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1 Antropologia: ciência do ánthropos Seção 1 - A ciência do ánthropos e seus campos de saberes: direito de todos os pesquisadores Seção 2 - Busca histórica antiga: da Antiguidade à Idade Moderna Seção 3 – Modernidade e etnocentrismo: consequências entre nós. Antropologia Cultural-1 Prof. Jaci Rocha Gonçalves, Dr. (Texto complementar - Unidade de Aprendizagem de Estudos Socioculturais) 2 Cara/o estudante, Criar este subsídio complementar ao de seu estudo de Antropologia Cultural (AC) está significando vivenciar sentimentos de desafio e esperança. Desafio porque a AC é filha da Antropologia, a jovem ciência de menos de duzentos anos de idade. Nela, pela primeira vez, o humano acrescenta à reflexão, o momento científico da observação de si mesmo; e como cultural, assume o desafio de observar a cultura como constitutivo do humano. Na verdade, somos a única espécie a criar mil respostas diferentes para necessidades iguais. Assim, para saciar a fome, mil cardápios e economias; para conviver, criamos inúmeros sistemas políticos, para manter a sanidade, mil medicinas; para habitar e nos locomover, inúmeras formas de engenharias e tecnologias. A lista não acaba: criamos ritos variados para o nascer e o morrer. Mas em tudo, as diversidades culturais geram uma teia de coerência endocultural e ecossistêmica. Nisto nos temos descoberto como iguais: na capacidade de sermos diversos. Aí mora a esperança de deixarmos de confundir diferença, que é riqueza, com desigualdade que é fonte de desgraça e de sofrimentos. E já que fomos criados todos iguais na diferença, reside aí uma esperança para a consciência de cidadania. A Antropologia Cultural, como veremos, empreendeu com entusiasmo a tarefa de pesquisar a cultura como fenômeno exclusivo humano e nos dar condições científicas de olhar o macro e o micro produzido pelo humano no seu real contexto de complexidade. Não há cultura ingênua, nem simplória. Quando remarmos pelos rios da cultura, vamos nos dar conta de que para a AC todo detalhe conta. E o que nos provoca estranhamento nos ajuda a crescer porque nos observamos estranhos também para a alteridade. E o que julgávamos como inato e único, o descobrimos como cultural e nosso modo-de- ser como um jeito a mais entre outros jeitos possíveis de ser e de viver. 3 Há, no entanto, uma preciosidade em cada jeito identitário: ele é irrepetível e tem fascínio próprio a ser oferecido – como pessoa e como povo. Você verá assim que a unidade e diversidade de cada cultura como objeto de análise da Antropologia Cultural, pode ser compreendida a partir de diversos enfoques. Inclusive este: as singularidades mostram este aspecto ontológico do humano que é ser diverso. Esse apoio didático tem ainda uma expectativa: de ser instrumento na sua formação como pessoa e profissional de olhar pluralista num momento ímpar de mundialidade. O distante é vizinho e no videogame nossos filhos brincam e interagem com meninos chineses, indianos, nas savanas africanas, indonésios, no nordeste, com um povo originário da Amazônia ou no Bexiga, no centro da megalópole paulista. Assusta-nos, porém, imaginar um mundo de mesmice. Mas há muito o que fazer. Como veremos ao final deste LD, a primeira vez que nos reunimos para objetivamente tratarmos da questão do direito à diversidade cultural e diagnosticarmos situações crônicas de doenças culturais como xenofobia, preconceitos e fundamentalismos foi próximo ao fatídico 11 de setembro de 2001. Quem soube do grande encontro de Durban, na África do Sul, quando discutimos em foro internacional sobre diversidade pela primeira vez? Mas os remédios para tais doenças vão aparecendo nos movimentos de economias solidárias, jurisprudência de sabedorias até então desconhecidas; formas de lidar com o ecossistema onde é surpreendente a sintonia fina de povos originários. Neste contexto é que deixamos esta expectativa da AC cumprir sua missão científica de não deixar romper a união entre as ciências da vida, as ciências exatas e as ciências humanas. Mais do que a procura de origens, nossa ciência foca a história da possibilidade de um conviver adequado com o diferente. Um exercício que 4 pode ajudar a humanidade a superar a belicosidade crônica das guerras e aprender a irenelogia, ciência da paz. Porque somos todos alunos do cultural. Somos todos professores também. Daí sua interação através dos trabalhos de troca cultural ser indispensável; já que estamos no Brasil de muitos brasis e no mundo virtual onde as fronteiras postiças da geopolítica cedem a cada dia o espaço para a troca de identidades culturais com a correspondente visão original de mundo O texto quer ser didático e, ao mesmo tempo, inacabado como a dinâmica cultural. Nisto contará com você. Por isto, convidamos você a iniciar essa leitura procurando estabelecer relações com suas experiências culturais trocando sabedorias neste imenso espaço virtual. Bom estudo! Professor Jaci Rocha Gonçalves, Dr. 5 A Antropologia: ciência do ánthropos Seção 1 - A ciência do ánthropos e seus campos de saberes: direito de todos os pesquisadores Seção 2 - Busca histórica antiga: da Antiguidade à Idade Moderna Seção 3 – Modernidade e etnocentrismo: consequências entre nós. 6 Nesta unidade, você viaja pelo rio da Antropologia e já fica de olho no afluente que nos interessa: a Antropologia Cultural. Vai conhecer o conceito de Antropologia desde o filológico e seus campos de atuação até o que essa ciência tem a ver com sua atividade acadêmico-profissional. Para remar no barco chamado ánthropos, escolhemos um porantin (remo em tupi- guarani) porque lembra os povos originários de cujo quem vamos aprender muito sobre nossas identidades. Boas remadas, amigo/a. Seção 1 - A ciência do ánthropos: direito de todos os pesquisadores Você certamente já ouviu falar na palavra Antropologia. Está cada vez mais frequente na mídia, principalmente quando requer analistas de fenômenos culturais, fatos sociais e da natureza. É também sempre mais comum o pedido de laudos antropológicos profissionais exigidos para estudos de impacto ambiental, por 7 exemplo. De fato, todo estudioso pode elucidar e opinar sobre aspectos humanos de acordo com o seu campo de saber. Qualquer que seja o aspecto específico de análise sobre o humano ou em referência a ele, será denominado de antropológico; já vamos ver o porquê. Assim pode ocorrer com cada ciência quando trata do humano em seu objeto específico de estudo. Temos, por isso, uma antropologia filosófica, uma antropologia teológica, mas também uma antropologia jurídica, política, econômica, ecológica e outras. Qual o olhar de cada uma destas ciências sobre o humano? O mesmo pode-se perguntar também sobre o humano de uma cultura diferente da nossa. A propósito, já lhe perguntaram algum dia sobre a referência com o humano em seu campo de saber? E em relação ao humano de cultura diferente? Recentemente, um aluno de ciências contábeis foi auxiliar uma comunidade mbyá-guarani na atualização da personalidade jurídica criada na aldeia. Seguiram-se dois anos de troca de saberes. Neste período de visitação e observação,o acadêmico passou por vários estágios, até que descobriu naquele povo a existência de uma etno-matemática. Fez, então, a experiência de estranhamento 1 de que falaremos ao longo deste percurso: questionou o porquê havia apenas 1 Segundo Laplantine (2005, p. 3 ) “estranhamento (depaysement) é a experiência de perplexidade provocada pelo encontro de culturas que são para nós as mais distantes e diferentes, e cujo encontro leva a uma modificação do olhar que temos sobre nós mesmos.” 8 aprendido a matemática greco-romana e arábica. Jamais soubera da existência de uma etno-matemática guarani. Não se conteve e discorreu em sua monografia sobre o “Contador pluralista: ensaio de contabilidade com os mbyá-guarani das aldeias Ka´akupé e kuri´y”. A banca lhe deu nota em guarani. Foi outra surpresa. Os docentes mostraram ao formando a importância de fortalecer este olhar antropológico-cultural de pesquisador pluralista de ciências contábeis. Para consultar a monografia mencionada, visite o blog Revitalizando Culturas, indicado no Saiba Mais do espaço virtual nesta Unidade de Aprendizagem. Filologia de ánthropos e homo. Você pode perguntar o porquê de tantas antropologias. A resposta é simples: porque a própria palavra antropologia em sua raiz tem esta referência - o ser humano. Você pode aprofundar a importância deste foco, desta referência, buscando apoio da filologia. A filologia é um termo do grego antigo Φιλολογία (filologia) composto pelo adjetivo φιλος (filos), amigo, e o verbo λογεϊν (loguein), λογος (logos), estudar, instruir-se, conhecer, palavra, discurso. É a ciência que estuda o sentido das palavras, de uma língua ou de sua literatura com amor, profundidade e radicalidade, pelas raízes da etimologia. Alguns filósofos, como Leonardo Boff (2001), nos advertem que palavras como antropologia “estão grávidas de significados existenciais porque reúnem infindáveis experiências, positivas e negativas, de busca, de encontro, de certeza, de perplexidade e de mergulho no ser. Com os dados da filologia, 9 podemos desentranhar sentidos das palavras com suas riquezas escondidas.” (BOFF, 2001, p. 83) Rememos com o porantin numa viagem filológica por dentro desta primeira palavra-chave de nossa ciência: a Antropologia Cultural. Antropologia vem do grego Άντθρωπος (ánthropos), que significa humano. Deste termo podemos deduzir o que os antigos pensavam de si mesmos, dos seres humanos. De fato, Άντθρωπος (ánthropos) é composto pelo prefixo Άν, que quer dizer todo aquele que (com ideia de desejo, possibilidade, que afirma ou interroga de maneira suave). A outra parte vem do verbo Τρέφω (tréfo), que significa crescer. Portanto, os antigos davam o nome de ánthropos ao ser humano como um ser que cresce, que desenvolve, é bem nutrido, educado, tem força e está disposto. É o oposto de átrophos (lê-se átrofos), ser que está impedido de crescer, que definha, que tem atrofia. Assim, ánthropos é o humano enquanto ser que inclusive enfrenta sua átrophos, a atrofia. É útil observar, num estudo comparado, que esse mesmo sentido pode-se encontrar também entre os sábios latinos da Antiguidade de onde herdamos a palavra humano, em português. Em latim homo, do substantivo húmus, significa terra fértil. Assim, húmus=homo=humano; portanto, os humanos nascem para ser como o húmus, terra fértil. Como se vê pela filologia, os sentidos de homo e de ánthropos se encontram, embora elaborados em lugares e culturas diferentes. Em ambas as culturas, o humano é visto como ser que cresce, ser bem nutrido, ser que previne e supera atrofias. E mais, ambos apontam para uma visão de vida holística (do grego Ηολος, holos = ligado no todo, no inteiro), ou seja, do 10 ser humano como ser inserido na totalidade e ser que mantém sua inteireza. Outros termos corriqueiros de nosso cotidiano derivados de ánthropos mostram a mesma visão coerente porque denotam olhar positivo sobre o humano: Άντθρωπίνη φυσίς (anthropine fisis) quer dizer, gênero humano, natureza humana; e αντθρωπικός (anthropikós)que é o nosso adjetivo humano; e φιλανθρωπος (filanthropos) significa quem age com humanidade, com benevolência. Confirma-se, assim, a intenção clara de significado que os sábios antigos guardavam somente para ánthropos. (PEREIRA, 1990, p. 51). Tem razão Michel Foucault, em “As palavras e as coisas” (1999) quando diz que a filologia é o estudo do sentido que elaboramos em nossos discursos, bem como do sistema que constitui sua coerência. Diante desta herança de visão dos antigos sábios sobre nosso ser antropológico, ou seja, sobre nosso ser humano, você já pode entender o porquê de tantas antropologias. Em resumo, poderíamos dizer, então, que Antropologia vem do grego ánthropos + logos (discurso, estudo, ciência) = ciência do humano. É como se toda ciência tomasse o humano como referência primordial. I Vale, então, a pergunta: Qual cientista, pesquisador, estudioso, profissional em algum momento de seu estudo, mesmo o mais específico, vai prescindir, vai excluir sua pesquisa 11 deste foco antropológico sem que colha graves prejuízos para as buscas humanas? Mas há um alerta dos estudiosos para que a relação com esta ciência não se reduza apenas a um modo de fazer, pois, trata-se de construir um modo de ser. Na verdade, há uma grande distinção prévia a fazer: Há antropologias e Antropologia. Aquelas acentuam uma reflexão sobre o humano; a nossa, uma observação científica do ánthropos. Fazer antropologia é direito de todo pesquisador a um olhar antropológico-cultural de dualidade: holístico e diverso. Buscar esta compreensão passa a ser o nosso fio condutor das seções desta primeira unidade. Começamos pelo esclarecimento do etnopsiquiatra francês François Laplantine (2005): A obra de Laplantine “Aprender antropologia”, excelente livro escrito no nordeste brasileiro (2005), estará presente conosco muitas vezes nessa viagem. Laplantine (2005, p.10) diz que a “antropologia é um certo olhar, um certo enfoque sobre o humano”. E qual é este enfoque? É assumir o humano como um objeto-sujeito dual. Assim, a nossa ciência: a) Estuda o humano inteiro, holístico, na sua totalidade, em sua unidade; b) Estuda o humano em sua diversidade - em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus estados e em todas as épocas. 12 Todo pesquisador que se aproximar do ánthropos, levando em conta essa dualidade de olhar estará, aí sim, exercitando a reflexão antropológica em seu campo de saber e poderá trabalhar com observação científica em sua área de atuação. Desta forma, você poderá estar se inscrevendo numa lista de audaciosos pioneiros que tiveram o humano como referência desde o pensar mitológico, artístico, teológico, filosófico que a cada época vão mostrar que a unidade no trabalho de pesquisa sobre a diferença, sobre a diversidade no humano é mais que urgente. No entanto, os autores, especialmente em seus dicionários específicos sobre Antropologia, são unânimes em dizer que é a Antropologia que marca o momento de estudo científico sobre o ser humano. Desde 1500, os estudiosos ficaram por longo tempo estudando cientificamente a natureza, especialmente a partir do empirismo inglês. Nunca, porém, se puseram a fazer um estudo científico no que dizia respeito ao ser humano em si. Luft (1984), Outhwaite- Bottomore (1990) e, FrançoisLaplantine (2005) insistem no conceito de Antropologia descrito acima como um certo olhar, um certo enfoque sobre o humano, mais do que apenas o estudo de tudo que compõe uma sociedade. A descoberta moderna de uma enorme diversidade gera um contexto cada vez mais exigente de respostas por parte dos cientistas. Não bastam apenas as reflexões histórico- filosóficas de Hegel, por exemplo. Para os antropólogos é preciso chegar à observação do humano. Nasce, assim, como já repetimos, uma ciência específica que irá tratar só desse objeto-sujeito chamado ánthropos. Ela aparece, assim, como Antropologia, simplesmente, sem adjetivos. 13 Portanto, estude o que estiver estudando, você poderá se beneficiar de tudo o que agora vamos aprofundar sobre a Antropologia. Na verdade, os humanos nunca deixaram de interrogar-se sobre si mesmos e suas sociedades. Não só na Roma e Grécia antigas, mas em todas as sociedades existiram humanos estudiosos que observavam as diferenças e semelhanças entre estas. Isto se deu entre humanos na Ásia como na África, na América, na Oceania ou na Europa. Houve até alguns teóricos que forjaram modelos elaborados "em casa" (apud LAPLANTINE, 2005, p.4), afirma o grande estudioso da antropologia Lévi-Strauss, falecido em 2010 aos cem anos e grande estimulador dos estudos antropológicos no Brasil. Neste livro didático, vamos dialogar com alguns destes pensadores sobre seu encontro com a diversidade humana. François Laplantine (2005), aluno e admirador de Claude Lévi- Strauss, pondera que a Antropologia como ciência assume o humano como aquele objeto dual, lembrado acima, ou seja, (a) o estudo do homem inteiro, holístico, na sua totalidade e (b) o estudo do homem em sua diversidade - em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus estados e em todas as épocas. Assim, a abordagem antropológica é interativa e integrativa porque considerar as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade. Certamente, o acúmulo dos dados colhidos a partir de observações diretas, bem como o aperfeiçoamento das técnicas de investigação, conduzem necessariamente a uma especialização de cada área de saber sobre o humano. No entanto, uma das vocações maiores da abordagem antropológica vai consistir em não parcelar o humano, mas, ao contrário, tentar relacionar campos de investigação frequentemente separados. Neste sentido, Laplantine (2005, p. 6) e outros acentuam o fato que 14 a antropologia “tem um papel particularmente importante a exercer para que não sejam rompidas as relações entre as pesquisas das ciências da vida e das ciências humanas.” E pode-se acrescentar o mesmo para as ciências exatas, sociais e todos os demais campos de saberes. Campos de saberes essenciais da ciência da Antropologia Sem perder essa visão de contexto amplo, pode-se eleger cinco áreas principais da Antropologia. Nenhum pesquisador pode, evidentemente, dominar todas elas hoje em dia, mas ele deve estar sensibilizado a estudá-las quando trabalha de forma profissional com algumas delas, dado que essas cinco áreas mantêm relações estreitas entre si. São elas: biológica, pré- histórica, linguística, psicológica, social e cultural (ou etnologia). Antropologia Biológica ou Física A Antropologia biológica ou física estuda as variações dos caracteres biológicos do ser humano no espaço e no tempo; discute as relações entre o patrimônio genético e o meio (geográfico, ecológico, social), analisando as particularidades morfo-fisiológicas ligadas a um meio ambiente e sua evolução. A da Antropologia Biológica pergunta o que a cultura deve a este patrimônio genético, mas também, o que esse patrimônio (que se transforma) deve à cultura. O antropólogo biologista ou físico levará em consideração os fatores culturais que influenciam o crescimento e a maturação do indivíduo. Laplantine (2005, p. 6), nosso antropólogo e etnopsiquiatra companheiro de viagem, dá esse exemplo para explicar o 15 trabalho do antropólogo biologista: “Ele se perguntará, por exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor da criança africana é mais adiantado do que o da criança européia?” O antropólogo biologista conta ciências auxiliares como a Antropometria, que usa técnicas de medição de ossos, formas de crânios, mensurações do esqueleto, tamanho, peso, cor da pele. Pode usar da Somatologia, que estuda as diferenças físicas individuais e sexuais; sem esquecer a grande companheira do profissional de saúde: a Anatomia Comparada de etnias e sexos. Um salto qualitativo nesta área é o estudo da genética das populações. Por ela, desde os anos 50, podemos discernir o que diz respeito ao inato e ao adquirido, sendo que um e outro estão interagindo continuamente. Por ela também chegamos ao mapeamento do genoma anunciado em 10 de julho de 1999. E aqui vale lembrar que duas grandes áreas vão dialogar em busca da justa medida científica: a antropologia biológica e a antropologia sócio-antropológica, como podemos constatar mais adiante no estudo de suas respectivas escolas. Antropologia Pré-histórica ou Arqueológica A Antropologia Pré-histórica ou Arqueológica estuda as condições de existência de grupos humanos desaparecidos e, com o apoio da Paleontologia e outras ciências auxiliares, como se deram a origem e os processos da evolução biológica até que nos tornássemos a forma de humanidade que somos hoje. Através dos vestígios materiais enterrados no solo, como as ossadas, estuda quaisquer marcas da atividade humana, como as inscrições rupestres, vegetais específicos nas florestas, e a Arqueoastronomia – muito forte entre os povos originários ameríndios. 16 Seu projeto, que se liga à Arqueologia, visa reconstituir as sociedades desaparecidas, tanto em suas técnicas e organizações sociais, quanto em suas produções culturais e artísticas. Assim, o historiador é aqui antes de tudo um historiógrafo, isto é, um pesquisador que trabalha a partir do acesso direto aos textos, testemunhais e objetos. O especialista em pré-história recolhe, pessoalmente, objetos no solo. Muito se espera de aprofundamento dos pesquisadores neste campo no chão brasileiro e em sua diversidade étnica. Figuras 1.1 e 1.2: Na Mostra Raízes Mbyá do Grupo de Pesquisa Unisul/Revitalizando Culturas, a exposição de urna ritual Mbyá-guarani, inédita, encontrada na Enseada de Brito, em Palhoça (SC), num dos morros sagrados do povo guarani. Trabalho arqueológico do GRUPEP/Unisul (Grupo de Pesquisas Arqueológicas). Fonte: Acervo do Autor(2008). 17 Antropologia Linguística A Antropologia linguística tem se tornado um dos campos mais férteis da Antropologia Cultural. A linguagem é, com toda evidência, parte essencial do patrimônio cultural de uma sociedade. As pessoas se expressam e expressam seus valores, suas preocupações, seus pensamentos pela linguagem. Apenas o estudo da língua permite compreender: Como os homens pensam o que vivem e o que sentem, isto é, suas categorias psicoafetivas e psicocognitivas, objeto da etnolinguística; Como eles expressam o universo e o social através do estudo da literatura, não apenas escrita, mas também de tradição oral; Como, finalmente, eles interpretam seus próprios saber e saber-fazer, que é a área das chamadas etnociências. Figuras 1.3: Adolescentes Mbyá-guarani contatam o sistema Braille de leitura e escrita tátil da cultura das pessoas cegas, no centro Unisul/Hipermídia. Fonte: acervo doAutor (2008). A Antropologia Linguística vai muito além dos estudos dos dialetos (Dialetologia). Ela estuda hoje as múltiplas áreas 18 geradas pelas novas tecnologias de comunicação, pelos estudos das ciências da linguagem, da midiologia, da cultura do audiovisual e do ciberespaço. Neste contexto é urgente refletir sobre o drama humano da atualidade apontado pela UNESCO que é o rápido desaparecimento de línguas nas próximas décadas. O Brasil é o terceiro país do mundo com o maior número de línguas ameaçadas de extinção. Neste sentido, pesquisemos no sítio da UNESCO o movimento SOS Línguas, o Atlas Interativo e de línguas em perigo no mundo. “As línguas maternas têm um papel fundamental em nossas vidas, pois são o meio pelo qual verbalizamos o mundo pela primeira vez, sendo as lentes pelas quais começamos a entendê-lo. O Dia Internacional da Língua Materna é o momento de reconhecer a importância destas e de nos mobilizarmos pelo plurilinguismo e pela diversidade linguística. ................................ As línguas maternas e a diversidade linguística são elementos fundamentais para a identidade das pessoas. Como fontes de criatividade e meios para a expressão cultural, elas também são importantes para a saúde das sociedades, além de serem fatores de desenvolvimento e crescimento. Mensagem da diretora-geral da UNESCO por ocasião do Dia Internacional da Língua Materna (2007): “Todas as línguas têm vínculos com suas origens e seus empréstimos, mas cada língua é uma fonte única de significado para entender, escrever e expressar a realidade”. (Atlas Interativo de Línguas em Perigo no Mundo. www.unesco.org) 19 Hoje conhecemos a importância do ensino na língua materna para obtermos bons resultados de aprendizagem. A instrução em língua materna é uma poderosa forma de lutar contra a discriminação e para que o conhecimento alcance as populações marginalizadas. Como verdadeiros mananciais de conhecimento, as línguas também são o ponto de partida básico na busca por maior sustentabilidade no desenvolvimento e para criar relações mais harmônicas com o meio ambiente e com as mudanças. O plurilinguismo enseja oportunidades maravilhosas para o diálogo, que é tão necessário para o entendimento e a cooperação. As línguas maternas convivem em harmonia com a aquisição de outras línguas. Um espaço linguístico plural permite compartilhar a riqueza da diversidade, acelerando o intercâmbio de conhecimentos e experiências. Este foi um dos principais temas de 2010, nomeado ‘Ano Internacional para Aproximação das Culturas’ pela UNESCO. A partir da língua materna, o aprendizado de outros idiomas deve ser uma das altas prioridades da educação no século XXI. Ao mesmo tempo, podemos redobrar nossos esforços para apoiar o desenvolvimento equilibrado da tradução como um canal para trazer a todos a grande diversidade de conhecimentos e experiências que surge em todo o mundo. E o tema do Dia Internacional da Língua Materna de 2011 diz respeito ao uso das tecnologias da informação e da comunicação (TICs) para proteger e promover as línguas e a diversidade linguística. As línguas oferecem o suporte lógico para o uso das tecnologias da informação e da comunicação que, por sua vez, representam uma nova fronteira para promover a diversidade linguística. A UNESCO tem o compromisso de promover o 20 plurilinguismo na internet. Essas metas norteiam o trabalho da UNESCO com a Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números. As tecnologias inovadoras também oferecem novas formas de acompanhar, analisar e aprender idiomas. O sucesso da edição on-line do Atlas da UNESCO de Línguas em Perigo no Mundo mostra o poder da internet para mapear a situação das línguas e do plurilinguismo, além de sensibilizar o público sobre esta questão. As tecnologias da informação e da comunicação podem ser particularmente importantes na promoção das línguas maternas. Nós devemos aproveitar o poder do progresso para proteger as diferentes visões do mundo e promover todas as fontes de conhecimento e formas de expressão. São esses os fios que tecem a trama da história da humanidade. A inovação, a flexibilidade e a interação social, que estão no cerne das novas tecnologias de informação e comunicação, podem apoiar essas metas.” Antropologia Psicológica Outro campo cada vez mais reconhecido entre as ciências auxiliares da Antropologia é a Antropologia Psicológica. Ela consiste no estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo humano. De fato, o antropólogo é, em primeira instância, confrontado não a conjuntos sociais e, sim, a indivíduos. Ou seja, somente através dos comportamentos - conscientes e inconscientes - dos seres humanos particulares podemos apreender essa totalidade sem a qual também não se faz antropologia. É a razão pela qual a dimensão psicológica (e também psicopatológica) é absolutamente indissociável do campo 21 focado no ánthropos, embora algumas escolas ainda não a considerem como constitutiva de nossa ciência, lembra Laplantine (2005). Nessas remadas com o nosso porantin pelos rios da Antropologia sem adjetivo já podemos observar com clareza que o seu primeiro objeto é o foco no estudo do humano em sua inteireza holística e totalidade – daí atingir seus aspectos biológico, histórico, sociolinguístico e psicológico. Isto já mostra a vocação e a responsabilidade interdisciplinar, indispensáveis a quem quer fazer parte do projeto da Antropologia. Quem pesquisa pelo viés da ciência antropológica deverá construir um certo olhar de mediador/a. O pesquisador deverá também fortalecer as relações de todas as ciências com o foco humano para que o ánthropos possa, de fato, emergir em nosso ethos de cidadãos que podem relacionar- se de forma adequada com o Outro e o mundo numa perspectiva realmente biocrática, isto é, governados pelo inalienável valor da vida, como propunha o pedagogo Paulo Freire (1997). Antropologia Cultural Em época de tantas fragmentações acadêmicas, este olhar antropológico interativo e integral pode fazer diferença para que sejam fortalecidas as relações holísticas entre todas as ciências. Guardamos para a segunda unidade o aprofundamento sobre o segundo objeto da Antropologia, isto é, como ciência que estuda o ánthropos enquanto ser constituído pela diversidade. A diversidade é o cultural do humano, objeto específico da Antropologia Cultural, nosso foco especial nesta Unidade de Aprendizagem. 22 Laplantine (2005) assume para si a conclusão de seu mestre Lévi-Strauss quando afirma que apenas a nossa a Antropologia Cultural permite notar, com a maior proximidade possível, “que essas formas de comportamento e de vida em sociedade que tomávamos todos espontaneamente por inatas - nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar os eventos de nossa existência, são, na realidade, o produto de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos têm em comum é sua capacidade para se diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes, línguas, modos de conhecimento, instituições, jogos profundamente diversos; pois se há algo natural nessa espécie particular que é a espécie humana, é sua aptidão à variação cultural.” (LÉVI-STRAUSS apud LAPLANTINE, 2005, p. 9). No entanto, a percepção do cultural no humano e a própria descoberta do cultural como constitutivo específico do humano é filha de um longo processo que, como vamos perceber, aindaestá em maturação. Na verdade, esse aspecto processual é próprio do ánthropos enquanto ser misterioso, ou seja, que se mostra e se esconde ao mesmo tempo, diria a Antropologia Filosófica. Este esconde-esconde se parece a uma espécie de brincadeira que, ao mesmo tempo, é deslumbrante (fascinans) e/ou assustador (tremens). Por isso, vamos remar agora nas águas desse processo histórico. Seção 2 - Busca histórica antiga: da Antiguidade à Idade Moderna O estudo desse processo de construção do olhar antropológico nos remete à Antiguidade até a Idade Moderna com ressonâncias 23 em nossa contemporaneidade. Parece um percurso longo, mas não se preocupe, teremos fôlego suficiente para remar com nosso porantim pelas águas dos milênios. Foi, sobretudo, em vários processos de mundialidade ocorridos na história – em épocas de visitações, invasões e colonialismos - que os povos mostraram suas formas de relação com o diferente cultural. Neste encontro com a alteridade, isto é, com o Outro e seu jeito diferente de ser, pensar, saber e fazer ou, como dizem os antropólogos, com o seu ethos cultural, o humano faz a experiência do estranhamento. Caos fértil na mundialidade entre os povos antigos: os gregos, o método antropológico e as relações com o diferente cultural É preciso ter claro, antes de tudo, que cada povo constrói seu ethos cultural. Azevedo (1986) explica que ethos cultural é o modo particular de viver e de habitar eticamente o mundo que uma comunidade histórica tem, enquanto tal, em sua história. Podemos lembrar como exemplo de uma dessas construções, o ethos grego fruto da vivência da mundialidade em seus primórdios. Essa mundialidade ocorre na Grécia após o período da civilização micênica (séc. XII-VII aC). Foram cerca de 500 anos de fusões étnicas e culturais, com enfraquecimento e desgaste natural dos antigos significados das tradições religiosas e das cosmogonias. É do silêncio desses cinco séculos obscuros que emerge uma nova organização social, a polis. A polis torna-se o sistema original de organização grega 24 que vai durar três séculos e onde vai surgir uma nova forma de racionalidade: a Filosofia. Assim, após todo este período de 500 anos de metamorfose, o exercício da crítica na polis vai fortalecendo, aos poucos, o pensar autônomo dos cidadãos. A experiência caótica grega de encontro com o diferente cultural é um exemplo clássico que mostra a capacidade humana de ordenar o caos. Foi nesta placenta, que o grego se gestou e formou um novo modo de pensar – o parto da Filosofia - e do conviver político grego – a criação da polis como espaço de discussão popular. Naquele período caótico de elaboração de 500 anos, diversos foram os pensadores e filósofos gregos que se preocuparam em estudar outros povos ou outras culturas, como a chinesa, a egípcia e a romana. Em seus estudos, procuravam apontar diferenças e semelhanças culturais, bem como aspectos de suas relações com estes povos. Os gregos deixaram muitos registros e relatos acerca desses encontros com culturas diferentes da sua. Heródoto, pai da História, e o método antropológico Nos textos gregos já estavam presentes elementos daquilo que dois mil anos mais tarde a Antropologia elegerá como seu objeto e seu método de atuação. Exemplo clássico é do grego Heródoto de Halicarnasso em sua obra Histórias. O conhecido “pai da História” descreveu minuciosamente as culturas com as quais seu povo se relacionava, sobretudo nas guerras. 25 Figura 1.4 – Heródoto - Fonte: Internet Nos logoi (pequenos relatos) de histórias, a narrativa é simples e cheia de curiosidades geográficas dos limites do mundo conhecido. Heródoto apresenta os fatos considerados relevantes, seleciona as tradições sobre os acontecimentos e interpreta-os à sua maneira pessoal. O autor/etnógrafo grego escreveu sob a influência da grande vitória dos gregos sobre os persas em -480/-479. A esse respeito, Immerwahr (1966) faz uma interessante nota explicando que, embora encarasse tudo como um confronto decisivo entre as civilizações do Oriente e do Ocidente (gregos da Europa contra persas da Ásia), o principal objetivo de Heródoto parece ter sido valorizar a ascensão do poderio oriental. Para nosso estudo de Antropologia cultural é interessante a observação dos autores resumidas por Immerwahr (1966) porque confirmam em Heródoto uma postura de descrição cujo fio da meada pode ser considerado de caráter etnográfico e etnológico. De fato, há cerca de 500 anos aC, Heródoto faz uma observação direta, presente no contexto observado para fundamentar seus registros de etnografia e da etnologia sobre o diferente cultural. Outro ponto dos analistas a seu favor é a opção de Heródoto em usar para suas descrições etnográficas e 26 interpretação etnológica o dialeto grego falado na Jônia, Mileto e em outras cidades da Ásia Menor, uma língua que não é a sua; uma língua dialetal também de vários filósofos pré- socráticos. Essa opção de Heródoto, em seus escritos, ajudam a definir esse dialeto como padrão inicial da expressão literária grega. Aproveitemos, então, para entender sucintamente a explicação desse método antropológico considerado como seu pela futura ciência da Antropologia Cultural. Aqui o método é utilizado por intuição e bom senso crítico na obra de Heródoto. Quem nos explica sobre esse médoto na atualidade é o antropólogo Lévi- Strauss (apud LAPLANTINE, 2005, p. 25) na sinopse que segue: O MÉTODO ANTROPOLÓGICO CULTURAL desdobra-se em três etapas: 1 – ETNOGRAFIA É a coleta direta, e o mais minuciosa possível, dos fenômenos que observamos, por uma impregnação duradoura e contínua e um processo que se realiza por aproximações sucessivas. Esses fenômenos podem ser recolhidos tomando-se notas, mas também por gravação sonora, fotográfica ou cinematográfica. 2 – ETNOLOGIA Consiste no primeiro nível de abstração: através da análise dos materiais colhidos, fazer aparecer a lógica específica da sociedade que se estuda. 3 – ANTROPOLOGIA Consiste num segundo nível de abstração: construir modelos que permitam comparar as sociedades entre si. (LÉVI-STRAUSS apud LAPLANTINE, 2005, p. 25). 27 Em seus escritos, os logoi, Heródoto conta a origem dos persas, descreve em minúcias a cultura do Egito e da Líbia - na etnografia do códex 2.1-3.16; escreve sobre diversos povos, como os cartagineses, amônios e etíopes no códex 3.17-26 e sobre os limites do mundo conhecido no códex 3.106-16. Logo depois vêm cinco anedotas nas quais traz as histórias sobre a planície da Ásia (códex 3.117) e a medicina utilizada pelo médico grego Demócedes (3.129-38). Nessas descrições sobre a alteridade, porém, não foge de si mesmo e de sua cultura. Figura 1.5 – O mapa mundi da diversidade em 450 aC, proposto por Heródoto. : Internet Heródoto e a Endoculturação Vale também salientar outra intuição qualitativa de Heródoto, que é sua relação denominada em antropologia de endoculturação. Isso significa que as relações culturais com o Outro diferente cultural e o mundo não podem descuidar e podem até anular a relação adequada de valorização e interação com a própria identidade cultural, pois a nossa diversidade conta no cenário 28 das demais diversidades humanas. Nosso ethos cultural pode se fortalecer com a endoculturação. A endoculturação é todo processo pelo qual uma pessoa é introduzida à sua cultura e nela interage, assim como o termo paralelo– socialização – enfatiza a relação da pessoa no seu contexto social. O cuidado com a importância deste processo é não só de cada pessoa mas sobretudo toda espécie de estudioso, como nós, denominada pelo filósofo italiano Antonio Gramsci, de pessoa intelectual orgânica. Heródoto, além da adoção do dialeto jônico, o mais falado de sua região, faz um exercício da endoculturação quando relata a forma de convivência entre as cidades (polis) gregas. Descreve as guerras entre elas (códex 5.28-6.42), a história de Esparta (códex 5.39-48), e a história de Atenas (códex 5.55-96), com a célebre Batalha de Maratona (códex 6.94-120), em que atenienses e plateenses derrotaram forças persas superiores em número. No caso do estímulo à endoculturação, Laplantine (2005) sugere que toda ação etno-profissional não se confunda com transformação das sociedades com quem interage. Uma dupla preocupação parece bem-vinda. Primeiro a de auxiliar uma determinada cultura na explicitação para ela mesma de sua própria diferença. Isto não significa organizar política, econômica e socialmente a evolução dessa diferença, que pode se tornar uma postura neo-colonialista quando se queima etapas da endoculturação. Segundo, importa ter bem claro a urgência de preservação dos patrimônios culturais locais ameaçados devido sobretudo às negações dos valores de certas culturas esquecidas. “A 29 etnografia e a etnologia tem lutado contra o tempo para que a transcrição dos arquivos orais e visuais possa ser realizada a tempo, enquanto os últimos depositários das tradições ainda estão vivos. Mais que isso, importa, sobretudo, a restituição, aos habitantes das diversas regiões nas quais trabalhamos, de seu próprio saber e saber-fazer.” (LAPLANTINE, 2005, p.7) Isso supõe uma ruptura com a concepção assimétrica da pesquisa, baseada na captação de informações. Não há, de fato, antropologia sem troca, isto é, sem itinerário no decorrer do qual as partes envolvidas chegam a se convencer reciprocamente da necessidade de não deixar se perder formas de pensamento e atividade únicas. E a Antropologia deve não fornecer respostas no lugar dos interessados, e sim formular questões com eles, elaborar com eles uma reflexão racional (e não mais mágica) sobre os problemas colocados pela crise mundial - que é também uma crise de identidade -, ou ainda sobre o pluralismo cultural, isto é, o encontro de línguas, técnicas e mentalidades das culturas, as mais diversas. A pesquisa antropológica não é como podemos notar, uma atividade de luxo, e nunca substitui os projetos e as decisões dos próprios atores sociais. Hoje, este tipo de pesquisa tem como vocação maior a de propor não soluções, mas instrumentos de investigação, que poderão ser utilizados em especial para reagir ao choque da transculturação, isto é, ao risco de um desenvolvimento conflituoso levando à violência negadora das particularidades econômicas, sociais e culturais de um povo. Você pode medir, então, como, neste tipo de postura difícil e delicada, tem importância aquela intuição de Heródoto em sua obra. Como você viu nas seções anteriores, o 30 etnógrafo/etnólogo grego parece o primeiro não só a registrar o passado, mas também a considerá-lo como um projeto de pesquisa sobre relações do humano consigo, com o outro e com o mundo. Vale ainda lembrar que Heródoto usa a palavra história também nesse contexto com o significado de pesquisa. Muitos eruditos modernos consideram-no pouco crítico e lhes parece excessiva a atenção que deu aos oráculos, aos sonhos e à religião para explicar eventos históricos. Sob o ponto de vista da Antropologia Cultural, porém, a contribuição parece relevante como um homem de seu tempo. Entre os gregos, você também pode contar com outros pesquisadores como a obra de Xenofonte, descrevendo culturas da Índia. Vale lembrar também que, embora não existisse como disciplina específica, o saber antropológico também interessou às escolas filosóficas ao longo dos séculos desde Aristóteles, quando, por exemplo, este filósofo descreve detalhes das Cidades- estado gregas mostrando as peculiaridades constitutivas de seu ethos cultural. É preciso deixar claro, porém, que o foco da antropologia filosófica é a reflexão sobre o pensar de cada escola filosófica sobre o humano. Ampliando nossas remadas pela história podemos concordar com Laplantine (2005) quando lembra que, além dos gregos, a filosofia clássica - antológica com São Tomás, reflexiva com Descartes, criticista com Kant, histórica com Hegel -, mesmo sendo filosofias sociais, bem como as grandes religiões, nunca tiveram como objetivo o de pensar especificamente a diferença constitutiva do humano. 31 É o que atestam também os relatos de viagens realizadas na Europa desde a Idade Média, por viajantes vindos da Ásia. É oportuno perguntar sobre o trabalho antropológico dos etnógrafos das grandes navegações: é mais uma experiência de caos fértil na mundialidade moderna? Estranhamento e modernidade: entre o fascínio e a recusa do diferente Foi preciso um longo caminho de construção para chegar à antropologia científica enquanto um saber de vocação científica sobre a alteridade, sobre o diferente. Este saber se desenvolve sistematicamente a partir da cultura europeia. A cultura europeia elaborou um orientalismo, um americanismo, um africanismo, um oceanismo, enquanto que nunca ouviu-se falar de um europeismo, que se teria constituído como campo de saber teórico a partir da Ásia, da África ou da Oceania. A curiosidade europeia diante do diferente se torna percepção intensa e aguçada na medida do contato com diferentes povos na expansão marítima e comercial a partir do século XII e da era das grandes navegações empreendidas a partir do século XV. Desde esse momento histórico, a futura ciência da Antropologia passa a recolher contribuição dos relatos de viajantes europeus, missionários e comerciantes resultantes do contato com estes povos até então desconhecidos. Neste momento, você pode estar se perguntando: mas como tais viajantes podem ter contribuído na criação de nossa futura ciência da Antropologia? 32 Bem, a resposta é que, por meio de suas cartas, diários e outros documentos, assim como anteriormente Heródoto e outros na mundialidade grega, estes viajantes apontavam aspectos importantes, como as diferenças e os choques culturais que ocorriam a partir dos contatos estabelecidos. Você pode se valer, para a análise deste processo, do conceito atual da Antropologia já acenado acima como estranhamento, ligado às relações interculturais. Laplantine (2005, p. 9ss) nos ajuda mais uma vez explicando o conceito de estranhamento como a experiência da distância em relação à nossa sociedade (mas uma distância que faz com que nos tornemos extremamente próximos daquilo que é longínquo). Assim, aquilo que tomávamos por natural em nós mesmos é, para nossa surpresa, tomado como cultural. O que nos parecia evidente, é agora infinitamente problemático. Em toda verdadeira formação antropológica, é necessária esta sensação de estranhamento (depaysement); essa experiência de perplexidade provocada pelo encontro das culturas que são para nós as mais distantes, e cujo encontro vai levar a uma modificação do olhar que se tinha sobre si mesmo. De fato, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da nossa. A elaboração dessa experiência no encontro com a alteridade, com o outro diferentecultural, leva-nos a entender como não natural aquilo que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos evidente: o menor dos nossos comportamentos - gestos, mímicas, posturas, reações afetivas. Começamos, então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós mesmos, começamos a nos espiar. O conhecimento (antropológico) da 33 nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única. Assim, no estranhamento, damos mais uma vez razão ao que diz a escola personalista do filósofo Emmanuel Mounier, quando aprofunda o fato de que é o outro quem nos revela a nós mesmos. Por fim, antes de seguirmos remando agora com nosso porantim pelos oceanos da Idade Moderna, a partir da reflexão sobre o estranhamento, é oportuno adiantar a constatação do fato que a ciência antropológica vai se dando conta de que, de fato, aquilo que caracteriza a unidade do humano é sua aptidão praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de organização social extremamente diversos. Voltemos aos caminhos dos etnógrafos e etnólogos da era dos descobrimentos, denominada Modernidade devido à criação da tecnologia da imprensa e outras, como já vimos. Os relatos diante do estranho, de um lado, denotam encantamento e fascínio, fazendo crítica ao europeísmo como pretenso balizador dos povos; de outro, evidenciam uma atitude de recusa, conforme observam muitos estudiosos. Exemplo destas posições é do debate público entre o poderoso empresário e depois convertido em missionário, o exímio defensor dos índios Bartolomeu de Las Casas e o jurista Juan Guinés de Sepúlveda nos idos de 1550, em Valladolid, na Espanha do imperador Felipe II. Las Casas argumenta diante dos antigos companheiros de elite imperial espanhola: 34 “Àqueles que pretendem que os índios são bárbaros, responderemos que essas pessoas têm aldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem política que, em alguns reinos, é melhor que a nossa (...). Esses povos igualavam ou até superavam muitas nações e uma ordem política que, em alguns reinos, é melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou até superavam muitas nações do mundo conhecidas como policiadas e razoáveis, e não eram inferiores a nenhuma delas. Assim, igualavam-se aos gregos e os romanos, e até, em alguns de seus costumes, os superavam. Eles superavam também a Inglaterra, a França e algumas de nossas regiões da Espanha (...). Pois a maioria dessas nações do mundo, senão todas, foram muito mais pervertidas, irracionais e depravadas, e deram mostra de muito menos prudência e sagacidade em sua forma de se governarem e exercerem as virtudes morais. Nós mesmos fomos piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a extensão de nossa Espanha, pela barbárie de nosso modo de vida e pela depravação de nossos costumes.” (in LAPLANTINE, 2005, p.38) Sepúlveda responde: “Aqueles que superam os outros em prudência e razão, mesmo que não sejam superiores em força física, aqueles são, por natureza, os senhores; ao contrário, porém, os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo que tenham as forças físicas para cumprir todas as tarefas necessárias, são por natureza servos. E é justo e útil que sejam servos, e vemos isso sancionado pela própria lei divina. Tais são as nações bárbaras e desumanas, estranhas à vida civil e aos costumes pacíficos. E será sempre justo e conforme o direito natural que essas pessoas estejam submetidas ao império de príncipes e de nações mais cultas e humanas, de modo que, graças à virtude destas e à prudência de suas leis, 35 eles abandonem a barbárie e se conformem a uma vida mais humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse império, pode-se impô-lo pelo meio das armas e essa guerra será justa, bem como o declara o direito natural que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e humanos dominem aqueles que não têm essas virtudes.” (in IDEM, p. 39) Toda uma grande produção escrita levantou polêmicas como esta acerca dos indígenas. A contribuição dos missionários jesuítas na América - como Bartolomeu de Las Casas e Padre José de Acosta - ajudaram a desenvolver a denominada teoria do bom selvagem, que via os índios como detentores de uma natureza moral pura, modelo que devia ser assimilado pelos ocidentais. Esta teoria defendia a ideia de que a cultura mais próxima do estado natural serviria de remédio aos males da civilização. Ora, as ideologias que estão por trás desse duplo discurso, mesmo que não se expressem mais em termos religiosos, permanecem vivas hoje, quatro séculos após a polêmica que opunha Las Casas e Sepúlveda. Esses estereótipos envenenam essa espécie de antropologia espontânea de que temos ainda hoje tanta dificuldade para nos livrarmos. O quadro abaixo resume os esforços destes etnógrafos. Tempo de formação de uma literatura “etnográfica” sobre a diversidade cultural Período Séculos XV-XIX 36 Características Relatos de viagens (cartas, diários, relatórios etc.) feitos por navegadores, missionários, viajantes, comerciantes, exploradores, militares, administradores coloniais etc. Temas e conceitos Descrições das terras (fauna, flora, topografia) e dos povos “descobertos” (hábitos e crenças). Primeiros relatos sobre a alteridade entre a recusa ou fascinação diante do estranho. Alguns representantes e obras de referência Cristóvão Colombo (Diário de Bordo), Bartolomeu de Las Casas e Bernardino de Sahagun. Pero Vaz de Caminha (“Carta do descobrimento do Brasil” - séc. XVI). Hans Staden (“Duas viagens ao Brasil” - séc. XVI). José de Acosta. Jean de Léry (“Viagem à terra do Brasil” - séc. XVI). Jean Baptiste Debret (“Viagem pitoresca e histórica ao Brasil” - séc. XIX). Quadro 1.1- Séculos XV-XIX: formação de literatura etnográfica. Fonte: SILVA, Vagner Gonçalves (2007), adaptado pelo Autor (2008). Temos aí um legado de cuja etnografia levada para a Europa pelos colonizadores certamente poderemos dispor sempre mais. Afinal, quem nos impede de acrescentar novas descobertas através das nossas pesquisas acadêmicas locais em nosso papel 37 de antropólogos/as em nossos campos profissionais específicos? O que eles ainda têm em seus arquivos sobre a memória de nossas culturas originárias de que ainda não dispomos? Nós, pesquisadores do ciberespaço, e os etnógrafos das grandes navegações Diante do quadro sinóptico anterior, que adaptamos do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, podemos pensar onde buscar documentos disponíveis pela navegação cibernética registrados desde a Era das Navegações Modernas sobre nossas ancestralidades ameríndias. Você, em seu campo de saber específico, pode usufruir de muitas outras informações sobre o ethos cultural dos trópicos nestas incursões. E mais. Não será válido continuar o trabalho destes etnógrafos, aproveitando o novo momento de mundialidade que estamos vivendo, criado pela navegação virtual, para inventariar nossas diferenças? É o exemplo de trabalho que deixou-nos o pesquisador de antropologia da UNISUL, doutor Luiz Alberto Marques. Quando faleceu prematuramente, em fevereiro de 2010, deixou- nos, entre outras obras, o primeiro de seus cadernos: Antropologia Cultural aplicada à Pedagogia (2006). O pesquisador orienta alunos de vários campos de saberes para fazer etnografia, estimulando o protagonismode sujeitos locais. Confira com a leitura da obra de Souza Marques, L.A. Da pré-história guarani – aos primeiros tempos da ocupação portuguesa no litoral meridional do Brasil. Caderno 1 – Os povos guarani. Palhoça: E-e restrita in blog Revitalizando culturas/Unisul, 2011. 38 O pesquisador dedicou toda sua vida acadêmica ao duplo objetivo da ciência da Antropologia cultural: ocupar-se do humano enquanto ser de unidade na diversidade. Trabalhou na América Latina, Europa e África. “Eu gosto de ver meus alunos participando da Revolução do Olhar, em curso na humanidade”, repetia o antropólogo nos encontros do Núcleo Unisul/Revitalizando Culturas. A essa altura deste nosso estudo vale lembrar Proust quando diz que a verdadeira arte da descoberta não está em achar novas coisas, mas enxergá-las de maneira diferente. De fato, assumir o ánthropos em sua unidade de ser diverso, como você tem visto até aqui, é um desafio que tem atravessado milênios: o desafio de ver velhas e gastas realidades com novos olhares, sobretudo nesta questão sutil de ver a diferença como riqueza. A seguir, veja fotos deste pesquisador com o cacique José Benite na nova aldeia Kury-i, de Biguaçu (SC), acompanhando a visita etnográfica e participação de alunos na construção da Opy (Casa Sagrada de Terapias). Coincidência histórica: a visita foi em setembro de 2007, mês da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, após 30 anos de luta junto à ONU. Figura 1.6 e 1.7- Prof. Luiz Alberto com o cacique José Benite e com membros da nova aldeia Kury-i, de Biguaçu (SC). 39 Fonte: acervo do autor (2007). Segundo o professor Luiz Alberto, o horizonte ético do pesquisador antropológico é focar as vivências comunitárias em sua micro-história, promovendo a importância da riqueza local no contexto da mundialidade. A necessidade desta revolução do olhar, privilegiando o que aparentemente não conta, é descrita como testamento no final da apresentação de seu livro. Parece fazer a simbiose de seu ethos de pessoa e de pesquisador/educador: “Vivemos o início de um novo século, num tempo de instantaneidades, modelos de sociedade ainda em construção (...) pouco se sabe sobre a história da formação dos nossos cotidianos o que em antropologia denomina-se ‘traços culturais’ e com isso, por vezes, alimentamos estereótipos e preconceitos com relação aos ocupantes de determinados espaços. (...) Rever origens, perceber raízes, identificar modos de vida não representa um ´simples` exercício de olhar para outros tempos, mas sim de ir ao encontro dos primórdios de nossa identidade como grupo e como sociedade (...) e perceber que mesmo que as fisionomias e as paisagens mudaram, na essência ainda cultivamos costumes que fazem parte de uma espécie de legado cultural dos que aqui nos antecederam, a quem, mesmo imperceptivelmente, estamos ligados. A Antropologia Cultural, representada através dos Cadernos de Cultura, tem este propósito: buscar em tempos distintos mas num mesmo espaço de vida, modos de organização econômica, social, política e cultural propondo estabelecer pontes entre o presente vivenciado por todos nós e um passado, por vezes 40 nem tão remoto como possa aparecer, mas que depositários de alguns valores e atitudes, que, mesmo inconscientemente, os reproduzimos em fragmentos.” (MARQUES, 2010, 17 v. online). Seção 3 - Modernidade e etnocentrismos: consequências entre nós. Neste contexto de nossa viagem remando ainda com o porantin e observando as misturas das águas do ontem e do hoje, é indispensável a alguém que pesquisa sobre Antropologia Cultural deter-se um pouco mais na análise das relações ocorridas com o estranho ao mundo europeu. Daí fazermos uma digressão histórica que mostre as consequências atuais da presença da dupla ideologia do fascínio ou da recusa diante da alteridade ameríndia e africana. Essa digressão sobre a presença de comportamentos etnocêntricos pode ajudar-nos a explicar e avaliar a repercussão de relações crônicas de negação de identidades em nosso dia-a-dia atual, uma vez que os etnocentrismos favoreceram comportamentos de transculturação. Dupla ideologia do fascínio ou da recusa diante da alteridade ameríndia e africana. Mais uma vez, Azevedo (1986) nos ajuda a explicar essa forma de relação com o diferente cultural traduzida nos termos transculturação ou etnocentrismo. Diz o autor que é uma relação de possível ou efetiva transferência unilateral e, eventualmente, impositiva, de sentidos e valores, de símbolos, padrões e instituições, de uma cultura específica para outras culturas. 41 Transculturação, nesta acepção, conota, de algum modo, uma postura etnocêntrica e/ou dominante da cultura emissora, autossuficiente na consciência da própria superioridade cultural. A cultura que assim opera, afetando as outras profundamente, tende, contudo, a não se deixar influenciar por elas. (AZEVEDO, 1986, p. 413). As reações e explicações sobre o ánthropos (o humano) extra- europeu aparecem pendulares entre o fascínio e a recusa. Exemplo desta postura de transculturação têm sido as relações caóticas ao longo da história de colonialismos de ontem e de hoje nos empreendimentos colonizadores dos europeus desde o Renascimento e a Modernidade. A colonização certamente não foi a única, mas, para a maioria dos estudiosos, foi a situação mais marcante no encontro dos europeus com os povos originários daqui e dos povos por eles trazidos como escravos do continente africano para o Brasil. Veja estes exemplos. Na obra “Pesquisas sobre os americanos ou relatos interessantes para servir à História da espécie humana”, publicada em 1774, Cornelius de Pauw propõe suas reflexões sobre os índios da América do Norte. Diz ele que os americanos têm "temperamento tão úmido quanto o ar e a terra onde vegetam" o que explica que eles não tenham nenhum desejo sexual. Em suma, são "infelizes que suportam todo o peso da vida agreste na escuridão das florestas; parecem mais animais do que vegetais". 42 Pauw chega à degradação moral e na quinta parte do livro, cuja primeira seção é intitulada “O gênio embrutecido dos americanos”, conclui: “A insensibilidade é neles um vício de sua constituição alterada; eles são de uma preguiça imperdoável, não inventam nada, não empreendem nada, e não estendem a esfera de sua concepção além do que vêem pusilânimes, covardes, irritados, sem nobreza de espírito, o desânimo e a falta absoluta daquilo que constitui o animal racional os tornam inúteis para si mesmos e para a sociedade. Enfim, os californianos vegetam mais do que vivem, e somos tentados a recusar-lhes uma alma.” (PAUW, 1974, apud LAPLANTINE, 2005, p. 43) Quanto à África, Hegel em sua obra Introdução à Filosofia da História (1830), se horroriza com o estado de natureza desses povos, que desacreditam em sua capacidade de fazer história e de ter consciência de si mesmos. Nesse escrito de Hegel, a América do Sul parece mais estúpida ainda do que a do Norte. A Ásia aparentemente não está muito melhor. Mas é a Africa, e, em especial, a África profunda do interior, onde a civilização nessa época ainda não penetrara, que representa para nosso importante filósofo a forma mais nitidamente inferior entre todas nessa infra-humanidade: "É o país do ouro, fechado sobre si mesmo, o país da infância, que, além do dia e da história consciente, está envolto na cor negra da noite". (HEGEL, 1830, p. 47)(...)Desta africanidade estagnante não há absolutamente nada a esperar. Ela ocupa rigorosamente em Hegel o lugar destinado à indianidade em Pauw. O negro nem mesmo se vê atribuir o estatuto de vegetal. 43 "Ele cai", escreve Hegel, "para o nível de uma coisa, de um objeto sem valor". (IDEM, p. 47). Visão transculturadora, etnocentrismos e etnocídios ameríndios Esta visão transculturadora e de etnocentrismos deixou marcas de etnocídios históricos e tem sido objeto de estudiosos, como Enrique Dussel (1986) e outros (GONÇALVES, 2010), como o genocídio no México, exposto no quadro 1.2 e cuja causa pode- se observar nos retalhos extraídos do diário de bordo de Colombo; também ele, o comandante, entre a admiração religiosa e a violência. Observe o momento da admiração de Colombo, assim descrito por Granzotto (1984, p. 193): “No grande vale do paraíso, numa esplêndida praia, uma multidão de índios guiados pelo jovem cacique Guacanagaré com idade aproximada de 20 anos acolheu os espanhóis. Colombo escreve que eram todos lindos, ‘as criaturas mais belas dentre todas que vi antes’. E ao rei escreve: ‘Vossa Alteza ficaria maravilhada ao ver a solenidade do jovem cacique índio diante de todos aqueles que o honravam, ainda que estivessem todos nus. Colombo prestou-lhe as honras como a um chefe de estado. Ofereceu bebidas e alimentos de Castela; o cacique aceitou por condescendência. Depois, voltou-se para seguir andando com uma dignidade solene; Colombo prestou-lhe as honras navais ordenando os disparos previstos. O cacique mostrou-se contente com tudo, mas não se voltou; prosseguiu caminhando com os quatro índios representantes de seu povo. 44 Mais tarde, após o naufrágio da nave ‘Santa Maria’, no Natal de 1492, Colombo volta a escrever, dizendo que o mesmo cacique da tribo Guacanagaré ordenou aos seus homens a operação de socorro. “Via-se no seu rosto uma expressão de dor sincera. Trabalharam com tamanho esforço que antes que a noite chegasse a obra de recuperação dos bens da nave já tinha terminado; não perdemos nem mesmo uma agulha”. (IDEM, p. 194). Colombo define o modo de ser dos índios com uma citação de João 15,17: “amam o próximo como a si mesmos!” E mais. O jovem cacique ofereceu hospitalidade nas casas de sua gente, duas das quais foram liberadas para guardar o que restou do naufrágio. A solidariedade na desventura era um valor espiritual plantado no coração da cultura originária. Colombo descreve ainda: “Vossa Alteza pode crer que esta ilha e todas as outras lhe pertencem como a própria Castela. Aqui não precisa mais nada para dominá-los e dar-lhes ordens, às quais os índios prontamente obedecerão. Eu, com os homens que tenho a bordo, se desse apenas uma ordem poderia conquistar todas as ilhas sem encontrar resistência. Os índios são nômades, não tem armas nem espírito guerreiro, andam nus e indefesos. Portanto, estão prontos a ser comandados e obrigados a trabalhar.” (GRANZOTTO, 1984, p.195). E Bartolomeu de Las Casas, amigo devoto e biógrafo de Colombo, já lembrado acima, lamenta: “Colombo não deveria jamais escrever estas palavras, porque deste seu modo de pensar malvado em relação aos índios; foi que iniciou-se o tratamento de crueldade e violência que nós não mais conseguimos frear.” (IDEM, p.196) 45 Etnocídios ameríndios Seguiu-se um interminável genocídio ou etnocídio feito pelos conquistadores, como você pode conferir no quadro de Dussel (1986) sobre o genocídio no México. População e demografia por regiões em épocas diferentes no México: Regiões altas 1532 1568 1580 1595 1608 I-Maciço Central 77.999.307 1.707.758 1.233.032 770.649 II-Vera Cruz Central 171.9884 32.340 21.560 20.200 IV-Oaxaca Misteca 1.560.931 222.165 150.620 146.740 VIII- Michoacán 1.038.668 188.398 161.299 96.913 IX- Guadalajara- Zacatecas 462.446 80.515 64.618 90.670 Subtotal 11.233.336 2.231.176 1.631.129 1.125.172 852.244 Regiões baixas 1532 1568 1580 1595 1608 II- Panuco/Vallés 1.532.860 74.087 42.370 45.690 III-Alvarado 710.230 37.682 32.207 17.876 46 Coatzacoalcos V-Oaxacas- Zapotecas 681.372 68.076 56.076 37.119 VI-Costa de Oaxaca 862.687 63.545 43.885 33.729 VII-Costas do México Mexhoacán- Tlaxcala 243.163 113.531 64.264 71.158 X-Costa de Guadalajara 614.760 61.476 21.336 41.484 Subtotal 16.871.408 418.397 260.138 247.056 217.011 Total 16.871.408 2.649.573 1.891.267 1.372.228 1.069.255 Quadro 1.2 – Genocídios no México Fonte: COOK e BORAH, 1960, p.48. Dussel (1986, p.) comenta que estas cifras que poderiam admirar-nos, parecem reais, a partir dos documentos que tivemos condições de consultar e diante das queixas repetidas pela constante diminuição da população índia. E se fizesse a busca estatística do mesmo fenômeno de extermínio e genocídio na América do Norte, o horror é, sem sombra de dúvida, bem maior. Os atos praticados pela colonização desde 1500 aos 900 povos do Brasil são aceitos hoje também como genocídios: uma 47 extinção paulatina de cinco milhões aos 350 mil índios de cerca de 250 etnias sobreviventes hoje no chão brasileiro. De acordo com os números referidos pelo etnógrafo Francisco Dias Tano, os Bandeirantes, nas ofensivas entre 1636-1638 às vinte e cinco reduções indígenas dos Sete Povos das Missões, transformaram em escravos e/ou mataram trezentos mil índios. Podemos ainda juntar a essas informações a reflexão de Teodorov que inspiraram o filme Apocalyptico, de Mel Gibson. Iunskovski (2011), a seguir, faz ponderações a partir deste autor e de outros que nos ajudam na avaliação dos olhares construídos neste momento histórico diante do diferente cultural. Alteridade – a questão do outro Roberto Iunskoviski Um caso típico de encontro com o outro foi a conquista da América por parte dos europeus. Na figura de Cristóvão Colombo, podemos verificar várias características da visão que se tem do outro e do tipo de relacionamento e comportamentos derivados de tal visão. Uma primeira atitude de Colombo é pensar que os índios são seres completamente humanos, com os mesmos direitos que ele, e aí os considera não somente iguais, mas idênticos, e este comportamento desemboca no assimilacionismo, ou seja, na projeção de seus próprios valores sobre os outros. 48 Colombo foi gradativamente passando do assimilacionismo, que implica em uma igualdade de princípio, à ideologia escravagista e, portanto, à afirmação da inferioridade dos índios. Esta atitude parte da diferença, que é imediatamente traduzida em termos de superioridade e inferioridade: recusa a existência de uma substância humana realmente outra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo. Estas duas figuras básicas da experiência da alteridade baseiam-se no egocentrismo, na identificação de seus próprios valores com os valores em geral, de seu eu com o universo; na convicção de que o mundo é um. O desejo de fazer com que os índios adotem os costumes dos espanhóis nunca vem acompanhado de justificativas; afirma Colombo, é algo lógico em si. A atitude de Colombo em relação a esta outra cultura é, na melhor das hipóteses, a de um colecionador de curiosidades, e nunca vem acompanhada de uma tentativa de compreender. Por exemplo, Colombo repara logo a nudez dos ameríndios; sinal, segundo ele, de inferioridade. Em sua opinião, são desprovidos de qualquer propriedadecultural: caracterizam-se, de certo modo, pela ausência de costumes, ritos, e religião. O não reconhecimento do direito dos índios à vontade própria implica que os considera, em suma, como objetos vivos. Assim, em seus impulsos de naturalista, sempre quer trazer à Espanha espécimes de todos os gêneros: árvores, pássaros, animais e “índios”; não lhe ocorre a ideia de pedir a opinião deles. Para ele, ser índio, e ainda por cima mulher, significa ser posto, automaticamente, no mesmo nível do gado. As duas posturas presentes em Colombo: ver o índio como “bom selvagem” ou como “cão imundo”, escravo em potencial, refletem a ideia comum da recusa em admitir que sejam sujeitos com os 49 mesmos direitos que ele, mas diferentes. “Colombo descobriu a América, mas não os americanos.” (Todorov, 1993, p. 47). Da parte dos índios, em vez de perceberem o fato como um encontro puramente humano, apesar de inédito – a chegada de homens ávidos de ouro e poder –integram-nos numa rede de relações naturais, sociais e sobrenaturais, onde o acontecimento perde sua singularidade, tornando-os, de certo modo, domesticados, absorvidos numa ordem de crenças pré- existentes, previstas no passado. As profecias (ideia de que os espanhóis eram deuses) exerceram efeito paralisante sobre os índios, que têm conhecimento dela e diminuem sua resistência. “Parece razoável pensar que um acontecimento dessa importância (como a descoberta da América) deve ser mencionado nas Santas Escrituras”. A conquista foi possível, portanto, por causa da incapacidade dos índios em perceber a identidade humana dos outros, isto é, admiti-los ao mesmo tempo, como iguais e como diferentes. Outro exemplo encontramos no conquistador Cortez, que fica em êxtase diante das produções astecas, mas não reconhece seus autores como individualidades humanas equiparáveis a ele. O mesmo ocorreu com os europeus do século XX e a arte africana. Numa obra publicada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, William Rubin e outros estudiosos fizeram um revelador cotejo de imagens. Página a página, documentam a dívida da arte que chamamos arte com arte dos povos primitivos, que é fonte de inspiração e de plágio. A obra de Picasso, que deu origem ao cubismo – Lês demoiselles d´Avingó, contém um dos numerosos exemplos. O rosto mais célebre do quadro, o que mais agride a simetria tradicional, é a reprodução exata de uma máscara do Congo exposta no Museu Real da África Central, na Bélgica, que representa um rosto deformado pela sífilis. 50 E A dívida dos países conquistadores junto aos outros, conquistados, não está apenas relacionada à usurpação de bens materiais, mas especialmente à escravidão e morte de milhões de pessoas, de civilizações inteiras. Lembremos que em 1500 a população do globo é estimada em 400 milhões, dos quais 80 milhões habitavam as Américas. Em meados do século XVI, desses 80 milhões, restavam 10 m. Ou, se nos restringirmos ao México: às vésperas da conquista, sua população é de aproximadamente 25 milhões; em 1600, é de 1 milhão. Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a um caso, então é esse. E este genocídio teve como causas: assassinatos, maus tratos, doenças/epidemias, atrocidades de toda ordem. José Roberto Goldim, pensando sobre a alteridade, lembra que Emanuel Lévinas, como um dos mais importantes autores de referência na reflexão moral contemporânea, mistura a tradição grega e a judaica. Uma de suas ideias básicas é a da alteridade, isto é, colocar o outro no lugar do ser. Nesta visão, o outro não é um objeto para um sujeito, ou seja, "... tudo começa pelo direito do outro e por sua obrigação infinita a este respeito. O humano está acima das forças humanas." (LÉVINAS, ano?, p.?). Na sua proposta, Lévinas, de certa forma, inverte as propostas da Lei de Ouro e do Imperativo Categórico. Ao invés do indivíduo agir frente ao outro como gostaria de ser tratado, como uma norma universal, é a descoberta do outro que impõe a conduta adequada. De acordo com Christiam Descamps (1991, p.85), "a relação com o Outro é a base de uma co-presença ética". Cada um é constantemente confrontado com um próximo. 51 Não sou Eu frente ao Próximo (Outro), mas sim os Outros continuamente frente a Mim. Esta proposta rompe com a perspectiva autonomista e individual para remetê-la a uma visão de rede social. Deixa de ter sentido a máxima "a minha liberdade termina quando começa a dos outros", sendo substituída pela proposta de que a minha liberdade é garantida pela liberdade dos outros. Ricardo Timm de Souza (2004, p. 162-174) escreveu que "a responsabilidade pelo outro que significa responsabilidade por si mesmo enquanto negação da neutralidade". Na alteridade, o que importa são as práticas, ou seja, a dimensão ética. No contato com o Outro (face-a-face), o ser humano não se experimenta, em primeiro lugar, como sendo dono do seu ser, mas sim estabelecendo uma abertura (através de relacionamentos, diálogos). Tendo direito, exige justiça. O outro como diferente não pode ser visto como oposto, mas como distinto, separado, pois possui identidade própria. É reconhecendo o outro como distinto, estabelecendo relações de diálogo, construtivas, de conversão, que consiste toda eticidade da existência. Ética é justiça; sendo assim é uma relação, pois ninguém pode ser justo sozinho. O outro é essencial na minha existência. Alteridade, portanto, quer dizer o relacionamento com o outro. Partimos da ideia de relação como o ordenamento de uma coisa em relação à outra, ou seja, uma realidade que para poder ser necessita de outra, senão não é. E também do conceito de relativo como o contrário de absoluto, isto é, sem o outro somos incompletos. Desta forma, o ser humano pode ser visto sob 3 perspectivas: 52 Indivíduo (indivisível, isolado, separado): próprio da mentalidade neoliberal, onde cada um é o único responsável por seu sucesso ou seu fracasso. Justifica a exclusão. Parte de um todo: visto como peça de uma máquina, próprio de mentalidades totalitaristas e massificadoras. Favorece a dominação. Ser de relações = assim é que se torna pessoa, que é um (unidade), mas ao mesmo tempo não pode ser sem os outros. Vamos nos constituindo quais seres humanos, como resultado de milhares de relações que estabelecemos todo dia. Algumas visões eurocêntricas sobre a África A visão que vimos nesta unidade em Hegel sobre a África possibilita-nos medir o contexto favorável à redução de mercadoria do ánthropos em milhares de povos africanos transportados no vergonhoso comércio da escravidão que gerou a imensa diáspora africana. Desde os primeiros anos de escola temos estudado algumas informações sobre este outro fato que exemplifica atitudes de relação etnocêntrica e transculturadora em nossa história recente de 450 anos, desde que chegou a primeira caravela de escravos africanos forçados a trabalharem aqui desde 1550. Gonçalves (1995, p. 76ss) mostra que o que horroriza mais nesta coisificação de pessoas é sua garantia legal consignada pela Lei do Padroado português. A cidadania do originário, do judeu, do negro e das pessoas com deficiência nas Constituições da Bahia de 1707, as primeiras do Brasil, é restrita. Eles não poderiam ter acesso às ordens sacras, por exemplo. No Título LIII, art. 224, as alíneas determinam o impedimento para as seguintes categorias de pessoas: 53 “Se tem parte de nação Hebrea, ou de outra raça qualquer infecta: ou de Negro ou Mulato. Se é captivo (sic),