Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A Cortez Editora apresenta um projeto dedicado aos educadores brasileiros, que constroem a educação pública no Brasil, em todos os seus níveis. Trata-se da Biblioteca Básica da História da Educação Brasileira, que vem a público com duas séries temáticas através das quais o leitor poderá conhecer detalhadamente a construção histórica da educação pública, no Brasil. Na primeira série estão os volumes que abordam os temas educação e escolarização conforme registras cronológicos e temáticos amplos, como por exemplo a educação no império; a formação e a difusão da escola republicana e, por fim, a disseminação da escola de massas, desde a década de 1920 até quase o final do século XX. Na segunda série estão os volumes temáticos, cujos objetos de análise há muito tempo se tornaram parte de um processo de ampla renovação nas práticas de pesquisa em história da educação. São exemplos de temas presentes nessa segunda série a história da profissão docente no Brasil; a história dos currículos e a história dos métodos e materiais de ensino. À primeira série serão agregados estudos sobre a educação na América Portuguesa, relacionadas aos séculos XVI, XVli e XVIII. À segunda série serão agregados, paulatinamente, estudos sobre temas específicos como, por exemplo, a história da educação física, ou a história dos debates sobre o analfabetismo, no Brasil. Em cada volume o leitor encontrará um conjunto abrangente de informações, disposto em texto claro e objetivo, acompanhado de informações estatísticas, biográficas, bibliográficas e legislativas. 2 A noite escura do Estado Novo A história da educação pública no Brasil é também a histó- ria dos processos sociais que deram vida às conciliações e, consequentemente, legitimaram o lugar do Estado na configuração de leis, depois na configuração de diretrízes e, de forma contínua, na concentração de responsabilidade governamental sobre os parâmetros para a organização de todos os aspectos da vida escolar brasileira, in- dependentemente da natureza pública ou particular de cada estabe- lecimento de ensino. Trata-se de uma crónica que abrange todo o sécu- lo XX e que tem no seu trajo a própria crónica das transformações dos fundamentos políticos e culturais da escola republicana. Quando se apresenta a tarefa de narrar a história da educação, o desenrolar dos fatos parece estar sempre subordinado à recapitulação das ações que se consolidaram como atribuições da União, dos Estados e dos Municípios em matéria educacional. Na periodização utilizada neste livro, a partir de 1926, a responsabilidade governamental sobre a organização e a sistematização da educação escolar tomou-se parte de um processo que parece mesmo estar enclausurado nos aposentos que guardavam as ações de reordenação que o governo central impri- mia ao tema. A Constituição Federal de 1934, por exemplo, foi a primeira a afir- mar que a União tem competência "privativa" para traçar diretrizes sobre a educação nacional. A Constituição Federal de 1937, como se verá a seguir, manteve o mesmo conceito de função privativa para a União, no que toca à formação da infância e da juventude em seus aspectos intelectuais, morais e também dos cuidados com o corpo. 1 0 5 Freitas e Biccas Ocorre que, nesse modo de "focar" a construção da educação pú- blica, facilmente temos a impressão de que narrar a história da educa- ção é o mesmo que fazer a crónica (e a cronologia) das decisões tomadas nos condomínios dos poderes executivo e legislativo sobre educação. Contudo, também se deve levar em conta que a história social da educação é a história de sucessivas articulações por meio das quais a sociedade, com suas muitas expressões de desigualdade e diversidade, configuram o próprio Estado que, por sua vez, participa da configura- ção da mesma sociedade que legitima sua ação com maior ou menor abrangência. Portanto, o período que vislumbramos neste momento, embora possa ser considerado na maior parte do tempo uma "Era do Estado", uma vez que o governo central tornou-se um ator político indispensá- vel na realização de qualquer pauta política, por outro lado, não deve ser visto como se a ação do Estado fosse a-histórica e natural, ou seja, pronta, previsível e dedutível do histórico da construção das relações capitalistas de produção, no Brasil. Esse ator indispensável teve sua "imprescindibilidade" construída pela relações de força de então. O Estado em si não é o criador, tampouco o instituidor da sociedade como um todo, sendo, antes, uma expressão concreta de todas as suas con- tradições. Na maior parte do tempo, o Estado que temos é, de alguma forma, expressão das desigualdades que alimentamos. Não nos furtamos a fazer a crónica e cronologia das ações estatais porque tais ações resultaram do mesmo processo histórico que, neste país, consolidou a educação pública como educação radicada nas obri- gações orçamentárias e nas definições jurídicas do Estado. Mas, tam- bém não nos furtamos a afirmar que a "particularidade" da vida esco- lar, propriamente dita, não pode ser compreendida somente no momento no qual Estado e lei emitem os fundamentos estruturantes do funcionamento da malha educacional do país, exercendo suas compe- tências privativas. Ainda que determinados momentos revelem a presença marcante de dispositivos legais uniformizadores do trabalho escolar, da composição 106 História social da educação no Brasil (1926-1996) curricular e das escolhas didático-pedagógicas, o que é "singular" no quotidiano escolar resulta do indefinível a priori que se materializa continuamente na forma em que se dão as apropriações que os prota- gonistas do dia a dia escolar fazem daquilo que se lhes é pretensamente imposto. A escolarização é sempre resultado de situações concretas, vividas com um grau de especificidade capaz de fazer com que, muitas vezes, o específico de cada lugar-situação predomine sobre a generalidade pronunciada por leis, decretos e sumas curriculares. Há ainda uma outra questão importante a demarcar em relação à história da educação que se desenrola a partir da década de 1930, es- pecialmente a partir de 1935, quando aspirações autoritárias que já se manifestavam intensamente na sociedade tornam-se a parte mais visí- vel da gramática política realizada em nome do Estado. É inegável que a partir de 1935 as ações do governo federal acen- tuam a própria autonomia dessa esfera de governo em relação aos po- deres estaduais e municipais. Esse processo de centralização repercutiu e marcou o período com realizações de impacto, marcadamente nos campos da educação, da legislação trabalhista e das reordenações orça- mentárias em direção a uma política de incentivo à industrialização. Essa é a questão a ser comentada. Parte da historiografia da edu- cação registra a partir desse momento a vinculação entre os temas educação e desenvolvimento (ROMANELLI, 2001). E não são poucas as in- terpretações que se baseiam na hipótese de que a educação de massas decorreu do processo que a partir da década de 1950 seria designado por desenvolvimento económico. Especialmente a partir do próximo capítulo trataremos da fragili- dade dessa hipótese. Por enquanto, é necessário adiantar que os víncu- los entre educação e desenvolvimento não são tão imediatos quanto sugere a maioria esmagadora das análises sobre o tema. Quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística publicou recentemente o importante compêndio "Estatísticas do século XX", confiou ao economista Celso Furtado a tarefa de apresentar e traduzir 107 Freitas e Biccas em argumentos analíticos aquilo que um século de números sobre a sociedade e o social apresentava (IBGE, 2005). Furtado faz uma observação que a muitos pode causar perplexida- de. O economista, que foi um dos autores danova conceituação de desenvolvimento económico que surgiu após a II Guerra Mundial, lamen- ta que a industrialização no Brasil tenha seguido um viés tecnicista. Com seu lamento, em poucas palavras. Furtado sintetiza toda sua obra. O autor do clássico Formação económica do Brasil explica que desenvolver um país não é a mesmo que apetrechá-lo, ou ainda, não é simplesmente aumentar produção e tornar mais complexa a utilização de tecnologia nos processos de transformação da natureza e de produ- ção de bens industrializados. No seu entender, o cerne do desenvolvimento consiste em utilizar contingentes cada vez maiores de mão de obra, envolvendo os traba- lhadores com a utilização de recursos técnicos cada vez mais elabora- dos, de modo a fazer com que a disseminação da técnica pela socieda- de represente, ao mesmo tempo, a qualificação do próprio ser e agir do homem trabalhador. Ele adverte: a técnica que desenvolve não é aquela que poupa mão-de-obra. A assimilação de tecnologia "poupadora de mão de obra" faz parte de um processo de enriquecimento, concentrado, que conserva enor- mes contingentes populacionais à margem do processo de incremento qualitativo das relações de trabalho. Trata-se de um histórico de con- centração de riqueza antes de ser um histórico de desenvolvimento. Essa rápida referência ao tema desenvolvimento, que será reto- mada com mais detalhes adiante, é necessária para advertir o leitor de que, na perspectiva deste livro, a disseminação da escola pública no Brasil não foi consequência natural e inexorável da industrialização. Ou seja, será necessário desvendar o complexo campo da construção de direitos políticos da sociedade civil, (e escolarizar os filhos na escola pública é, antes de tudo, um direito político), para entender a forma social que a escola adquiriu quando se espalhou. A crescente multipli- cação de vagas que ocorrerá a partir da década de 1930 não consegue 108 História social da educação no Brasil (1926-1996) ser explicada tomando por dado concreto que a educação foi simples- mente um reflexo das transformações que progressivamente modifica- ram a estrutura produtiva do país. É fato concreto que o Estado atuou, desde então, em benefício da industrialização do país. Essa atuação, inclusive, envolveu e mo- bilizou parte das forças armadas uma vez que os temas ordem e in- dustrialização caminharam juntos desde então, décadas a fio. Tam- bém é fato concreto que, crescentemente, o Estado protegeu o trabalhador ao mesmo tempo em que investiu drasticamente na sua desmobilização político-partidária. A nação moderna, em meados da década de 1930, haveria de ser uma nação com identidade clara- mente definida e difundida (nacionalismo ruidoso) e reorganizada para que seus aparatos administrativos fossem mais qualificados (bu- rocracia eficiente). Foi um tempo sombrio e triunfante ao mesmo tempo. Tempo de vitórias para os que sonhavam com um Estado forte para conduzir "um povo fraco", como já dissera o sempre citado Alberto Torres. Modernizações, padronizações e a obra da "mão de ferro" No que diz respeito à ordem simbólica que se desdobra dos fatos e das palavras, estamos diante de acontecimentos que tiveram muita repercussão mesmo quando não surtiram os efeitos desejados por seus articuladores. Em 1934, o mineiro Gustavo Capanema assumiu o Ministério da Educação e Saúde. Sua atuação e sua disponibilidade para tecer tramas políticas nos bastidores repercutiram muito em ambos os campos de atuação do Ministério. Capanema alimentou inúmeras estratégias de mobilização e orga- nização das autoridades responsáveis pela educação em todas as esfe- ras de poder governamental. Planejou, por exemplo, a realização de 109 Freitas e Biccas conferências anuais de educação, envolvendo membros do governo fe- deral e dos governos estaduais. A forma de conduzir a interlocução com os vários protagonistas do campo educacional evidenciava, desde o início, a predisposição do mi- nistro e de seu ministério no sentido de conduzir ao centralismo políti- co e, depois, com centralismo político conduzir. A ditadura que seria implantada com o golpe do Estado Novo em 10/11/1937 já estava em processo de fermentação desde 1935. Tome- mos por exemplo a universidade do Distrito Federal, nascida por obra de Anísio Teixeira naquele ano e que teria vida curtíssima em razão do cenário que se configurou. Extinta em 1939, teve seus cursos transferidos para a Universidade do Brasil que fora instalada pela Lei n. 452 , de 5/7/1937. Francisco Campos, como já dissemos, homem forte de vários processos de radi- calização autoritária, no Brasil, mais uma vez participa do processo socorrendo o governo. A Constituição ditatorial de 1937 será obra de sua "engenharia política". Aliás, quando Anísio Teixeira foi afastado em 1935, o jurista mineiro ocupou seu lugar. Num gesto de grande repercussão para a vida académica do país, no mês de abril de 1939, por intermédio do Decreto n. 1.190, a ditadu- ra trouxe para dentro da Universidade do Brasil as seções de estudo que deram origem à Faculdade Nacional de Filosofia, conhecida como FNFi. As seções eram: • Filosofia • Ciências • Letras • Pedagogia • Didática (para obtenção do grau de licenciado, uma vez que as demais seções conferiam o grau de bacharel em três anos. Como a l i- cenciatura em didática era obtida em um ano, consagrou-se o esquema 3 + 1 para esse campo de formação universitária). Saviani (1987) nos lembra que a FNFi tornou-se parâmetro para to- das as demais faculdades de filosofia, ciências e letras e que, a partir de 110 História social da educação no Brasil (1926-1996) então, reeditavam em termos locais a fórmula estruturada no então Dis- trito Federal, fórmula essa que pôs fim à experiência diferenciada sonha- da por Anísio Teixeira, com a sua Universidade do Distrito Federal. O fechamento da UDF fez parte da vaga anticomunista articulada de forma oportunista pelo governo para silenciar seus opositores a par- tir de 1935. Esse é apenas um exemplo do quanto a radicalização de 1937 já estava presente. A "montagem" da FNFi, por sua vez, demons- trou o quanto as ações governamentais, naquele contexto, resultavam de operações de bastidores. Tristão de Athayde, por exemplo, foi consultado inúmeras vezes a respeito da "confiabilidade" de determinados intelectuais que eram então sondados para as cadeiras da FNFi. Seus bilhetes de indicação ou de reprovação tornaram-se evidências dos pontos de vulnerabilidade de Gustavo Capanema às pressões de seus aliados (FREITAS, 1998) . Por isso, é interessante prestar atenção no projeto de mobilização presente nas Conferências Nacionais de Educação, antes mencionado. É importante lembrar que os governadores já estavam convocados para a Conferência que seria realizada em agosto de 1936, mas que efetiva- mente não aconteceu. Quando a Lei n. 378, de 13/1/1937 oficializou as Conferências Nacionais de Educação e de Saúde, os seus conteúdos políticos já estavam delineados por Capanema desde quando assumiu o Ministério (BAIA HORTA, 2000, 143-172) . Concretamente, a Conferência somente aconteceu em novembro de 1941 e a tónica dos trabalhos, cujas diretrizes foram escritas por Lourenço Filho, incidiu sobre dois temas estratégicos: a) difusão, orga- nização e elevação da qualidade dos ensinos primário, normal e profis- sional e b) organização da juventude brasileira, tema este muito caro a Capanema (BAIA HORTA, idem). Enquanto iniciativas como a organização de Conferências ofere- ciam uma perspectiva de visibilidade para ideias que eram expostas com recursos discursivos empolgados com a construção simbólica de uma nova ordem, no plano da reorganização burocrática dos serviços estatais, relacionados direta ou indiretamente à educação, o país pre- senciouum delineamento meticuloso das ações de governo. Tais ações 111 Freitas e Biccas ganharam alcance à medida que se tornaram densas rubricas orçamen- tárias do Estado. Merecem destaque: • 1934: Instituto Nacional de Estatística (IBGE a partir de 1938); • 1938: Departamento de Administração do Serviço Público (DASP); • 1938: Comissão Nacional do Ensino Primário; • 1938: Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP); • 1938: Instituto Nacional do Livro; • 1938: Serviço de Radiodifusão Educativa; • 1938: Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE); • 1938: Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN); • 1939: Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP); • 1942: Fundo Nacional do Ensino Primário. Estava em curso um processo de remodelação do ensino oficial em todos os níveis, remodelação essa que em dado momento se ampliou para a nacionalização do ensino oficial, o que pode ser comprovado no Decreto n. 406. de 04 de maio de 1938, que nacionalizou as práticas de alfabetiza- ção das escolas criadas nos núcleos de colonização estrangeira. A extensa e pormenorizada ação do Estado no processo de (re) formação da escola estatal demonstra o agir próprio de uma instância de governo que conservou para si a competência privativa para legislar e estabelecer diretrizes. Contudo, não se deve confundir a prerrogativa de dirigir com o compromisso estatal pela educação pública, especialmente se tiver- mos em mente a obrigação de oferecer a mesma educação de qualida- de para todos. Na chamada "Era Vargas" também circulou com intensidade o dis- curso que considerava ser "natural" pensar os ensinos secundário e superior para as "mentes aptas a dirigir" e os outros graus e modalida- des de ensino destinadas, sem meias palavras, aos pobres, como será o caso explícito do ensino profissionalizante. 112 História social da educação no Brasil (1926-1996) A definição do compromisso estatal com a educação pública pas- sou por transformações substantivas entre 1934 e 1937. A Constituição Federal de 1934, no seu artigo 149, rezava: (...) A educação é direito de todos e deve ser ministrada pela família e pelos poderes públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e estran- geiros domiciliados no país. (negritos meus). Reverbera aqui, sem dúvida, o idioma político colocado em evi- dência no Manifesto dos Pioneiros. Já a Constituição Federal de 1937, peça jurídica típica da ditadu- ra, modificou o texto constitucional nos seguintes termos, constantes no seu artigo 125: (...) A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse dever colaborando de maneira principal e subsidiária, para facilitar a sua execução de suprir as deficiên- cias e lacunas da educação particular, (negritos meus). A imagem do Estado como o maior e mais zeloso professor da na- ção cede lugar à imagem do Estado que vigia para que a nação não se esqueça que a verdadeira ação educativa provém da família. Para além disso, o papel educador da família seria complementado pela estabili- zação das hierarquias sociais, elogiadas sempre como se fossem funda- mentais para a harmonização da sociedade. O Brasil de 1937, mesmo antes do Estado Novo, já era um país que mantinha no cárcere cabeças ilustres como as de Graciliano Ramos, que fora Diretor da Instrução Pública de Alagoas de 1933 a 1936 e que ficou preso até janeiro de 1937, como decorrência de suas simpatias pela Aliança Nacional Libertadora (ALN) e também de suas escaramuças com lideranças alagoanas. Graciliano e sua literatura, homem e obra, podem ser lembra- dos como exemplo de que as imagens geradas no nacionalismo triun- fante do governo eram pouco condizentes com o país distante, per- manentemente recriado nas metáforas do sertão que não cessavam de aparecer. 113 Freitas e Biccas Se personagens como Heitor ViUa-Lobos, desde 1932, já empresta- vam a própria genialidade aos propósitos de governo, (que contava com muitos intelectuais que se diziam capazes de resgatar autênticos valores nacionais), autores amargurados como Graciliano Ramos em- prestaram ao tempo sua disponibilidade a projetar as "vidas secas" do país, tirando-as do âmbito regional e inserindo-as no acervo das ima- gens do país real. Se o nacionalismo de ViUa-Lobos quando queria expressar o com- ponente nacional de nossa cultura acabava por retomar o componente local que se movia no compasso do trem caipira, o realismo de Graci- liano Ramos demonstrava que nenhuma obra nacionalista seria verda- deiramente possível uma vez que, no Brasil, a distância entre cidade e sertão era uma distância que demarcava a extensão da desigualdade entre mundos cada vez mais próximos e, ao mesmo tempo, cada vez mais distantes. Seu Vidas secas termina assim: (...) Não sentia a espingarda, o saco, as pedras miijdas que lhe entravam nas alpercatas, o cheiro de carniças que empestavam o caminho. As palavras de sinhá Vitória encantavam-no. Iriam para diante, alcançariam uma terra des- conhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era (...) e andavam para o sul metidos naque- le sonho. Um cidade grande cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias (...). Chegariam a uma terra des- conhecida e civilizada, ficariam presos nela. O sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos (RAMOS, 2000 , 1 8 4 ) . Muitos brasis e muitos brasileiros buscavam fazer da história da escolarização uma parte da história de suas próprias vidas. Como já demarcamos ao início, se nos detivermos na narrativa dos sucessos e insucessos da ação governamental repetiremos aqui o enredo que con- tinuamente preteriu lutas muito particulares pelo acesso à educação. Como vimos anteriormente, na ditadura do Estado Novo, a política educacional configurou-se de forma autoritária e "uniformizante". Pa- ra reforçar a bandeira do nacionalismo, o governo implementou várias 114 História social da educação no Brasil (1926-1996) medidas junto ao sistema escolar primário e secundário. No sentido de propagar um sentimento de patriotismo e de valorização da nacionali- dade, o currículo e as práticas escolares foram modificados de modo que tais estratégias repercutiram diretamente no ensino da moral, esta aberta à influência católica, do civismo, da educação física, da história, da geografia brasileira, do canto orfeônico e até nas festividades que ecoavam as ações do Estado Novo. As instituições educacionais particulares, para assegurar seu fun- cionamento, deveriam acatar essas determinações, caso contrário po- deriam ser sumariamente fechadas, como aconteceu com inúmeras escolas criadas pelos imigrantes em várias partes do país (KREUTZ, 2000 e HiLSDORF, 2 003 ) . Porém, algumas iniciativas adaptaram-se de maneira singular ao "formato" educacional que se propagava. É o que podemos perceber acompanhando rapidamente a incursão feita por Araújo ( 2008 ) na his- tória do movimento negro ou, mais especificamente, na história da Escola da Frente Negra na cidade de São Paulo. A escola primária da Frente Negra Brasileira funcionou no período de 1934 a 1937. Esta foi uma entre várias outras escolas criadas na década de 1930, instituída sob os efeitos das concepções ideológicas concebidas no governo "provisório" de Getúlio Vargas. O projeto político centralizador requeria uma identidade nacional que estaria impreterivelmente associada à necessidade de renovar há- bitos e de modernizar o povo brasileiro por meio da educação, da saú- de e do saneamento. Nesse sentido, a escola primária da Frente Negra incorporou no seu currículo escolar a gramática nacionalistaao cum- prir o programa oficial determinado pelo Estado adotando temas de cunho cívico como pátria e família, moldando-se a um projeto formal cujas ações pedagógicas estavam sujeitas à fiscalização do Estado. Num momento de fechamento político, a Frente Negra Brasileira, provavelmente, só obteve autorização por parte do governo para abrir uma escola para os negros devido ao seu alinhamento com os "funda- mentos de Estado". 115 Freitas e Biccas Quando Araújo (2008) analisou os ofícios enviados ao Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo em conjunto com os artigos publicados em A Vbz da Raça^ e outros jornais da grande imprensa co- mo Folha da Noite, descobriu que os "frentenegrinos" defendiam a escola como um agente modernizador, adotando a bandeira nacionalis- ta e a identidade brasileira como parte dos ideais defendidos por eles e que seus antepassados também já haviam lutado. A Frente Negra implementou aulas para os adultos e a escola pri- mária para as crianças. Outra justificativa apresentada pela Frente para a criação da escola apoiava-se no fato de os negros estarem sem- pre enfrentando várias "barreiras raciais" tanto para ingressar quanto para permanecer nos bancos escolares, denunciados inúmeras vezes pelos "frentenegrinos". O rico estudo de Araújo mostrou que a escola primária da Frente Negra foi instalada na região da Liberdade, na cidade de São Paulo, onde apenas 22% das crianças em idade escolar estavam matriculadas na rede pública. As professoras que atuaram na escola primária da Frente Negra eram negras, formadas na escola normal e foram nomea- das pela Secretaria da Educação e Saúde Pública. A ação escolar da Frente Negra Brasileira ressaltava a importância da formação moral e intelectual do negro para a sua participação so- cial e política. O grupo que esteve à frente desse empreendimento acabou também mobilizando a ideia de "solidariedade racial" com o objetivo de "promover a educação moral e cultural da massa negra" na perspectiva de se integrarem à civilidade proclamada. Esse exemplo, rico em simbolismos relacionados às dificuldades que se apresentaram no processo de expansão da educação pública, nos leva sempre a perguntar: para quem seria a escola pública que se reorganizava? 1 A Voz da Raça, órgão oficial da Frente Negra Brasileira, que tinha por epígrafe Deus, Pátria, Raça e Família, proximidade com os princípios integralistas. Em setembro de 1931, muitos fundadores da Frente Negra Brasilei- ra, contrariados com a feição fascista que estava assumindo, romperam e fundaram a sociedade político-social denominada Frente Negra Brasileira Socialista. 116 História social da educação no Brasil (1926-1996) Um pouco antes da década de 1940, a maioria esmagadora das uni- dades escolares se mantinham em escolas isoladas. O processo de (re) formação da escola estatal e de reorganização do ensino profissional con- duziu-se num cenário contraditório, dentro do qual o Estado que a quase tudo prescrevia e delimitava, ao mesmo tempo se desincumbia da educa- ção pública. Ou seja, estamos diante de um período no qual é notória a expansão do Estado e, mesmo sendo uma expansão inegável, seus dispo- sitivos legais não têm na educação pública uma obrigação primordial! Ao mesmo tempo, não havia campo retórico que não projetasse a educação popular como principal tarefa a ser realizada. Por isso, em meio a tantas contradições, talvez faça sentido fazer um paralelo en- tre o que ocorria no âmbito da educação com aquilo que Castro Gomes chamou de "trabalhismo". Para a autora: (...) o sucesso do projeto político estatal - do "trabalhismo" — pode ser explicado pelo fato de ter tomado, do discurso articulado pelas lideranças da classe trabalhadora durante a Primeira República, elementos-chave de sua auto imagem e de os ter investido de novo significado em outro contex- to discursivo. Assim, o projeto estatal que constitui a identidade coletiva da classe trabalhadora articulou uma lógica material, fundada nos benefícios da legislação social, com uma lógica simbólica, que representava estes be- nefícios como doações e beneficiava-se da experiência de luta dos próprios trabalhadores (CASTRO GOMES, 1994, 2 3 ) . No campo da educação, ainda que estivesse em curso uma remo- delação que, ao termo, conservou um impressionante mecanismo de seletividade e que manteve o ensino secundário como apanágio das "mentes condutoras", o grande volume de realizações colocou em cir- culação registros caros ao simbolismo próprio do campo educacional. Muitas vezes, a ação governamental parecia empreender exatamente aquilo pelo que se bateram quase todos os interessados pela educação pública desde a década de 1920. Porém, o que o Ministério proclamou como realização do Estado foi sempre imagem do "senso equilibrador" entre interesses divergentes, senso esse reafirmado em cada obra rea- lizada "na medida" dos interesses da nação. 117 Freitas e Biccas Não são poucas as ações de Gustavo Capanema que se abrem ao chamado "renovacionismo", ao mesmo tempo em que o Ministro acu- sava a Escola Nova de "compactuar com a burguesia internacional". Para repetir o mote de Castro Gomes, muitos elementos da auto ima- gem dos educadores talhados ainda nos anos 1920 reaparecem na ação governamental que se fazia sincrética o suficiente para parecer ser de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém exclusivamente. As Leis Orgânicas do Ensino, promulgadas entre 1942 e 1946, ex- pressam a profunda seletividade que se torna estrutural na sociedade brasileira. Essa seletividade estrutural também nos ajuda a entender histórias como a da Frente Negra mencionada anteriormente. Em sua essência, os efeitos das Leis Orgânicas do Ensino perdu- raram mais de duas décadas após o Estado Novo e, tragicamente, só se dissolveram quando algo ainda mais deletério se apresentou no processo que sucedeu ao golpe de Estado de 1964, como se verá oportunamente. É importante chamar atenção para outro aspecto. Tais medidas já não expressavam mais somente os fundamentos de um governo e de uma ditadura que a despeito do triunfalismo de seus gestos entrarão em declínio assim como os "governos fortes" que tiveram seu apogeu no cenário que precedeu a Segunda Guerra Mundial. Tais medidas têm, ao mesmo tempo, a fragilidade da situação que declinava e a força daquilo que permanecerá como efetivamente orgâ- nico na sociedade brasileira: uma estrutura de escolarização aberta à ampliação, mas com obstáculos internos à permanência da maioria da população. O tema essencial das Leis Orgânicas é o tema da padronização. Os efeitos decorrentes dessa essência transparecem na organização curri- cular nacional, na indicação do método de leitura a ser adotado, que era o método analítico-global e também na arquitetura escolar. Mas as intenções homogeneizadoras não se restringiram ao tripé currículo-método-espaço escolar. Foram regulamentadas também as atividades de recreação, as normas de vestimenta que resultaram na 118 História social da educação no Brasil (1926-1996) universalização do uniforme escolar e até as indicações para a verifica- ção do asseio dos estudantes. O funcionamento das caixas escolares também foi disciplinado e, deve-se elogiar, um plano de bibliotecas escolares foi redigido com imenso cuidado. As Leis Orgânicas também traziam para a órbita dos assuntos es- colares outras instâncias de intervenção intelectual, estética e moral especialmente direcionadas à infância e à juventude. É o caso do cine- ma educativo e da evocação do escotismo como programa educador. A cronologia das Leis Orgânicas pode ser assim resumida: • Lei Orgânica do Ensino Secundário: 1942 • Lei Orgânica do Ensino Industrial: 1942 • Lei Orgânica do Ensino Comercial: 1943 • Lei Orgânica do Ensino Agrícola:1946 • Lei Orgânica do Ensino Primário: 1946 • Lei Orgânica do Ensino Normal: 1946 As reformas que essas leis trouxeram no âmbito dos ensinos primá- rio e secundário merecem um comentário à parte. Em relação ao ensino primário, reforma combinada com a do en- sino normal, nada do que foi implementado retirou a seletividade ine- rente à estrutura que se tinha e, ao contrário, removeu obstáculos para a atuação da iniciativa particular nesse grau de ensino. Hilsdorf (2003) lembra que a reforma não aceitou a co-educa- ção e, como se não bastasse, indicou sem meias palavras que as classes femininas deveriam passar por um processo de diferenciação que conduzisse a formação das meninas para o campo dos afazeres domésticos. O quadro que se desenhava não só renovava o encantamento com os grandes programas de formação geral como em termos de opções para os alunos era inflexível. O ensino primário foi assim estruturado: 119 Freitas e Biccas Curso elementar de 4 anos; Curso complementar de 1 ano. Para crianças de 7 a 12 anos de idade. Para adolescentes ''J e adultos. ' M O ensino médio, naquele momento designado secundário, adqui- riu uma estrutura de mobilidade vertical e uma horizontal conforme a "clientela". Vejamos os quadros a seguir: Ensino secundário com acesso ao ensino superior (qualquer área): 4 anos seriados Curso Colegial 3 anos seriados com duas modalidades: Clássico ou Cientifico Ensino secundário com acesso ao ensino superior (somente facul- dades de filosofia): Curso Ginasial Curso Normal com 2 ciclos 1° ciclo de 4 anos: para formar regentes de ensino primário. 2° ciclo de 3 anos: para formar professores de ensino primário. Convém lembrar que a formação de professores para ensino se- cundário passou a ser atribuição do ensino superior, como demonstrado anteriormente. Na estruturação do ensino profissionalizante, chama atenção o "bloqueio" ao mundo universitário, operando claramente uma divisão na oferta com critérios que realizavam, no âmbito da lei, uma vigorosa distinção baseada predominantemente na estratificação social. Essa modalidade de ensino adquiriu as seguintes características: 120 História social da educação no Brasil (1926-1996) Curso secundário comercial Curso secundário industrial Curso secundário agrícola Escola de Comércio de Escola Técnica , Sem acesso a outrosíaíji 4 anos. Comercial de 3 anos. ' níveis de ensino'.''«^H 1^ ciclo para formação de mestria artesanal, de 4 anos. 2" ciclo de 3 anos em escola técnica. Possibilidade & , .acesso a curso: técnico;; superior. 1" ciclo de Iniciação Agrícola, de 4 anos. 2° dclo de 3 anos em escola técnica de agricultura. Sem acessoa outros . níveis de ensino. O tema do ensino profissionalizante não estava restrito ao raio de ação governamental. Em relação ao quadro anterior, desponta no ce- nário uma questão decisiva que só ganha visibilidade quando algumas siglas são enunciadas: SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem indus- trial), de 1942, SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) de 1946 e SESI (Serviço Social da Indústria) também de 1946. Para os fins deste livro, é importante comentar, ainda que muito brevemente, a configuração do SENAI e projetar este exemplo em di- reção aos temas racionalização e modernização tal como eram mane- jados então. Mais do que um projeto de reestruturação do ensino de ofícios industriais, o SENAI tornou-se um exemplo importante de como a con- solidação da ação estatal na conformação da esfera pública brasileira, vista de perto, tem elementos de grande complexidade e de indefini- ção entre o que é domínio público e domínio privado. Em muitos momentos, no transcorrer da década de 1930, tanto a esfera pública quanto a esfera privada se mostraram permeáveis ao uso do "idioma" da racionalização, um idioma com muitos "dialetos". Racionalizar era uma palavra que surtia efeitos diferenciados con- forme variavam os agentes que a disseminavam e os atores que se apropriavam de seus sentidos, muitos dos quais empreendiam ações racionalizadoras mesmo sem nunca utilizar a palavra. No campo educacional, a meticulosidade que deu novo desenho a mínimos detalhes, como criar parâmetros para o uniforme escolar. 121 Freitas e Biccas demonstram que na orquestração ministerial podemos encontrar exem- plos microscópicos, mas significativos, do quanto a educação brasileira passava por arranjos disciplinadores e racionalizadores. Num outro sentido, desde os últimos anos da década de 1920, tí- nliamos periódicos que já reclamavam para o campo educacional com- petências próprias e racionalidade singular, promovendo a divulgação de artigos que pontuavam o lugar do "discurso pedagógico especializado" (CARVALHO e CORDEIRO, 2002), como mostra a história da Revista Educação que circulou em São Paulo a partir de 1927 e que, após 1930, sob a orientação de Lourenço Filho, passou a ser chamada de Revista Escola Nova (MATE, 2002, p. 80). A gramática da especialização pedagógica aparecia não somente nos artigos dos periódicos educacionais, mas também nos relatórios das Diretorias de Ensino, nas exposições de motivos dos atos ministe- riais e nos relatórios técnicos de toda ordem, como por exemplo no Relatório sobre o tratamento dos menores delinquentes e abandona- dos, apresentado em 1935 por Cândido Motta Filho que era, então. Diretor do Reformatório Modelo de São Paulo. Ao lado dos discursos especializados, as falas que se batiam pela organização racional do trabalho também gozavam de prestígio e visi- bilidade e, naquele contexto, não foram poucas as vezes nas quais o trabalho escolar e o trabalho industrial foram imaginados como compo- nentes de uma mesma "ciência pedagógica". No Relatório citado, assinado por Cândido Motta Filho, a organiza- ção do quotidiano do Reformatório Modelo baseava-se, entre muitos aparatos de quantificação, na aplicação de teorias apropriadas junto à obra de autores norte-americanos como Edv/ard Thorndike. Mas tam- bém ocorriam apropriações de muitos procedimentos de verificação antropométrica que eram claramente devedores das tradições médicas e jurídicas e, principalmente, proliferava a aplicação de testes psico- técnicos para o trabalho, que se realizavam no Gabinete de pycliologia applicada do Reformatório. 122 História social da educação no Brasil (1926-1996) Verificar aptidão, otimizar recursos, justificar com base numa "ciência aplicada" eram práticas cada vez mais presentes nos ambien- tes educacionais e marca registrada dos debates que se davam em torno do tema modernização do Brasil. A presença do Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), fundado em 1931 em São Paulo, já havia materializado e institucionalizado aspirações de intelectuais que desde 1926 defen- diam o princípio de que métodos científicos ajudariam a escola a se adaptar às demandas modernas da industrialização, entre eles Fernando de Azevedo e Lourenço Filho. Podemos lembrar também de intelectuais que atribuíam à organização racional e científica das ci- dades um fator decisivo para resolução dos problemas de higiene e saúde presentes na vida urbana brasileira. En- tre os sanitaristas que se entusiasmavam com o "idioma da racionalização" encontramos nomes proeminentes como os de Geraldo de Paula Souza. Mas o tema da racionalização mobilizava principalmente a imaginação industrialista de alguns que julgavam que a aplicação de princí- pios fordistas e tayloristas arrancariam o Bra- sil do seu arcaísmo e projetariam a nação em direção a um futuro efetivamente moderno. Não é casual a admiração que muitos edu- cadores demonstraram a engenheiros como Roberto Mange e Roberto Simonsen, entusias- tas da modernização do parqueindustrial bra- sileiro e também da aplicação de métodos científicos de treinamento para o trabalho. O tema da educação profissional, e não só no ramo industrial, era um assunto caro ao Ministro Gustavo Capanema. Em suas primei- ras articulações de bastidores visando empre- O taylorismo diz respeito à aplicação das ideias de Fredric Taylor às rotinas de produção. Trata-se de um princípio de "gerência cientifica" e "planejamento" que, na opinião de Braverman (1977, p. 86) significa "a imposição ao trabalhador da maneira rigorosa pela qual o trabalho deve ser executado". O fordismo, por sua vez, segundo Moraes Neto (1989, pp.47-50) é uma forma desenvolvida de taylorismo e é, por isso, um desenvolvimento da manufatura. (...) A elevação da produtividade social do trabalho para Ford se dá pela via do parcelamento das tarefas. (...) Ford reinventou a correlação manufatureira entre divisão do trabalho e produtividade, já superada pela maquinaria, a forma mais desenvolvida de incremento da produtividade do trabalho. 123 Freitas e Biccas ender uma ação estatal que reestruturasse esse campo, o Ministério sinalizou pretensões que apontavam a criação de um sistema nacio- nal sob sua guarda, além de cogitar uma escola modelo que repercu- tisse nacionalmente a ordenação que o governo viesse a impor ao tema. Mas não foi exatamente a esse resultado pretendido que o pro- cesso cliegou. CUNHA (2000, p. 45) desenha com muita acuidade a forma que adquiriu o SENAI. Quando foi constituído, seus fundamentos se tornaram os funda- mentos de uma instituição pública. Foi criado por decreto-lei e alimen- tado por um instrumento de coerção legislativa que fez com que os industriais não pudessem se recusar a recolher a contribuição que ali- menta o sistema, apelidado mais tarde de "Sistema S". Todavia, o funcionamento e a gestão do SENAI têm claramente o perfil da instituição privada, uma vez que é a Confederação Nacional da indústria que o administra com o respaldo das federações estadu- ais de sindicatos patronais. Mesmo assim, é necessário reconhecer que o SENAI foi imposto aos industriais pela ação governamental e a grita contra o aspecto compulsório da contribuição é uma demonstra- ção disso. No âmbito da ação governamental administrativa, há estranha- mento entre Estado e as partes administradas. Porém, a direção que a sociedade toma se firma mesmo enquanto as partes se estranham. No todo, no tecido político, são costurados os fundamentos da sociedade que interferem no alcance mais ou menos transformador de reformas governamentais e de medidas contra privilégios estabelecidos. Ocorre que é possível, como alertava Faoro (1958), empreender modernizações sem que isso signifique exatamente dar um perfil mo- derno à estrutura social. Tanto no âmbito das relações de trabalho quanto no universo das realizações educacionais se embaralhavam as falas que pediam que o país arcaico pudesse ser "filtrado" num novo industrialismo e que a infância e a juventude, enquanto tempos sociais, recebessem escolari- 124 História social da educação no Brasil (1926-1996) zação conforme variações de aptidão, mérito e, na voz de muitos, conforme variações no "lugar social" de cada um. Entretanto, a complexa trama que rearticulou a institucionalização do ensino industrial no contexto do Estado Novo e, principalmente, as modificações nos padrões de trabalho fabril de então podem nos ofere- cer perspectivas desafiadoras à nossa percepção do quanto os jogos da política modificam o conteúdo dos jogos de dominação social. No que diz respeito ao SENAI, o que também se estende ao SENAC e ao SESI, é por demais evidente a força dos argumentos em prol da reorganização racional tanto da produção quanto do ensino e treina- mento da mão de obra, especialmente no toca à juventude. O que parece ser o dado surpreendente, que é a atribuição de res- ponsabilidade administrativa para a esfera privada num momento de inegável expansão da ação estatal, não é um dado tão provocante quan- to é o fato de que a luta política muitas vezes inverteu papéis e "trocou o sentido" dos processos de modernização das práticas de trabalho. Se nós pensarmos naquele contexto como um cenário coeso, no qual a iniciativa industrialista impunha novos padrões de racionaliza- ção em benefício da produção, padrões aplicados "contra" a rusticidade de mãos e mentes crescidas no arcaísmo, corremos o risco de menos- prezar a força desestabilizadora de alguns fatos. Alguns procedimentos de modernização foram impostos e, no bojo do que se impunha, ampliar ganhos e concomitantemente elevar o ní- vel de controle sobre os trabalhadores eram objetivos visíveis entre as intenções patronais. Porém, Weinstein (2000) mostra com clareza que os trabalhadores não devem ser considerados "vítimas passivas" de uma situação na qual Estado e empresariado exerciam pleno controle sobre o quotidia- no em processo de transformação. Primeiramente, a autora demonstra que um número expressivo de líderes dos trabalhadores alimentavam a perspectiva de que a moder- nização da estrutura de trabalho no Brasil resultaria bem-estar genera- 125 Freitas e Biccas lizado ao conjunto dos trabalhadores e, por isso, exigiam tais empre- endimentos modernizadores por parte de seus patrões, os quais muitas vezes simplesmente resistiam. A documentação trazida por Weinstein ao seu estudo inverte vários aspectos da nossa percepção a respeito das ações controladoras e disciplinadoras exercidas em nome da racio- nalização. Já no prefácio desse livro, Maria Ligia Prado chama atenção para a importância da perspectiva adotada pela autora, no que diz respeito à singularidade do Brasil. Vale a pena transcrever seu comentário: (...) A autora lembra o exemplo dos sopradores franceses de vidro, que re- sistiram duramente à introdução do ar-comprimido como substituto do so- pro humano, em 1890, sugerindo que tal atitude se deveu às fortes tradi- ções artesanais da categoria. No Brasil, por oposição, os sopradores de vidro da Vidraria Santa Marina, ao contrário de seus colegas franceses, foram à greve para exigir a substituição do esforço humano por ar-comprimido no sopro do vidro (PRADO, 2000 , p. 1 7 ) . A gramática da racionalização das atividades de produção indus- trial se encontrava com a gramática da padronização dos inúmeros componentes da dinâmica escolar de educação. Porém, o exemplo ci- tado anteriormente demonstra que o protagonismo das lideranças em- presariais passava por uma espécie de (re)formação quando a luta po- lítica punha em evidência interesses próprios dos trabalhadores. Na esfera educacional, o protagonismo do Ministério da Educação também passava por (re)criações toda vez que seus dispositivos de controle eram efetivamente manejados no quotidiano escolar. O mes- mo se dava com as diretrizes políticas para o controle e a expansão da escolarização popular. Mesmo quando tais temas recebiam as marcas uniformizadoras da política educacional estadonovista, na perspectiva política que variava de Estado para Estado, muitas vezes a singularidade do jogo de forças regional dava um tom próprio àquilo que era, então, proclamado como parte de uma nova identidade nacional. Um exemplo disso pode ser encontrado no denso estudo feito por Peixoto (2003) que comprovou que em Minas Gerais as políticas educa- 126 História social da educação no Brasil (1926-1996) cionais do Estado Novo passaram por um processo de encaminhamento peculiar. A autora demonstrou que as ações modernizadoras foram realiza- das em regime de conciliação com setores agro-exportadores. Como consequência, a reorganização dos serviços educacionais claramente destinou-se a um público especial que desfrutava das escolas públicas: as crianças e jovensdas elites, beneficiárias diretas da alta seletividade que o sistema ganhou em Minas Gerais. Trata-se de um exemplo importante para que possamos perceber que muitos dos problemas relacionados ao ensino praticado nas escolas públicas, no período aqui tratado, decorreram não da ausência de mo- dernização, mas da forma perversa que essa modernização adquiriu. Não se trata de buscar no passado exemplos comprobatórios de uma modernização "atrapalhada" pela presença desestabilizadora da "men- talidade oligárquica". As muitas faces que a modernização dos serviços públicos começou a exibir não foram "atrapalhadas" por forças locais de feitio autoritário; foram sim feitas em conluio com elas, ao sabor de seus caprichos e em franca concordância com o fato de que o país de- veria, sempre, "reservar o melhor, aos melhores". O Brasil oficializou a existência de uma modalidade de educação para os alunos pobres: a educação profissional. A combinação entre as ações próprias às responsabilidades privativas da União em termos educacionais e as ações próprias às circunstâncias regionais, confir- mou não somente que os ensinos secundário e superior eram reserva- dos às "mentes condutoras". Em muitos aspectos, a própria escolari- zação pública, em todos os níveis, ainda que em processo de expansão, parecia inóspita à maioria das crianças e jovens brasileiros. Dávila (2005) demonstrou com detalhes inúmeras estratégias dos setores populares do Distrito Federal que buscavam vagas para suas crianças. O autor observa dois aspectos importantes. Primeiramente, a escola pública que se expandia passou a ser desejada porém, manter os filhos para além da terceira série do curso primário já era uma faça- nha expressiva, inacessível para muitas famílias. Segundo, nas estraté- 127 Freitas e Biccas gias populares visando obter das autoridades a construção de prédios escolares em locais distantes do centro da cidade, muitas cartas foram enviadas ao próprio Presidente Getúlio Vargas. Tais cartas demonstravam não somente as dificuldades presentes no quotidiano dos subúrbios. Mostravam também uma certa "habilida- de" politica por parte dos pais que demonstravam valorizar, na educa- ção, aquilo que o regime divulgava como vantagem social na prolifera- ção da educação escolar (DÁVILA, 2005, pp. 286-87). Expansão, racionalização, padronização eram palavras que adqui- riam sentidos sociais diferenciados conforme se diferenciavam os pró- prios brasileiros em relação aos direitos que se proclamavam como universais. Luiz de Aguiar Costa Pinto (1953), em obra que já se tornou clássica, registrou a forma dramática como a ausência de serviços e instituições públicas marcou a vida de grandes contingentes populacio- nais que viviam em favelas. Já as autoridades municipais do Distrito Federal, na vigência do Estado Novo, se queixavam do quanto a disper- são das populações pobres por lugares distantes "complicavam e enca- reciam os serviços públicos" (apud DÁVIU, 2005, p. 138). A gestão Anísio Teixeira, que foi interrompida em 1935, havia ini- ciado um processo de atendimento diferenciado aos bairros com popu- lações mais pobres, promovendo, Inclusive, uma certa desconcentra- ção em relação à oferta que predominava nas zonas centrais da cidade do Rio de Janeiro. Prédios bem estruturados foram entregues a algu- mas populações periféricas, o que destoou radicalmente do que se praticou em termos de política de atendimento às periferias em quase todo o século XX, em quase todas as cidades do país. A noite do Estado Novo não silenciou apenas experiências demo- cráticas como essa levada a efeito por Anísio Teixeira. No legado deixa- do para o período pós Segunda Guerra, a padronização, a gramática da ação autoritária e a elitização consolidadas naqueles anos sombrios reaparecerão multas vezes, mesmo quando o povo ampliou sua partici- pação e presença na escola. 128
Compartilhar