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Prévia do material em texto

1 
 
 
 
Antropologia: 
ciência do ánthropos 
Seção 1 - A ciência do ánthropos e seus campos de saberes: 
direito de todos os pesquisadores 
Seção 2 - Busca histórica antiga: da Antiguidade à Idade 
Moderna 
Seção 3 – Modernidade e etnocentrismo: consequências entre 
nós. 
 
Antropologia Cultural-1 
Prof. Jaci Rocha Gonçalves, Dr. 
(Texto complementar - Unidade de Aprendizagem 
de Estudos Socioculturais) 
 
 
 
 
 
2 
 
Cara/o estudante, 
Criar este subsídio complementar ao de seu estudo de Antropologia Cultural 
(AC) está significando vivenciar sentimentos de desafio e esperança. 
 
Desafio porque a AC é filha da Antropologia, a jovem ciência de menos de 
duzentos anos de idade. Nela, pela primeira vez, o humano acrescenta à 
reflexão, o momento científico da observação de si mesmo; e como cultural, 
assume o desafio de observar a cultura como constitutivo do humano. 
 
Na verdade, somos a única espécie a criar mil respostas diferentes para 
necessidades iguais. Assim, para saciar a fome, mil cardápios e economias; 
para conviver, criamos inúmeros sistemas políticos, para manter a sanidade, 
mil medicinas; para habitar e nos locomover, inúmeras formas de engenharias 
e tecnologias. 
 
A lista não acaba: criamos ritos variados para o nascer e o morrer. Mas em 
tudo, as diversidades culturais geram uma teia de coerência endocultural e 
ecossistêmica. 
 
Nisto nos temos descoberto como iguais: na capacidade de sermos diversos. 
Aí mora a esperança de deixarmos de confundir diferença, que é riqueza, com 
desigualdade que é fonte de desgraça e de sofrimentos. E já que fomos 
criados todos iguais na diferença, reside aí uma esperança para a 
consciência de cidadania. 
 
A Antropologia Cultural, como veremos, empreendeu com entusiasmo a tarefa 
de pesquisar a cultura como fenômeno exclusivo humano e nos dar condições 
científicas de olhar o macro e o micro produzido pelo humano no seu real 
contexto de complexidade. Não há cultura ingênua, nem simplória. 
 
Quando remarmos pelos rios da cultura, vamos nos dar conta de que para a AC 
todo detalhe conta. E o que nos provoca estranhamento nos ajuda a crescer 
porque nos observamos estranhos também para a alteridade. E o que 
julgávamos como inato e único, o descobrimos como cultural e nosso modo-de-
ser como um jeito a mais entre outros jeitos possíveis de ser e de viver. 
 
3 
 
Há, no entanto, uma preciosidade em cada jeito identitário: ele é 
irrepetível e tem fascínio próprio a ser oferecido – como pessoa e como 
povo. Você verá assim que a unidade e diversidade de cada cultura como 
objeto de análise da Antropologia Cultural, pode ser compreendida a partir 
de diversos enfoques. Inclusive este: as singularidades mostram este 
aspecto ontológico do humano que é ser diverso. 
 
Esse apoio didático tem ainda uma expectativa: de ser instrumento na sua 
formação como pessoa e profissional de olhar pluralista num momento ímpar 
de mundialidade. O distante é vizinho e no videogame nossos filhos brincam 
e interagem com meninos chineses, indianos, nas savanas africanas, 
indonésios, no nordeste, com um povo originário da Amazônia ou no Bexiga, 
no centro da megalópole paulista. 
 
Assusta-nos, porém, imaginar um mundo de mesmice. Mas há muito o que fazer. 
Como veremos ao final deste LD, a primeira vez que nos reunimos para 
objetivamente tratarmos da questão do direito à diversidade cultural e 
diagnosticarmos situações crônicas de doenças culturais como xenofobia, 
preconceitos e fundamentalismos foi próximo ao fatídico 11 de setembro de 
2001. 
 
Quem soube do grande encontro de Durban, na África do Sul, quando 
discutimos em foro internacional sobre diversidade pela primeira vez? 
Mas os remédios para tais doenças vão aparecendo nos movimentos de 
economias solidárias, jurisprudência de sabedorias até então desconhecidas; 
formas de lidar com o ecossistema onde é surpreendente a sintonia fina de 
povos originários. 
 
Neste contexto é que deixamos esta expectativa da AC cumprir sua missão 
científica de não deixar romper a união entre as ciências da vida, as 
ciências exatas e as ciências humanas. 
 
Mais do que a procura de origens, nossa ciência foca a história da 
possibilidade de um conviver adequado com o diferente. Um exercício que 
 
4 
 
pode ajudar a humanidade a superar a belicosidade crônica das guerras e 
aprender a irenelogia, ciência da paz. 
 
Porque somos todos alunos do cultural. Somos todos professores também. Daí 
sua interação através dos trabalhos de troca cultural ser indispensável; já 
que estamos no Brasil de muitos brasis e no mundo virtual onde as 
fronteiras postiças da geopolítica cedem a cada dia o espaço para a troca 
de identidades culturais com a correspondente visão original de mundo 
 
O texto quer ser didático e, ao mesmo tempo, inacabado como a dinâmica 
cultural. Nisto contará com você. Por isto, convidamos você a iniciar essa 
leitura procurando estabelecer relações com suas experiências culturais 
trocando sabedorias neste imenso espaço virtual. 
Bom estudo! 
Professor Jaci Rocha Gonçalves, Dr. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
5 
 
 
A Antropologia: ciência do ánthropos 
Seção 1 - A ciência do ánthropos e seus campos de saberes: 
direito de todos os pesquisadores 
Seção 2 - Busca histórica antiga: da Antiguidade à Idade 
Moderna 
Seção 3 – Modernidade e etnocentrismo: consequências entre 
nós. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
6 
 
Nesta unidade, você viaja pelo rio da Antropologia e já fica 
de olho no afluente que nos interessa: a Antropologia 
Cultural. Vai conhecer o conceito de Antropologia desde o 
filológico e seus campos de atuação até o que essa ciência tem 
a ver com sua atividade acadêmico-profissional. Para remar no 
barco chamado ánthropos, escolhemos um porantin (remo em tupi-
guarani) porque lembra os povos originários de cujo quem vamos 
aprender muito sobre nossas identidades. Boas remadas, 
amigo/a. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Seção 1 - A ciência do ánthropos: direito de todos os 
pesquisadores 
Você certamente já ouviu falar na palavra Antropologia. Está 
cada vez mais frequente na mídia, principalmente quando requer 
analistas de fenômenos culturais, fatos sociais e da natureza. 
É também sempre mais comum o pedido de laudos antropológicos 
profissionais exigidos para estudos de impacto ambiental, por 
 
7 
 
exemplo. De fato, todo estudioso pode elucidar e opinar sobre 
aspectos humanos de acordo com o seu campo de saber. 
Qualquer que seja o aspecto específico de análise sobre o 
humano ou em referência a ele, será denominado de 
antropológico; já vamos ver o porquê. Assim pode ocorrer com 
cada ciência quando trata do humano em seu objeto específico 
de estudo. 
Temos, por isso, uma antropologia filosófica, uma antropologia 
teológica, mas também uma antropologia jurídica, política, 
econômica, ecológica e outras. Qual o olhar de cada uma destas 
ciências sobre o humano? 
O mesmo pode-se perguntar também sobre o humano de uma cultura 
diferente da nossa. 
A propósito, já lhe perguntaram algum dia sobre a referência 
com o humano em seu campo de saber? E em relação ao humano de 
cultura diferente? 
Recentemente, um aluno de ciências contábeis foi auxiliar uma 
comunidade mbyá-guarani na atualização da personalidade 
jurídica criada na aldeia. 
Seguiram-se dois anos de troca de saberes. Neste período de 
visitação e observação,o acadêmico passou por vários 
estágios, até que descobriu naquele povo a existência de uma 
etno-matemática. 
Fez, então, a experiência de estranhamento
1
 de que falaremos ao 
longo deste percurso: questionou o porquê havia apenas 
 
1
 Segundo Laplantine (2005, p. 3 ) “estranhamento (depaysement) é a experiência de perplexidade provocada 
pelo encontro de culturas que são para nós as mais distantes e diferentes, e cujo encontro leva a uma 
modificação do olhar que temos sobre nós mesmos.” 
 
8 
 
aprendido a matemática greco-romana e arábica. Jamais soubera 
da existência de uma etno-matemática guarani. 
Não se conteve e discorreu em sua monografia sobre o “Contador 
pluralista: ensaio de contabilidade com os mbyá-guarani das 
aldeias Ka´akupé e kuri´y”. A banca lhe deu nota em guarani. 
Foi outra surpresa. Os docentes mostraram ao formando a 
importância de fortalecer este olhar antropológico-cultural de 
pesquisador pluralista de ciências contábeis. 
Para consultar a monografia mencionada, visite o blog 
Revitalizando Culturas, indicado no Saiba Mais do espaço 
virtual nesta Unidade de Aprendizagem. 
 
Filologia de ánthropos e homo. 
Você pode perguntar o porquê de tantas antropologias. A 
resposta é simples: porque a própria palavra antropologia em 
sua raiz tem esta referência - o ser humano. Você pode 
aprofundar a importância deste foco, desta referência, 
buscando apoio da filologia. 
A filologia é um termo do grego antigo Φιλολογία (filologia) 
composto pelo adjetivo φιλος (filos), amigo, e o verbo λογεϊν 
(loguein), λογος (logos), estudar, instruir-se, conhecer, 
palavra, discurso. É a ciência que estuda o sentido das 
palavras, de uma língua ou de sua literatura com amor, 
profundidade e radicalidade, pelas raízes da etimologia. 
Alguns filósofos, como Leonardo Boff (2001), nos advertem que 
palavras como antropologia “estão grávidas de significados 
existenciais porque reúnem infindáveis experiências, positivas 
e negativas, de busca, de encontro, de certeza, de 
perplexidade e de mergulho no ser. Com os dados da filologia, 
 
9 
 
podemos desentranhar sentidos das palavras com suas riquezas 
escondidas.” (BOFF, 2001, p. 83) 
Rememos com o porantin numa viagem filológica por dentro desta 
primeira palavra-chave de nossa ciência: a Antropologia 
Cultural. Antropologia vem do grego Άντθρωπος (ánthropos), que 
significa humano. Deste termo podemos deduzir o que os antigos 
pensavam de si mesmos, dos seres humanos. 
De fato, Άντθρωπος (ánthropos) é composto pelo prefixo Άν, que 
quer dizer todo aquele que (com ideia de desejo, 
possibilidade, que afirma ou interroga de maneira suave). A 
outra parte vem do verbo Τρέφω (tréfo), que significa crescer. 
Portanto, os antigos davam o nome de ánthropos ao ser humano 
como um ser que cresce, que desenvolve, é bem nutrido, 
educado, tem força e está disposto. 
É o oposto de átrophos (lê-se átrofos), ser que está impedido 
de crescer, que definha, que tem atrofia. Assim, ánthropos é o 
humano enquanto ser que inclusive enfrenta sua átrophos, a 
atrofia. 
É útil observar, num estudo comparado, que esse mesmo sentido 
pode-se encontrar também entre os sábios latinos da 
Antiguidade de onde herdamos a palavra humano, em português. 
Em latim homo, do substantivo húmus, significa terra fértil. 
Assim, húmus=homo=humano; portanto, os humanos nascem para ser 
como o húmus, terra fértil. 
Como se vê pela filologia, os sentidos de homo e de ánthropos se 
encontram, embora elaborados em lugares e culturas diferentes. Em 
ambas as culturas, o humano é visto como ser que cresce, ser bem 
nutrido, ser que previne e supera atrofias. 
E mais, ambos apontam para uma visão de vida holística (do 
grego Ηολος, holos = ligado no todo, no inteiro), ou seja, do 
 
10 
 
ser humano como ser inserido na totalidade e ser que mantém 
sua inteireza. 
Outros termos corriqueiros de nosso cotidiano derivados de 
ánthropos mostram a mesma visão coerente porque denotam olhar 
positivo sobre o humano: Άντθρωπίνη φυσίς (anthropine fisis) 
quer dizer, gênero humano, natureza humana; e αντθρωπικός 
(anthropikós)que é o nosso adjetivo humano; e φιλανθρωπος 
(filanthropos) significa quem age com humanidade, com 
benevolência. 
Confirma-se, assim, a intenção clara de significado que os 
sábios antigos guardavam somente para ánthropos. (PEREIRA, 
1990, p. 51). 
Tem razão Michel Foucault, em “As palavras e as coisas” (1999) 
quando diz que a filologia é o estudo do sentido que 
elaboramos em nossos discursos, bem como do sistema que 
constitui sua coerência. 
Diante desta herança de visão dos antigos sábios sobre nosso 
ser antropológico, ou seja, sobre nosso ser humano, você já 
pode entender o porquê de tantas antropologias. 
Em resumo, poderíamos dizer, então, que Antropologia vem do 
grego ánthropos + logos (discurso, estudo, ciência) = ciência 
do humano. É como se toda ciência tomasse o humano como 
referência primordial. 
I Vale, então, a pergunta: Qual cientista, pesquisador, 
estudioso, profissional em algum momento de seu estudo, mesmo 
o mais específico, vai prescindir, vai excluir sua pesquisa 
 
 
 
 
11 
 
deste foco antropológico sem que colha graves prejuízos para 
as buscas humanas? 
 
Mas há um alerta dos estudiosos para que a relação com esta ciência 
não se reduza apenas a um modo de fazer, pois, trata-se de construir 
um modo de ser. Na verdade, há uma grande distinção prévia a fazer: 
Há antropologias e Antropologia. 
Aquelas acentuam uma reflexão sobre o humano; a nossa, uma 
observação científica do ánthropos. 
 
Fazer antropologia é direito de todo pesquisador a um olhar 
antropológico-cultural de dualidade: holístico e diverso. 
 
Buscar esta compreensão passa a ser o nosso fio condutor das seções 
desta primeira unidade. 
Começamos pelo esclarecimento do etnopsiquiatra francês François 
Laplantine (2005): 
 
A obra de Laplantine “Aprender antropologia”, 
excelente livro escrito no nordeste brasileiro (2005), 
estará presente conosco muitas vezes nessa viagem. 
 
Laplantine (2005, p.10) diz que a “antropologia é um certo olhar, um 
certo enfoque sobre o humano”. E qual é este enfoque? É assumir o 
humano como um objeto-sujeito dual. Assim, a nossa ciência: 
a) Estuda o humano inteiro, holístico, na sua totalidade, em sua 
unidade; 
b) Estuda o humano em sua diversidade - em todas as 
sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus estados e 
em todas as épocas. 
 
12 
 
Todo pesquisador que se aproximar do ánthropos, levando em 
conta essa dualidade de olhar estará, aí sim, exercitando a 
reflexão antropológica em seu campo de saber e poderá 
trabalhar com observação científica em sua área de atuação. 
Desta forma, você poderá estar se inscrevendo numa lista de 
audaciosos pioneiros que tiveram o humano como referência 
desde o pensar mitológico, artístico, teológico, filosófico 
que a cada época vão mostrar que a unidade no trabalho de 
pesquisa sobre a diferença, sobre a diversidade no humano é 
mais que urgente. 
No entanto, os autores, especialmente em seus dicionários 
específicos sobre Antropologia, são unânimes em dizer que é a 
Antropologia que marca o momento de estudo científico sobre o 
ser humano. Desde 1500, os estudiosos ficaram por longo tempo 
estudando cientificamente a natureza, especialmente a partir 
do empirismo inglês. 
Nunca, porém, se puseram a fazer um estudo científico no que 
dizia respeito ao ser humano em si. Luft (1984), Outhwaite-
Bottomore (1990) e, FrançoisLaplantine (2005) insistem no 
conceito de Antropologia descrito acima como um certo olhar, 
um certo enfoque sobre o humano, mais do que apenas o estudo 
de tudo que compõe uma sociedade. 
A descoberta moderna de uma enorme diversidade gera um 
contexto cada vez mais exigente de respostas por parte dos 
cientistas. Não bastam apenas as reflexões histórico-
filosóficas de Hegel, por exemplo. Para os antropólogos é 
preciso chegar à observação do humano. Nasce, assim, como já 
repetimos, uma ciência específica que irá tratar só desse 
objeto-sujeito chamado ánthropos. Ela aparece, assim, como 
Antropologia, simplesmente, sem adjetivos. 
 
13 
 
Portanto, estude o que estiver estudando, você poderá se 
beneficiar de tudo o que agora vamos aprofundar sobre a 
Antropologia. 
Na verdade, os humanos nunca deixaram de interrogar-se sobre 
si mesmos e suas sociedades. Não só na Roma e Grécia antigas, 
mas em todas as sociedades existiram humanos estudiosos que 
observavam as diferenças e semelhanças entre estas. Isto se 
deu entre humanos na Ásia como na África, na América, na 
Oceania ou na Europa. 
Houve até alguns teóricos que forjaram modelos elaborados "em 
casa" (apud LAPLANTINE, 2005, p.4), afirma o grande estudioso 
da antropologia Lévi-Strauss, falecido em 2010 aos cem anos e 
grande estimulador dos estudos antropológicos no Brasil. Neste 
livro didático, vamos dialogar com alguns destes pensadores 
sobre seu encontro com a diversidade humana. 
François Laplantine (2005), aluno e admirador de Claude Lévi-
Strauss, pondera que a Antropologia como ciência assume o humano 
como aquele objeto dual, lembrado acima, ou seja, (a) o estudo do 
homem inteiro, holístico, na sua totalidade e (b) o estudo do homem 
em sua diversidade - em todas as sociedades, sob todas as latitudes, 
em todos os seus estados e em todas as épocas. 
Assim, a abordagem antropológica é interativa e integrativa 
porque considerar as múltiplas dimensões do ser humano em 
sociedade. Certamente, o acúmulo dos dados colhidos a partir 
de observações diretas, bem como o aperfeiçoamento das 
técnicas de investigação, conduzem necessariamente a uma 
especialização de cada área de saber sobre o humano. 
No entanto, uma das vocações maiores da abordagem antropológica vai 
consistir em não parcelar o humano, mas, ao contrário, tentar 
relacionar campos de investigação frequentemente separados. Neste 
sentido, Laplantine (2005, p. 6) e outros acentuam o fato que 
 
14 
 
a antropologia “tem um papel particularmente importante a 
exercer para que não sejam rompidas as relações entre as 
pesquisas das ciências da vida e das ciências humanas.” E 
pode-se acrescentar o mesmo para as ciências exatas, sociais e 
todos os demais campos de saberes. 
 
Campos de saberes essenciais da ciência da Antropologia 
 
Sem perder essa visão de contexto amplo, pode-se eleger cinco 
áreas principais da Antropologia. Nenhum pesquisador pode, 
evidentemente, dominar todas elas hoje em dia, mas ele deve 
estar sensibilizado a estudá-las quando trabalha de forma 
profissional com algumas delas, dado que essas cinco áreas 
mantêm relações estreitas entre si. São elas: biológica, pré-
histórica, linguística, psicológica, social e cultural (ou 
etnologia). 
Antropologia Biológica ou Física 
A Antropologia biológica ou física estuda as variações dos 
caracteres biológicos do ser humano no espaço e no tempo; 
discute as relações entre o patrimônio genético e o meio 
(geográfico, ecológico, social), analisando as 
particularidades morfo-fisiológicas ligadas a um meio ambiente 
e sua evolução. 
A da Antropologia Biológica pergunta o que a cultura deve a 
este patrimônio genético, mas também, o que esse patrimônio 
(que se transforma) deve à cultura. O antropólogo biologista 
ou físico levará em consideração os fatores culturais que 
influenciam o crescimento e a maturação do indivíduo. 
Laplantine (2005, p. 6), nosso antropólogo e etnopsiquiatra 
companheiro de viagem, dá esse exemplo para explicar o 
 
15 
 
trabalho do antropólogo biologista: “Ele se perguntará, por 
exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor da criança 
africana é mais adiantado do que o da criança européia?” 
O antropólogo biologista conta ciências auxiliares como a 
Antropometria, que usa técnicas de medição de ossos, formas de 
crânios, mensurações do esqueleto, tamanho, peso, cor da pele. 
Pode usar da Somatologia, que estuda as diferenças físicas 
individuais e sexuais; sem esquecer a grande companheira do 
profissional de saúde: a Anatomia Comparada de etnias e sexos. 
Um salto qualitativo nesta área é o estudo da genética das 
populações. Por ela, desde os anos 50, podemos discernir o que 
diz respeito ao inato e ao adquirido, sendo que um e outro 
estão interagindo continuamente. Por ela também chegamos ao 
mapeamento do genoma anunciado em 10 de julho de 1999. 
E aqui vale lembrar que duas grandes áreas vão dialogar em 
busca da justa medida científica: a antropologia biológica e a 
antropologia sócio-antropológica, como podemos constatar mais 
adiante no estudo de suas respectivas escolas. 
 
Antropologia Pré-histórica ou Arqueológica 
A Antropologia Pré-histórica ou Arqueológica estuda as 
condições de existência de grupos humanos desaparecidos e, com 
o apoio da Paleontologia e outras ciências auxiliares, como se 
deram a origem e os processos da evolução biológica até que 
nos tornássemos a forma de humanidade que somos hoje. 
Através dos vestígios materiais enterrados no solo, como as 
ossadas, estuda quaisquer marcas da atividade humana, como as 
inscrições rupestres, vegetais específicos nas florestas, e a 
Arqueoastronomia – muito forte entre os povos originários 
ameríndios. 
 
16 
 
Seu projeto, que se liga à Arqueologia, visa reconstituir as 
sociedades desaparecidas, tanto em suas técnicas e 
organizações sociais, quanto em suas produções culturais e 
artísticas. Assim, o historiador é aqui antes de tudo um 
historiógrafo, isto é, um pesquisador que trabalha a partir do 
acesso direto aos textos, testemunhais e objetos. O 
especialista em pré-história recolhe, pessoalmente, objetos no 
solo. Muito se espera de aprofundamento dos pesquisadores 
neste campo no chão brasileiro e em sua diversidade étnica. 
 
 
 
 
Figuras 1.1 e 1.2: Na Mostra Raízes Mbyá do Grupo de Pesquisa 
Unisul/Revitalizando Culturas, a exposição de urna ritual 
Mbyá-guarani, inédita, encontrada na Enseada de Brito, em 
Palhoça (SC), num dos morros sagrados do povo guarani. 
Trabalho arqueológico do GRUPEP/Unisul (Grupo de Pesquisas 
Arqueológicas). Fonte: Acervo do Autor(2008). 
 
17 
 
 
Antropologia Linguística 
A Antropologia linguística tem se tornado um dos campos mais 
férteis da Antropologia Cultural. A linguagem é, com toda 
evidência, parte essencial do patrimônio cultural de uma 
sociedade. As pessoas se expressam e expressam seus valores, 
suas preocupações, seus pensamentos pela linguagem. Apenas o 
estudo da língua permite compreender: 
Como os homens pensam o que vivem e o que sentem, isto é, suas 
categorias psicoafetivas e psicocognitivas, objeto da 
etnolinguística; 
Como eles expressam o universo e o social através do estudo da 
literatura, não apenas escrita, mas também de tradição oral; 
Como, finalmente, eles interpretam seus próprios saber e 
saber-fazer, que é a área das chamadas etnociências. 
 
 
Figuras 1.3: Adolescentes Mbyá-guarani contatam o sistema 
Braille de leitura e escrita tátil da cultura das pessoas 
cegas, no centro Unisul/Hipermídia. Fonte: acervo doAutor 
(2008). 
 
A Antropologia Linguística vai muito além dos estudos dos 
dialetos (Dialetologia). Ela estuda hoje as múltiplas áreas 
 
18 
 
geradas pelas novas tecnologias de comunicação, pelos estudos 
das ciências da linguagem, da midiologia, da cultura do 
audiovisual e do ciberespaço. 
 
Neste contexto é urgente refletir sobre o drama humano da 
atualidade apontado pela UNESCO que é o rápido desaparecimento 
de línguas nas próximas décadas. O Brasil é o terceiro país do 
mundo com o maior número de línguas ameaçadas de extinção. 
Neste sentido, pesquisemos no sítio da UNESCO o movimento SOS 
Línguas, o Atlas Interativo e de línguas em perigo no mundo. 
 
 
“As línguas maternas têm um papel fundamental em nossas vidas, 
pois são o meio pelo qual verbalizamos o mundo pela primeira 
vez, sendo as lentes pelas quais começamos a entendê-lo. O Dia 
Internacional da Língua Materna é o momento de reconhecer a 
importância destas e de nos mobilizarmos pelo plurilinguismo e 
pela diversidade linguística. ................................ 
 
As línguas maternas e a diversidade linguística são elementos 
fundamentais para a identidade das pessoas. Como fontes de 
criatividade e meios para a expressão cultural, elas também 
são importantes para a saúde das sociedades, além de serem 
fatores de desenvolvimento e crescimento. 
Mensagem da diretora-geral da UNESCO por ocasião do Dia Internacional da 
Língua Materna (2007): “Todas as línguas têm vínculos com suas origens e seus 
empréstimos, mas cada língua é uma fonte única de significado para entender, 
escrever e expressar a realidade”. (Atlas Interativo de Línguas em Perigo no Mundo. 
www.unesco.org) 
 
19 
 
Hoje conhecemos a importância do ensino na língua materna para 
obtermos bons resultados de aprendizagem. A instrução em 
língua materna é uma poderosa forma de lutar contra a 
discriminação e para que o conhecimento alcance as populações 
marginalizadas. Como verdadeiros mananciais de conhecimento, 
as línguas também são o ponto de partida básico na busca por 
maior sustentabilidade no desenvolvimento e para criar 
relações mais harmônicas com o meio ambiente e com as 
mudanças. 
O plurilinguismo enseja oportunidades maravilhosas para o 
diálogo, que é tão necessário para o entendimento e a 
cooperação. As línguas maternas convivem em harmonia com a 
aquisição de outras línguas. Um espaço linguístico plural 
permite compartilhar a riqueza da diversidade, acelerando o 
intercâmbio de conhecimentos e experiências. Este foi um dos 
principais temas de 2010, nomeado ‘Ano Internacional para 
Aproximação das Culturas’ pela UNESCO. A partir da língua 
materna, o aprendizado de outros idiomas deve ser uma das 
altas prioridades da educação no século XXI. 
Ao mesmo tempo, podemos redobrar nossos esforços para apoiar o 
desenvolvimento equilibrado da tradução como um canal para 
trazer a todos a grande diversidade de conhecimentos e 
experiências que surge em todo o mundo. 
E o tema do Dia Internacional da Língua Materna de 2011 diz 
respeito ao uso das tecnologias da informação e da comunicação 
(TICs) para proteger e promover as línguas e a diversidade 
linguística. 
As línguas oferecem o suporte lógico para o uso das 
tecnologias da informação e da comunicação que, por sua vez, 
representam uma nova fronteira para promover a diversidade 
linguística. A UNESCO tem o compromisso de promover o 
 
20 
 
plurilinguismo na internet. Essas metas norteiam o trabalho da 
UNESCO com a Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e 
Números. 
As tecnologias inovadoras também oferecem novas formas de 
acompanhar, analisar e aprender idiomas. O sucesso da edição 
on-line do Atlas da UNESCO de Línguas em Perigo no Mundo 
mostra o poder da internet para mapear a situação das línguas 
e do plurilinguismo, além de sensibilizar o público sobre esta 
questão. 
As tecnologias da informação e da comunicação podem ser 
particularmente importantes na promoção das línguas maternas. 
Nós devemos aproveitar o poder do progresso para proteger as 
diferentes visões do mundo e promover todas as fontes de 
conhecimento e formas de expressão. São esses os fios que 
tecem a trama da história da humanidade. A inovação, a 
flexibilidade e a interação social, que estão no cerne das 
novas tecnologias de informação e comunicação, podem apoiar 
essas metas.” 
 
Antropologia Psicológica 
Outro campo cada vez mais reconhecido entre as ciências 
auxiliares da Antropologia é a Antropologia Psicológica. Ela 
consiste no estudo dos processos e do funcionamento do 
psiquismo humano. De fato, o antropólogo é, em primeira 
instância, confrontado não a conjuntos sociais e, sim, a 
indivíduos. 
Ou seja, somente através dos comportamentos - conscientes e 
inconscientes - dos seres humanos particulares podemos 
apreender essa totalidade sem a qual também não se faz 
antropologia. É a razão pela qual a dimensão psicológica (e 
também psicopatológica) é absolutamente indissociável do campo 
 
21 
 
focado no ánthropos, embora algumas escolas ainda não a 
considerem como constitutiva de nossa ciência, lembra 
Laplantine (2005). 
 
Nessas remadas com o nosso porantin pelos rios da Antropologia 
sem adjetivo já podemos observar com clareza que o seu 
primeiro objeto é o foco no estudo do humano em sua inteireza 
holística e totalidade – daí atingir seus aspectos biológico, 
histórico, sociolinguístico e psicológico. 
 
Isto já mostra a vocação e a responsabilidade 
interdisciplinar, indispensáveis a quem quer fazer parte do 
projeto da Antropologia. Quem pesquisa pelo viés da ciência 
antropológica deverá construir um certo olhar de mediador/a. 
O pesquisador deverá também fortalecer as relações de todas as 
ciências com o foco humano para que o ánthropos possa, de 
fato, emergir em nosso ethos de cidadãos que podem relacionar-
se de forma adequada com o Outro e o mundo numa perspectiva 
realmente biocrática, isto é, governados pelo inalienável 
valor da vida, como propunha o pedagogo Paulo Freire (1997). 
 
Antropologia Cultural 
Em época de tantas fragmentações acadêmicas, este olhar 
antropológico interativo e integral pode fazer diferença para que 
sejam fortalecidas as relações holísticas entre todas as ciências. 
Guardamos para a segunda unidade o aprofundamento sobre o segundo 
objeto da Antropologia, isto é, como ciência que estuda o ánthropos 
enquanto ser constituído pela diversidade. A diversidade é o 
cultural do humano, objeto específico da Antropologia Cultural, 
nosso foco especial nesta Unidade de Aprendizagem. 
 
22 
 
Laplantine (2005) assume para si a conclusão de seu mestre 
Lévi-Strauss quando afirma que apenas a nossa a Antropologia 
Cultural permite notar, com a maior proximidade possível, “que 
essas formas de comportamento e de vida em sociedade que 
tomávamos todos espontaneamente por inatas - nossas maneiras 
de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar os 
eventos de nossa existência, são, na realidade, o produto de 
escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos têm 
em comum é sua capacidade para se diferenciar uns dos outros, 
para elaborar costumes, línguas, modos de conhecimento, 
instituições, jogos profundamente diversos; pois se há algo 
natural nessa espécie particular que é a espécie humana, é sua 
aptidão à variação cultural.” (LÉVI-STRAUSS apud LAPLANTINE, 
2005, p. 9). 
 
No entanto, a percepção do cultural no humano e a própria 
descoberta do cultural como constitutivo específico do humano 
é filha de um longo processo que, como vamos perceber, aindaestá em maturação. 
 
Na verdade, esse aspecto processual é próprio do ánthropos enquanto 
ser misterioso, ou seja, que se mostra e se esconde ao mesmo tempo, 
diria a Antropologia Filosófica. Este esconde-esconde se parece a 
uma espécie de brincadeira que, ao mesmo tempo, é deslumbrante 
(fascinans) e/ou assustador (tremens). Por isso, vamos remar agora 
nas águas desse processo histórico. 
 
Seção 2 - Busca histórica antiga: da Antiguidade à Idade 
Moderna 
O estudo desse processo de construção do olhar antropológico 
nos remete à Antiguidade até a Idade Moderna com ressonâncias 
 
23 
 
em nossa contemporaneidade. Parece um percurso longo, mas não 
se preocupe, teremos fôlego suficiente para remar com nosso 
porantim pelas águas dos milênios. 
Foi, sobretudo, em vários processos de mundialidade ocorridos 
na história – em épocas de visitações, invasões e 
colonialismos - que os povos mostraram suas formas de relação 
com o diferente cultural. 
Neste encontro com a alteridade, isto é, com o Outro e seu 
jeito diferente de ser, pensar, saber e fazer ou, como dizem 
os antropólogos, com o seu ethos cultural, o humano faz a 
experiência do estranhamento. 
 
Caos fértil na mundialidade entre os povos antigos: 
os gregos, o método antropológico e as relações com o 
diferente cultural 
 
É preciso ter claro, antes de tudo, que cada povo constrói seu 
ethos cultural. Azevedo (1986) explica que ethos cultural é o 
modo particular de viver e de habitar eticamente o mundo que 
uma comunidade histórica tem, enquanto tal, em sua história. 
Podemos lembrar como exemplo de uma dessas construções, o 
ethos grego fruto da vivência da mundialidade em seus 
primórdios. Essa mundialidade ocorre na Grécia após o período 
da civilização micênica (séc. XII-VII aC). Foram cerca de 500 
anos de fusões étnicas e culturais, com enfraquecimento 
e desgaste natural dos antigos significados das 
tradições religiosas e das cosmogonias. É do silêncio 
desses cinco séculos obscuros que emerge uma nova 
organização social, a polis. 
A polis torna-se o sistema original de organização grega 
 
24 
 
que vai durar três séculos e onde vai surgir uma nova 
forma de racionalidade: a Filosofia. Assim, após todo 
este período de 500 anos de metamorfose, o exercício da 
crítica na polis vai fortalecendo, aos poucos, o pensar 
autônomo dos cidadãos. 
A experiência caótica grega de encontro com o diferente 
cultural é um exemplo clássico que mostra a capacidade humana 
de ordenar o caos. Foi nesta placenta, que o grego se gestou e 
formou um novo modo de pensar – o parto da Filosofia - e do 
conviver político grego – a criação da polis como espaço de 
discussão popular. 
Naquele período caótico de elaboração de 500 anos, diversos 
foram os pensadores e filósofos gregos que se preocuparam em 
estudar outros povos ou outras culturas, como a chinesa, a 
egípcia e a romana. Em seus estudos, procuravam apontar 
diferenças e semelhanças culturais, bem como aspectos de suas 
relações com estes povos. Os gregos deixaram muitos registros 
e relatos acerca desses encontros com culturas diferentes da 
sua. 
Heródoto, pai da História, e o método antropológico 
Nos textos gregos já estavam presentes elementos daquilo que 
dois mil anos mais tarde a Antropologia elegerá como seu 
objeto e seu método de atuação. Exemplo clássico é do grego 
Heródoto de Halicarnasso em sua obra Histórias. O conhecido 
“pai da História” descreveu minuciosamente as culturas com as 
quais seu povo se relacionava, sobretudo nas guerras. 
 
25 
 
 
Figura 1.4 – Heródoto - Fonte: Internet 
Nos logoi (pequenos relatos) de histórias, a narrativa é 
simples e cheia de curiosidades geográficas dos limites do 
mundo conhecido. Heródoto apresenta os fatos considerados 
relevantes, seleciona as tradições sobre os acontecimentos e 
interpreta-os à sua maneira pessoal. O autor/etnógrafo grego 
escreveu sob a influência da grande vitória dos gregos sobre 
os persas em -480/-479. 
A esse respeito, Immerwahr (1966) faz uma interessante nota 
explicando que, embora encarasse tudo como um confronto 
decisivo entre as civilizações do Oriente e do Ocidente 
(gregos da Europa contra persas da Ásia), o principal objetivo 
de Heródoto parece ter sido valorizar a ascensão do poderio 
oriental. Para nosso estudo de Antropologia cultural é 
interessante a observação dos autores resumidas por Immerwahr 
(1966) porque confirmam em Heródoto uma postura de descrição 
cujo fio da meada pode ser considerado de caráter etnográfico 
e etnológico. 
De fato, há cerca de 500 anos aC, Heródoto faz uma observação 
direta, presente no contexto observado para fundamentar seus 
registros de etnografia e da etnologia sobre o diferente 
cultural. Outro ponto dos analistas a seu favor é a opção de 
Heródoto em usar para suas descrições etnográficas e 
 
26 
 
interpretação etnológica o dialeto grego falado na Jônia, 
Mileto e em outras cidades da Ásia Menor, uma língua que não é 
a sua; uma língua dialetal também de vários filósofos pré-
socráticos. Essa opção de Heródoto, em seus escritos, ajudam a 
definir esse dialeto como padrão inicial da expressão 
literária grega. 
Aproveitemos, então, para entender sucintamente a explicação 
desse método antropológico considerado como seu pela futura 
ciência da Antropologia Cultural. Aqui o método é utilizado 
por intuição e bom senso crítico na obra de Heródoto. Quem nos 
explica sobre esse médoto na atualidade é o antropólogo Lévi-
Strauss (apud LAPLANTINE, 2005, p. 25) na sinopse que segue: 
O MÉTODO ANTROPOLÓGICO CULTURAL desdobra-se em três etapas: 
1 – ETNOGRAFIA 
 É a coleta direta, e o mais minuciosa possível, dos fenômenos 
que observamos, por uma impregnação duradoura e contínua e um 
processo que se realiza por aproximações sucessivas. Esses 
fenômenos podem ser recolhidos tomando-se notas, mas também 
por gravação sonora, fotográfica ou cinematográfica. 
 2 – ETNOLOGIA 
 Consiste no primeiro nível de abstração: através da análise 
dos materiais colhidos, fazer aparecer a lógica específica da 
sociedade que se estuda. 
 3 – ANTROPOLOGIA 
 Consiste num segundo nível de abstração: construir modelos 
que permitam comparar as sociedades entre si. (LÉVI-STRAUSS 
apud LAPLANTINE, 2005, p. 25). 
 
27 
 
Em seus escritos, os logoi, Heródoto conta a origem dos 
persas, descreve em minúcias a cultura do Egito e da Líbia - 
na etnografia do códex 2.1-3.16; escreve sobre diversos povos, 
como os cartagineses, amônios e etíopes no códex 3.17-26 e 
sobre os limites do mundo conhecido no códex 3.106-16. Logo 
depois vêm cinco anedotas nas quais traz as histórias sobre a 
planície da Ásia (códex 3.117) e a medicina utilizada pelo 
médico grego Demócedes (3.129-38). Nessas descrições sobre a 
alteridade, porém, não foge de si mesmo e de sua cultura. 
 
Figura 1.5 – O mapa mundi da diversidade em 450 aC, proposto 
por Heródoto. : Internet 
Heródoto e a Endoculturação 
 
Vale também salientar outra intuição qualitativa de Heródoto, 
que é sua relação denominada em antropologia de endoculturação. 
Isso significa que as relações culturais com o Outro diferente 
cultural e o mundo não podem descuidar e podem até anular a 
relação adequada de valorização e interação com a própria 
identidade cultural, pois a nossa diversidade conta no cenário 
 
28 
 
das demais diversidades humanas. Nosso ethos cultural pode se 
fortalecer com a endoculturação. 
A endoculturação é todo processo pelo qual uma pessoa é 
introduzida à sua cultura e nela interage, assim como o termo 
paralelo– socialização – enfatiza a relação da pessoa no seu 
contexto social. O cuidado com a importância deste processo é 
não só de cada pessoa mas sobretudo toda espécie de estudioso, 
como nós, denominada pelo filósofo italiano Antonio Gramsci, de 
pessoa intelectual orgânica. 
 
Heródoto, além da adoção do dialeto jônico, o mais falado de 
sua região, faz um exercício da endoculturação quando relata a 
forma de convivência entre as cidades (polis) gregas. Descreve 
as guerras entre elas (códex 5.28-6.42), a história de Esparta 
(códex 5.39-48), e a história de Atenas (códex 5.55-96), com a 
célebre Batalha de Maratona (códex 6.94-120), em que 
atenienses e plateenses derrotaram forças persas superiores em 
número. 
No caso do estímulo à endoculturação, Laplantine (2005) sugere 
que toda ação etno-profissional não se confunda com 
transformação das sociedades com quem interage. 
Uma dupla preocupação parece bem-vinda. Primeiro a de auxiliar 
uma determinada cultura na explicitação para ela mesma de sua 
própria diferença. Isto não significa organizar política, 
econômica e socialmente a evolução dessa diferença, que pode se 
tornar uma postura neo-colonialista quando se queima etapas da 
endoculturação. 
Segundo, importa ter bem claro a urgência de preservação dos 
patrimônios culturais locais ameaçados devido sobretudo às 
negações dos valores de certas culturas esquecidas. “A 
 
29 
 
etnografia e a etnologia tem lutado contra o tempo para que a 
transcrição dos arquivos orais e visuais possa ser realizada a 
tempo, enquanto os últimos depositários das tradições ainda 
estão vivos. Mais que isso, importa, sobretudo, a restituição, 
aos habitantes das diversas regiões nas quais trabalhamos, de 
seu próprio saber e saber-fazer.” (LAPLANTINE, 2005, p.7) 
Isso supõe uma ruptura com a concepção assimétrica da pesquisa, 
baseada na captação de informações. Não há, de fato, 
antropologia sem troca, isto é, sem itinerário no decorrer do 
qual as partes envolvidas chegam a se convencer reciprocamente 
da necessidade de não deixar se perder formas de pensamento e 
atividade únicas. 
E a Antropologia deve não fornecer respostas no lugar dos 
interessados, e sim formular questões com eles, elaborar com 
eles uma reflexão racional (e não mais mágica) sobre os 
problemas colocados pela crise mundial - que é também uma 
crise de identidade -, ou ainda sobre o pluralismo cultural, 
isto é, o encontro de línguas, técnicas e mentalidades das 
culturas, as mais diversas. 
A pesquisa antropológica não é como podemos notar, uma 
atividade de luxo, e nunca substitui os projetos e as decisões 
dos próprios atores sociais. Hoje, este tipo de pesquisa tem 
como vocação maior a de propor não soluções, mas instrumentos 
de investigação, que poderão ser utilizados em especial para 
reagir ao choque da transculturação, isto é, ao risco de um 
desenvolvimento conflituoso levando à violência negadora das 
particularidades econômicas, sociais e culturais de um povo. 
Você pode medir, então, como, neste tipo de postura difícil e 
delicada, tem importância aquela intuição de Heródoto em sua 
obra. Como você viu nas seções anteriores, o 
 
30 
 
etnógrafo/etnólogo grego parece o primeiro não só a registrar 
o passado, mas também a considerá-lo como um projeto de 
pesquisa sobre relações do humano consigo, com o outro e com o 
mundo. 
Vale ainda lembrar que Heródoto usa a palavra história também 
nesse contexto com o significado de pesquisa. Muitos eruditos 
modernos consideram-no pouco crítico e lhes parece excessiva a 
atenção que deu aos oráculos, aos sonhos e à religião para 
explicar eventos históricos. Sob o ponto de vista da 
Antropologia Cultural, porém, a contribuição parece relevante 
como um homem de seu tempo. Entre os gregos, você também pode 
contar com outros pesquisadores como a obra de Xenofonte, 
descrevendo culturas da Índia. 
Vale lembrar também que, embora não existisse como disciplina 
específica, o saber antropológico também interessou às escolas 
filosóficas ao longo dos séculos desde Aristóteles, quando, 
por exemplo, este filósofo descreve detalhes das Cidades-
estado gregas mostrando as peculiaridades constitutivas de seu 
ethos cultural. 
É preciso deixar claro, porém, que o foco da antropologia 
filosófica é a reflexão sobre o pensar de cada escola 
filosófica sobre o humano. 
 
Ampliando nossas remadas pela história podemos concordar com 
Laplantine (2005) quando lembra que, além dos gregos, a 
filosofia clássica - antológica com São Tomás, reflexiva com 
Descartes, criticista com Kant, histórica com Hegel -, mesmo 
sendo filosofias sociais, bem como as grandes religiões, nunca 
tiveram como objetivo o de pensar especificamente a diferença 
constitutiva do humano. 
 
31 
 
É o que atestam também os relatos de viagens realizadas na 
Europa desde a Idade Média, por viajantes vindos da Ásia. É 
oportuno perguntar sobre o trabalho antropológico dos 
etnógrafos das grandes navegações: é mais uma experiência de 
caos fértil na mundialidade moderna? 
 
Estranhamento e modernidade: entre o fascínio e a recusa do 
diferente 
Foi preciso um longo caminho de construção para chegar à 
antropologia científica enquanto um saber de vocação 
científica sobre a alteridade, sobre o diferente. Este saber 
se desenvolve sistematicamente a partir da cultura europeia. 
A cultura europeia elaborou um orientalismo, um americanismo, 
um africanismo, um oceanismo, enquanto que nunca ouviu-se 
falar de um europeismo, que se teria constituído como campo de 
saber teórico a partir da Ásia, da África ou da Oceania. 
 
A curiosidade europeia diante do diferente se torna percepção 
intensa e aguçada na medida do contato com diferentes povos na 
expansão marítima e comercial a partir do século XII e da era 
das grandes navegações empreendidas a partir do século XV. 
Desde esse momento histórico, a futura ciência da Antropologia 
passa a recolher contribuição dos relatos de viajantes 
europeus, missionários e comerciantes resultantes do contato 
com estes povos até então desconhecidos. 
Neste momento, você pode estar se perguntando: mas como tais 
viajantes podem ter contribuído na criação de nossa futura 
ciência da Antropologia? 
 
 
32 
 
Bem, a resposta é que, por meio de suas cartas, diários e 
outros documentos, assim como anteriormente Heródoto e outros 
na mundialidade grega, estes viajantes apontavam aspectos 
importantes, como as diferenças e os choques culturais que 
ocorriam a partir dos contatos estabelecidos. 
Você pode se valer, para a análise deste processo, do conceito 
atual da Antropologia já acenado acima como estranhamento, 
ligado às relações interculturais. 
 Laplantine (2005, p. 9ss) nos ajuda mais uma vez explicando o 
conceito de estranhamento como a experiência da distância em 
relação à nossa sociedade (mas uma distância que faz com que 
nos tornemos extremamente próximos daquilo que é longínquo). 
Assim, aquilo que tomávamos por natural em nós mesmos é, para 
nossa surpresa, tomado como cultural. O que nos parecia 
evidente, é agora infinitamente problemático. 
 Em toda verdadeira formação antropológica, é necessária esta 
sensação de estranhamento (depaysement); essa experiência de 
perplexidade provocada pelo encontro das culturas que são para 
nós as mais distantes, e cujo encontro vai levar a uma 
modificação do olhar que se tinha sobre si mesmo. 
 De fato, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à 
dos outros, mas míopes quando se trata da nossa. A elaboração 
dessa experiência no encontro com a alteridade, com o outro 
diferentecultural, leva-nos a entender como não natural 
aquilo que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que 
consideramos evidente: o menor dos nossos comportamentos - 
gestos, mímicas, posturas, reações afetivas. 
 Começamos, então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós 
mesmos, começamos a nos espiar. O conhecimento (antropológico) da 
 
33 
 
nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das 
outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos 
uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única. 
Assim, no estranhamento, damos mais uma vez razão ao que diz a 
escola personalista do filósofo Emmanuel Mounier, quando 
aprofunda o fato de que é o outro quem nos revela a nós 
mesmos. 
Por fim, antes de seguirmos remando agora com nosso porantim 
pelos oceanos da Idade Moderna, a partir da reflexão sobre o 
estranhamento, é oportuno adiantar a constatação do fato que a 
ciência antropológica vai se dando conta de que, de fato, 
aquilo que caracteriza a unidade do humano é sua aptidão 
praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de 
organização social extremamente diversos. 
 
Voltemos aos caminhos dos etnógrafos e etnólogos da era dos 
descobrimentos, denominada Modernidade devido à criação da 
tecnologia da imprensa e outras, como já vimos. Os relatos 
diante do estranho, de um lado, denotam encantamento e 
fascínio, fazendo crítica ao europeísmo como pretenso 
balizador dos povos; de outro, evidenciam uma atitude de 
recusa, conforme observam muitos estudiosos. 
Exemplo destas posições é do debate público entre o poderoso 
empresário e depois convertido em missionário, o exímio 
defensor dos índios Bartolomeu de Las Casas e o jurista Juan 
Guinés de Sepúlveda nos idos de 1550, em Valladolid, na 
Espanha do imperador Felipe II. 
Las Casas argumenta diante dos antigos companheiros de elite 
imperial espanhola: 
 
34 
 
“Àqueles que pretendem que os índios são bárbaros, 
responderemos que essas pessoas têm aldeias, vilas, cidades, 
reis, senhores e uma ordem política que, em alguns reinos, é 
melhor que a nossa (...). Esses povos igualavam ou até 
superavam muitas nações e uma ordem política que, em alguns 
reinos, é melhor que a nossa. 
(...) Esses povos igualavam ou até superavam muitas nações do 
mundo conhecidas como policiadas e razoáveis, e não eram 
inferiores a nenhuma delas. Assim, igualavam-se aos gregos e 
os romanos, e até, em alguns de seus costumes, os superavam. 
Eles superavam também a Inglaterra, a França e algumas de 
nossas regiões da Espanha (...). 
Pois a maioria dessas nações do mundo, senão todas, foram 
muito mais pervertidas, irracionais e depravadas, e deram 
mostra de muito menos prudência e sagacidade em sua forma de 
se governarem e exercerem as virtudes morais. Nós mesmos fomos 
piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a extensão 
de nossa Espanha, pela barbárie de nosso modo de vida e pela 
depravação de nossos costumes.” (in LAPLANTINE, 2005, p.38) 
 
Sepúlveda responde: 
“Aqueles que superam os outros em prudência e razão, mesmo que 
não sejam superiores em força física, aqueles são, por 
natureza, os senhores; ao contrário, porém, os preguiçosos, os 
espíritos lentos, mesmo que tenham as forças físicas para 
cumprir todas as tarefas necessárias, são por natureza servos. 
E é justo e útil que sejam servos, e vemos isso sancionado 
pela própria lei divina. 
Tais são as nações bárbaras e desumanas, estranhas à vida 
civil e aos costumes pacíficos. E será sempre justo e conforme 
o direito natural que essas pessoas estejam submetidas ao 
império de príncipes e de nações mais cultas e humanas, de 
modo que, graças à virtude destas e à prudência de suas leis, 
 
35 
 
eles abandonem a barbárie e se conformem a uma vida mais 
humana e ao culto da virtude. 
E se eles recusarem esse império, pode-se impô-lo pelo meio 
das armas e essa guerra será justa, bem como o declara o 
direito natural que os homens honrados, inteligentes, 
virtuosos e humanos dominem aqueles que não têm essas 
virtudes.” (in IDEM, p. 39) 
 
 Toda uma grande produção escrita levantou polêmicas como esta 
acerca dos indígenas. A contribuição dos missionários jesuítas 
na América - como Bartolomeu de Las Casas e Padre José de 
Acosta - ajudaram a desenvolver a denominada teoria do bom 
selvagem, que via os índios como detentores de uma natureza 
moral pura, modelo que devia ser assimilado pelos ocidentais. 
Esta teoria defendia a ideia de que a cultura mais próxima do 
estado natural serviria de remédio aos males da civilização. 
 Ora, as ideologias que estão por trás desse duplo discurso, 
mesmo que não se expressem mais em termos religiosos, 
permanecem vivas hoje, quatro séculos após a polêmica que 
opunha Las Casas e Sepúlveda. Esses estereótipos envenenam 
essa espécie de antropologia espontânea de que temos ainda 
hoje tanta dificuldade para nos livrarmos. O quadro abaixo 
resume os esforços destes etnógrafos. 
 
 Tempo de formação de uma literatura 
“etnográfica” sobre a diversidade cultural 
Período Séculos XV-XIX 
 
36 
 
Características 
Relatos de viagens (cartas, diários, 
relatórios etc.) feitos por navegadores, 
missionários, viajantes, comerciantes, 
exploradores, militares, administradores 
coloniais etc. 
Temas e 
conceitos 
Descrições das terras (fauna, flora, 
topografia) e dos povos “descobertos” 
(hábitos e crenças). Primeiros relatos sobre 
a alteridade entre a recusa ou fascinação 
diante do estranho. 
Alguns 
representantes 
e obras de 
referência 
Cristóvão Colombo (Diário de Bordo), 
Bartolomeu de Las Casas e Bernardino de 
Sahagun. 
Pero Vaz de Caminha (“Carta do descobrimento 
do Brasil” - séc. XVI). Hans Staden (“Duas 
viagens ao Brasil” - séc. XVI). José de 
Acosta. Jean de Léry (“Viagem à terra do 
Brasil” - séc. XVI). Jean Baptiste Debret 
(“Viagem pitoresca e histórica ao Brasil” - 
séc. XIX). 
Quadro 1.1- Séculos XV-XIX: formação de literatura 
etnográfica. Fonte: SILVA, Vagner Gonçalves (2007), adaptado 
pelo Autor (2008). 
 
Temos aí um legado de cuja etnografia levada para a Europa 
pelos colonizadores certamente poderemos dispor sempre mais. 
Afinal, quem nos impede de acrescentar novas descobertas 
através das nossas pesquisas acadêmicas locais em nosso papel 
 
37 
 
de antropólogos/as em nossos campos profissionais específicos? 
O que eles ainda têm em seus arquivos sobre a memória de 
nossas culturas originárias de que ainda não dispomos? 
 
Nós, pesquisadores do ciberespaço, 
e os etnógrafos das grandes navegações 
 
Diante do quadro sinóptico anterior, que adaptamos do 
antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, podemos pensar onde 
buscar documentos disponíveis pela navegação cibernética 
registrados desde a Era das Navegações Modernas sobre nossas 
ancestralidades ameríndias. 
Você, em seu campo de saber específico, pode usufruir de 
muitas outras informações sobre o ethos cultural dos trópicos 
nestas incursões. E mais. Não será válido continuar o trabalho 
destes etnógrafos, aproveitando o novo momento de mundialidade 
que estamos vivendo, criado pela navegação virtual, para 
inventariar nossas diferenças? 
É o exemplo de trabalho que deixou-nos o pesquisador de 
antropologia da UNISUL, doutor Luiz Alberto Marques. 
Quando faleceu prematuramente, em fevereiro de 2010, deixou-
nos, entre outras obras, o primeiro de seus cadernos: 
Antropologia Cultural aplicada à Pedagogia (2006). O 
pesquisador orienta alunos de vários campos de saberes para 
fazer etnografia, estimulando o protagonismode sujeitos 
locais. 
Confira com a leitura da obra de Souza Marques, L.A. Da pré-história guarani – aos 
primeiros tempos da ocupação portuguesa no litoral meridional do Brasil. Caderno 1 – 
Os povos guarani. Palhoça: E-e restrita in blog Revitalizando culturas/Unisul, 2011. 
 
38 
 
O pesquisador dedicou toda sua vida acadêmica ao duplo 
objetivo da ciência da Antropologia cultural: ocupar-se do 
humano enquanto ser de unidade na diversidade. Trabalhou na 
América Latina, Europa e África. 
“Eu gosto de ver meus alunos participando da Revolução do 
Olhar, em curso na humanidade”, repetia o antropólogo nos 
encontros do Núcleo Unisul/Revitalizando Culturas. A essa 
altura deste nosso estudo vale lembrar Proust quando diz que 
a verdadeira arte da descoberta não está em achar novas 
coisas, mas enxergá-las de maneira diferente. 
De fato, assumir o ánthropos em sua unidade de ser diverso, 
como você tem visto até aqui, é um desafio que tem atravessado 
milênios: o desafio de ver velhas e gastas realidades com 
novos olhares, sobretudo nesta questão sutil de ver a 
diferença como riqueza. 
A seguir, veja fotos deste pesquisador com o cacique José 
Benite na nova aldeia Kury-i, de Biguaçu (SC), acompanhando a 
visita etnográfica e participação de alunos na construção da 
Opy (Casa Sagrada de Terapias). Coincidência histórica: a 
visita foi em setembro de 2007, mês da Declaração Universal 
dos Direitos dos Povos Indígenas, após 30 anos de luta junto à 
ONU. 
 
Figura 1.6 e 1.7- Prof. Luiz Alberto com o cacique José Benite 
e com membros da nova aldeia Kury-i, de Biguaçu (SC). 
 
39 
 
Fonte: acervo do autor (2007). 
Segundo o professor Luiz Alberto, o horizonte ético do 
pesquisador antropológico é focar as vivências comunitárias em 
sua micro-história, promovendo a importância da riqueza local 
no contexto da mundialidade. A necessidade desta revolução do 
olhar, privilegiando o que aparentemente não conta, é descrita 
como testamento no final da apresentação de seu livro. Parece 
fazer a simbiose de seu ethos de pessoa e de 
pesquisador/educador: 
“Vivemos o início de um novo século, num tempo de 
instantaneidades, modelos de sociedade ainda em construção 
(...) pouco se sabe sobre a história da formação dos nossos 
cotidianos o que em antropologia denomina-se ‘traços 
culturais’ e com isso, por vezes, alimentamos estereótipos e 
preconceitos com relação aos ocupantes de determinados 
espaços. 
 
(...) Rever origens, perceber raízes, identificar modos de 
vida não representa um ´simples` exercício de olhar para 
outros tempos, mas sim de ir ao encontro dos primórdios de 
nossa identidade como grupo e como sociedade (...) e perceber 
que mesmo que as fisionomias e as paisagens mudaram, na 
essência ainda cultivamos costumes que fazem parte de uma 
espécie de legado cultural dos que aqui nos antecederam, a 
quem, mesmo imperceptivelmente, estamos ligados. 
 
A Antropologia Cultural, representada através dos Cadernos de 
Cultura, tem este propósito: buscar em tempos distintos mas 
num mesmo espaço de vida, modos de organização econômica, 
social, política e cultural propondo estabelecer pontes entre 
o presente vivenciado por todos nós e um passado, por vezes 
 
40 
 
nem tão remoto como possa aparecer, mas que depositários de 
alguns valores e atitudes, que, mesmo inconscientemente, os 
reproduzimos em fragmentos.” (MARQUES, 2010, 17 v. online). 
 
Seção 3 - Modernidade e etnocentrismos: consequências entre 
nós. 
 
Neste contexto de nossa viagem remando ainda com o porantin e 
observando as misturas das águas do ontem e do hoje, é 
indispensável a alguém que pesquisa sobre Antropologia 
Cultural deter-se um pouco mais na análise das relações 
ocorridas com o estranho ao mundo europeu. Daí fazermos uma 
digressão histórica que mostre as consequências atuais da 
presença da dupla ideologia do fascínio ou da recusa diante da 
alteridade ameríndia e africana. 
Essa digressão sobre a presença de comportamentos 
etnocêntricos pode ajudar-nos a explicar e avaliar a 
repercussão de relações crônicas de negação de identidades em 
nosso dia-a-dia atual, uma vez que os etnocentrismos 
favoreceram comportamentos de transculturação. 
 
Dupla ideologia do fascínio ou da recusa 
diante da alteridade ameríndia e africana. 
Mais uma vez, Azevedo (1986) nos ajuda a explicar essa forma 
de relação com o diferente cultural traduzida nos termos 
transculturação ou etnocentrismo. Diz o autor que é uma 
relação de possível ou efetiva transferência unilateral e, 
eventualmente, impositiva, de sentidos e valores, de símbolos, 
padrões e instituições, de uma cultura específica para outras 
culturas. 
 
41 
 
 
Transculturação, nesta acepção, conota, de algum modo, uma 
postura etnocêntrica e/ou dominante da cultura emissora, 
autossuficiente na consciência da própria superioridade 
cultural. A cultura que assim opera, afetando as outras 
profundamente, tende, contudo, a não se deixar influenciar por 
elas. (AZEVEDO, 1986, p. 413). 
 
As reações e explicações sobre o ánthropos (o humano) extra-
europeu aparecem pendulares entre o fascínio e a recusa. 
Exemplo desta postura de transculturação têm sido as relações 
caóticas ao longo da história de colonialismos de ontem e de 
hoje nos empreendimentos colonizadores dos europeus desde o 
Renascimento e a Modernidade. 
A colonização certamente não foi a única, mas, para a maioria 
dos estudiosos, foi a situação mais marcante no encontro dos 
europeus com os povos originários daqui e dos povos por eles 
trazidos como escravos do continente africano para o Brasil. 
Veja estes exemplos. 
Na obra “Pesquisas sobre os americanos ou relatos 
interessantes para servir à História da espécie humana”, 
publicada em 1774, Cornelius de Pauw propõe suas reflexões 
sobre os índios da América do Norte. 
Diz ele que os americanos têm "temperamento tão úmido quanto o 
ar e a terra onde vegetam" o que explica que eles não tenham 
nenhum desejo sexual. Em suma, são "infelizes que suportam 
todo o peso da vida agreste na escuridão das florestas; 
parecem mais animais do que vegetais". 
 
 
42 
 
 
Pauw chega à degradação moral e na quinta parte do livro, cuja 
primeira seção é intitulada “O gênio embrutecido dos 
americanos”, conclui: 
“A insensibilidade é neles um vício de sua constituição 
alterada; eles são de uma preguiça imperdoável, não inventam 
nada, não empreendem nada, e não estendem a esfera de sua 
concepção além do que vêem pusilânimes, covardes, irritados, 
sem nobreza de espírito, o desânimo e a falta absoluta daquilo 
que constitui o animal racional os tornam inúteis para si 
mesmos e para a sociedade. Enfim, os californianos vegetam 
mais do que vivem, e somos tentados a recusar-lhes uma alma.” 
(PAUW, 1974, apud LAPLANTINE, 2005, p. 43) 
 
Quanto à África, Hegel em sua obra Introdução à Filosofia da 
História (1830), se horroriza com o estado de natureza desses 
povos, que desacreditam em sua capacidade de fazer história e 
de ter consciência de si mesmos. Nesse escrito de Hegel, a 
América do Sul parece mais estúpida ainda do que a do Norte. A 
Ásia aparentemente não está muito melhor. Mas é a Africa, e, 
em especial, a África profunda do interior, onde a civilização 
nessa época ainda não penetrara, que representa para nosso 
importante filósofo a forma mais nitidamente inferior entre 
todas nessa infra-humanidade: 
"É o país do ouro, fechado sobre si mesmo, o país da infância, 
que, além do dia e da história consciente, está envolto na cor 
negra da noite". (HEGEL, 1830, p. 47)(...)Desta africanidade 
estagnante não há absolutamente nada a esperar. Ela ocupa 
rigorosamente em Hegel o lugar destinado à indianidade em 
Pauw. O negro nem mesmo se vê atribuir o estatuto de vegetal. 
 
43 
 
"Ele cai", escreve Hegel, "para o nível de uma coisa, de um 
objeto sem valor". (IDEM, p. 47). 
Visão transculturadora, etnocentrismos 
e etnocídios ameríndios 
Esta visão transculturadora e de etnocentrismos deixou marcas 
de etnocídios históricos e tem sido objeto de estudiosos, como 
Enrique Dussel (1986) e outros (GONÇALVES, 2010), como o 
genocídio no México, exposto no quadro 1.2 e cuja causa pode-
se observar nos retalhos extraídos do diário de bordo de 
Colombo; também ele, o comandante, entre a admiração religiosa 
e a violência. 
 
Observe o momento da admiração de Colombo, assim descrito por 
Granzotto (1984, p. 193): 
“No grande vale do paraíso, numa esplêndida praia, uma 
multidão de índios guiados pelo jovem cacique Guacanagaré com 
idade aproximada de 20 anos acolheu os espanhóis. Colombo 
escreve que eram todos lindos, ‘as criaturas mais belas dentre 
todas que vi antes’. E ao rei escreve: ‘Vossa Alteza ficaria 
maravilhada ao ver a solenidade do jovem cacique índio diante 
de todos aqueles que o honravam, ainda que estivessem todos 
nus. 
 
Colombo prestou-lhe as honras como a um chefe de estado. 
Ofereceu bebidas e alimentos de Castela; o cacique aceitou por 
condescendência. Depois, voltou-se para seguir andando com uma 
dignidade solene; Colombo prestou-lhe as honras navais 
ordenando os disparos previstos. O cacique mostrou-se contente 
com tudo, mas não se voltou; prosseguiu caminhando com os 
quatro índios representantes de seu povo. 
 
44 
 
Mais tarde, após o naufrágio da nave ‘Santa Maria’, no Natal 
de 1492, Colombo volta a escrever, dizendo que o mesmo cacique 
da tribo Guacanagaré ordenou aos seus homens a operação de 
socorro. “Via-se no seu rosto uma expressão de dor sincera. 
Trabalharam com tamanho esforço que antes que a noite chegasse 
a obra de recuperação dos bens da nave já tinha terminado; não 
perdemos nem mesmo uma agulha”. (IDEM, p. 194). 
Colombo define o modo de ser dos índios com uma citação de 
João 15,17: “amam o próximo como a si mesmos!” E mais. O jovem 
cacique ofereceu hospitalidade nas casas de sua gente, duas 
das quais foram liberadas para guardar o que restou do 
naufrágio. A solidariedade na desventura era um valor 
espiritual plantado no coração da cultura originária. 
Colombo descreve ainda: 
“Vossa Alteza pode crer que esta ilha e todas as outras lhe 
pertencem como a própria Castela. Aqui não precisa mais nada 
para dominá-los e dar-lhes ordens, às quais os índios 
prontamente obedecerão. Eu, com os homens que tenho a bordo, 
se desse apenas uma ordem poderia conquistar todas as ilhas 
sem encontrar resistência. Os índios são nômades, não tem 
armas nem espírito guerreiro, andam nus e indefesos. Portanto, 
estão prontos a ser comandados e obrigados a trabalhar.” 
(GRANZOTTO, 1984, p.195). 
 
E Bartolomeu de Las Casas, amigo devoto e biógrafo de Colombo, 
já lembrado acima, lamenta: 
“Colombo não deveria jamais escrever estas palavras, porque 
deste seu modo de pensar malvado em relação aos índios; foi 
que iniciou-se o tratamento de crueldade e violência que nós 
não mais conseguimos frear.” (IDEM, p.196) 
 
45 
 
 
Etnocídios ameríndios 
Seguiu-se um interminável genocídio ou etnocídio feito pelos 
conquistadores, como você pode conferir no quadro de Dussel 
(1986) sobre o genocídio no México. 
População e demografia por regiões em épocas diferentes no 
México: 
Regiões altas 1532 1568 1580 1595 1608 
I-Maciço 
Central 
77.999.307 1.707.758 1.233.032 770.649 
II-Vera Cruz 
Central 
171.9884 32.340 21.560 20.200 
IV-Oaxaca 
Misteca 
1.560.931 222.165 150.620 146.740 
VIII-
Michoacán 
1.038.668 188.398 161.299 96.913 
IX-
Guadalajara-
Zacatecas 
462.446 80.515 64.618 90.670 
Subtotal 11.233.336 2.231.176 1.631.129 1.125.172 852.244 
Regiões 
baixas 
1532 1568 1580 1595 1608 
II-
Panuco/Vallés 
1.532.860 74.087 42.370 45.690 
III-Alvarado 710.230 37.682 32.207 17.876 
 
46 
 
Coatzacoalcos 
V-Oaxacas-
Zapotecas 
681.372 68.076 56.076 37.119 
VI-Costa de 
Oaxaca 
862.687 63.545 43.885 33.729 
VII-Costas do 
México 
Mexhoacán-
Tlaxcala 
243.163 113.531 64.264 71.158 
X-Costa de 
Guadalajara 
614.760 61.476 21.336 41.484 
Subtotal 16.871.408 418.397 260.138 247.056 217.011 
Total 16.871.408 2.649.573 1.891.267 1.372.228 1.069.255 
Quadro 1.2 – Genocídios no México 
Fonte: COOK e BORAH, 1960, p.48. 
 
Dussel (1986, p.) comenta que estas cifras que poderiam 
admirar-nos, parecem reais, a partir dos documentos que 
tivemos condições de consultar e diante das queixas repetidas 
pela constante diminuição da população índia. E se fizesse a 
busca estatística do mesmo fenômeno de extermínio e genocídio 
na América do Norte, o horror é, sem sombra de dúvida, bem 
maior. 
Os atos praticados pela colonização desde 1500 aos 900 povos 
do Brasil são aceitos hoje também como genocídios: uma 
 
47 
 
extinção paulatina de cinco milhões aos 350 mil índios de 
cerca de 250 etnias sobreviventes hoje no chão brasileiro. 
De acordo com os números referidos pelo etnógrafo Francisco 
Dias Tano, os Bandeirantes, nas ofensivas entre 1636-1638 às 
vinte e cinco reduções indígenas dos Sete Povos das Missões, 
transformaram em escravos e/ou mataram trezentos mil índios. 
 
Podemos ainda juntar a essas informações a reflexão de 
Teodorov que inspiraram o filme Apocalyptico, de Mel Gibson. 
Iunskovski (2011), a seguir, faz ponderações a partir deste 
autor e de outros que nos ajudam na avaliação dos olhares 
construídos neste momento histórico diante do diferente 
cultural. 
 
Alteridade – a questão do outro 
Roberto Iunskoviski 
 
Um caso típico de encontro com o outro foi a conquista da 
América por parte dos europeus. Na figura de Cristóvão 
Colombo, podemos verificar várias características da visão que 
se tem do outro e do tipo de relacionamento e comportamentos 
derivados de tal visão. 
Uma primeira atitude de Colombo é pensar que os índios são 
seres completamente humanos, com os mesmos direitos que ele, e 
aí os considera não somente iguais, mas idênticos, e este 
comportamento desemboca no assimilacionismo, ou seja, na 
projeção de seus próprios valores sobre os outros. 
 
 
48 
 
Colombo foi gradativamente passando do assimilacionismo, que 
implica em uma igualdade de princípio, à ideologia 
escravagista e, portanto, à afirmação da inferioridade dos 
índios. Esta atitude parte da diferença, que é imediatamente 
traduzida em termos de superioridade e inferioridade: recusa a 
existência de uma substância humana realmente outra, que possa 
não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo. 
Estas duas figuras básicas da experiência da alteridade 
baseiam-se no egocentrismo, na identificação de seus próprios 
valores com os valores em geral, de seu eu com o universo; na 
convicção de que o mundo é um. O desejo de fazer com que os 
índios adotem os costumes dos espanhóis nunca vem acompanhado 
de justificativas; afirma Colombo, é algo lógico em si. 
A atitude de Colombo em relação a esta outra cultura é, na 
melhor das hipóteses, a de um colecionador de curiosidades, e 
nunca vem acompanhada de uma tentativa de compreender. Por 
exemplo, Colombo repara logo a nudez dos ameríndios; sinal, 
segundo ele, de inferioridade. Em sua opinião, são desprovidos 
de qualquer propriedadecultural: caracterizam-se, de certo 
modo, pela ausência de costumes, ritos, e religião. 
O não reconhecimento do direito dos índios à vontade própria 
implica que os considera, em suma, como objetos vivos. Assim, 
em seus impulsos de naturalista, sempre quer trazer à Espanha 
espécimes de todos os gêneros: árvores, pássaros, animais e 
“índios”; não lhe ocorre a ideia de pedir a opinião deles. 
Para ele, ser índio, e ainda por cima mulher, significa ser 
posto, automaticamente, no mesmo nível do gado. 
As duas posturas presentes em Colombo: ver o índio como “bom 
selvagem” ou como “cão imundo”, escravo em potencial, refletem 
a ideia comum da recusa em admitir que sejam sujeitos com os 
 
49 
 
mesmos direitos que ele, mas diferentes. “Colombo descobriu a 
América, mas não os americanos.” (Todorov, 1993, p. 47). 
Da parte dos índios, em vez de perceberem o fato como um 
encontro puramente humano, apesar de inédito – a chegada de 
homens ávidos de ouro e poder –integram-nos numa rede de 
relações naturais, sociais e sobrenaturais, onde o 
acontecimento perde sua singularidade, tornando-os, de certo 
modo, domesticados, absorvidos numa ordem de crenças pré-
existentes, previstas no passado. As profecias (ideia de que 
os espanhóis eram deuses) exerceram efeito paralisante sobre 
os índios, que têm conhecimento dela e diminuem sua 
resistência. “Parece razoável pensar que um acontecimento 
dessa importância (como a descoberta da América) deve ser 
mencionado nas Santas Escrituras”. 
A conquista foi possível, portanto, por causa da incapacidade 
dos índios em perceber a identidade humana dos outros, isto é, 
admiti-los ao mesmo tempo, como iguais e como diferentes. 
Outro exemplo encontramos no conquistador Cortez, que fica em 
êxtase diante das produções astecas, mas não reconhece seus 
autores como individualidades humanas equiparáveis a ele. O 
mesmo ocorreu com os europeus do século XX e a arte africana. 
Numa obra publicada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, 
William Rubin e outros estudiosos fizeram um revelador cotejo 
de imagens. Página a página, documentam a dívida da arte que 
chamamos arte com arte dos povos primitivos, que é fonte de 
inspiração e de plágio. A obra de Picasso, que deu origem ao 
cubismo – Lês demoiselles d´Avingó, contém um dos numerosos 
exemplos. O rosto mais célebre do quadro, o que mais agride a 
simetria tradicional, é a reprodução exata de uma máscara do 
Congo exposta no Museu Real da África Central, na Bélgica, que 
representa um rosto deformado pela sífilis. 
 
50 
 
E A dívida dos países conquistadores junto aos outros, 
conquistados, não está apenas relacionada à usurpação de bens 
materiais, mas especialmente à escravidão e morte de milhões 
de pessoas, de civilizações inteiras. 
 
Lembremos que em 1500 a população do globo é estimada em 400 
milhões, dos quais 80 milhões habitavam as Américas. Em meados 
do século XVI, desses 80 milhões, restavam 10 m. Ou, se nos 
restringirmos ao México: às vésperas da conquista, sua 
população é de aproximadamente 25 milhões; em 1600, é de 1 
milhão. Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com 
precisão a um caso, então é esse. E este genocídio teve como 
causas: assassinatos, maus tratos, doenças/epidemias, 
atrocidades de toda ordem. 
José Roberto Goldim, pensando sobre a alteridade, lembra que 
Emanuel Lévinas, como um dos mais importantes autores de 
referência na reflexão moral contemporânea, mistura a tradição 
grega e a judaica. Uma de suas ideias básicas é a da 
alteridade, isto é, colocar o outro no lugar do ser. Nesta 
visão, o outro não é um objeto para um sujeito, ou seja, 
"... tudo começa pelo direito do outro e por sua obrigação 
infinita a este respeito. O humano está acima das forças 
humanas." (LÉVINAS, ano?, p.?). 
Na sua proposta, Lévinas, de certa forma, inverte as propostas 
da Lei de Ouro e do Imperativo Categórico. Ao invés do 
indivíduo agir frente ao outro como gostaria de ser tratado, 
como uma norma universal, é a descoberta do outro que impõe a 
conduta adequada. De acordo com Christiam Descamps (1991, 
p.85), "a relação com o Outro é a base de uma co-presença 
ética". Cada um é constantemente confrontado com um próximo. 
 
51 
 
Não sou Eu frente ao Próximo (Outro), mas sim os Outros 
continuamente frente a Mim. 
Esta proposta rompe com a perspectiva autonomista e individual 
para remetê-la a uma visão de rede social. Deixa de ter 
sentido a máxima "a minha liberdade termina quando começa a 
dos outros", sendo substituída pela proposta de que a minha 
liberdade é garantida pela liberdade dos outros. Ricardo Timm 
de Souza (2004, p. 162-174) escreveu que "a responsabilidade 
pelo outro que significa responsabilidade por si mesmo 
enquanto negação da neutralidade". 
Na alteridade, o que importa são as práticas, ou seja, a 
dimensão ética. No contato com o Outro (face-a-face), o ser 
humano não se experimenta, em primeiro lugar, como sendo dono 
do seu ser, mas sim estabelecendo uma abertura (através de 
relacionamentos, diálogos). Tendo direito, exige justiça. 
O outro como diferente não pode ser visto como oposto, mas 
como distinto, separado, pois possui identidade própria. 
É reconhecendo o outro como distinto, estabelecendo relações 
de diálogo, construtivas, de conversão, que consiste toda 
eticidade da existência. Ética é justiça; sendo assim é uma 
relação, pois ninguém pode ser justo sozinho. O outro é 
essencial na minha existência. Alteridade, portanto, quer 
dizer o relacionamento com o outro. 
Partimos da ideia de relação como o ordenamento de uma coisa 
em relação à outra, ou seja, uma realidade que para poder ser 
necessita de outra, senão não é. E também do conceito de 
relativo como o contrário de absoluto, isto é, sem o outro 
somos incompletos. 
Desta forma, o ser humano pode ser visto sob 3 perspectivas: 
 
52 
 
Indivíduo (indivisível, isolado, separado): próprio da 
mentalidade neoliberal, onde cada um é o único responsável por 
seu sucesso ou seu fracasso. Justifica a exclusão. 
Parte de um todo: visto como peça de uma máquina, próprio de 
mentalidades totalitaristas e massificadoras. Favorece a 
dominação. 
Ser de relações = assim é que se torna pessoa, que é um 
(unidade), mas ao mesmo tempo não pode ser sem os outros. 
Vamos nos constituindo quais seres humanos, como resultado de 
milhares de relações que estabelecemos todo dia. 
Algumas visões eurocêntricas sobre a África 
A visão que vimos nesta unidade em Hegel sobre a África 
possibilita-nos medir o contexto favorável à redução de 
mercadoria do ánthropos em milhares de povos africanos 
transportados no vergonhoso comércio da escravidão que gerou a 
imensa diáspora africana. 
Desde os primeiros anos de escola temos estudado algumas 
informações sobre este outro fato que exemplifica atitudes de 
relação etnocêntrica e transculturadora em nossa história 
recente de 450 anos, desde que chegou a primeira caravela de 
escravos africanos forçados a trabalharem aqui desde 1550. 
Gonçalves (1995, p. 76ss) mostra que o que horroriza mais 
nesta coisificação de pessoas é sua garantia legal consignada 
pela Lei do Padroado português. A cidadania do originário, do 
judeu, do negro e das pessoas com deficiência nas 
Constituições da Bahia de 1707, as primeiras do Brasil, é 
restrita. Eles não poderiam ter acesso às ordens sacras, por 
exemplo. No Título LIII, art. 224, as alíneas determinam o 
impedimento para as seguintes categorias de pessoas: 
 
53 
 
“Se tem parte de nação Hebrea, ou de outra raça qualquer 
infecta: ou de Negro ou Mulato. Se é captivo (sic),

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