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Serviço Social e Violência Serviço Social e Violência Organizado por Universidade Luterana do Brasil Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Canoas, RS 2015 Caroline Fernanda Santos da Silva Michelle Bertóglio Clos Ângela Mª Pereira da Silva Giovane Antônio Scherer Iarani A Galúcio Lauxen Lúcia Capitão Arno Vorpagel Scheunemann Ana Patrícia Barbosa Conselho Editorial EAD Andréa de Azevedo Eick Ângela da Rocha Rolla Astomiro Romais Claudiane Ramos Furtado Dóris Gedrat Honor de Almeida Neto Maria Cleidia Klein Oliveira Maria Lizete Schneider Luiz Carlos Specht Filho Vinicius Martins Flores Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem prévia autorização da ULBRA. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP ISBN: 978-85-5639-050-9 Dados técnicos do livro Diagramação: Marcelo Ferreira Revisão: Ane Sefrin Arduim Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero – ULBRA/Canoas S491 Serviço social e violência / Organizado por Universidade Luterana do Brasil. – Canoas: Ed. ULBRA, 2015. 208 p. : il. 1. Serviço social. 2. Violência. 3. Assistência social. I. Universidade Luterana do Brasil. CDU 364.442.2 A violência se constitui como constante desafio, não só para o Serviço Social, mas para a sociedade como um todo, considerando os níveis de incidência cada vez mais expressivos. Para o Serviço Social, o desafio se intensifica, sobretudo quando considerados os inúmeros direitos violados pela estrutura, relações, processos e ações violentas que ameaçam o exer- cício da cidadania e violam direitos. Veremos, ao longo deste livro, que a violência sempre esteve presente na história da humanidade e, diante disso, diversas são as respostas ela- boradas, tanto pelas ciências sociais, quanto pelos governos e pelos mo- vimentos sociais em diferentes níveis. Nas situações de violação de direitos atendidas nos diferentes espaços sócio-ocupacionais do Serviço Social se revelam as entrelinhas da relação entre a violência e as contradições pro- duzidas entre capital e trabalho – fruto das relações impostas pelo modo capitalista de produção. Tais questões têm demandado respostas, tanto em nível individual quanto coletivo e, de fato, a intervenção qualificada do(a) Assistente Social. Essa intervenção requer compreensão aprofundada dos aspectos sócio-históricos, políticos, econômicos, de ordem material e simbólica, haja vista a complexidade do fenômeno. Este livro apresenta diferentes informações e reflexões, contribuindo nessa compreensão. Assim estão organizados os dez capítulos: Capitulo 1 – A cultura da violência e sua materialização no mundo e no Brasil. Discute nuances provocadas pela globalização da economia, bem como aspectos particulares da violência na realidade social brasileira; Capitulo 2 – Violências: clarificando conceitos, definindo categorias. Discute a relação entre violência e história, apresentando os tipos de vio- lência, bem como uma discussão sobre a criminalidade; Apresentação Apresentação v Capitulo 3 – Os movimentos sociais na constituição das políticas pú- blicas de enfrentamento da violência. Discute as políticas públicas de segu- rança enquanto instrumentos de enfrentamento da violência na sociedade brasileira; Capitulo 4 – Violência de gênero e diversidade sexual. Reflete a violên- cia doméstica e familiar contra a mulher, a política nacional de enfrenta- mento de tal problemática, o papel dos movimentos LGBT (Lésbicas, gays, bissexuais e travestis) na consolidação da diversidade sexual e dos direitos sexuais no contexto dos direitos humanos; Capitulo 5 – Violência urbana e juventudes. Apresenta conceitos e dis- cute a relação deste público com os diferentes tipos de violências, bem como, os processos de (in)visibilidades da juventude brasileira; Capitulo 6 – O processo de trabalho do assistente social no enfrenta- mento à violência. Situa o fenômeno da violência e o processo de traba- lho do assistente social, contemplando uma discussão sobre os espaços sócio-ocupacionais em que o Assistente Social está inserido, bem como a importância da intervenção multidisciplinar; Capitulo 7 – Trabalhando com vítimas de violência: cuidados necessá- rios. Discute a estruturação da violência e seu impacto na humanidade das vítimas e, apresenta cuidados necessários para a interação do(a) assistente social com vítimas de violência; Capitulo 8 – Trabalho do(a) assistente social com perpetradores da violência. Apresenta uma contextualização da violência e a rede prevista para atendimento de autores de os atos violentos; Capitulo 9 – Prevenção da violência no contexto escolar: relato de uma experiência. Apresenta o projeto de extensão universitária “Promoção da paz”, desenvolvido desde 2012 pelo curso de Serviço Social da ULBRA, destacando o papel da extensão universitária no enfrentamento à violência, bem como a importância da articulação de redes na construção de uma educação não sexista; vi Apresentação Capitulo 10 – Justiça restaurativa em contextos de violência. Apresenta considerações a respeito desse tema, situando-o como estratégia de apro- ximação de vítimas e respectivos autores de violências. Esperamos que este conjunto de contribuições constituam subsídios para o planejamento, organização, operacionalização de ações voltadas para o enfrentamento das diferentes formas de violência e o atendimento de vítimas e agressores. Igualmente, que contribuam para a articulação de redes de pertença, apoio e serviços que favoreçam o fortalecimento da força em presença, especialmente das vítimas. Boa leitura! 1 A Cultura da Violência e sua Materialização no Mundo e no Brasil ................................................................1 2 Violências: Clarificando Conceitos, Definindo Categorias ....20 3 Políticas Públicas de Enfrentamento da Violência .................36 4 Violência de Gênero e Diversidade Sexual ..........................55 5 Violência Urbana e Juventudes ...........................................76 6 O Processo de Trabalho do Assistente Social no Enfrentamento da Violência ................................................91 7 Trabalhando com Vítimas de Violência: Cuidados Necessários ......................................................................117 8 Trabalho do(a) Assistente Social com Perpetradores(a) de Violências .........................................................................143 9 Prevenção à Violência em Contexto Escolar: Relato de Experiência .......................................................................164 10 Justiça Restaurativa em Contextos de Violência .................187 Sumário Capítulo 1 A Cultura da Violência e sua Materialização no Mundo e no Brasil 1 Professora mestre em Serviço Social. Assistente Social vinculada à Prefeitura Mu- nicipal de Esteio e docente na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Canoas RS, do Curso de Serviço Social. Coordenadora do projeto de extensão universitária da ULBRA: “Promoção a Paz e estratégias para combater a violência de gênero na escola”. Caroline Fernanda Santos da Silva1 2 Serviço Social e Violência O movimento começou, o lixo fede nas calçadas. Todo mundo circulado, as avenidas congestionadas. O dia terminou, a violência continua. Todo mundo provocando todo mundo nas ruas. A violência está em todo lugar. Não é por causa do álcool, nem é por causa das drogas.A violência é nossa vizinha – não é só por culpa sua, nem é só por culpa minha. Violência gera violência: violência doméstica, violência cotidiana. São gemidos de dor, todo mundo se engana... Você não tem o que fazer, saia para a rua. Para quebrar minha cabeça ou para que quebrem a sua. Violência gera violência. Será que tudo está podre, será que todos estão vazios? Não existe razão, nem existem motivos. Não adianta suplicar porque ninguém responde. Não adianta implorar, todo mundo se esconde. É difícil acreditar que somos nós os culpados. É mais fácil culpar Deus ou então o diabo. (Letra da música Violência – Titãs) Capítulo 1 A Cultura da Violência e sua Materialização... 3 Introdução Sabe-se que a violência nunca esteve tão presente em nossas vidas! Seja através da mídia ou dos debates que acontecem nas diferentes vizinhanças, a violência e suas manifestações têm merecido cada vez mais nossa atenção e preocupação, seja como cidadãos ou como profissionais e estudantes de Serviço Social. Essa atenção constante nos instiga à busca de respostas para os fenômenos vivenciados e/ou para a constru- ção de alternativas capazes de combater o aumento crescente desse fenômeno. Assim, a proposta desse capítulo é apresentar algumas re- flexões sobre a cultura da violência e sua materialização na sociedade brasileira, pois é fato que ela ocupa grande espaço em nossas vidas e, muitas vezes, determina nossos hábitos, atitudes e condutas. Mas será que a violência é uma só? E será que é possível oferecer a ela uma justificativa ou causa? O tema é complexo e nos provoca o seguinte questiona- mento: afinal, violência ou violências[...] Vamos falar sobre esse assunto? 4 Serviço Social e Violência 1.1 A cultura da violência em tempos de globalização Figura 1 Violência nas ruas. Disponível em: http://pixabay.com/pt/ anarquia-motim-viol%C3%AAncia-brutal-152588/ As intensas e notáveis modificações pelas quais passa o mundo não fogem à análise dos autores da atualidade, pre- ocupados que estão em descrever as mudanças e, sobretudo, traçar tendências de uma (con)vivência possível entre as pes- soas no presente e no futuro. Alguns desses autores debruçam seus esforços na narrativa das assustadoras consequências ocasionadas pela rápida difusão da globalização hegemôni- ca (DEMO, 2003), numa conjuntura em que os possuidores de capital têm cada vez mais perspectivas de “liberdade” e os despossuídos dele cada vez mais perspectivas de “priva- Capítulo 1 A Cultura da Violência e sua Materialização... 5 ção” (BAUMANN, 1999). Nesse quadro, associado à questão social, a violência se inscreve como importante categoria de análise para o entendimento da sociedade nos dias atuais, visto que, na direção apontada por Telles (2001, p. 21): “[...] ela possibilita uma problematização das sociedades em sua história, dilemas e perspectivas de futuro”. Ao longo da história diversas tradições sociológicas bus- caram constituir instrumentos de compreensão da violência, visto que ela sempre esteve presente em nossa sociedade. Os autores apontam que como realidade histórica, como repre- sentação coletiva e, como objeto de análise para as ciências sociais, a violência contemporânea modela-se a partir de no- vos paradigmas, exigindo que sua análise seja feita de manei- ra ampla, considerando desde o sujeito e o contexto em que vive até as situações mais coletivas. A ideia de um novo paradigma da violência é apresentada por Wieviorka (1997) e se dá pelo exame das mudanças que remetem a seus significados, às percepções e aos modos de abordagem sobre a violência. Todas essas questões deman- dam investigações, estudos e análises complementares e dinâ- micas, tendo em vista que as múltiplas expressões da violência são produto da evolução histórica: ela se configura atualmen- te como uma forma de paradoxo, acontecendo em grandes proporções e, ao mesmo tempo, parecendo permanecer invi- sível. É tolerada ou suportada em alguns países e percebida quase como inscrita no funcionamento normal da sociedade. É fato que a violência se apresenta como característica im- portante deste tempo histórico. Nos anos 60 e 70 do século 6 Serviço Social e Violência XX, a violência era, de alguma forma, vista e justificada por in- telectuais e revolucionários como uma ferramenta de atuação para revolução e imposição de sua ideologia, como ocorreu nos anos 60 e 70 na América Latina, com a implantação das ditaduras militares, especialmente no Brasil e no Chile. Em conjunto com tais questões, as transformações ocasio- nadas pela globalização acarretam um conjunto de mudanças radicais nas sociedades como um todo. Tais mudanças vão desde as transformações econômicas, passando pelas mudan- ças nos padrões da sociedade ligados ao mundo do trabalho, até a fragmentação social e cultural. Nesse sentido, Wieviorka (1997) sinaliza que assim como a economia, a violência sofreu um processo de privatização, escapando do controle estatal. Essa questão nos conduz à re- flexão sobre os papéis exercidos por diferentes agentes com relação ao aumento desmedido da violência: mídia – gover- nos – sociedade civil, visto que se um deixa de assumir uma parcela da responsabilidade, outros precisarão fazê-lo. Seguindo nessa linha de raciocínio, sempre houve uma li- gação entre o Estado e a violência, o que se agrava no atual contexto social de enfraquecimento da maior parte dos Esta- dos. Com a mundialização, ficou mais difícil o controle que os países possuíam sobre seu quadro territorial, administrativo e político da economia, pois os fluxos, as decisões, a circulação de indivíduos, os capitais e até mesmo a informação aconte- cem mundialmente (WIEVIORKA, 1997). O autor relata que a mundialização da economia encoraja uma fragmentação da cultura, incentivada também pela mídia. Capítulo 1 A Cultura da Violência e sua Materialização... 7 Sendo assim, é fácil ver que a violência traduz em atos a vontade defensiva, e mesmo contraofensiva, de grupos desejo- sos de afirmar sua identidade cultural – esse processo pode ser visualizado dentro das sociedades mais desenvolvidas onde estão presentes a miséria, a exclusão, e as formas de discrimi- nação social e racial. Pode-se, assim, dizer que a mundializa- ção da economia, e suas ligações diretas com a fragmentação cultural e social, contribui para a mundialização da violência. A violência não é característica exclusiva do Estado nos dias de hoje, visto que sempre esteve presente na história da humanidade. Ocorre que, em virtude das características des- ses novos tempos, o Estado está retirando a responsabilidade que tem frente à violência e esta sociedade não está conse- guindo se adaptar à atual realidade apresentada em relação à segurança (WIEVIORKA, 1997). Nesse contexto, o Estado questiona a relação entre cultura e sociedade, em um cenário em que identidades se firmam e reivindicam seu reconhecimento nos espaços públicos. Aí, para Wieviorka (1997), a identidade cultural também contribui para o aumento da violência física, porque coloca em che- que a constituição das identidades nacionais. Nesse processo, onde o Estado é antigo ele se enfraquece, onde ele é recente se torna frequentemente corrompido, em virtude de suas pró- prias carências. Mesmo sem generalizações com relação ao papel dos Estados, temos que a concepção da violência na atualidade tem carregado consigo a ideia de um declínio-su- peração do Estado, descrito muitas vezes como causa, fonte ou justificativa da violência. 8 Serviço Social e Violência Convém refletir sobre a inter-relação de três elementos com relação à violência, sendo ela apreendida através das distin- ções políticas, econômicas e culturais: A violência contemporânea situa-se no cruzamento do social,do político e do cultural do qual ela exprime correntemente as transformações e a eventual desestru- turação. Ela pode circular de um registro a outro, por exemplo, ser a princípio, social, antes de se elevar ao nível político, ou ao contrário, constituir uma privatização onde problemas políticos tornam-se puramente econô- micos, ou mais ainda, passar de frustrações sociais a um esforço para mobilizar recursos culturais. (1997, p. 36) A partir dos elementos expostos acima, passamos agora a refletir sobre a maneira como tais aspectos se materializam na sociedade brasileira. 1.2 A materialização da violência na sociedade brasileira A partir da discussão apresentada no item anterior, podemos, agora, ater nossas reflexões à materialização da cultura da violência na sociedade brasileira. Ou seja: se trata agora de pensarmos em como a violência se concretiza, em suas dife- rentes facetas. É fato que ela possui um caráter ontológico e por isso não pode ser dissociada da condição humana, se apresentando em diferentes tipos de sociedade e em diferentes tempos his- Capítulo 1 A Cultura da Violência e sua Materialização... 9 tóricos. Da mesma forma, diversos autores demonstram a im- portância de analisar a violência dentro da sociedade que a produz, com suas especificidades internas e particularidades históricas. Assim, é imprescindível considerar a violência como um processo sócio-histórico, conforme aponta Minayo (2006), preocupando-se, então, em não oferecer a ela uma definição fixa e simples, sob o risco de reduzi-la ou compreender mal sua evolução histórica em cada sociedade. A partir disso, é possível identificar que uma das principais características da atual configuração da violência na socieda- de brasileira é o papel desempenhado pelo mito da cordialida- de, bem exposto por Minayo (2006), mas abordado também por diversos outros autores2. Esse mito versa sobre a relação estabelecida entre o povo brasileiro, onde, em um momento, somos todos iguais – misturados e miscigenados – e, em outro, somos muito diferentes – o outro é então visto como inimigo. Para a autora (2006): A ausência de sintonia cultural, moral e espiritual entre um povo que chega como dominador e inicia uma mis- 2 Segundo Ianni (2002), a construção do pensamento a respeito do mito da cor- dialidade brasileira pode ser encontrada em diversas obras: “[...] Vale a pena re- lembrar alguns: Tavares Bastos, A Província; Silvio Romero, História da Literatura Brasileira; Joaquim Nabuco, O Abolicionismo; Raul Pompeia, O Ateneu; Euclides da Cunha, Os Sertões; Lima Barreto, O Triste Fim de Policarpo Quaresma; Oliveira Vianna, Evolução do Povo Brasileiro; Mário de Andrade, Macunaíma; Paulo Prado, Retrato do Brasil; Graciliano Ramos, Vidas Secas; José Lins do Rego, Fogo Morto; Caio Prado Jr., Evolução Política do Brasil; Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil; Gilberto Freyre, Interpretação do Brasil; Raimundo Faoro, Os Donos do Po- der; Florestan Fernandes, A Revolução Burguesa; Clovis Moura, Rebeliões da Sen- zala; Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira; Alfredo Bosi, Dialética da Colonização; Celso Furtado, Brasil: A Construção Interrompida”. 10 Serviço Social e Violência cigenação com o povo que aqui se encontra constitui o sentimento mais profundo que alimenta os vários tipos de segregação e crueldade que persistem na experiência nacional de quinhentos anos, sobretudo, contra a popu- lação pobre. (2006, p. 26) A história de nosso país é marcada, desde o início, por uma série de violências, que para Minayo “[...] traduzem a existência de problemas sociais que não se transformam em tema de debate e busca de solução pela sociedade”. (2006, p. 21). Uma análise a respeito do quadro de evolução e consti- tuição de direitos na sociedade brasileira demonstra que os te- mas envolvendo alguns públicos específicos, como as crianças e adolescentes, os idosos e as mulheres, por exemplo, passam a ter maior reconhecimento social após sua ampla discussão, como a ocorrida no processo da Constituinte. Apesar disso, mesmo com os direitos de tais grupos asse- gurados, as disputas por espaço e/ou reconhecimento social daqueles tradicionalmente excluídos dos processos decisórios ainda pode, por vezes, levar a atos de violência, em nome da busca por um certo “lugar ao sol”. Outra característica marcante da sociedade brasileira se refere às violências consideradas toleradas, haja vista que é fundamental perceber que a violência não está presente só nos atos agressivos que deixam marcas físicas, mas também se manifesta em ações cotidianas e até corriqueiras. Em con- junto com isso, geralmente responsabilizamos “o outro” pelos atos violentos, ao invés de nos vermos também envolvidas no processo. Capítulo 1 A Cultura da Violência e sua Materialização... 11 Minayo (2006) considera que esse tipo de violência se constitui: [...] como condição de manutenção de negócios ile- gais, frequentemente de origem globalizada e que se beneficiam das facilidades geradas pelas revolucionarias transformações nos modos de produção de riqueza e dos aparatos técnico-informacionais e comunicacionais. (2006, p. 31) Conforme vimos no início desse capítulo, no Brasil, mesmo as velhas práticas de violência estão submetidas às expressões mais hegemônicas da história atual. Assim, o que costumamos ver no Brasil é a conjunção da legalidade e ilegalidade lado a lado, como, por exemplo, em estabelecimentos comerciais onde se faz o jogo do bicho e onde existem máquinas de jogo de azar, dentre outros. Assim como a corrupção, que está sen- do amplamente discutida pela sociedade brasileira nos últimos tempos, a violência está presente em diversas situações e nos instiga à revisão de nossas práticas cotidianas. Ainda recebe destaque na abordagem de Minayo (2006) a relação entre violência e subjetividade, pois esse mesmo mun- do que se modifica e toma proporções alarmantes no que tan- ge aos efeitos da globalização e da criminalidade, é também o mundo da demanda pelo reconhecimento: “[...] no espaço público, de identidades particulares e da exigência de repa- ração de injustiças ancestrais” (2006, p. 22). Tal questão se aplica, especialmente no caso do Brasil, às populações negras e indígenas. 12 Serviço Social e Violência Essa é a era dos movimentos sociais das ditas “minorias”, que transformaram sua opressão em causas sociais. E qual o efeito de tais questões nesse processo de enfrentamento à violência? Muitas das legislações hoje existentes com relação à proteção de grupos específicos contra a violência são frutos dessas ações dos movimentos sociais, o que será tema de nos- sa discussão nos próximos capítulos deste livro. O período da ditadura militar deixou importantes marcas na sociedade brasileira e uma de suas piores consequências foi o aprofundamento da cultura autoritária. Para Minayo (2006): Por isso, os elementos autoritários frequentemente res- surgem nos comportamentos políticos, institucionais e nos microprocessos sociais, alimentando formas de vio- lência social, de coronelismo, de patrimonialismo e de clientelismo. É claro que esses problemas têm raízes mais profundas, mas um dos grandes males da ditadura foi fazê-los florescer e se arraigar. (2006, p. 29) Então, é comum nos depararmos com comportamentos autoritários, em diversos locais que frequentamos cotidiana- mente. O simples fato de perguntar, questionar a pessoa, res- peitando sua autonomia, pode ser um ato que colabore para a não violência. Parece cada vez mais urgente a construção de alternativas que promovam a paz3 na sociedade – então, 3 Nessa direção se configura o projeto de extensão universitária desenvolvido pela ULBRA, que através de oficinas socioeducativas procura desmistificar a violência contra a mulhere encontrar estratégias coletivas para o combate à violência de gênero nas escolas do município de Canoas – RS. Capítulo 1 A Cultura da Violência e sua Materialização... 13 para além de cobrar do Estado e das autoridades ações de combate à violência, também é preciso que cada um faça a sua parte, reduzindo a violência presente nas relações sociais cotidianas. Além disso, a autora faz uma relação entre violência e democracia, sinalizando o fato de que compreender atos de violência como negativos demonstra um status superior da consciência social a respeito dos direitos dos indivíduos e das coletividades. Esse fato, para Minayo (2006), acompanha o progresso do espírito democrático: Pois é a partir do momento em que cada pessoa se consi- dera e é considerada “cidadã” que a sociedade reconhe- ce seu direito à liberdade e à felicidade e que a violência passa a ser um fenômeno relacionado ao emprego ilícito da força física, moral ou política, contra a vontade do outro. (2006, p. 17) Para Minayo (2006), a consciência nacional sobre o au- mento da violência social coincide com os processos de aber- tura democrática do país (final dos anos 70 e início dos 80), quando crescem os movimentos sociais em prol dos direitos e emancipação das ditas “minorias”. Ou seja, não é que a vio- lência não existisse na sociedade brasileira – muito ao con- trário, já que a autora nos conduz a um entendimento am- pliado da forma como a violência esteve presente na história do Brasil, desde “o descobrimento”, passando pelas diversas perversidades provocadas pela escravização dos indígenas e negros, até a total exceção de direitos imposta pela ditadura militar – mas ela passa a ser mais vista e mais valorizada à 14 Serviço Social e Violência medida que a população passa a conviver com a democra- cia. A partir destas características identificadas, é importante termos em mente que, ao mencionar a violência no Brasil, estamos falando de um processo “estruturante” da nossa reali- dade, enquanto país e enquanto nação. O tipo de segregação presente no Brasil pode ser comparado aos regimes de apar- theid de outros países4. Uma das formas mais contundentes de violência no Brasil, que se poderia chamar estrutural e ”estruturan- te” pelo seu grau de enraizamento, são os níveis eleva- díssimos de desigualdade que persistem historicamente e são o chão sobre o qual se assentam muitas outras expressões. O Brasil sempre foi marcado por ambiva- lências e ambiguidades de um país escravista e coloni- zado em que as relações sociais hoje estão entranhadas num tipo de apartheid considerado, por muitos autores, como mais iníquo que o dos EUA e o da África do Sul. (2006, p. 27) Em uma análise sobre as formas de violência predominan- tes na América Latina no início do Século XXI, Santos (2002) sinaliza algumas questões importantes a serem consideradas. Observe o quadro abaixo: 4 O apartheid (separação) foi um regime de segregação racial adotado de 1948 a 1994 pelos sucessivos governos do Partido Nacional na África do Sul. Nesse re- gime, os direitos da grande maioria dos habitantes (negros) foram cerceados pelo governo formado pela minoria branca. (Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/ wiki/Apartheid). Acesso realizado em: 19.abri. 2015. Capítulo 1 A Cultura da Violência e sua Materialização... 15 Tipo de Violência Possíveis causas 1. Violência estrutural Decorrente de características da estrutura social e econômica dos países latino-americanos desde a década de 1990: concentração da propriedade da terra, efeitos das políticas de ajuste estrutural, corrupção, concentração de renda, desigualdade social. 2. Violência criminal urbana Seja pelas ações do crime organizado, em especial o tráfico de drogas e o comércio ilegal de armas, seja pela difusão do uso de armas de fogo, ambos provocando uma maior letalidade nos atos delitivos. 3. Violências nos conflitos sociais agrários Manifestam-se como forma de dominação que se exerce pelo silêncio temeroso ou como violência política contra os agentes das lutas sociais pela posse ou propriedade da terra. Adaptado pela autora da obra de Santos (2002). Dis- ponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517- -45222002000200002&script=sci_arttext Assim, verificamos que o aumento dos processos estrutu- rais de exclusão social, historicamente presentes na história do Brasil, pode gerar o aumento das práticas de violência como norma social, em vários grupos sociais. Portanto, o combate à 16 Serviço Social e Violência violência deve passar, necessariamente, pela construção de al- ternativas que combinem ações realizadas nos campos: social, político, econômico e cultural. Considerações finais Esse capítulo procurou apresentar algumas reflexões sobre a cultura da violência e sua materialização na sociedade brasi- leira. A partir da contribuição de diversos autores, refletimos sobre as “novas” características assumidas pela violência, es- pecialmente no que se refere aos significados, às percepções e aos modos de abordagem sobre ela. Nesse sentido, vimos que conceituar a violência “[...] é fun- damental para que ela saia da condição de problema social e passe para a condição de objeto sociológico” (ULBRA, 2009, p. 11). Essa conceituação, no entanto, precisa ir além das no- ções formadas pelo senso comum, já que um dos maiores desafios que se apresentam para o enfrentamento da violência é objetivá-la, descobrindo as características que estão por trás de suas representações imediatas. Assim, esperamos que a reflexão sobre as principais ca- racterísticas da violência em nossa sociedade possa contribuir para a construção de alternativas capazes de combater seu aumento, considerando as especificidades e potencialidades da nossa população. A promoção da paz se coloca como um contraponto às diversas situações de violência do mundo atual. Capítulo 1 A Cultura da Violência e sua Materialização... 17 Recapitulando Nesse capítulo, nós trabalhamos com a cultura da violência e sua materialização no mundo e no Brasil. Através da con- tribuição de diversos autores, observamos que a violência se apresenta atualmente como novos recortes e características, mas ainda carrega as marcas de um passado violento, presen- te desde o início de nossa sociedade. Também apresentamos informações sobre as principais manifestações da violência na sociedade brasileira, bem como seus impactos em nossas vidas. Assim, sinalizou-se o desafio de encontrar alternativas para a promoção da paz, em contra- ponto à cultura da violência. Referências BAUMANN, Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil – o longo ca- minho. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. CONSELHO REGIONAL DE SERVIÇO SOCIAL – CRESS 10ª Região. Coletânea de Leis Revista e Ampliada. Porto Alegre, 2005. DEMO, Pedro. Pobreza e Cidadania. Petrópolis: Vozes, 2003. IANNI, O. Tipos e mitos do pensamento brasileiro. In: So- ciologias n.7. Porto Alegre jan./jun 2002. Disponí- 18 Serviço Social e Violência vel em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517- -45222002000100008&script=sci_arttext). Acesso realizado em: 15.abr.2015. MINAYO, Maria Cecília de Souza. Violência e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. SANTOS, José Vicente Tavares dos; TEIXEIRA, Alex Niche; RUSSO, Maurício (orgs). Violência e Cidadania: práticas sociológicas e compromissos sociais. Porto Alegre: Sulina, Editora UFRGS, 2011. ______. Violências, América Latina: a disseminação de formas de violência e os estudos sobre conflitualidades. In: Socio- logias n.8. Porto Alegre jul/dec. 2002. SILVA, C. F. S. Violência e cidadania: aspectos relacionados às mulheres negras. In:Revista em Debate – Revista do Departamento de Serviço Social n. 06. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2007. TELLES, Vera da Silva. Pobreza e cidadania. São Paulo: USP, Curso de Pós-Graduação em Sociologia: 34, 2001. ULBRA (Org.) Sociologia da violência. Curitiba: Ibpex, 2009. WIEVIORKA, Michel. O novo paradigma da violência. Tem- po Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(1): 5-41, maio de 1997. ZALUAR, Alba. Para não dizer que não falei de samba: os enig- mas da violência no Brasil. In: SCHWARTZ, L. (org.). His- tória da vida privada. Vol. IV, São Paulo: Cia. das Letras, 1998. Capítulo 1 A Cultura da Violência e sua Materialização... 19 Atividade 1) Observe com atenção as afirmativas abaixo e assinale a alternativa adequada, considerando V para Verdadeiro e F para Falso: a) ( ) São consideradas características da forma como a violência se apresenta na sociedade brasileira: o apro- fundamento da cultura autoritária e a forte presença do mito da cordialidade. b) ( ) A violência possui um caráter ontológico e por isso pode ser dissociada da condição humana, se apresen- tando em diferentes tipos de sociedade e em diferentes tempos históricos. c) ( ) A relação entre violência e democracia sinaliza que compreender atos de violência como negativos demonstra um status superior da consciência social a respeito dos direitos dos indivíduos e das coletividades. d) ( ) A afirmação de identidades culturais pode ser vista como fato causador da violência na sociedade brasi- leira. e) ( ) Sabemos que nunca houve uma ligação entre o Estado e a violência. Agora, no atual contexto social, tal relação se agrava pelo enfraquecimento da maior parte dos Estados. Gabarito: a) V b) F c) V d) F e) F Michelle Bertóglio Clos1 Capítulo 2 Violências: Clarificando Conceitos, Definindo Categorias 1 Assistente Social, mestre em Educação pela UFRGS, doutoranda em Gerontolo- gia Biomédica pelo Instituto de Geriatria e Gerontologia / Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Docente do curso de Serviço Social da Universidade Luterana do Brasil – ULBRA. Capítulo 2 Violências: Clarificando Conceitos, Definindo... 21 Introdução A violência é um fenômeno de alta relevância social, seja no campo das políticas públicas, dos discursos, quanto das ações. A violência pode ser expressa de múltiplas formas e o seu enfrentamento um ideal a ser perseguido por variados seg- mentos sociais. Neste capítulo, abordaremos diferentes tipos de violência e sua manifestação no cotidiano. 2.1 Violência e história A violência é histórica. Não existe sociedade que não tenha passado por períodos ou situações violentas em seu desen- volvimento. Através da violência, atos de dominação ou sub- missão foram se sucedendo, definindo valores, princípios e relações. O Brasil possui períodos violentos em sua história, inicia- dos em 1500 com a chegada dos portugueses e genocídio indígena. A escravatura, com a importação de escravos da África e dominação do povo negro, pode se vista como ou- tro período violento. Além disso, houve revoltas e revoluções que marcaram a luta por interesses políticos e econômicos e que foram constituindo a história que conhecemos hoje do Brasil. Mais recentemente, o período ditatorial e a censura do direito à liberdade e aos direitos políticos, conhecido como ditadura militar. Um período que perdurou por 20 anos, no 22 Serviço Social e Violência qual houve prisões, torturas, exílio e repressão a toda forma de manifestação política contrária ao regime em vigor. Ao fim da ditadura a Constituição Federal foi revista, a democracia entrou em processo de implantação e se voltou a preconizar a justiça social e os direitos humanos. Mas isto não significa dizer que hoje o país viva sem violência, tendo em vista a profunda desigualdade social existente tanto nas grandes metrópoles quanto nos pequenos municípios. A vio- lência é materializada também nos altos índices de homicí- dios, mortes por causas externas, além do tráfico de drogas e da pobreza. 2.2 Conceitos Para iniciarmos nossa reflexão sobre a violência, vamos à ori- gem da palavra, que deriva do latim, vis, que significa vigor, força. Encontramos no dicionário de língua portuguesa que violência significa “qualidade de violento, ato violento e ato de violentar”. Segundo Luiz Eduardo Soares (2005 apud MA- CHADO), a palavra violência possui múltiplos sentidos: pode desig- nar uma agressão física, um insulto, um gesto que humi- lha, um olhar que desrespeita, um assassinato cometido com as próprias mãos, uma forma hostil de contar uma história despretensiosa, a indiferença ante o sofrimento Capítulo 2 Violências: Clarificando Conceitos, Definindo... 23 alheio, a negligência com os idosos, a decisão política que produz consequências sociais nefastas [...] e a pró- pria natureza, quando transborda seus limites normais e provoca catástrofes. A reflexão de Soares (apud MACHADO) nos ajuda a pen- sar que não existe um conceito único de violência, tamanha a complexidade dos fatos que a acompanham. O que encontra- mos de forma recorrente nas literaturas são as formas como a violência se manifesta na vida dos sujeitos. Contudo, a origem da violência e de atos violentos não possui um consenso. De acordo com o senso comum existem três possibilidades de tipificar a violência: que envolve a violação da integridade do corpo. Individual/cole va entendida como desrespeito e apropriação de forma agressiva de bens de outrem. Econômica definida como dominação cultural ou ofensa aos direitos dos outros. Moral ou simbólica Figura 1 Tipificação da violência. Fonte: desenvolvido pela autora. Mas há ainda a discussão acerca da violência em um nível filosófico, conforme Quadro 1. 24 Serviço Social e Violência Quadro 1 Compreensão filosófica do termo violência. Autor Compreensão sobre Violência Arendt Meio para conquista do poder. Engels Acelerador do desenvolvimento econômico. Fanon Vingança dos deserdados. Sorel Mito necessário para mudança da sociedade burguesa desigual para sociedade igualitária de base popular. Sartre Inevitável no universo de escassez e necessidades. Domenach O apogeu da violência não é o crime [...] mas a tortura. Hegel A violência está inserida e arraigada não só nas relações sociais, mas, sobretudo, é construída no interior das consciências e das subjetividades. Denisou Fenômeno que precisa ser analisado dentro de uma abordagem multifacetária, pois apresenta características internas e externas. Freud Instrumento para arbitrar conflitos de interesse, sendo, portanto, um princípio geral da ação humana diante de ações competitivas. Marx e Engels A violência é boa ou má, positiva ou negativa, segundo as forças que a sustentam. Fonte: adaptado pela autora com base em Minayo (2011). Podemos dizer que a violência é um componente da vida social, e que na atualidade sai do âmbito policial, adentra a vida cotidiana, pois é um assunto que domina o cenário públi- co. Segundo a Organização Mundial de saúde, a violência é o: Capítulo 2 Violências: Clarificando Conceitos, Definindo... 25 uso intencional da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou con- tra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. (KRUG et al., 2002 apud MINAYO, 2009) Nesse sentido, encontramos a seguinte classificação para os tipos de violência: Quadro 2 Classificação de violência por tipo. Fonte: adaptado pela autora de Minayo (2009) Tipo de violência Significado Criminal Praticada por meio de agressão grave às pessoas, poratentado à sua vida e aos seus bens e constitui objeto de prevenção e repressão por parte das forças de segurança pública: polícia, ministério público e poder judiciário. Estrutural Diz respeito às mais diferentes formas de manutenção das desigualdades sociais, culturais, de gênero, etárias e étnicas que produzem a miséria, a fome, e as várias formas de submissão e exploração de umas pessoas pelas outras. [...] Todos os autores que estudam o fenômeno da miséria e da desigualdade social mostram que sua naturalização as torna o chão de onde brotam várias outras formas de relação violenta. Institucional É aquela que se realiza dentro das instituições, sobretudo por meio de suas regras, normas de funcionamento e relações burocráticas e políticas, reproduzindo as estruturas sociais injustas. Uma dessas modalidades de violência ocorre na forma como são oferecidos, negados ou negligenciados os serviços públicos. 26 Serviço Social e Violência Interpessoal Quando essa interação ocorre com prepotência, intimidação, discriminação, raiva, vingança e inveja, costuma produzir danos morais, psicológicos e físicos, inclusive morte. Intrafamiliar Na prática, violência intrafamiliar e violência doméstica se referem ao mesmo problema. Ambos os termos dizem respeito aos conflitos familiares transformados em intolerância, abusos e opressão. Autoinfligida Assim são chamados os suicídios, as tentativas, as ideações de se matar e as automutilações. No Brasil, cerca de quatro habitantes por 100 mil, em média, se suicidam, e um número difícil de calcular tenta se autoinfligir a morte. Cultural A violência cultural é aquela que se expressa por meio de valores, crenças e práticas, de tal modo repetidos e reproduzidos que se tornam naturalizados. De gênero Constitui-se em formas de opressão e de crueldade nas relações entre homens e mulheres, estruturalmente construídas, reproduzidas na cotidianidade e geralmente sofridas pelas mulheres. Esse tipo de violência se apresenta como forma de dominação e existe em qualquer classe social, entre todas as raças, etnias e faixas etárias. Sua expressão maior é o machismo naturalizado na socialização que é feita por homens e mulheres. Racial Uma das mais cruéis e insidiosas formas de violência cultural é a discriminação por raça. No Brasil, essa manifestação ocorre principalmente contra a pessoa negra e tem origem no período colonial escravocrata. Estudiosos mostram que geralmente a violência racial vem acompanhada pela desigualdade social e econômica: no Brasil, os negros possuem menor escolaridade e menores salários. Vivem nas periferias das grandes cidades e estão excluídos de vários direitos sociais. Também morrem mais homens negros do que brancos e se destacam os óbitos por transtornos mentais (uso de álcool e drogas), doenças infecciosas e parasitárias (de tuberculose a HIV/AIDS) e homicídios (BATISTA, 2005). Capítulo 2 Violências: Clarificando Conceitos, Definindo... 27 Contra a pessoa com deficiência Esse tipo de violência revela de forma aguda a dificuldade que a sociedade tem de conviver com os diferentes, tendendo a isolar os deficientes físicos e mentais, menosprezá-los, molestá-los e a não lhes dar oportunidade de desenvolver todas as suas potencialidades. Pela falta de reconhecimento e de apoio da sociedade e do governo, os deficientes costumam ser considerados como um peso para suas famílias. Estudos têm mostrado que esse tipo de discriminação ocorre nos lares, na escola, nas comunidades, no mercado de trabalho, no espaço público. 2.2.1 Natureza da Violência Nesse aspecto temos quatro modalidades de expressão da vio- lência, também denominados abusos ou maus-tratos: física, psicológica, sexual e envolvendo abandono, negligência ou privação de cuidados. • Uso da força para produzir injúrias, feridas, dor ou incapacidade em outrem. Física • Agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar a vítima, restringir a liberdade ou ainda, isolá -la do convívio social. Psicológica • Ato ou ao jogo sexual que ocorre nas relações heterossexuais ou homossexual e visa a estimular a vítima ou utilizá -la para obter excitação sexual e práticas eróticas, pornográcas e sexuais impostas por meio de aliciamento, violência física ou ameaças. Sexual • ausência, a recusa ou a deserção de cuidados necessários a alguém que deveria receber atenção e cuidados. Abandono, Negligência, Privação de cuidados Figura 2 Modalidades de violência. Fonte: Adaptado pela autora com base em Minayo (2009). 28 Serviço Social e Violência 2.3 Causalidade da violência Se a definição de conceitos é difícil, a causalidade da violência também o é. Segundo Minayo (2011, p. 36) estudos científicos apontam três possibilidades que reúnem diferentes parâmetros teóricos. Vi ol ên ci a Como resultante de necessidades biológicas (até a década de 1990). Violência a par�r exclusivamente do arbítrio dos sujeitos, como se os resultados socialmente visíveis fossem resultado do comportamento individual – resultado de doença mental ou vinculação religiosa. O âmbito social como espaço dominante da violência, em que tomam corpo e se transformam os fatores biológicos e emocionais. Figura 3 Parâmetros para definição das causas da violência. Fonte: Adaptado pela autora de Minayo (2011). Não nos cabe adentrar no campo da influência genética sobre padrões de comportamento violento, pois se assim o fos- se a classe social que está mais suscetível a crimes também se- ria a mais propensa a problemas na ordem da saúde mental. O que de fato evidenciamos, segundo Minayo (2011), é um contingente de pessoas pobres que cometem atos violentos Capítulo 2 Violências: Clarificando Conceitos, Definindo... 29 relacionados muito mais à situação socioeconômica (roubo, tráfico, assassinatos) do que a problemas de ordem mental. Nesse sentido abordamos a questão da segurança pública e a possíveis propostas de enfrentamento às situações de violên- cia, e não surpreende o que nos diz Chesnais: O investimento em educação formal, na universaliza- ção dos direitos políticos, sociais, individuais e especí- ficos e na melhoria das condições de vida dos pobres e dos trabalhadores fez muito mais, historicamente, para a superação das formas graves de violência física e da violência criminal nos países da Europa, por exemplo, do que os investimentos em segurança pública estrito senso. No entanto, o papel da segurança pública no Brasil e no mundo de hoje também é fundamental. (1981, apud MINAYO, 2014) Ou seja, não é apenas com segurança pública na pers- pectiva repressiva que se constrói uma sociedade mais se- gura e com menos situações violentas. Há necessidade de um conjunto de ações intersetoriais para o enfrentamento da violência enquanto ameaça e risco para o desenvolvimento da sociedade. 2.4 Criminalidade Quando nos debruçamos no estudo sobre violência e crimina- lidade nos deparamos com quatro tendências no Brasil: 30 Serviço Social e Violência Tendências • a) o crescimento da delinquência urbana, em especial dos crimes contra o patrimônio (roubo, extorsão mediante sequestro) e de homicídios dolosos (voluntários); • b) a emergência da criminalidade organizada, em particular em torno do tráco internacional de drogas, que modica os modelos e pers convencionais da delinquência urbana e propõe problemas novos para o direito penal e para o funcionamento da justiça criminal; • c) graves violações de direitos humanos que comprometem a consolidação da ordem política democrática; • d) a explosão de con itos nas relações intersubjetivas, mais propriamente con itos de vizinhança que tendem a convergir para desfechos fatais.Fonte: adaptado pela autora de Cerqueira e Lobão (2004). Violência e criminalidade são termos associados popular- mente, contudo entendemos como importante apresentarmos alguns elementos que configuram a criminalidade para com- preender que, sendo a violência multifacetada, a criminalida- de também é permeada de elementos e nuances que não per- mitem uma única definição causal. Os estudos sobre as causas da criminalidade têm se de- senvolvido em duas direções: naquela das motivações individuais e na dos processos que levariam as pessoas a se tornarem criminosas. Por outro lado, tem-se estudado as relações entre as taxas de crime em face das variações nas culturas e nas organizações sociais. Tais arcabou- ços teóricos vêm sendo desenvolvidos, principalmente, a partir de meados do século passado. (CERQUEIRA e LOBÃO, 2004) Isso nos subsidia para a análise dos diferentes determinan- tes da criminalidade para que seja possível o debate sobre alternativas de enfrentamento no âmbito da segurança pública e das ações sociais. Algumas das teorias sobre essa temática estão sistematizadas no Quadro 3. Capítulo 2 Violências: Clarificando Conceitos, Definindo... 31 Quadro 3 Determinantes da Criminalidade: Arcabouços Teóricos e Resultados Empíricos Teoria Abordagem Variáveis Desorganização social Abordagem sistêmica em torno das comunidades, entendidas como um complexo sistema de rede de associações formais e informais. Status socioeconômico; heterogeneidade étnica; mobilidade residencial; desagregação familiar; ur- banização; redes de ami- zades locais; desemprego; e existência de mais de um morador por cômodo. Aprendizado so- cial (associação diferencial) Os indivíduos determinam seus comportamentos a partir de suas experiências pessoais com relação a situações de conflito, por meio de interações pessoais e com base no processo de comunicação. Grau de supervisão fami- liar; intensidade de coesão nos grupos de amizades; existência de amigos com problemas com a polícia; e contato com técnicas criminosas. Escolha racional O indivíduo decide sua participação em atividades criminosas a partir da avaliação racional entre ganhos e perdas esperadas advindos das atividades ilícitas vis-à-vis o ganho al- ternativo no mercado legal. Salários; renda familiar per capita; desigualdade da renda; acesso a progra- mas de bem-estar social; eficiência da polícia; aden- samento populacional; magnitude das punições; inércia criminal; aprendi- zado social; e educação. Controle social O que leva o indivíduo a não enveredar pelo caminho da criminalidade? A crença e a percepção do mesmo em con- cordância com o contrato social (acordos e valores vigentes), ou o elo com a sociedade. Envolvimento do cidadão no sistema social; con- cordância com os valores e normas vigentes; ligação filial; amigos delinquentes; e crenças desviantes. 32 Serviço Social e Violência Autocontrole Distorções no processo de socialização, pela falta de imposição de limites. Frequentemente eu ajo ao sabor do momento sem medir consequências; e raramente deixo passar uma oportunidade de go- zar um bom momento. Anomia Impossibilidade de o indivíduo atingir metas desejadas por ele. Três enfoques: a) diferenças de aspirações individuais e os meios disponíveis; b) oportunidades bloqueadas; e c) privação relativa. Participa de redes de con- exões? Existem focos de tensão social? Eventos de vida negativos; sofrimento cotidiano; relacionamento negativo com adultos; brigas familiares. Interacional Processo interacional dinâmico com dois in- gredientes: b) perspectiva interacional que entende a delinquência como causa e consequência de um conjunto de fatores e processos sociais. As mesmas daquelas constantes nas teorias do aprendizado social e do controle social. Ecológico Combinação de atributos pertencentes a diferentes categorias condicionaria a delinquência. Esses atributos, por sua vez, estariam incluídos em vários níveis: estrutural, institucional, interpessoal e individual. Todas as variáveis anteriores podem ser utilizadas nessa abor- dagem. Fonte: Adaptado pela autora de Cerqueira e Lobão (2004). Recapitulando A histórica nos mostra que a violência existe nos mais diferen- tes tipos de sociedade, umas mais violentas que outras. Con- Capítulo 2 Violências: Clarificando Conceitos, Definindo... 33 sideramos que independentemente da forma como a violência se manifesta (conflitos armados, conflitos religiosos, miséria, ausência de proteção social) ela não pode ser considerada uma fatalidade. Também é evidente que as violências se articulam entre si e criam expressões culturais que naturalizam atos violentos como parte de comportamentos (machismo), atitudes (injúria racial) e práticas (discriminação social). Portanto, a violência nunca deve ser analisada como um fato isolado, ou uma ação indivi- dual, uma vez que é um fenômeno complexo que se apresenta em um determinado contexto histórico. A violência possui significados e intencionalidades e ao fa- zer parte da condição humana, também contribui para a or- ganização social. Por fim, entendemos que a violência é mul- ticausal ao articular fatores históricos, contextuais, estruturais, culturais, conjunturais, interpessoais, mentais e biológicos. Referências CERQUEIRA, Daniel; LOBAO, Waldir. Determinantes da criminalidade: arcabouços teóricos e resultados empí- ricos. Dados, Rio de Janeiro, v. 47, n. 2, 2004. Dispo- nível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0011-52582004000200002&lng=en&nrm =iso>. Acesso em: 29.mar.2015. MINAYO, M. C. de S. Conceitos, teorias e tipologias de vio- lência: a violência faz mal à saúde individual e coletiva. In: 34 Serviço Social e Violência NJAINE, K.; ASSIS, S. G. de; CONSTANTINO, P. (Org.). Impactos da violência na saúde. 2009. ______. A violência dramatiza causas. In: MINAYO, M. C. S.; SOUZA, E. R. (Orgs.). Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Ja- neiro: Fiocruz, 2003. p. 13-22. Atividades 1) Leia atentamente e assinale nas afirmativas V para verda- deiro e F para falso: a) ( ) O Brasil possui períodos violentos em sua história, iniciado pela descoberta do país em 1500 com a che- gada dos portugueses e genocídio indígena. b) ( ) Houve revoltas e revoluções que marcaram a luta por interesses políticos e econômicos e que foram constituindo a história que conhecemos hoje do Brasil. c) ( ) A violência é um fenômeno de baixa relevância so- cial, tanto no campo das políticas públicas, dos discur- sos, quanto das ações. d) ( ) A origem da violência e de atos violentos possui um consenso. e) ( ) É considerado parâmetro para violência o âmbito social como espaço dominante, em que tomam corpo e se transformam os fatores biológicos e emocionais Capítulo 2 Violências: Clarificando Conceitos, Definindo... 35 Gabarito a) V b) V c) F d) F e)V Caroline Fernanda Santos da Silva1 Capítulo 3 Políticas Públicas de Enfrentamento da Violência 1 Professora Mestre em Serviço Social. Assistente Social vinculada à Prefeitura Mu- nicipal de Esteio e Docente na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Canoas RS, no Curso de Serviço Social. Coordenadora do projeto de extensão universitária da ULBRA: “Promoção a Paz e estratégias para combater a violência de gênero na escola”. Capítulo 3 Políticas Públicas de Enfrentamento da Violência 37 Introdução Este capítulo apresentará algumas reflexões sobre as políticas públicas voltadas ao enfrentamento da violência na sociedade brasileira. Destaque-se que esse é um tema que merece espe- cial atenção nos diasatuais em que se discute a redução da maioridade penal, por exemplo.2 Para isso, iniciaremos expondo algumas questões indispen- sáveis sobre o conceito de política pública e, especialmente, sobre as atuais configurações da política pública de segurança no Brasil. Em seguida, passamos para uma discussão sobre o papel exercido pelos diferentes movimentos sociais na ins- titucionalização de alguns direitos sociais para grupos espe- cíficos, passando por uma reflexão sobre a constituição dos direitos humanos no Brasil. Depois disso, apresentaremos alguns apontamentos sobre o sistema de segurança pública existentes na sociedade brasi- leira. E, finalizando, nas considerações finais traçamos algu- mas reflexões sobre a construção de políticas alternativas de segurança pública. Siga conosco nessa leitura e bons estudos! 2 A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou nesta terça-feira 31 o voto em separado do deputado Marcos Rogério (PDT-RO), favorável à ad- missibilidade da PEC 171/93, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. Foram 42 votos a favor e 17 contra. Disponível em: <http://www.cartacapital.com. br/politica/reducao-da-maioridade-penal-e-aprovada-na-ccj-7975.html> 38 Serviço Social e Violência 3.1 Para começo de conversa sobre políticas públicas As políticas públicas são o conjunto de atividades (programas, projetos, planos e ações) realizadas pelo Estado, de forma direta ou indireta, que visa assegurar determinado direito de cidadania, com ou sem a participação de entes públicos ou privados. São elaboradas para responder a situações apresen- tadas pela sociedade e que demandam, por parte do Estado, alternativas de solução ou enfrentamento. Assim, a partir do momento em que o Estado e/ou a socie- dade reconhecem os direitos de certos grupos é que as políti- cas públicas se originam e se organizam. Elas também corres- pondem a direitos assegurados constitucionalmente e podem se apresentar de forma generalizada para toda a população ou se destinar somente a determinados seguimentos sociais, culturais, étnicos ou econômicos. As políticas públicas são aqui entendidas como um conjun- to de ações voltadas para a garantia dos direitos sociais, con- figurando um compromisso do Estado para dar conta de de- terminada demanda, em diversas áreas (GUARESCHI, 2004). No que se refere às políticas públicas de enfrentamento à violência, cabe destacar que vários dos instrumentos legais que existem atualmente são fruto daquilo que foi assegurado na Constituição Federal de 1988, merecendo destaque o ar- tigo 5, onde está previsto que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasi- Capítulo 3 Políticas Públicas de Enfrentamento da Violência 39 leiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Embora tais questões estejam asseguradas por lei, presen- ciamos constantemente o ataque do mercado que, a partir das políticas de ajuste e das reformas, vai retirando cada vez mais o bem-estar (onde as políticas sociais estão incluídas) do cam- po coletivo e o levando para o âmbito privado, em conjunto com uma ênfase exacerbada nas pessoas e nas comunidades para que encontrem soluções para “seus” problemas sociais (SOARES, 2003). Assim, as políticas sociais em geral apoiam- -se cada vez mais no “trinômio do neoliberalismo. (BEHRING, 2003): privatização, descentralização e focalização das políti- cas e programas sociais. Frente a isso, tem havido mudanças nas relações entre Es- tado, sociedade e mercado, evidenciando um novo paradigma de política social, ocasionado por importantes deslocamen- tos na gestão social3. Para Behring (2003), as transformações políticas e econômicas em curso sinalizam a adaptação do país aos fluxos do capital mundial e esses, relacionados às características da formação social brasileira, fazem com que aqui as causas geradoras da pobreza estejam além daquelas ocasionadas pelos ajustes neoliberais, merecendo atenção na formulação de políticas sociais. 3 A esse respeito, recomenda-se a leitura de: SILVA, Ademir. A gestão da seguridade social brasileira – entre a política publica e o mercado. São Paulo: Cortez Editora, 2004. 40 Serviço Social e Violência Segundo Carvalho e Silva (2011): Nessa situação, a potencialização do mercado, como instrumento regulador das relações sociais em detrimen- to ao Estado, ocorre concomitantemente ao contingen- ciamento dos mecanismos de assistência social e ao processo de fortalecimento da penalização como forma de ampliar o controle sobre as periferias e assegurar a manutenção das relações de poder. (2011) Ainda assim, as autoras consideram que: “[...] diferente- mente da redução do papel do Estado no âmbito econômico e social, no que se refere à segurança pública, tem ocorrido uma ampliação dos instrumentos de controle sobre a socieda- de.” (2011). 3.2 As políticas de segurança pública A partir do que foi exposto no item anterior, chegamos ao en- tendimento de que para pensar no enfrentamento à violência no Brasil precisamos discutir as políticas publicas de segu- rança. Segundo Filho (1999) a proposição de tais políticas, consiste num movimento pendular, oscilando entre a reforma social e a dissuasão individual: A ideia da reforma decorre da crença de que o crime resulta de fatores socioeconômicos que bloqueiam o acesso a meios legítimos de se ganhar a vida. Essa deterioração das condições de vida traduz-se no aces- Capítulo 3 Políticas Públicas de Enfrentamento da Violência 41 so restrito de alguns setores da população a oportuni- dades no mercado de trabalho e de bens e serviços, assim como na má socialização a que são submeti- dos nos âmbitos familiar, escolar e na convivência com subgrupos desviantes. Consequentemente, propostas de controle da criminalidade passam inevitavelmente tanto por reformas sociais de profundidade como por reformas individuais voltadas a reeducar e ressociali- zar criminosos para o convívio em sociedade. A par das políticas convencionais de geração de empregos e combate à fome e à miséria, ações de cunho assisten- cialista visariam minimizar os efeitos mais imediatos da carência, além de incutir em jovens candidatos poten- ciais ao crime novos valores através da educação, da prática de esportes, do ensino profissionalizante e do aprendizado de artes e na convivência pacífica e har- moniosa com seus semelhantes. Quando isso já não é mais possível, que se reformem então aqueles indivídu- os que caíram no mundo do crime através do trabalho e da reeducação nas prisões. (1999, 20) Seguindo sua linha de raciocínio, o autor sinaliza que do outro lado deste pêndulo também é forte a certeza de que a criminalidade encontra maiores condições de desenvolvimento quanto mais baixas forem a disciplina individual e o respeito às normas sociais. Como consequência disso, as políticas de segurança pública privilegiam uma atuação mais decisiva do Poder Judiciário, acarretando em legislações mais duras e em maior policiamento ostensivo (FILHO, 1999). 42 Serviço Social e Violência Esses aspectos nos demonstram que a atual configuração da política de segurança pública brasileira, vista como tradi- cional, impõe obstáculos à ampliação das discussões sobre as demais esferas que englobam a questão da violência. Tal situação demonstra o caminho escolhido para a abordagem do tema, que historicamente privilegia a criminalidade e a vio- lência, especialmente em sua dimensão individual, conforme demonstra o esquema abaixo: Assim, presenciamos uma defasagem entre a forma como a violência se apresenta hoje e a lógica a partir da qual se or- ganizam as políticas de segurança. Se essa lógica era suficien-te em uma época em que o crime era pontual e excepcional, na atualidade tal lógica é inoperante e ineficaz para enfrentar o aumento da criminalidade como um todo. Essa percepção acarreta três consequências visíveis no processo de enfrentamento à violência. Observe o esquema abaixo: Capítulo 3 Políticas Públicas de Enfrentamento da Violência 43 A prevenção somente é concebida a partir do condicionamento do comportamento pela ação da justiça e da polícia, sem considerar a relação com nenhuma outra política pública; Os organismos de justiça e de polícia responsáveis pelo problema têm a compreensão de que as soluções nessa área são de sua responsabilidade exclusiva, sendo os cidadãos receptores passivos dos serviços; A sociedade pouco ou nada se apropriou do tema, que sempre foi responsabilidade das autoridades especializadas, dificultando qualquer forma de participação, avaliação ou cobrança, resultando no afastamento da comunidade da discussão. Esquema adaptado pela autora da obra de: Guayí – De- mocracia, participação e solidariedade. Caderno de Deba- tes 1: Formas alternativas de prevenção à violência – projeto economia solidária na prevenção à violência. Porto Alegre, 2009. Tais situações apontam para uma lacuna que existe entre o que ocorre na prática e o que está previsto nas legislações. Ainda assim, a concepção de crime, segundo a orientação oficial do governo federal, baseia-se nos direitos humanos (FI- LHO, 1999). Segundo o autor: Isto abriu a possibilidade de incluir, dentre as modalidade de crime, aqueles cometidos pelo Estado. Daí a impor- tância de se controlarem as organizações componentes do aparato repressivo que parece ter sido a tônica da 44 Serviço Social e Violência atual política de segurança em âmbito federal. (1999, 20) Segundo Carvalho e Silva (2011), a segurança da socie- dade é o principal pressuposto para a garantia de direitos, o cumprimento de deveres e o exercício da cidadania. Frente às questões expostas, considero importante refletirmos um pouco a respeito do papel desempenhado pelos movimentos sociais na constituição de políticas públicas de enfrentamento à vio- lência, o que veremos a seguir. 3.3 Os movimentos sociais na constituição das políticas públicas de enfrentamento da violência A história recente do Brasil é fortemente marcada pela ditadu- ra militar, que utilizou a violência como parte de seu funciona- mento, naturalizando práticas como o sequestro, a tortura e a institucionalização da violência. Com o processo de redemo- cratização, diversos movimentos sociais começaram a exigir uma postura mais ativa do poder público, ocupando lugar de protagonismo no processo da Constituinte. Essa participação ativa dos militantes de diferentes movimentos sociais fez com que fosse possível incorporar ao texto constitucional questões importantes para a efetivação de algumas de suas reivindica- ções históricas. A promulgação da Constituição Federal de 1988 inaugura uma nova fase da atuação dos movimentos sociais em ge- Capítulo 3 Políticas Públicas de Enfrentamento da Violência 45 ral, visto que procurou romper com as marcas deixadas pelo regime militar de 1964. Ao mesmo tempo, a principal con- quista da “Constituição Cidadã” foi abarcar os direitos sociais e incorporar novas garantias, novos titulares e novos sujeitos sociais, ou seja: uma maioria que sempre esteve à margem do “Brasil legal” (TELLES, 2001). Aqui podemos citar, a título de exemplo, a base legal para a promulgação, em 13 de julho de 1990, da Lei 8.069 – o Estatuto da Criança e do Adolescente, que se constitui em uma das legislações mais avançadas no mundo no que tange à garantia de direitos dessa parcela da população. Da mesma forma ocorre com a Lei 11.340, intitulada “Lei Maria da Pe- nha”, sancionada em 07 de agosto de 2006. Ela traduz o re- sultado de uma demanda de mais de 30 anos dos movimentos feministas e de mulheres, impondo um novo paradigma para a questão: crimes deste gênero passaram a ser considerados, por força do artigo 6º, uma violação de direitos humanos e não mais um crime de menor potencial ofensivo4. O Serviço Social, enquanto profissão inserida na realidade social brasileira, manteve-se ativo nesse processo, especial- mente a partir da Constituinte até os dias atuais. Nesse senti- do, o Conselho Federal de Serviço Social – CFESS lançou em 2012 a campanha: “No mundo de desigualdade toda viola- ção de direitos é violência”. Será que poderíamos pensar que onde há um direito violado há um ato de violência? E como o país se organiza para enfrentar tal problemática? 4 Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/pfdc/informacao-e-comunicacao/ eventos/mulher/campanha-16-dias-de-ativismo/16-dias-de-ativismo/lei-maria- -da-penha. Acesso realizado em 19.abr. 2015. 46 Serviço Social e Violência Os direitos humanos no Brasil são garantidos na Cons- tituição de 1988, mas apesar disso, inúmeros são os casos conhecidos de violação de direitos no país5. Mesmo sendo membro da Organização dos Estados Americanos (OEA) e tendo ratificado a Convenção Americana de Direitos Huma- nos, o Brasil não está livre de inúmeras práticas que violam tais direitos. Analisando essa situação dos direitos humanos, Bob- bio (1992) não perde de vista que tais direitos são históricos, nascendo em dadas circunstâncias e de modo gradual. Tendo em vista essa historicidade, o autor (1992) classifica os direitos da humanidade em quatro gerações, já que vão surgindo na medida em que a sociedade evolui técnica e moralmente. Assim, a primeira geração seria representada pelos direitos civis; a segunda geração compreenderia os direitos políticos, sociais e os direitos de participar do Estado; a terceira geração representaria os direitos econômicos, sociais e culturais; e a quarta geração compreenderia a defesa de direitos ligados à natureza, por exemplo (BOBBIO, 1992). Note-se que os direitos de terceira geração são ligados às coletividades e podem ser relacionados à emergência do processo de especificação dos direitos, através do qual se dá a passagem gradual do homem abstrato ao homem concreto. Ao invés de direitos do homem, tal processo ocasiona os ques- tionamentos: que direitos? E de que homem? 5 Um dos mais noticiados casos de violação de direitos humanos ocorridos no Brasil foi o massacre do Carandiru, quando, no dia 2 de outubro de 1992, a inter- venção da Polícia Militar do Estado de São Paulo para conter uma rebelião causou a morte de 111 detentos. Capítulo 3 Políticas Públicas de Enfrentamento da Violência 47 Entendemos que esse processo coloca em xeque o mito da igualdade entre homens e mulheres, negros e brancos, aler- tando para a importância do atendimento às necessidades das pessoas em suas especificidades, vislumbrando a construção e exercício de uma “nova” noção de cidadania, que se aproxime dos anseios da população, sobretudo aquelas historicamente dela excluídas. 3.4 O sistema de segurança pública no Brasil Resultado do impacto ocasionado pela Conferência Mundial de Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em 1993, o governo brasileiro lançou, em 1996, o Programa Nacional de Direi- tos Humanos (PNDH). Esse pode ser considerado o primeiro instrumento legal brasileiro vislumbrado na ótica dos direitos humanos, após a promulgação da Constituição Federal. No ano de 2000 ele foi aperfeiçoado, tendo sido lançada uma nova versão do Programa, após a realização da IV Con- ferência Nacional de Direitos Humanos, ocorrida em 1999. Em 2009 ele foi novamente revisado, estando agora em sua terceira edição. A atual versão apresenta as bases de uma Política de Estado para os direitos humanos. Destaque-se que as diversas versões dos referidos planos não ficaram isentas de pesadas críticasrealizadas por seus opositores. 48 Serviço Social e Violência Apresentamos abaixo um quadro demonstrativo das prin- cipais ações no processo de constituição do atual sistema de segurança brasileiro: 1995 Foi criada, no âmbito do Ministério da Justiça, a Secretaria de Planejamento de Ações Nacionais de Segurança Pública. 1996 Lançado o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) 1. 1998 A então Secretaria de Planejamento de Ações Nacionais de Segurança Pública transforma-se em Secretaria Nacional de Segurança Pública. 1999 Lançado o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) 2. 2000 Lançado o Plano Nacional de Segurança Pública; Lançado o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). 2009 Lançado o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) 3. 2009 Realizada a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública. Ressaltamos que o Plano Nacional de Segurança Pública, segundo Carvalho e Silva (2011): [...] estabeleceu um marco teórico significativo na pro- positura da política de segurança pública brasileira, cujo objetivo era articular ações de repressão e prevenção à criminalidade no país [...] Entretanto, esses avanços na formatação da política de segurança pública não produ- ziram os resultados concretos esperados. (2011) Capítulo 3 Políticas Públicas de Enfrentamento da Violência 49 Esse movimento tem demonstrado que as ações relaciona- das à segurança pública não podem ser tratadas como política de determinado governo, mas sim como um processo amplo e complexo a ser enfrentado pelo Estado e pela sociedade, de maneira compartilhada. Na perspectiva de uma política de Es- tado, a política de segurança pública precisa privilegiar a par- ticipação e a contribuição da sociedade, democratizando-se. Esse caminho ainda precisa ser trilhado com muita persistência pelos agentes sociais envolvidos, ou seja: toda a sociedade. O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – PRONASCI Buscando a integração das ações na área da segurança, o governo federal instituiu, a partir do ano 2007, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), parceria com estados da federação. Uma de suas principais características é a combinação dessas ações com políticas so- ciais para a prevenção, controle e repressão à criminalidade, principalmente em áreas metropolitanas com altos índices de violência. A partir de seus pressupostos, é possível destacar que o referido programa apresenta um olhar multidisciplinar em re- lação à questão da segurança pública. Foi a primeira vez em que se vislumbrou a perspectiva de democratização da política de segurança pública, prevendo a participação da sociedade em sua construção e concepção. Carvalho e Silva (2011) sinalizam que se trata-se de uma mudança complexa no paradigma da segurança, vista como 50 Serviço Social e Violência extremamente necessária ao fortalecimento da democracia no país. Nesse processo, foi realizada, em 2009, a 1ª Conferên- cia Nacional de Segurança Pública (Conseg), precedida de uma série de conferências realizadas nos âmbitos municipal, estadual, bem como pela realização de conferências livres or- ganizadas por entidades da sociedade civil. Essa conferência representou a possibilidade de se reela- borar, democraticamente, os princípios e as diretrizes funda- mentais para desenvolver projetos voltados para o sistema de segurança pública, sob todos os aspectos. Com certeza ainda resta muito a ser feito, tendo em vista que a consolidação das questões postas nessa ocasião depende em muito do controle, participação e fiscalização da sociedade. Considerações finais Os apontamentos realizados ao longo deste capítulo sinalizam a necessidade eminente da construção de um novo paradigma para as políticas de segurança pública, privilegiando o contro- le e participação da comunidade, em conjunto com os órgãos responsáveis pela segurança pública. Trata-se de colocar to- dos os agentes no mesmo patamar de igualdade perante as ações e decisões que envolvem a elaboração das políticas de segurança pública. Outra necessidade que se apresenta é a articulação e a integração entre as ações no campo da segurança pública as demais políticas sociais. Para isso, o conhecimento das rea- Capítulo 3 Políticas Públicas de Enfrentamento da Violência 51 lidades das comunidades é fundamental, processo esse que pode evidenciar o respeito pela autonomia e cidadania da população, especialmente na construção de políticas alterna- tivas. Por fim, cabe ressaltar a importância do aumento dos ca- nais de participação social da população com relação à cons- trução de alternativas para a questão, processo no qual os assistentes sociais tem um grande papel a desempenhar! Recapitulando Nesse capítulo, procuramos apresentar algumas reflexões so- bre as políticas públicas de enfrentamento à violência na so- ciedade brasileira. Iniciamos partindo do pressuposto de que a segurança é vista como garantia do exercício da cidadania. Assim, discutir o direito à segurança implica na discussão so- bre as políticas públicas de segurança e da forma como elas se organizam em nosso país. Depois, apresentamos o papel desempenhado pelos movi- mentos sociais na construção de políticas públicas de enfrenta- mento à violência, evidenciando a atuação dos diversos movi- mentos sociais no processo que culminou com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Discutimos ainda sobre a compreensão acerca dos direitos humanos e, por fim, apre- sentamos os desafios da construção de políticas alternativas de segurança. 52 Serviço Social e Violência Referências BRASIL. Presidência da República. Lei 11.340 de 07 de agos- to de 2006. Disponível em: <http;//www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2004-2006/lei/11340.htm> Acesso em 23 out. 2010. ______. Constituição da República Federativa do Brasil. Senado Federal, 1988. ______. Código de Ética dos Assistentes Sociais, aprovado em 13 de março de 1993, com as alterações introduzidas pe- las Resoluções CFESS no 290/94 e 293/94. In: Coletânea de Leis. Porto Alegre: CRESS, 2000. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 7 reimp. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BEHRING, Elaine. Brasil em conta reforma – desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez Editora, 2003. CARVALHO, V. A. de; SILVA, M. do R. de F. 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SOARES, Laura Tavares. O desastre social. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003. Atividades Leia com atenção as frases abaixo e assinale V para Verdadei- ro e F para Falso: 1. ( ) As políticas públicas são elaboradas para responder a situações apresentadas pela sociedade. Situações essas que demandam, por parte do Estado, alternativas de solu- ção ou enfrentamento. 2. ( ) Na atual configuração das políticas
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