Constituições modernas, fruto do movimento denominado constitucionalismo social, compondo-se, assim, um rol restrito de direitos fundamentais, conforme observou Alexy (1997), fazendo com que a matéria passasse para a interpretação do Direito Positivo, integrando a moderna interpretação constitucional. As Constituições não mais se destinaram a proporcionar uma proteção do indivíduo frente ao Estado. Visaram a informar os princípios do constitucionalismo moderno, do Estado Democrático de Direito, apresentando as linhas gerais para a atividade estatal e social, no sentido de promover o bem comum individual e coletivo dos indivíduos sujeitos à sua égide. 22 3.1 CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Direito à vida: Bem de maior valor para o homem. Sua tutela jurídica encontra-se presente na essência de todos os ordenamentos, pois só há direito se houver vida. A tutela à vida está presente no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que em seu artigo 6º dispõe: “ o direito à vida é inerente à pessoa humana ”. Esse direito deverá ser protegido por lei, e ninguém poderá ser arbitrariamente dela privado. No ordenamento interno, da Constituição Federal, no artigo 5º , caput, há garantia do direito à vida a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil. Direito à liberdade: O conceito de liberdade varia conforme o momento histórico em que se encontra. A liberdade constitui um valor social, tendo conquistado progressos no transcorrer da história, fortalecendo-se à medida que a atividade humana se alarga. A liberdade tem um profundo enraizamento na cultura humana como valor; constitui-se em um dos fundamentos da Revolução Francesa e da Revolução Norte-Americana (GRECO FILHO, 1989). O liberalismo moderno colocou a liberdade como um bem irrecusável, e a partir dela se edificaria o progresso social, a justiça política e o equilíbrio das instituições. Constitui-se um direito da pessoa humana (FARIAS, 1996), tendo constado na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Direitos de liberdade no âmbito da classificação dos direitos fundamentais: Segundo Jellinek, foram objeto do trabalho de Magalhães (1992) que os classificou em quatro grupos: Direitos individuais, Direitos sociais, Direitos econômicos e Direitos políticos. Direito à dignidade de pessoa humana A busca de preservação da pessoa humana respalda- se no princípio jurídico da dignidade da pessoa humana. A dignidade está presente no ordenamento constitucional brasileiro. Borba (2001) ressalta que “ a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalhosão garantias que transcendem os direitos sociais para se constituir fundamentos da República, na forma do artigo 1º , incisos III e IV, da Constituição Federal. 23 24 3.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL de 1988, prevê no seu artigo 1 que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político. No próprio preâmbulo da Carta Constitucional está descrito: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais” (...). Não há como falar em Estado Democrático de Direito sem relacioná-lo aos direitos e garantias fundamentais, tais como: o direito à liberdade e a dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana é o valor-fonte de todos os direitos fundamentais. Esse valor se apresenta como fundamento e fim último de toda a ordem política brasileira. José Afonso da Silva caracteriza a dignidade da pessoa humana como valor superior, que atrai o conteúdo dos outros direitos fundamentais, desde o direito a viver. O valor da dignidade humana tem a missão de reconhecer não apenas que a pessoa é sujeito de direitos e créditos diante dessa ordem política, mas que é um ser individual e social ao mesmo tempo. Todos, quaisquer indivíduos, sem qualquer distinção, são detentores de direitos humanos. Liberdade significa o direito de ir, vir e permanecer, de acordo com a própria vontade, desde que não prejudique outra pessoa, é a sensação de estar livre e não depender de ninguém. A liberdade está relacionada com a condição de ser livre. 3.2.1 PRÍNCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos. A dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, inerente à República Federativa do Brasil. Sua finalidade, na qualidade de princípio fundamental, é assegurar ao homem um mínimo de direitos que devem ser respeitados pela sociedade e pelo poder público, de forma a preservar a valorização do ser humano. Sendo a dignidade da pessoa humana um fundamento da República, a essa categoria erigido por ser um valor central do direito ocidental que preserva a liberdade individual e a personalidade, portanto, um princípio fundamental alicerce de todo o ordenamento jurídico pátrio, não há como ser mitigado ou relativizado, sob pena de gerar a instabilidade do regime democrático, o que confere ao dito fundamento caráter absoluto. 25 3.2.2 PRINCÍPIO DA LIBERDADE: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem. 3.2.3 LEGISLAÇÃO PENAL. O Tráfico de Pessoas é um dos crimes mais repugnantes e assume dimensões transnacionais. Segundo o artigo 3º., alínea a do Protocolo de Palermo, constitui “Tráfico de Pessoas”: o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos”. A Lei 13.344/16, por seus artigos 13 e 16, alterou o Código Penal Brasileiro, inserindo o artigo 149 – A com o “nomen juris” de “Tráfico de Pessoas” e revogando expressamente os artigos 231 e 231 –A, CP que anteriormente tratavam da matéria. 26 3.2.3.1 LEI 13.344/16 TRÁFICO DE PESSOAS. A matéria já possuía disciplina em tratado internacional, sendo combatido pelo Protocolo Adicional à Convenção da ONU contra o Crime Organizado relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto 5.017/04. Todavia, em que pese o compromisso assumido pelo Brasil na órbita internacional, o tráfico de pessoas era reprimido criminalmente pelo ordenamento jurídico nacional apenas em sua forma de exploração sexual, por meio de crimes hospedados no próprio Código Penal (arts. 231 e 231-A do CP). Esse cenário mudou com a edição da nova lei, de modo que o Brasil, que estava em mora com a comunidade internacional, desonera-se dessa obrigação e estabelece mecanismos de prevenção e repressão do tráfico de pessoas. Passam a ser punidas outras formas de exploração (remoção de órgãos, trabalho escravo, servidão e adoção ilegal), o que representa inegável avanço no combate ao tráfico de pessoas, respeitando-se o disposto no art. 3º do pacto internacional. Interessante constatar que a Lei 13.344/16, na linha do que dispõe o tratado de direitos humanos, é calcada em 3 eixos, a saber, prevenção, repressão e assistência à vítima (art. 1º, parágrafo único). Segundo o novel art. 149-A do CP, configura tráfico de pessoas agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso. Trata-se de tipo misto alternativo, crime de ação múltipla que pode ser praticado mediante a prática de qualquer das condutas. Há atos que denotam permanência, tais como transportar e alojar, casos em que a consumação se prolonga no tempo. É um crime bicomum, não existindo condição especial do agente ou da vítima. Como elemento subjetivo do tipo, demanda-se a finalidade especial, não necessariamente a exploração sexual, mas alternativamente a remoção de órgãos, trabalho escravo, servidão ou adoção ilegal. A consumação do delito independe da efetiva concretização da vontade específica, bastando a realização de um dosnúcleos do tipo mediante violência física ou moral, fraude ou abuso. Enquanto nos crimes dos arts. 231 e 231-A a violência ou fraude atuava como majorante, no crime de tráfico de pessoas passa a fazer parte do próprio tipo penal. Se o dissentimento é requisito do crime, o consentimento válido do ofendido exclui a tipicidade da conduta (não atuando como causa supralegal de exclusão da ilicitude). Não deve ser considerada válida a concordância de pessoa vulnerável, entendida como o menor de 18 anos. O critério corresponde ao conceito de vulnerável emoldurado no art. 218-B do CP, que protege o menor de 18 anos contra a exploração sexual, e não o patamar de 14 anos definido no art. 217-Ado CP, que tipifica o crime de estupro de vulnerável. Afinal, se o menor de 18 anos não pode consentir na sua exploração sexual, também não pode aquiescer validamente para seu tráfico com outras finalidades. Esse é o entendimento que se coaduna com o compromisso internacional assumido pelo Brasil, que especificamente remete à essa idade (art. 3º, d). Diferentemente do tratado internacional, a Lei 13.344/16 não listou o pagamento de benefícios como meio de execução do delito, o que significa que em tese seria lícito o tráfico de pessoas mediante contraprestação aceita pelo indivíduo, muito embora seja difícil essa situação não envolver abuso ou fraude. Cabe tentativa do delito Foram revogados os arts. 231 e 231-A do CP (tráfico internacional e interno para fim de exploração sexual). Não se cuida de abolitio criminis, pois houver apenas a revogação formal do tipo penal, mas não a supressão material do fato criminoso. É dizer, ocorreu na verdade a incidência do princípio da continuidade normativo-típica, pois a conduta continua sendo definida como crime, muito embora tenha havido a alteração topográfica do tipo penal. 27 A legislação tornou mais rigorosas as penalidades. Logo, em se tratando de lex gravior, a lei não pode retroagir para prejudicar o réu. As majorantes (1/3 a 1/2) definidas no § 1º incidem no caso de (a) crime cometido por funcionário público, (b) contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência, (c) prevalência de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função, (d) retirada da vítima do território nacional. Fácil notar que o tráfico internacional de pessoas, em vez de constituir crime próprio, traduz uma causa de aumento de pena. O problema é que o legislador considerou como majorante apenas a retirada da vítima do país, olvidando-se de sua colocação no território nacional, em lamentável equívoco. No § 2º está estampada a figura do tráfico de pessoas minorado (1/3 a 2/3), cabível ao agente primário que não integra organização criminosa. O dispositivo se parece com o tráfico de drogas privilegiado (art. 33, § 4º da Lei 11.343/06 – que na verdade também é uma causa de diminuição de pena), aplicável caso o agente seja primário e não integre organização criminosa, e além disso tenha bons antecedentes e não se dedique às atividades criminosas. O delito de tráfico de pessoas, em que pese não hediondo ou equiparado, sofre uma restrição relativa àquela categoria de crimes: requisito temporal mais severo (cumprimento de mais de 2/3 da pena) A ação penal é pública incondicionada. A atribuição para investigação é da Polícia Civil, salvo se houver repercussão interestadual ou internacional (art. 144, § 1º da CF), ocasião em que a apuração será deslocada para a Polícia Federal. Já a competência é da Justiça Estadual, em regra, devendo atuar a Justiça Federal em caso de transnacionalidade (art. 109, V da CF). Quanto aos aspectos investigativos e processuais penais, vale destacar um dispositivo singelo, mas de extrema importância. O art. 9º dispõe que “Aplica-se subsidiariamente, no que couber, o disposto na Lei no 12.850, de 2 de agosto de 2013”. Se é permitida a aplicação subsidiária da Lei de Crime Organizado, isso significa que estão à disposição do Estado-Investigação os meios extraordinários de obtenção de prova lá albergados, tais como colaboração premiada, ação controlada e infiltração de agentes e captação ambiental de comunicações. Essas técnicas especiais de investigação revelam-se imprescindíveis no combate à criminalidade moderna, que se mostra cada vez mais organizada e sofisticada. Crimes graves exigem emprego de estratégias investigativas diferenciadas e por vezes mais intrusivas, [1] que não se limitem a testemunhas e perícias. Iniciativa importante que auxiliará nas investigações do tráfico de pessoas é a criação pelo Poder Público de sistema de informações visando à coleta e à gestão de dados que orientem o enfrentamento ao tráfico de pessoas (art. 10). Tendo em vista que a atribuição investigativa é tanto da Polícia Federal e da Polícia Civil, é imprescindível que haja um adequado compartilhamento dos dados entre as Polícias Judiciárias, e também com o Ministério Público. Modificação sensível ocorreu através do art. 11 da Lei 13.344/16, que acrescentou 2 dispositivos no CPP. Segundo o art. 13-A do CPP, nos crimes de sequestro e cárcere privado (art. 148 do CP), redução a condição análoga à de escravo (art. 149 do CP) e tráfico de pessoas (art. 149-A do CP), sequestro relâmpago (art. 158, § 3º do CP) e extorsão mediante sequestro (art. 159 do CP) e envio ilegal de criança ou adolescente para o exterior (art. 239 do ECA), o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia pode requisitar, de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, dados e informações cadastrais da vítima ou de suspeitos. Chama a atenção, além do exíguo prazo de 24 horas para atendimento da requisição, o fato de poder ser referir a dados não só do investigado, mas da própriavítima. 28 Vale lembrar que a requisição de dados cadastrais pela Polícia Judiciária ou Ministério Público no âmbito da persecução penal possui previsão também na Lei do Crime Organizado (art. 15 da Lei 12.850/13) e na Lei de Lavagem de Capitais (art. 17-A da Lei 9.613/98), que se referem expressamente ao investigado, e não estipulam prazo para cumprimento. Especificamente quanto ao delegado de polícia, cabe mencionar também o chamado poder geral de requisição constante na Lei de Investigação Criminal (art. 2º, § 2º da Lei 12.830/13), válido para quaisquer delitos, que apesar de não definir prazo, não limita a requisição ao suspeito. Não é demais ressaltar que dados cadastrais referem-se à própria identidade (nome, nacionalidade, naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, RG, CPF, filiação e endereço), e sua requisição é facultada pelo legislador à autoridade policial para municia-la dos meios necessários para coletar provas de forma célere e eficaz.[2] Importante grifar que nem toda medida investigativa está sujeita à cláusula de reserva de jurisdição. É perfeitamente possível que o legislador atribua à autoridade policial a possibilidade de adotar manu propria uma série de ações, pois o desenho constitucional adotado nem sempre exige prévia chancela do Judiciário para os atos investigatórios, o que em nada prejudica o controle judicial posterior. Destarte, enquanto as comunicações de dados demandam anterior autorização judicial, os dados em si mesmos podem ser acessados por autoridades investigativas. Por isso é que não há óbice para a apreensão e análise de agenda com dados sigilosos.[4] E, quanto ao aparelho celular, pode a autoridade policial acessar diretamente a agenda eletrônica e registros de ligações (histórico de chamadas), [5] não possuindo autorização apenas para verificar em tempo real as mensagensenviadas e recebidas e chamadas efetuadas e recebidas.[6] De igual forma, é lícita a requisição junto à operadora de telefonia, pelo delegado de polícia, de informações pretéritas das ERBs utilizadas pelo investigado.[7 De outro lado, o art. 13-B. Do CPP causa perplexidade. Segundo a regra, no crime de tráfico de pessoas, o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia pode “requisitar, mediante autorização judicial”, às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados – como sinais (ERBs), informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso. Salta aos olhos a falta de técnica legislativa ao fazer menção à requisição mediante autorização judicial. Se há necessidade de ordem judicial, obviamente não se trata de requisição do Ministério Público ou Polícia Judiciária, mas sim requerimento ou representação, respectivamente. De acordo com o § 4º do art. 13-B do CPP, não havendo manifestação judicial no prazo de 12 horas, a autoridade competente requisitará às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso, com imediata comunicação ao juiz. Cuida-se de cláusula de reserva de jurisdição temporária, verdadeira inovação no mundo jurídico, em que o decurso de lapso temporal (bastante apertado – 12 horas) faz desaparecer a necessidade de autorização judicial. Trata-se de previsão dúplice, exigindo-se no início ordem judicial e passando a dispensá-la pelo decurso de tempo. A sistemática se apresenta do seguinte modo: num primeiro momento o delegado representa ou o membro do MP requer ao Judiciário a aplicação de medida. Caso não seja apreciado com celeridade, dispensa-se a ordem judicial e a obtenção da informação passa para a esfera de requisição, ou seja, a Polícia Judiciária ou o Ministério Público determinam diretamente ao detentor da informação que remeta os dados diretamente ao órgão requisitante. 29 4. TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL. O tráfico de pessoas para fim de exploração sexual é tutelado no Brasil pelo art. 231 do Código Penal, com as alterações da Lei n. 12.015/2009. Neste tópico proceder-se-á à análise doutrinária e crítica desse dispositivo, mencionando o entendimento jurisprudencial dominante, quando pertinente. 4.1 EVOLUÇÃO LEGISLATIVA: DAS ORDENAÇÕES FILIPINAS À REFORMA PENAL. O tráfico de pessoas é tipo penal de recente criação, fruto da cooperação internacional sobre a matéria289. As Ordenações Filipinas e o Código Criminal do Império dispunham apenas sobre o lenocínio de forma ampla, sem mencionar o tráfico. Como o direito penal reflete o momento histórico de casa país, o legislador de outrora não via a necessidade de tutelar tal delito. O Código Penal de 1890 foi o primeiro a contemplar esse delito, porém de forma equívoca. O dispositivo que tratava da matéria era o art. 278, localizado no Capítulo III – Do lenocínio do Título VIII – Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor: A expressão “Induzir mulheres *...+ a empregarem-se no tráfico da prostituição” pode induzir a erro. Na verdade, quem se empregava no tráfico não era a mulher, que era a vítima ou objeto deste, mas sim o traficante. 4.2 BEM JURÍDICO TUTELADO. Conforme dispõe Marco Antonio Marques da Silva293, o tráfico de pessoas e a escravatura resultam na violação dos mais elementares direitos da pessoa e no total desprezo pela dignidade humana. Mas, como delimitar esse bem jurídico? A Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, quanto aos crimes contra os costumes, afirmava que o direito penal não poderia abdicar de sua função ética para “acomodar-se ao afrouxamento dos costumes”. A doutrina entendia que o bem jurídico tutelado por este delito era a moralidade pública e os bons costumes294, ou nas palavras de Magalhães 30 Noronha295, “a honra sexual contra os assaltos dos lenões internacionais”. Alguns autores, no entanto, mesmo com as alterações ocorridas na legislação e pela modernização da sociedade, preservaram o entendimento de que o bem jurídico protegido é a moralidade pública sexual296. Para Paulo José da Costa Júnior297, tutelam-se os bons costumes, a dignidade sexual e a liberdade sexual. Celso Delmanto298 entende como objeto jurídico a moralidade pública sexual, mas no caso do art. 231, § 2º, I a III, protege-se também a dignidade sexual, e no caso do art. 231, § 2º, IV, tutela-se também a liberdade sexual. Para Cezar Bitencourt299 o bem jurídico tutelado também é a moralidade pública sexual. Para o autor, a dignidade sexual do ser humano, como parte integrante da personalidade do indivíduo, é tutelada genericamente para todos os crimes contra a dignidade sexual. Na sua visão, o intuito desse artigo é impedir que prostitutas estrangeiras ampliem o grande problema ético-social que é a prostituição. Ele chega a afirmar que, em uma visão bem- humorada, isso poderia parecer uma espécie de reserva de mercado, impedindo que a concorrência estrangeira ingresse no mercado nacional da prostituição. Maria Elizabeth Queijo e João Daniel Rassi300, discorrendo sobre o delineamento dos possíveis bens jurídicos protegidos no delito de tráfico internacional de pessoas, afirmam que existem teorias conciliadoras que situam o tráfico como delito pluriofensivo que afeta diversos bens jurídicos, inclusive os direitos humanos das pessoas traficadas. Na opinião de Daniel de Resende Salgado301 o bem jurídico tutelado pelo art. 231 do Código Penal é a dignidade humana dos trabalhadores sexuais, a liberdade da pessoa, o direito à sexualidade, que deve ser protegida de qualquer exploração. Para Renato Silveira302, a tutela deve ser da liberdade de autodeterminação sexual, justificando-se o crime apenas quando verificadas a violência e a grave ameaça. No mesmo “Nesse sentido: Damásio de Jesus, Direito penal, v. 3, p. 199: “Objeto jurídico são os bons costumes, protegendo-se a honra sexual contra lenões internacionais”. 297 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal, p. 711. 298 DELMANTO, Celso et. al. Código Penal comentado, p. 720. 31 4.2.1 SUJEITO ATIVO. O tráfico de pessoas é crime comum quanto ao sujeito ativo, sem distinção de qualquer natureza. O autor do delito pode ser o homem ou a mulher, e não é necessária a habitualidade. Nas palavras de Hungria304, os traficantes aparecem como fornecedores do mercado sexual. Porém, se o agente for ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância, a pena será aumentada metade, nos termos do art. 231, § 2º, III, do Código Penal. Trata-se de crime unissubjetivo, mas que admite coautoria ou participação, nos termos do art. 29 do Código Penal305. Além disso, esse delito pode ser cometido por pequenas quadrilhas ou bando, e também por grandes organizações criminosas, com divisão clara de tarefas entre seus integrantes, que é justamente o foco do Protocolo de Palermo. 4.2.2 SUJEITO PASSIVO. Pode ser vítima de tráfico de pessoas qualquer ser humano, homem ou mulher. Em sua redação original, o Código Penal de 1940 trazia como sujeito passivo apenas a mulher. O próprio nomen juris do delito era tráfico de mulheres. Com o adventoda Lei n. 11.106, de 2005, o delito passou a tratar do tráfico de pessoas. Embora pareça evidente, ainda hoje é necessário afirmar que qualquer tipo de pessoa pode ser vítima do crime, inclusive prostitutas306 e 307. A lei não exige a pluralidade de vítimas, embora esta seja a prática mais comum. A rubrica do artigo fala em tráfico de pessoa, no singular. Elas podem ser aliciadas ou transportadas juntas ou separadamente, a depender do modus operandi da organização. Para os autores que consideram a moralidade pública o bem jurídico tutelado pelo delito, 32 o sujeito passivo é também a coletividade. Nos termos do § 2º do art. 231 do Código Penal, a condição particular da vítima justifica o aumento da pena. Quando for menor de 18 anos (inciso I), ou quando por enfermidade ou deficiência mental não tiver o necessário discernimento para a prática do ato (inciso II), a pena deverá aumentar da metade. “Para Cezar Bitencourt, op. cit., p. 184, o sujeito passivo poderá ser tanto o homem quanto a mulher, independentemente de sua honestidade sexual”.Sobre o assunto, assistir o documentário: Cinderelas, lobos e um príncipe encantado. Direção e Produção Executiva: Joel Zito, Brasil, 2008.” 4.2.3 TIPO OBJETIVO. O tipo previsto no art. 231, caput, do Código Penal pune aquele que promove ou facilita a entrada de alguém (homem ou mulher) no território nacional, que venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual. A segunda parte do caput visa coibir a facilitação ou promoção da saída de alguém para a mesma finalidade em território estrangeiro. Promover significa organizar, dar causa, dar impulso, oferecer recursos para determinada atividade. Facilitar consiste em tornar algo mais fácil ou acessível, favorecer, proporcionar meios para que algo se realize. A saída da vítima para o exterior exige uma série de providências, como passaporte, visto, passagem, roupas e dinheiro para a viagem. Promover e facilitar se enquadram nesse contexto. Segundo Rogério Greco316, promover é uma conduta ampla, podendo até mesmo abranger a facilitação. Aquele que facilita ou promove a ida de alguém ao exterior para exercer a prostituição, que é uma atividade lícita no Brasil e em diversos outros países, é punido com reclusão de 3 a 8 anos. Da forma como está redigido o dispositivo legal, enquadra-se na conduta aquele que empresta o dinheiro da passagem a alguém sabendo que a finalidade da viagem é exercer a prostituição no exterior. Se a prostituição 33 no país de origem e destino não for crime, por que falar em crime daquele que facilita ou promove a viagem, Deve-se observar nesta questão a tipicidade material, e não simplesmente a formal. Assim, além da conduta se adequar ao tipo, precisa ser materialmente lesiva ao bem jurídico tutelado. Entende-se que uma interpretação possível e mais justa seria punir o crime de tráfico para fim de prostituição apenas quando esta se apresentar efetivamente como forma de exploração, ou seja, quando o autor do delito auferir vantagem de forma ilícita da prostituição de outrem, mediante violência, ameaça, ardil ou abuso de situação de vulnerabilidade. Se a entrada no país se der de forma irregular, violando normas de imigração, com o uso de documentos falsos ou outras práticas, o traficante responderá em concurso de crimes. O § 1º do art. 231 equipara as condutas agenciar, aliciar, comprar, transportar, transferir ou alojar a vítima às condutas previstas no caput, aplicando-lhes a mesma pena. As condutas previstas no § 1º, que prescinde do uso da violência, fraude ou ameaça, apresentam diferentes esferas de gravidade, o que gera uma grande desproporcionalidade no tipo. Aquele que compra um ser humano sofre a mesma pena daquele que o transporta, por exemplo317. Agenciar significa intermediar um negócio; providenciar, obter ou buscar algo para alguém. É a conduta daquele que coloca a vítima em contato com o explorador. O verbo aliciar denota a conduta daquele que atrai, convence ou estimula a vítima a viajar. O § 1º não exige, mas em regra esse convencimento se dá por meio de ardil, de falsas promessas de um trabalho bom e rentável no exterior. A promessa de uma vida melhor. 317 Segundo Guilherme Nucci, op. cit., p. 159: “Soa-nos desmedida a comparação em iguais termos entre aliciar e comprar, por exemplo. Quem seduz alguém à prática de algo realiza ação inferior, em gravidade, do que o comprador da pessoa traficada. Não haveria de existir a equiparação, visto que o aliciador poderia, até mesmo, ser considerado um partícipe de menor importância. 34 4.2.4 ELEMENTO SUBJETIVO. É o dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de praticar o tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual. Existem duas correntes: a que aceita o dolo genérico e a que exige o dolo específico. Para alguns doutrinadores325, basta o dolo genérico de praticar uma das ações típicas com o conhecimento de que a pessoa é traficada para exercer a prostituição ou ser explorada sexualmente. O desconhecimento a respeito da atividade a ser exercida é erro de tipo e exclui o dolo. Para Guilherme Nucci326 e Cezar Bitencourt327, exigi-se o especial fim de agir ou dolo específico328, ou seja, o sujeito atuar com o intuito de ver a vítima submetida à prostituição ou a outra forma de exploração sexual. Para qualquer conduta descrita no caput ou § 1º do art. 231 do Código há essa exigência. Se o delito for praticado com o intuito de obter vantagem econômica, aplica-se também a pena de multa, nos termos no art. 231, § 3º, do Código Penal. Não é necessário que a vantagem seja efetivamente obtida. Não é admitida a modalidade culposa. “325 Nesse sentido: Júlio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini, Código penal interpretado, p. 1.440; Damásio de Jesus, op. cit., vGreco, op. cit., p. 190; Tadeu Dix Silva, op. cit., p. 35 4.2.5 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA. No tocante à consumação, existem também duas correntes. A primeira330 delas entende que o delito é instantâneo e se consuma com a entrada da vítima no País, ou com a sua saída rumo ao exterior, independentemente do efetivo exercício da prostituição331. Basta que a entrada ou saída do território seja feita com esse propósito. O exercício da prostituição no Brasil ou no exterior constitui o exaurimento do crime, quando este alcança suas últimas consequências, e pode influenciar no quantum da pena. Em sentido contrário, a corrente defendida por Guilherme Nucci332 e Rogério Greco333 entende que existe necessidade do efetivo exercício da prostituição para que o crime se consume. A finalidade do tráfico é a exploração, que pode ocorrer em bordéis, dance clubs, casas de massagens, apartamentos, hotéis e nas ruas. Locais com muitas ou poucas vítimas. Não há regras. Contudo, a exploração em si não é tutelada pelo art. 231. No tocante à tentativa, para a tese majoritária334 esta é perfeitamente admissível335. Como se trata de crime plurissubsistente, cuja conduta apresenta fracionamento, o deslocamento completo do sujeito de um país a outro pode não se consumar por circunstâncias alheias a sua vontade. Em sentido contrário, Guilherme Nucci336 afirma que a tentativa é inadmissível, por se tratar de crime condicionado. Nas modalidades equiparadas do § 1º do art. 231, o delito se consuma com o agenciamento, aliciamento ou compra da pessoa traficada, ou com seu transporte, transferência ou alojamento, sendo as três últimas modalidades de crime permanente, admitindo o flagrante a qualquer tempo337. Para todas as modalidadeshá necessidade da ciência da condição de pessoa traficada338. ”Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela a dignidade... Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-nainfinitamente”. 36 4.2.6 FINALIDADE DE LUCRO, LAVAGEM DE DINHEIRO E CRIME ORGANIZADO. O § 3º do art. 231 do Código Penal menciona que se o crime for cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. Para Renato Marcão e Plínio Gentil339 a vantagem econômica inclui qualquer benefício que possa representar expressão econômica, seja dinheiro, bens, favores. Além disso, não é necessário que a vantagem se destine ao agente, tampouco seja efetivamente obtida. Basta que haja o dolo mercenário. um esboço delas. Bento de Faria343 menciona uma perigosa associação internacional de traficantes – Zwig Migdal344, fundada na Polônia, com várias ramificações e dispondo de grande O fenômeno do tráfico, de forma geral, só pode ser concebido quando presente a vantagem econômica. Esta é, na verdade, a finalidade do delito. Trata-se de mais um negócio. Hoje essa modalidade de tráfico aparece como uma das atividades mais lucrativas das organizações criminosas, ao lado do tráfico de armas e de drogas. Como negócio ilícito, surge a necessidade para as organizações criminosas de realizar as operações de “lavagem” de dinheiro, ou seja, transformar recursos oriundos de atividades ilícitas em ativos com origem aparentemente legal. Contudo, o delito de tráfico de pessoas não consta na lista de crimes antecedentes do art. 1º da Lei n. 9.613, de 1998 (Lei de “Lavagem” de Dinheiro), como ocorre com o tráfico de drogas (inciso I) e o tráfico de armas (inciso III). O inciso VII do art. 1º da referida norma abre uma possibilidade para a sua aplicação ao crime de tráfico de pessoas, pois inclui os delitos praticados por organização criminosa ao rol de crimes antecedentes. Para Damásio de Jesus340 a aplicação desse dispositivo é difícil e não resolve o problema, pois a legislação brasileira ainda não definiu “organização criminosa”. Além disso, o tráfico pode ser cometido individualmente, em concurso de agentes ou por quadrilha ou bando, fugindo assim ao âmbito de aplicação do mencionado inciso. O ideal seria a inclusão do crime de tráfico de pessoas no rol de crimes antecedentes341. A Convenção de Palermo dispõe sobre a criminalização da “lavagem” do produto do que crime, que ficará a critério de cada país342. 37 O tráfico de pessoas para fim de exploração sexual, desde quando tomou relevo no final do século XIX, esteve associado ao crime organizado. Não as organizações criminosas no formato que conhecemos hoje, mas capital. Na América Latina ela teria se instalado em Buenos Aires, até ser fechada pela polícia em 1930. Essa organização era reconhecida pela crueldade no trato com suas escravas e também com seus membros. Seus agentes iam para as aldeias polacas, húngaras, ucranianas, lituanas, onde a miséria chegava a ser lúgubre, e de lá traziam as vítimas, com a promessa de trabalharem em ateliês, companhias teatrais e cabarés. Porém, para Nélson Hungria345 a existência da Zwig Migdal nunca foi provada. Hoje a delinquência organizada transnacional tem uma ligação estreita com a globalização, podendo ser considerada sua infeliz consequência. O crime organizado usufrui da abertura de fronteiras e mercados, do avanço tecnológico e da jurisdição limitada dos países e das falhas dos sistemas jurídicos internos e incompatibilidades entre Estados. A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado, também conhecida como Convenção de Palermo346, tem como objetivo promover a cooperação para prevenir e combater mais eficazmente a criminalidade organizada transnacional. O Protocolo de Palermo347 completa esta Convenção no tocante ao tráfico de pessoas. Assim, conforme o art. 4º do mencionado Protocolo, o seu âmbito de aplicação inclui as infrações de natureza transnacional e que envolverem grupo criminoso organizado. A Convenção de Palermo, em seu art. 2º, busca definir grupo criminoso organizado nos seguintes termos: “grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material;”. Contudo, essa definição não obtém acolhimento pacífico na doutrina nacional. Segundo leciona Vicente Greco Filho348, não há no Brasil definição legal de organização criminosa, já que a Lei n. 9.034, de 1995, 38 estabelece apenas medidas de ordem processual, investigativa e administrativa no combate a essas organizações, sem dar-lhes uma conceituação. Continua afirmando que a definição da Convenção de Palermo se mostra imprestável para o direito brasileiro, eis que não estabelece a distinção entre quadrilha ou bando e grupo criminoso organizado. Além disso, um conceito legal engessaria a aplicação da norma, já que as organizações são muito diferentes entre si. Para o autor, devem-se extrair da doutrina as características básicas de uma organização criminosa, pois “o conceito deve manter-se fluido, como fluido é o próprio modo de ser de uma societas sceleris”349. Em delitos dessa espécie, em que inúmeros agentes contribuem na produção do resultado, propicia-se o anonimato, dificultando-se a atribuição de responsabilidades, o estabelecimento do nexo causal e a delimitação da culpa350. Esse é um dos motivos do pequeno número de processos relativos ao tráfico internacional de pessoas no Brasil. Desta forma, é imperioso e urgente que tanto os países isoladamente, como toda a comunidade internacional aprendam a lidar com essas novas formas de criminalidade. Segundo Alessandra Greco e João Daniel Rassi351, as organizações criminosas atuais não podem mais ser associadas aos tradicionais conceitos de crime organizado, que se referiam a um grupo familiar ou étnico que se dedicava a uma atividade ilícita específica. Hoje elas são multiétnicas e muitas vezes compostas por grupos provenientes de diferentes países, pulverizando-se pelo mundo todo. “350 PRADO, Stela; CAPEZ, Fernando. Considerações sobre o tráfico de pessoas e organizações criminosas. In: CARNEIRO, José Reinaldo; MESSA, Ana Flávia (coord.). Crime organizado, p. 541. GRECO, Alessandra Orcesi Pedro; RASSI, João Daniel. Crime organizado transnacional e o tráfico internacional de pessoas no direito brasileiro. In: CARNEIRO, José Reinaldo; MESSA, Ana Flávia (coord.). Crime organizado, p. 618.” 39 4.2.7 AÇÃO E COMPETÊNCIA. A ação penal para o crime de tráfico internacional de pessoas para fim de exploração sexual é pública incondicionada. A regra do art. 225 do Código Penal – ação penal pública condicionada à representação – não se aplica a esse delito. A competência para propor a ação é do Ministério Público Federal. O art. 109 da Constituição brasileira determina a competência ratione materiae da Justiça Federal. Nos termos do seu inciso V, aos juízes federais compete processar e julgar os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente. Assim, como o tráfico internacional de pessoas é um delito transnacional, previsto no Protocolo de Palermo352, é fixada a competência da Justiça Federal353. Nostermos do art. 234-B do Código Penal os processos que apuram os crimes contra a dignidade sexual correrão em segredo de justiça. 4.2.8 PANORAMA ATUAL DO TRÁFICO DE PESSOAS. Atualmente, o quadro do Tráfico Internacional de Pessoas. Obtidos, realizam-se medidas concretas, como o aperfeiçoamento da regulação nas principais rotas utilizadas pelos traficantes fortalecimento de políticas públicas e redes de atendimento; capacitação de pessoal; disseminação de informação e mobilização de pessoas.No Brasil, em 2006, o Decreto n. 5.948/06, aprovou-se a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que tem por finalidade estabelecer princípios, diretrizes e ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atendimento às vítimas. Em 2008, pelo Decreto n. 6.347/08, foi instituído o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, com vistas a concretizar as diretrizes da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Em 2013 foi instituída a Coordenação Tripartite da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, para coordenar a gestão estratégica e integrada da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, através do Decreto n. 7.901/13. A coordenação é formada pelo Ministério da Justiça; pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. No mesmo ano, realizou-se o II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Portaria Interministerial nº 634/2013), cujos avanços parecem ser positivos: 40 As 115 metas previstas no II PNETP, foram avaliadas em quatro categorias: ótimo, bom, ruim e péssimo, sendo 54 metas consideradas com ótimo progresso, 28 com bom progresso, 12 com um progresso ruim e, somente, duas com péssimo progresso. Com o resultado, foi possível, então, identificar que metas o governo federal deve seguir avançando e quais devem receber especial atenção nos próximos dois anos de vigência do plano. Da análise geral das 14 atividades previstas no II PNETP, a avaliação foi positiva e demonstrou que o II PNETP está com progresso de 81,8% da média geral, o que equivale a um ótimo e bom avanço intermediário de implementação do plano. (BRASIL, 2013). Não obstante, um ponto que dificulta gravemente a identificação dos crimes é o fato de que as vítimas, ou seja, as pessoas traficadas, muitas vezes possuem consciência e vontade de que imigrarão em outros países para executarem trabalhos marginais. O erro em que incidem, no caso, é no tocante ao modo como serão as atividades realizadas, cobranças, regime de trabalho, remuneração e, por óbvio, a total situação degradante de submissão ao traficante. Muito embora o consentimento da vítima seja irrelevante para a caracterização do tipo penal (art. 2º, §7º, PNETP,), obsta demasiadamente à efetiva solução, de modo preventivo e permanente, do fenômeno. Muitas vezes as próprias vítimas, inocentes, desinstruídas e despreparadas, buscam pelas chamativas oportunidades apresentadas pelos traficantes. 4.2.8.1 A POLITÍCA NACIONAL NO ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS. Outro destaque é a criação da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Aprovada pelo Decreto nº 6347, de 8 de janeiro de 2008, assinada por treze Ministérios, em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e do Trabalho (MPT), associações civis além de vários organismos internacionais. Buscou-se através dessa política efetivar o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil, através da conscientização do problema em âmbito nacional e, principalmente, do estabelecimento de uma parceria entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Nesse sentido, a própria ONU incentivou a criação dessa Política Nacional, funcionando como fomentadora da divulgação do tráfico de pessoas, buscando sua repressão em todos os níveis globais (BRASIL, 2008). 41 4.2.8.2 REDE DE COOPERAÇÃO JÚRIDICA INTERNACIONAL. Para imprimir maior efetividade ao enfrentamento da questão, há previsão legal para jurisdicionalizar casos envolvendo o tráfico de pessoas. Para isso, existem duas Convenções e um Protocolo que atuam de forma multilateral, entre vários Estados: Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Transnacional (Palermo, 2000); Convenção Americana Sobre Assistência Mútua em Matéria Penal (Nassau, 1992); Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais (Mercosul, 1996). a) Tráfico de pessoas para exploração sexual O Protocolo de Palermo prevê como essa uma das formas de direcionamento da exploração das vítimas do tráfico de pessoas. De acordo com dados do Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas do Escritório sobre Drogas e Crimes das Nações Unidas (UNODC) - estatísticas do ano de 2012 – o fim mais comum para exploração no que concerne o tráfico de pessoas é a exploração sexual. É, infelizmente, uma indústria que movimenta bilhões de dólares. De todo o lucro gerado pelo tráfico de pessoas, o da exploração sexual representa 85% do montante (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME, 2014). Grande parte das pessoas que são traficadas para esse fim já possuíam o desejo de migrar de país, e acabam por acreditar que poderão ter melhores condições de vida caso aceitem a proposta. Há casos em que o aliciador se utiliza de mentiras para atrair a vítima. No entanto, fatores como a pobreza e a falta de perspectivas profissionais pode fazer com que a vítima consinta até mesmo com a exploração sexual, o que não retira o caráter ilícito da exploração. A grande problemática é que a maioria das vítimas não consegue evadir-se da situação de exploração, justamente pelo fato de que os aliciadores se colocam em uma posição de credores, ou seja: a exploração se torna um meio de pagamento da suposta dívida que as vítimas geram, que muitas vezes começa a ser cobrada desde o momento em que são recrutadas e transportadas, além de gastos ordinários como alimentação, entre outros. Dessa maneira, o lucro auferido com a exploração aumenta de maneira inversamente proporcional à dívida acumulada pela vítima. Uma das principais discussões acerca da prostituição é se a sua regulamentação facilitaria ou pioraria a situação do tráfico para fins de exploração sexual. Daniela Muscari Scacchetti (2011), em seu artigo O tráfico de pessoas e o protocolo de palermo sob a ótica de direitos humanos traz a ponderação de alguns argumentos favoráveis e desfavoráveis à regulamentação da prostituição como forma de combater o tráfico de pessoas. Dialogando com a obra de Kamala Kempadoo, traz a seguinte reflexão “Um dos argumentos levantados é de que a proibição pode contribuir para o enfrentamento ao tráfico na medida em que torna ilícita também a atividade-fim, facilitando o seu combate sem haver a necessidade de distinção entre a pessoa que trabalha de maneira voluntária e aquela que é ameaçada por um ofensor, ou seja, ambas devem ser protegidas e afastadas de tal atividade. 42 4.2.9 VOLTA AO TEMPO, RESGATE HISTÓRICO DO TRÁFICO DE PESSOAS. O tráfico de seres humanos é uma prática muito antiga existindo desde a Antiguidade Clássica, primeiramente na Grécia e, posteriormente, em Roma. Nesse período, o tráfico se dava com o fim de obter prisioneiros de guerra para serem utilizados como escravos. Salienta-se que o trabalho escravo era respaldado pelos pensadores da época, apontando Aristóteles que havia homens escravos por natureza, pois existiam indivíduos tão inferiores que estariam destinados a empregar suas forças corporais e que nada melhor poderiam fazer (Ary apud GIORDANI,1984,P.23) Apenas durante o período renascentista, por volta dos séculos XIV ao XVII, o tráfico ganhou feição de prática
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