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O Nascimento da Literatura Comparada

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O Nascimento da Literatura Comparada
Na aula anterior, tivemos a oportunidade de observar que nossa disciplina está ligada diretamente aos rumos da História do Pensamento, de um modo geral. 
Nela se refletem sempre tendências importantes das Ciências Humanas, em cada época. Nesta aula, estudaremos com mais detalhes alguns dos momentos decisivos do longo percurso histórico de surgimento e afirmação da Literatura Comparada.
Desta forma, não será novidade afirmar que a história da Literatura Comparada vem acompanhando os rumos da história social, política e cultural do Ocidente ao longo do tempo. Desta forma, acontecimentos marcantes, como as duas guerras mundiais do século XX, para ficar num exemplo bem marcante, tiveram um impacto decisivo nos rumos da disciplina.
Propor questionamentos, formular hipóteses e, por fim, construir argumentos para confirmar ou não as hipóteses levantadas.
O domínio sobre um método fará com que ele tenha mais segurança em suas conclusões, levando-as para além de um puro e simples “eu acho que”, ou de julgamentos de valor superficiais. Esta necessidade faz com que a história da Literatura Comparada acompanhe sempre de perto a história da Teoria Literária. Em consequência disso, vamos lidar com uma certa diversidade metodológica. Um mesmo trabalho terá sempre a possibilidade de ser conduzido de várias maneiras, dependendo da escolha teórica que fizermos.
Portanto, para um melhor aproveitamento de nosso conteúdo, será útil para o aluno revisar em linhas gerais o que já estudou nas aulas de Teoria. Mas vamos por partes. Não precisa ser tudo de uma vez. Por enquanto, não vamos nos ocupar ainda das correntes de pensamento mais recentes do comparatismo, que se caracterizam por um manejo mais sólido dos instrumentos teóricos na condução de seus estudos. Por enquanto, de todo o longo trajeto de consolidação da disciplina, estudaremos apenas suas etapas iniciais:
*Manifestações ancestrais
*Tempos de afirmação
Este é o longo período que antecede ao processo de afirmação da Literatura Comparada como disciplina acadêmica. A expressão “manifestações primitivas” foi evitada, com o propósito de se prevenir a possibilidade de interpretações errôneas e apressadas. O hábito de comparar textos oriundos de diferentes tradições culturais é muito antigo.
Já era praticado na Antiguidade, por exemplo, quando os intelectuais romanos se curvavam diante dos tesouros poéticos da Grécia. Neste contexto, o verbo reflexivo “curvavam-se” deve ser entendido com duplo sentido, pois os romanos não somente se debruçaram para analisar os escritos da cultura grega, como também tinham grande apreço por esta tradição.
Muito tempo depois, no período renascentista, o empenho em compreender os clássicos levou estudiosos da Europa a realizar estudos comparativos. Entretanto, tais iniciativas ainda não tinham um caráter de estudo sistemático. Além disso, algumas vezes elas tendiam a uma avaliação hierarquizante. 
Ou seja, comparavam-se textos de nações e de épocas diferentes mais para buscar a afirmação da superioridade de uma cultura sobre a outra, propósito que hoje não se considera mais como digno de atenção.
A respeito das comparações entre textos de nações e de épocas diferentes, a professora Sandra Nitrini tece interessantes considerações, que merecem nossa atenção:
"A produção do conhecimento histórico deveria limitar-se a reproduzir a informação tal como estava registrada nas fontes, que para eles eram representadas apenas pelos documentos oficiais emitidos pelo Estado ou, no máximo, pela Igreja, embora as de maior confiabilidade fossem as relacionadas apenas ao Estado que possuíam o real caráter de fonte primária. Os historiadores positivistas trataram especialmente da história dos fatos políticos e ideológicos."
Entre as palavras-chave do fragmento apresentado, pode-se destacar “apreciar” e “mérito”. Os antigos estudiosos tinham por meta, basicamente, avaliar a qualidade dos textos, quando se dedicavam a trabalhos de comparação. Em geral, partia-se do pressuposto de que os grandes mestres do passado eram modelares, enquanto os textos mais recentes deviam ser submetidos a um acurado exame, a fim de se constatar em que medida mostravam-se capazes de se “comparar”, ou seja, de repetir o nível de excelência alcançado pelos mais antigos.
Um aspecto para o qual a autora nos chama a atenção é a ausência do que ela chama de “projeto de comparatismo elaborado”, que podemos traduzir por parâmetros teóricos que pudessem ser usados pelos estudiosos para alcançar resultados efetivos em seus esforços de compreensão do material pesquisado. O nível de excelência dos antigos não era submetido a um exame mais atento, por faltarem instrumentos de análise.
Um exemplo de obra de cunho comparatista elaborada no final do século XVI é dado por Tânia Carvalhal, no primeiro capítulo de nosso material didático. Trata-se de um texto de Francis Meres, o Discurso comparado de nossos poetas ingleses com os poetas gregos, latinos e italianos (1598). Nota-se pelo título o apreço que os intelectuais ingleses tinham não somente pelos tesouros da antiguidade clássica, como também pelas obras da Itália renascentista. 
Foi assim que a cultura europeia que emergiu do final da Idade Média se construiu a partir da revalorização das grandes obras da Antiguidade. Foi com base neste material que as novas literaturas europeias se afirmaram.
É preciso muito cuidado ao avaliar de que modo a influência dos antigos se fez presente. Se tomarmos como exemplo a obra épica Os Lusíadas, de Camões, marco de afirmação de maturidade da Literatura Portuguesa, veremos a presença de elementos tomados de empréstimo dos antigos textos épicos da Grécia e de Roma: a Ilíada e a Odisseia, de Homero e a Eneida, de Virgílio. Mas não se trata de copiar o que os antigos deixaram. Afinal, o texto camoniano responde aos anseios de seu próprio tempo. Busca uma expressão singular para cantar as glórias do povo lusitano.
Assim, podemos afirmar que a Europa renascentista assimilou o legado da tradição clássica, mas retrabalhou esta herança. Estamos muito distantes da cópia pura e simples dos modelos. A cópia pura e simples não resultaria na criação de obras literárias dignas de responder às inquietações da sociedade europeia. Portanto, estamos muito distante de um processo de simples cópia dos modelos consagrados.
Camões escreve um texto capaz de se comparar às obras épicas de Homero e Virgílio, mas de modo algum ele se limita a copiar os procedimentos da poética do classicismo antigo. Pelo contrário: pelo fato de ser escrito em português, e não em latim, como ainda era corrente na época, Camões atende à necessidade de afirmar a identidade cultural de seu povo por meio da expressão literária.
Uma das marcas peculiares de Os Lusíadas é o fato de não afirmar o heroísmo de modo individualizado. Isso o torna diferente de seus modelos vindos da Grécia ou Roma antigos. Enquanto nas obras homéricas a atenção recai sobre as atitudes grandiosas de homens especiais, Aquiles, Heitor e Ulisses, na obra de Camões todo o povo português é cantado, sendo reconhecido em sua contribuição à grande aventura coletiva das grandes navegações.
A etapa seguinte da história da Literatura Comparada remonta ao início do século XIX e corresponde ao período em que a Europa ensaiava seu processo de industrialização. Nesta época, o interesse por comparações era comum a outros campos do conhecimento humano, como as ciências naturais. Aplicada aos estudos literários, fez surgir uma perspectiva de cunho cosmopolita, ou seja, uma atenção à contribuição que cada povo dava ao patrimônio cultural de toda a humanidade.
Uma nova mentalidade surgia então. Já na última década do século XVIII, impunha-se a necessidade de superar a visão de que os modelos consagrados pela tradição eram infalíveis. Poetas e pensadores começavam a alimentar um interesse maior pelo presente e pelo futuro do que pelas glórias do passado.
Até então, quase toda a literatura clássica tendia a valorizar o Antigo, os bonstempos que já havia passado, a Idade do Ouro na qual somente os heróis e alguns afortunados viveram, e para a qual todos os homens sonhavam voltar assim que o pesadelo do presente passasse.
Mas a revolução industrial trouxe o triunfo da mentalidade capitalista, com um olhar mais voltado para o agora e o futuro. O classicismo perdia força, dando espaço ao surgimento do período romântico, no qual o conceito de evolução terá um papel decisivo.
Um olhar voltado para a frente, para o potencial humano de construir um novo destino, passou a dominar as almas a partir de então. Os burgueses possuíam capacidade de empreendimento e buscavam ampliar seus negócios. Para tanto, precisavam livrar-se das amarras da tradição, fundando um novo modo de enxergar o mundo, segundo o qual haveria mais liberdade para a criação e a imaginação.
Não demorou muito para que poetas e pensadores percebessem que a lógica burguesa atrelava este liberalismo a seus propósitos de enriquecimento. Daí a visão romântica se articular em torno de uma visão de repulsa à racionalidade do capitalista.
Mesmo assim, não houve um retorno aos padrões de pensamento do classicismo. Pelo contrário, os românticos opunham-se à racionalidade burguesa afirmando a imaginação como capacidade suprema do cérebro humano. Sua recusa em compartilhar dos princípios que norteavam os projetos de vida burgueses não foi completa, na medida em que também valorizavam mais a invenção do que o cultivo à tradição.
Além disso, há uma outra característica do romantismo de extrema importância para a consolidação da Literatura Comparada: o gosto pelo exótico, que levará estudiosos a se interessarem pelo estudo da produção literária de povos distantes, para além das fronteiras das nações mais ricas da Europa.
Em 1816, dois intelectuais franceses, Noél e Laplace, publicam antologias de textos de literários de diversos países, sob o nome de Curso de literatura comparada, não mais do que coletâneas de trechos escolhidos, sem nenhuma preocupação em confrontá-los ou de estabelecer paralelos. Os responsáveis pelo volume deixavam por conta dos leitores a tarefa de chegar a qualquer conclusão.
Pode parecer muito pouco, mas se consideramos o contexto histórico em que tal iniciativa se deu, temos que concordar que foi um avanço. No começo do século XIX, a Europa assistia a um processo de afirmação das nacionalidades e passava por um momento de intensa rivalidade e ressentimentos entre os diferentes povos do continente. Como resultado disso, eram constantes os conflitos armados, comprometendo os princípios fundamentais da suposta fraternidade que deveria existir entre os povos de tradição cristã.
A Literatura Comparada se propunha então como a disciplina disposta a estudar os fatos literários numa perspectiva transnacional, para além das fronteiras políticas ou mesmo cultural. Estava aberto o caminho para que o conjunto da produção literária da espécie humana pudesse ser considerado objeto de estudo de uma só disciplina.
Contudo, as limitações ideológicas da época impediam que os estudiosos enxergassem os fatos para além da Europa. Um passo havia sido dado, mas ainda um passo pequeno.
Bem, diante de uma situação como esta, o simples fato de se organizar antologias já assumia um caráter de tomada de posição diante das contradições da época.
Desta forma, a Literatura Comparada nasceu com vínculos bem fortes com a política, na medida em que servia de veículo à proposição de um ideal de paz e concórdia. Ou seja, a expressão Literatura Comparada nasceu antes de qualquer método de análise comparativo em si. Mas, desde o início, existe o propósito de se contrapor à mentalidade da época, de nacionalismo exagerado e clima geral de guerra a qualquer momento.
Era como se o comparatismo funcionasse como um necessário contraponto ao espírito de afirmação das identidades nacionais. Assim, por exemplo, se França e Inglaterra se mantiveram num clima de rivalidade armada nas primeiras décadas do século XIX, os estudos comparatistas forneciam uma medida do quanto a literatura inglesa devia à francesa em termos de influência, de tal modo que ambos os povos possuíam um patrimônio em comum que não podia ser desprezado. O mesmo raciocínio poderia ser estendido às relações entre franceses e alemães, ainda mais tensas durante todo o século.
Outros momentos de afirmação da disciplina no mesmo século e ainda na França: Abel-François Villemain deu maior divulgação à expressão “literatura comparada” em seus cursos sobre literatura do século XVIII que ministrou na Sorbonne em 1828-1829, como também em seu livro Panorama da literatura francesa do século XVIII. Também J.-J. Ampère, em seu Discurso sobre a história da poesia (1830), refere-se à “história comparativa das artes e da literatura”. A primeira cátedra de literatura comparada surgiu na França, em Lyon, em 1887.
Nos primeiros tempos, a disciplina foi dominada por pesquisas que punham em diálogo autores de nacionalidades diferentes. O objetivo era traçar paralelos, em busca de um saber capaz de ultrapassar fronteiras. A Literatura Comparada funcionaria, então, como uma instância intermediária entre cada literatura nacional, estudada em separado, e a literatura geral, objeto de estudo bem mais ambicioso, no qual poucos se aventuravam. 
Entretanto, o comparativismo de então tinha sérias limitações:
Uma delas era a tendência a hierarquizar as literaturas, tendo como ponto de honra a superioridade das literaturas europeias sobre as demais e da francesa, em particular, sobre as outras do continente.
Do ponto de vista da atitude crítica, a disciplina era tributária do atraso em que se encontrava a Teoria da Literatura até então. Havia pouca profundidade teórica em tais estudos.
Além disso, tudo, nas obras, tendia a ser explicado como resultado da influência do meio, da raça ou do clima. É nítida a presença de um ideário marcado pela presença da corrente filosófica positivista no comparatismo francês, e tal situação perdura até o início do século XX, período em que a disciplina vai se instalar como uma cadeira regular em uma quantidade cada vez maior de universidades.
Deste modo, a visão evolucionista esbarrava na visão etnocêntrica, ou mais precisamente eurocêntrica, que apontava a civilização europeia como modelo ideal a ser copiado por todos os demais povos do mundo. Devemos considerar que antes, na primeira leva de colonialismo europeu (séculos XV a XVII), os mercadores ibéricos haviam imposto aos povos americanos a visão de que Deus os escolhera para levar ao resto do mundo a verdade cristã. No século XIX, o capitalismo industrial levou a uma nova onda colonialista, na qual a ciência era usada para justificar a superioridade e o predomínio dos novos donos do mundo, os franceses e ingleses.
Ou seja, o discurso científico substituía o religioso como justificativa para a exploração dos outros povos. Porém, não se abandonava a perspectiva de que a Europa é o centro do mundo, o continente cuja cultura deveria ser copiada por todos os demais povos do mundo, se estes melhorar, chegar a um nível de civilização superior. Para tanto, seria necessário esperar o avançar do século XX, a fim de assistir ao início de superação desta mentalidade. A história das ideias mostra como foi difícil romper barreiras, ultrapassar preconceitos.
O mundo em que vivemos, marcado pelas consequências da descolonização, não mais comporta uma visão eurocêntrica. Entretanto, ainda é grande o esforço dos estudiosos no sentido de livrar-se desta herança, quando se propõem a análises que confrontam textos e autores oriundos de diferentes partes do mundo, de diferentes tradições culturais.
Um aspecto desta problemática é representado pelos estudos de poesia oral, algo extremamente importante se levarmos em conta que em grande parte das nações do mundo a população possui um índice de letramento incipiente, onde a escrita não é uma prática universalizada. Em tais países, o uso artístico da palavra se vale da oralidade como instrumento primordial.
É o que acontece com a poesiade grande parte da África, ou mesmo aqui no Brasil, com a produção das classes desfavorecidas. Para os estudiosos informados numa visão eurocêntrica, por mais criativa e interessante que seja a poesia oral, ela deve despertar a atenção apenas dos folcloristas, nunca dos estudiosos de literatura.
Os conflitos, contradições e mudanças trazidos pelo advento do novo século marcaram profundamente os estudos comparatistas. Ao longo das próximas aulas estudaremos algumas destas mudanças. Por ora, concentramos nossa atenção em alguns tópicos. Um deles é a consolidação de uma cultura do audiovisual, que veicula conteúdos os mais diversos, como é o caso dos filmes. Resultado da aplicação de avanços tecnológicos proporcionados por descobertas científicas que já estavam em curso desde o século XIX, como a fotografia, o cinema e a gravação dos sons, permite o desenvolvimento da produção em série de artigos de consumo cultural. Desta forma, atendia-se a um público que não parava de crescer, já que a população mundial aumentava devido aos avanços da ciência médica.
Portanto, sempre é preciso cuidado ao analisar as relações da Literatura, arte que se alimenta na inovação estética e no primado da imaginação, com as novas modalidades. Felizmente, a despeito de se constituir como indústria, o cinema ganha contornos de arte, na medida em que também passa a ser usado como veículo para experiências estéticas. O que veio a ser conhecido como “cinema de arte” afirma-se como um importante veículo para a expressão da sensibilidade humana ao longo do século.
O mesmo se pode afirmar com relação à canção. 
A tecnologia das transmissões radiofônicas vem a se constituir como fundamental para a difusão de um gênero que, a despeito de ser muito antigo, não atraía a atenção dos pesquisadores. 
No Brasil, conhecemos esta realidade de perto, uma vez que uma parte considerável de nossa produção poética de qualidade é criada para ser interpretada no palco, antes de ser lida em livros.
Bem, o confronto entre a produção literária e as outras artes, particularmente as novas modalidades da era do audiovisual passa, cada vez mais, a ser incorporado como um campo de pesquisas para a Literatura Comparada. Sendo assim, a disciplina precisa repensar seus rumos, deixando de lado uma atenção voltada unicamente ao confronto entre diferentes literaturas nacionais.
Outra importante alteração de rumos se dará na medida em que as contribuições das novas correntes de Teoria da Literatura, como o formalismo ou o estruturalismo, passam a ser consideradas nos estudos comparatistas.
A perspectiva de cunho positivista ainda resiste nas primeiras décadas do século, mas vão perdendo o terreno até que em 1958, o crítico estruturalista tcheco René Wellek, durante um congresso internacional da disciplina, ponha em cheque os fundamentos da visão antiga, e proponha um realinhamento de rumos. Os aspectos centrais deste debate serão abordados em nossa próxima aula, destinada a explicar melhor os fundamentos teóricos trabalhados por nossa disciplina nos dias atuais.

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