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Disciplina: Ontologia Curso: Licenciatura em Filosofia UNIDADE 1 INTRODUÇÃO A PROBLEMÁTICA DO SENTIDO DO SER E DA EXISTÊNCIA Saber Humano, ISSN 2446-6298, Edição Especial: Cadernos de Ontopsicologia, p. 291-298, fev., 2016. 291 Saber Humano-Revista Científica da Faculdade Antonio Meneghetti A Metafísica do Ser: um estudo filosófico para a vida Caroline Vogel de Oliveira 1 Resumo: Este estudo tem como objetivo aprofundar conhecimentos sobre o Ser, dentro da temática filosófica da metafísica, em perceber além das coisas físicas, que há algo que opera, uma força inteligente que move a vida. O método para a realização do trabalho aconteceu por meio de pesquisa bibliográfica e estudo teórico. Neste sentido, verificamos que estudar sobre o Ser resulta em uma importante realização intelectual e existencial para o ser humano. Palavras-chave: ser; ontologia; metafísica; nexo ontológico. The Metaphysics of Being: a philosophical study for life Abstract: This study aims to deepen knowledge of the Self, within the philosophical theme of metaphysics, to perceive beyond the physical things, there is something that works, an intelligent force behind life. The method for carrying out the work took place through literature and theoretical study. In this regard, we note that study about the Self results in a major intellectual and existential realization for humans. Keywods: Self; ontology; metaphysics; ontological nexus. 1 carolinevogeloliveira@hotmail.com Saber Humano, ISSN 2446-6298, Edição Especial: Cadernos de Ontopsicologia, p. 291-298, fev., 2016. 292 Saber Humano-Revista Científica da Faculdade Antonio Meneghetti 1 Introdução “A vida deve ser estudada e indagada lá onde aparece suprema, mais elevada segunda nossa experiência, vale dizer no homem. É inútil buscar a vida dentro de um fóssil, ou dentro de uma planta. Indaguemos, em vez disso, os horizontes do ser psíquico do homem, que nos dirá muito mais” (MENEGHETTI, 2004, p. 18). A cada amanhecer e anoitecer, existe algo que está dentro de cada indivíduo, algo que o faz existir no aqui e agora, algo que não se vê, mas que faz evidência. Este estudo de base filosófica é uma pequena síntese do conhecimento sobre uma força que move tudo sem ser movida, que faz vida, o Ser transcendente, o Ser como princípio universal de tudo o quanto existe ou é real. Há sempre uma forma de vida. Algo que ordena, sem ser ordenado, uma inteligência que não nasce, mas, faz tudo nascer. O objetivo do trabalho é indagar-se: o que é o Ser? De que modo ele é? Qual a relação que há entre o Ser com as diversas individuações do universo? Como percebê-lo sendo nós humanos? Cada humano o tem? E como tocá-lo? De que modo a Ontopsicologia explica o Ser? Justifica-se este tema pela relevância que ele tem como forma de entendimento para a identidade do ser humano. É fato que, recebem-se informações junto as quais se esquece de ver a vida como um todo, buscam-se soluções através de fatos físicos, matéricos, do modo como a tecnologia resolve os problemas através do externo. Desta forma, indaga-se no decorrer do estudo se, o homem, não compreendendo o que é o Ser, pode ser modificado da sua forma originária, se ele reconhece a sua natureza. Como resultado, busca-se entender o Ser, também como forma de encontrar a natureza original do homem, é um resolver interno, resgatar o conhecimento próprio, o conhecimento organísmico. Busca-se a evidência oferecida pela natureza, que sustenta o conhecer do ser humano. Por fim, a verdade só é verdadeira se o sujeito é verdadeiro, como já dizia o filósofo Sócrates na Antiguidade Clássica: “Conhece a ti mesmo”. 2 Fundamentação Teórica A vida é um fato a ser entendido, observado, instigado. Esta se resplandece a cada momento, no aqui, no agora. Entender a vida é entender o que se é, para que se vive, o que se vê e principalmente o que se faz, pois com ela não basta acreditar, é preciso agir. Viver é uma alegria, o saber viver é uma festa para a alma, é saber buscar o que é vivo para dentro de si. “Vida: o lugar da força. Semovência autônoma a um intrínseco fim no particular e no total” (MENEGHETTI, 2012, p. 269). Saber Humano, ISSN 2446-6298, Edição Especial: Cadernos de Ontopsicologia, p. 291-298, fev., 2016. 293 Saber Humano-Revista Científica da Faculdade Antonio Meneghetti Compreender de fato o que é a vida, o que é o projeto da natureza de cada ser humano é uma tarefa de responsabilidade e também de magnitude. O filósofo Heráclito já dizia: “Máxima virtude é ser sábios e a sabedoria consiste em dizer e fazer coisas verdadeiras, compreendendo-as segundo a sua natureza” (CAROTENUTO, 2009, p. 15). Buda, também tem uma passagem muito interessante sobre o que para ele significava a vida: Conta-se que certa vez Buda, interpelado sobre a vida, serviu-se deste fato para explicar. Fez trazer a si um elefante, e depois, colocou ao seu redor dez ou quinze homens cegos e convidou-os a tocar o animal, permanecendo parados onde se encontravam. Disso resultou que os cegos definiam de acordo com as partes que tocavam. A vida não pode ser conhecida por inteiro enquanto cada existente tende a ressaltar o seu ponto de observação, não conseguindo superar o fato de que espaço- tempo são unidades de medida convencionadas à nossa ótica, ao nosso modo de caminhar, mas não são absolutas. Não temos objetividade de existência enquanto pretendemos nos relacionar ao absoluto com medidas relativas ao nosso ponto de observação. O nosso nada é um nada de relação, jamais é um nada absoluto. Em si e por si existe somente o ser. O nada é a projeção dos limites da individuação no âmbito da existência (MENEGHETTI, 2004, p. 22). Conhecer a vida por inteiro, é abraçar o real, que realidade? Aquela que cada um possui. Esta é uma força, um instinto. De que lugar ele vem? Para que lugar vai? Como conhecer o real sem apenas definir com as pequenas partes que conhecemos segundo nossa lógica? Segundo nosso modo, as nossas medidas, aquilo que chamamos de tempo? Duns Scotus, filósofo medieval, descreve sobre abraçar o real, a possibilidade que a psique humana tem de assumi-lo e compreendê-lo. Considera a noção unívoca de ente como objeto primeiro do intelecto: é a noção que define a extensão das possibilidades cognoscitivas humanas. De fato, como conceito de ente é aplicável univocamente a tudo o que é, assim o nosso intelecto pode atingir naturalmente qualquer ente. Portanto, também na atual condição, o homem pode assumir, graças ao conceito unívoco de ente, um ponto de vista que consente abraçar a totalidade do real (CAROTENUTO, 2009, p.53-54). Se ente, é tudo aquilo que é, há uma força que move, e que já é. Há uma intelectualidade que faz tudo se mover em completa harmonia. Uma harmonia que o ser humano pode e deve buscar para a sua vida. Meneghetti (2004), descreve que seria impossível a vida existir por apenas uma força da Terra sozinha: “A vida não poderia existir por força intrínseca da Terra sozinha. Nós somos os resultados e as reflexões de todo um conjunto cósmico: esta vida, neste planeta, é determinada por um particular sincronismo interplanetário e interestrelar. Como um certo números de átomos proporcionais entre si, efetua uma molécula específica, assim as relações energéticas de variáveis cósmicas efetuam um modo de vida que chamamos existência terrestre” (MENEGHETTI, 2004, p. 24). Saber Humano,ISSN 2446-6298, Edição Especial: Cadernos de Ontopsicologia, p. 291-298, fev., 2016. 294 Saber Humano-Revista Científica da Faculdade Antonio Meneghetti Partindo deste pretexto, pode-se afirmar que existe um Ser, um princípio que move tudo sem ser movido, faz gerar a vida, enquanto ele é vida. Anaxágoras falou desta força, deste Deus, conceituando-o como nùs (transliteração da língua grega ao português): “Ele é a única realidade absoluta e ilimitada e a ele competem duas funções – além daquela de princípio vital e cosmogônico que põe em movimento a massa indistinta das sementes – conhecer e governar todas as coisas, enquanto se o conhecimento é possível por contraste, a nùs sendo diversa de cada coisa pode conhece-las todas (CAROTENUTO, 2009, p.16). Esta força conhece todas as coisas e faz todas as coisas diferenciarem-se, não há uma igual a outra. Cada vida já tem um projeto feito para si, já nasceu para ser aquela concepção. Assim, também se estende ao ser humano, um assunto muito questionável ao longo da história: a relação do homem com o Ser. Que força é esta, verdadeira amiga do homem? Que mestre é este que está dentro de cada ser humano? Já somos escolhidos antes de estar no ventre? Somos chamados? Mas o nosso existir em referência ao transcendente, ao Ser, a Deus, que valor tem? Nós não somos diretamente escolhidos pelo Em Si avulso da história; todavia, a partir do momento em que a história nos determina, nós vivemos com a mesma importância do Ser em si. Através da história passa a identidade do Em Si; o ser atua-se, fenomeniza-se exatamente no aqui e agora dos nossos ascendentes, da nossa situação espaço-tempo. A partir do momento em que eu aconteço, necessariamente sou amado, sou desejado, necessariamente sou chamado desde sempre (MENEGHETTI, 2004, p. 29). Como o humano entende que há um Ser que o chamou para a história, lhe deu um projeto de vida? Meneghetti (2010), acrescenta que enquanto se vive é necessária uma passagem metafísica: “Todavia, enquanto se vive, resta uma oportunidade e é a passagem ao metafísico: de qualquer posição que se encontre, o sujeito pode se deparar, como próprio encontro secreto naquele além que é sempre aqui. É uma consolação mística” (MENEGHETTI, 2010, p. 278). Por metafísica conceitua: “A “metafísica”, propriamente é a racionalidade elementar que se refere ao ser. A ontologia pura é metafísica. O termo “metafísica” usa-se, propriamente, apenas para os modelos mentais em relação ao ser (MENEGHETTI, 2014, p. 13). Também descreve a importância de compreender o que é a ontologia: “Para compreender profundamente a experiência da psicologia é preciso ter uma formação, uma experiência filosófica de ontologia. (...) é a ciência, o discurso sobre o ser. Ontologia é a descrição e compreensão do ser, dos seus modos, relações e das próprias fenomenologias (MENEGHETTI, 2010, p. 272). Saber Humano, ISSN 2446-6298, Edição Especial: Cadernos de Ontopsicologia, p. 291-298, fev., 2016. 295 Saber Humano-Revista Científica da Faculdade Antonio Meneghetti A tentativa da Ontopsicologia é elucidação do ser em referência, isto é, um favorecer a experiência consciente do ser enquanto está referindo-se, um mostrar ótica fora da alteração verbalística, um tornar o ôntico ontológico. Tal tentativa não pertence, por ordem fatal, a alguns predestinados, mas é direito e dever de todos. Jesus dizia: “sois como deuses, o reino de Deus está dentro de vós, sede perfeitos como perfeito é o vosso Pai”. A experiência que me conheço me faz sentir comum; o que eu sou é de todos (MENEGHETTI, 2003, p. 197). O que é tornar o ôntico ontológico? Por ôntico entende-se: “genitivo do particípio presente do verbo ser. Participado pelo ser em si. O que constitui o princípio para qualquer possibilidade ou fato de existir. Atualidade da causa primeira de um processo. O princípio pelo qual é, ou não é” (MENEGHETTI, 2012, p. 188). Em forma simples, Ser o que se “é” por natureza, compreender a si, e assim, compreender o ser, suas fenomenologias. “Ninguém pode entender a vida em si enquanto a sua consciência estiver fora do contato com o Em Si ôntico, única presença do originário metafísico. Qualquer homem que chega a conscientizar o próprio Em Si ôntico conhece a voz do Pai e, daqui, sabe toda revelação” (MENEGHETTI, 2003, p. 196). Trata-se de uma realidade simples, quotidiana, contínua, total: é ou não é. Qualquer coisa que se correlacione a esta cópula – “é”- a este ente, ou seja, dado primordial da racionalidade e da experiência humana, que não é constituído pelos sentidos, pela matéria, ou pelo sujeito, mas pelo “é”: ou é, ou não é. Se não é, opera-se uma negação. Essa sumidade metafísica, portanto, é quotidiana, é algo com o qual o sujeito faz o jogo e o jogador. Qualquer modo, ou é fundamentado no ser, ou não tem sentido” (MENEGHETTI, 2014, p. 23). Também se torna válido o discurso sobre o que é o Ser para Meneghetti (2012). Este o conceitua do seguinte modo (2012, p. 244): Ser: Princípio universal do quanto existe ou é real. O ser é o primeiro simples geral que consente a lógica apriórica entre ser e não ser. Em Ontopsicologia, distinguem- se três modos de ser: a) Metafísico ou Ser transcendente, ou Ser como Deus; b) Comum, ou ser como participação universal de todas as coisas; c) Individual, ou ser como participação de mim existente aqui e agora. O Em Si ôntico é mediador dessas três realidades: com base no Ser transcendente, o Em Si ôntico tem a relação com o primeiro princípio; com base no ser comum, o Em Si ôntico tem a relação com o cosmo, com o universo, com a vida; com base no ser individual, o Em Si ôntico tem a relação com o homem enquanto ecceidade histórica, pela qual assinala a própria irrepetibilidade (MENEGHETTI, 2012, p. 244). Ou seja, na prática, cada pessoa como ser humano, com seu Em Si ôntico, seu projeto de natureza faz relação com o Ser de modo metafísico, depois, através do Em Si ôntico, faz relação com a vida, com o que encontra no universo, existe uma unidade de ação universal, é a operatividade da intelectualidade do ser, é a psique. E, também através do Em Si ôntico, cada pessoa é exclusiva aqui (ecceidade), tem uma experiência Saber Humano, ISSN 2446-6298, Edição Especial: Cadernos de Ontopsicologia, p. 291-298, fev., 2016. 296 Saber Humano-Revista Científica da Faculdade Antonio Meneghetti máxima daquela presença que a identifica, faz a sua participação do aqui agora daquilo que é. O ser se diferencia conforme as individuações (pedra, ser humano, flor, pinheiro, carvalho, água, etc.): do genérico ser, começam infinitas estradas de variáveis que fazem a dialética existencial dos cosmos. Cada um é diferente: a pedra não é homem, o homem não é a árvore e assim por diante. O que é que os faz variar? É o projeto. O ser, quando acontece, acontece com um projeto, com uma informação. O Em Si ôntico é a especificidade como o ser se presencia, se individua aqui, agora e assim. É a identidade informacional do sujeito em dialética existencial: é o projeto e o projetante (MENEGHETTI, 2010, p. 274). Para Vidor (2015), “para entender o ser não se deve partir da consciência, mas do fato existencial é o corpo em todas as variações dele, o sonho, as emoções, sentimentos. Infinidades de variações do corpo como antenas. E dar atenção ao íntimo da mente que se chama intelecto”. Se partimos do que está em nossa consciência, esta pode estar embaçada, e esquecemos que somos a realidade do Ser. Quando não se chega a esta percepção, vive-se com outro em si mesmo, acreditam-se em tantas outras convicções, culturas, religiões, o que a família, amigos dizem. E, se esqueceque há um projeto que é só seu, irrepetível. Tudo é, todos os homens são, e cada um se diferencia no interior do ser. A individuação é um dos infinitos modos de participação do ser, é ecceidade do ser, é aquele indivíduo específico. Dois sujeitos, “A” e “B”, mesmo tendo em comum a participação ao ser, são distintos. Disso se deduz que o ser é transcendente, enquanto está em tudo, mas contemporaneamente, em cada um é irrepetível: “A” é somente “A”, aqui, assim, agora, como. Não existe identidade, realidade sem o ser: essa nasce de modo em que o ser se faz ecceico aqui. Dos diversos “aqui” nasce a infinita dialética da sociedade, ou seja, do indivíduo no tempo, no espaço, entro os outros (MENEGHETTI, 2010, p. 273). Outro ponto a ser destacado, é que fomos ensinados a compreender aquilo que se vê, algo que faz matéria, racionalidade. Como se a psique não devesse ser estudada, como se não se deve utilizar esta inteligência com aquilo que somos. Acaba-se deixando “escapar” informações que a vida traz, mostra, aquilo que é a realidade de cada um. Devemos concordar que estamos cindidos no nosso modelo de realidade; estamos habituados que o real existe na medida em que toco externamente aqui e que o mesmo altera a realidade corpórea. As coisas estando assim, explica-se a desconfiança que sentem todos aqueles que afrontam a investigação do profundo do homem: este profundo que convém denominar psíquico (MENEGHETTI, 2005, p. 19). A atividade psíquica é o agir do Ser, ele age através dela evadindo o tempo e o espaço que nós humanos condicionamos. Esta, age de modo ordenado. “A realidade psíquica, sendo o fundamento das outras realidades sensoriais, possui velocidades, possui relações desconhecidas aos nossos sentidos; é superior, funda todos os outros Saber Humano, ISSN 2446-6298, Edição Especial: Cadernos de Ontopsicologia, p. 291-298, fev., 2016. 297 Saber Humano-Revista Científica da Faculdade Antonio Meneghetti sentidos. A psique, pelo seu extremo grau de amplitude, pode intercambiar os tempos, os lugares. A realidade psíquica tem a possibilidade de transferir-se sem ser necessitada pela progressão” (MENEGHETTI, 2005, p. 21). “A atividade psíquica pura não é tanto energia, mas é o processo de formalização” (MENEGHETTI, 2012, p. 27). Compreendendo as passagens do Ser, através do Em Si ôntico, do projeto de natureza de cada pessoa, chega-se ao nexo ontológico. Para Vidor (2015), “se o momento reflexivo-psicológico é igual ao real que sou, é igual a ação ôntica, o saber segue e é conforme a lógica do ser. O único ponto firme que o homem tem é o próprio Em Si ôntico. Ele é a raiz ou núcleo que informa o saber coincidente ao próprio ser. O nexo ontológico é o critério que fundamenta a veracidade de todas as ciências” (VIDOR, Apostila Filosofia e Lógica, Bacharelado em Ontopsicologia, 2015, s/p). Ser fiel naquilo que verdadeiramente sou. Neste sentido encontramos na obra de Antonio Meneghetti (2004): A fidelidade ao meu ato de existir determina a plenitude sempre em crescimento, porque onde eu existo, me amo, me reconheço, determino novamente o sentido nascente acrescente. Através de mim, acontece qualquer forma de milagre, qualquer forma de sucesso (MENEGHETTI, 2004, p. 30). Esta é a proposta de ser. “Limpar” a consciência, e ser uno ao todo. O eu só é real quando age a lógica do próprio Em Si ôntico. O Ser está em todas as coisas. Começou tudo através de uma intenção. Uma energia que independe da matéria, é atividade psíquica. Por fim, o homem é um ente inteligente, que enquanto há vida, sempre está direcionado à intenção de realizar um projeto, o seu projeto. O meu é um discurso filosófico e psicológico, e não entendo subverter as pedagogias sociais existentes e muito menos fundar um partido ou uma nova religião, mas diminuir a solidão dos que chegam além e pedir-lhes que não se paralisem. A consciência ôntica é um sacerdócio solitário sem paternalismos protetores. (...) O homem verdadeiro é no estilo de um sacerdócio solitário que honra o Em Si eterno na oferta da existência comum sem um “imprimatur” de paternidade exterior... (MENEGHETTI, 2003, p. 197). Referências CAROTENUTO, M. Histórico sobre as teorias do conhecimento. Recanto Maestro: Ontopsicologica Editrice, 2009. MENEGHETTI, A. Ontopsicologia Clínica. 3. ed. Recanto Maestro: Ontopsicologica Editrice, 2005. MENEGHETTI, A. Dicionário de Ontopsicologia. 2. ed. Recanto Maestro: Ontopsicológica Editora Universitária, 2012. Saber Humano, ISSN 2446-6298, Edição Especial: Cadernos de Ontopsicologia, p. 291-298, fev., 2016. 298 Saber Humano-Revista Científica da Faculdade Antonio Meneghetti MENEGHETTI, A. Manual de Ontopsicologia. 4. ed. Recanto Maestro: Ontopsicologica Editrice, 2010. MENEGHETTI, A. Da consciência ao ser. Recanto Maestro: Ontopsicológica Editora Universitária, 2014. MENEGHETTI, A. O Em Si do homem. 5. ed. Recanto Maestro: Ontopsicologica Editrice, 2004. MENEGHETTI, A. Filosofia Ontopsicológica. 5. ed. Florianópolis: Ontopsicologica Editrice, 2003. Parmênides. Da Natureza. Tradução do Professor Dr. José Gabriel Trindade Santos. Modificada pelo tradutor. Primeira edição, Loyola, São Paulo, Brasil, 2002. Original em grego, conforme o texto estabelecido por J. Burnet. Parmênides, PERI PHYSEÔS I Ἵπποι ταί με φέρουσιν, ὅσον τ΄ ἐπἱ θυμὸς ἱκάνοι, πέμπον, ἐπεί μ΄ ἐς ὁδὸν βῆσαν πολύφημον ἄγουσαι δαίμονος, ἣ κατὰ πάντ΄ ἄστη φέρει εἰδότα φῶτα· τῇ φερόμην· τῇ γάρ με πολύφραστοι φέρον ἵπποι [5] ἅρμα τιταίνουσαι, κοῦραι δ΄ ὁδὸν ἡγεμόνευον. Ἄξων δ΄ ἐν χνοίῃσιν ἵει σύριγγος ἀυτήν αἰθόμενος - δοιοῖς γὰρ ἐπείγετο δινωτοῖσιν κύκλοις ἀμφοτέρωθεν -, ὅτε σπερχοίατο πέμπειν Ἡλιάδες κοῦραι, προλιποῦσαι δώματα Νυκτός, [10] εἰς φάος, ὠσάμεναι κράτων ἄπο χερσὶ καλύπτρας. Ἔνθα πύλαι Νυκτός τε καὶ Ἤματός εἰσι κελεύθων, καί σφας ὑπέρθυρον ἀμφὶς ἔχει καὶ λάινος οὐδός· αὐταὶ δ΄ αἰθέριαι πλῆνται μεγάλοισι θυρέτροις· τῶν δὲ Δίκη πολύποινος ἔχει κληῖδας ἀμοιϐούς. [15] Τὴν δὴ παρφάμεναι κοῦραι μαλακοῖσι λόγοισιν πεῖσαν ἐπιφράδέως, ὥς σφιν βαλανωτὸν ὀχῆα ἀπτερέως ὤσειε πυλέων ἄπο· ταὶ δὲ θυρέτρων χάσμ΄ ἀχανὲς ποίησαν ἀναπτάμεναι πολυχάλκους ἄξονας ἐν σύριγξιν ἀμοιϐαδὸν εἰλίξασαι [20] γόμφοις καὶ περόνῃσιν ἀρηρότε· τῇ ῥα δι΄ αὐτέων ἰθὺς ἔχον κοῦραι κατ΄ ἀμαξιτὸν ἅρμα καὶ ἵππους. Καί με θεὰ πρόφρων ὑπεδέξατο, χεῖρα δὲ χειρί δεξιτερὴν ἕλεν, ὧδε δ΄ ἔτος φάτο καί με προσηύδα· ὦ κοῦρ΄ ἀθανάτοισι συνάορος ἡνιόχοισιν, [25] ἵπποις ταί σε φέρουσιν ἱκάνων ἡμέτερον δῶ, χαῖρ΄, ἐπεὶ οὔτι σε μοῖρα κακὴ προὔπεμπε νέεσθαι τήνδ΄ ὁδόν - ἦ γὰρ ἀπ΄ ἀνθρώπων ἐκτὸς πάτου ἐστίν-, ἀλλὰ θέμις τε δίκη τε. Χρεὼ δέ σε πάντα πυθέσθαι ἠμέν Ἀληθείης εὐκυκλέος ἀτρεμὲς ἦτορ [30] ἠδὲ βροτῶν δόξας, ταῖς οὐκ ἔνι πίστις ἀληθής. Ἀλλ΄ ἔμπης καὶ ταῦτα μαθήσεαι, ὡς τὰ δοκοῦντα χρῆν δοκίμως εἶναι διὰ παντὸς πάντα περῶντα. Parmênides, Da Natureza I Os corcéis que me transportam, tanto quanto o ânimo me impele, conduzem-me, depois de me terem dirigido pelo caminho famoso da divindade, que leva o homem sabedor por todas as cidades. Por aí me levaram, por aí mesmo me levaram os habilíssimos corcéis, puxando o carro, enquanto as jovens mostravam o caminho. O eixo silvava nos cubos como uma siringe, incandescendo (ao ser movido pelas duas rodas que vertiginosamente o impeliam de um e de outro lado), quando se apressaram as jovens filhas do sol a levar-me, abandonando a região da Noite para a luz, libertando com as mãos a cabeça dos véus que a escondiam. Aí está o portal que separa os caminhos da Noite e do Dia, encimado por um dintel e um umbral de pedra; o portal, etéreo, fechado por enormesbatentes, dos quais a Justiça vingadora detém as chaves que os abrem e fecham. A ela se dirigiram as jovens, com doces palavras, persuadindo-a habilmente a erguer para elas por um instante a barra do portal. E ele abriu-se, revelando um abismo hiante, enquanto fazia girar, um atrás do outro, os estridentes gonzos de bronze, fixados com pregos e cavilhas. Por aí, através do portal, as jovens guiaram com celeridade o carro e os corcéis. E a deusa acolheu-me de bom grado, mão na mão direita tomando, e com estas palavras se me dirigiu: “Ó jovem, acompanhante de aurigas imortais, tu, que chegas até nós transportado pelos corcéis, Salve! Não foi um mau destino que te induziu a viajar por este caminho – tão fora do trilho dos homens –, mas o Direito e a Justiça. Terás, pois, de tudo aprender: o coração inabalável da verdade fidedigna e as crenças dos mortais, em que não há confiança genuína. Mas também isso aprenderás: como as aparências têm de aparentemente ser, passando todas através de tudo”. II Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω, κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας, αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι· ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι, Πειθοῦς ἐστι κέλευθος - Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ -, [5] ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι, τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν· οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν - οὔτε φράσαις· ΙΙΙ ... τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι. ΙV Λεῦσσε δ΄ ὅμως ἀπεόντα νόῳ παρεόντα βεϐαίως· οὐ γὰρ ἀποτμήξει τὸ ἐὸν τοῦ ἐόντος ἔχεσθαι οὔτε σκιδνάμενον πάντῃ πάντως κατὰ κόσμον οὔτε συνιστάμενον. V Ξυνὸν δέ μοί ἐστιν, ὁππόθεν ἄρξωμαι· τόθι γὰρ πάλιν ἵξομαι αὖθις. B2 Vamos, vou dizer-te – e tu escuta e fixa o relato que ouviste – quais os únicos caminhos de investigação que há para pensar: um que é, que não é para não ser; é caminho de confiança (pois acompanha a verdade); (5) o outro que não é, que tem de não ser, esse te indico ser caminho em tudo ignoto, pois não poderás conhecer o que não é, não é consumável, nem mostrá-lo [...] B3 ... pois o mesmo é pensar e ser. B4 Nota também como o que está longe pela mente se torna firmemente presente: pois não separarás o ser da sua continuidade com ser, nem dispersando-o por toda a parte segundo a ordem do mundo, nem reunindo-o. B5 [...] para mim é o mesmo Por onde hei de começar: pois aí tornarei de novo. VΙ Χρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ΄ ἐὸν ἔμμεναι· ἔστι γὰρ εἶναι, μηδὲν δ΄ οὐκ ἔστιν· τά σ΄ ἐγὼ φράζεσθαι ἄνωγα. Πρώτης γάρ σ΄ ἀφ΄ ὁδοῦ ταύτης διζήσιος <εἴργω>, αὐτὰρ ἔπειτ΄ ἀπὸ τῆς, ἣν δὴ βροτοὶ εἰδότες οὐδέν [5] πλάττονται, δίκρανοι· ἀμηχανίη γὰρ ἐν αὐτῶν στήθεσιν ἰθύνει πλακτὸν νόον· οἱ δὲ φοροῦνται. κωφοὶ ὁμῶς τυφλοί τε, τεθηπότες, ἄκριτα φῦλα, οἷς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ εἶναι ταὐτὸν νενόμισται κοὐ ταὐτόν, πάντων δὲ παλίντροπός ἐστι κέλευθος. VΙΙ Οὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα· ἀλλὰ σὺ τῆσδ΄ ἀφ΄ ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόημα· μηδέ σ΄ ἔθος πολύπειρον ὁδὸν κατὰ τήνδε βιάσθω, νωμᾶν ἄσκοπον ὄμμα καὶ ἠχήεσσαν ἀκουήν [5] καὶ γλῶσσαν, κρῖναι δὲ λόγῳ πολύδηριν ἔλεγχον ἐξ ἐμέθεν ῥηθέντα. B6 É necessário que o dizer e pensar que é sejam; pois podem ser, enquanto nada não é: nisto te indico que reflitas. Desta primeira via de investigação te <afasto>, e logo também daquela em que os mortais, que nada sabem, (5) vagueiam, com duas cabeças: pois a incapacidade lhes guia no peito a mente errante; e são levados, surdos ao mesmo tempo que cegos, aturdidos, multidão indecisa, que acredita que o ser e o não ser são o mesmo e o não mesmo, para quem é regressivo o caminho de todas as coisas. B7 Pois nunca isto será demonstrado: que são coisas que não são; mas afasta desta via de investigação o pensamento, não te force por este caminho o costume muito experimentado, deixando vaguear olhos que não veem, ouvidos soantes (5) e língua, mas decide por argumento a prova muito disputada de que falei. VΙΙΙ Μόνος δ΄ ἔτι μῦθος ὁδοῖο λείπεται ὡς ἔστιν· ταύτῃ δ΄ ἐπὶ σήματ΄ ἔασι πολλὰ μάλ΄, ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν, ἔστι γὰρ οὐλομελές τε καὶ ἀτρεμὲς ἠδ΄ ἀτέλεστον· [5] οὐδέ ποτ΄ ἦν οὐδ΄ ἔσται, ἐπεὶ νῦν ἔστιν ὁμοῦ πᾶν, ἕν, συνεχές· τίνα γὰρ γένναν διζήσεαι αὐτοῦ; πῇ πόθεν αὐξηθέν ; οὔτ΄ ἐκ μὴ ἐόντος ἐάσσω φάσθαι σ΄ οὐδὲ νοεῖν· οὐ γὰρ φατὸν οὐδὲ νοητόν ἔστιν ὅπως οὐκ ἔστι. Τί δ΄ ἄν μιν καὶ χρέος ὦρσεν [10] ὕστερον ἢ πρόσθεν, τοῦ μηδενὸς ἀρξάμενον, φῦν ; οὕτως ἢ πάμπαν πελέναι χρεών ἐστιν ἢ οὐχί. Οὐδὲ ποτ΄ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς γίγνεσθαί τι παρ΄ αὐτό· τοῦ εἵνεκεν οὔτε γενέσθαι οὔτ΄ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη χαλάσασα πέδῃσιν, [15] ἀλλ΄ ἔχει· ἡ δὲ κρίσις τούτων ἐν τῷδ΄ ἔστιν· ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν· κέκριται δ΄ οὖν, ὥσπερ ἀνάγκη, τὴν μὲν ἐᾶν ἀνόητον ἀνώνυμον - οὐ γὰρ ἀληθής ἔστιν ὁδός - τὴν δ΄ ὥστε πέλειν καὶ ἐτήτυμον εἶναι. Πῶς δ΄ ἂν ἔπειτα πέλοιτὸ ἐόν ; πῶς δ΄ ἄν κε γένοιτο ; [20] εἰ γὰρ ἔγεντ΄, οὐκ ἔστι, οὐδ΄ εἴ ποτε μέλλει ἔσεσθαι. Τὼς γένεσις μὲν ἀπέσϐεσται καὶ ἄπυστος ὄλεθρος. Οὐδὲ διαιρετόν ἐστιν, ἐπεὶ πᾶν ἐστιν ὁμοῖον· οὐδέ τι τῇ μᾶλλον, τό κεν εἴργοι μιν συνέχεσθαι, οὐδέ τι χειρότερον, πᾶν δ΄ ἔμπλεόν ἐστιν ἐόντος. [25] Τῷ ξυνεχὲς πᾶν ἐστιν· ἐὸν γὰρ ἐόντι πελάζει. Αὐτὰρ ἀκίνητον μεγάλων ἐν πείρασι δεσμῶν ἔστιν ἄναρχον ἄπαυστον, ἐπεὶ γένεσις καὶ ὄλεθρος τῆλε μάλ΄ ἐπλάχθησαν, ἀπῶσε δὲ πίστις ἀληθής. Ταὐτόν τ΄ ἐν ταὐτῷ τε μένον καθ΄ ἑαυτό τε κεῖται [30] χοὔτως ἔμπεδον αὖθι μένει· κρατερὴ γὰρ Ἀνάγκη πείρατος ἐν δεσμοῖσιν ἔχει, τό μιν ἀμφὶς ἐέργει, οὕνεκεν οὐκ ἀτελεύτητον τὸ ἐὸν θέμις εἶναι· ἔστι γὰρ οὐκ ἐπιδεές· μὴ ἐὸν δ΄ ἂν παντὸς ἐδεῖτο. B8 Só falta agora falar do caminho que é. Sobre esse são muitos os sinais de que o ser é ingénito e indestrutível, pois é compacto, inabalável e sem fim; (5) não foi nem será, pois é agora um todo homogêneo, uno, contínuo. Com efeito, que origem lhe investigarias? como e onde se acrescentaria? Nem do não-ser te deixarei falar, nem pensar: pois não é dizível, nem pensável, visto que não é. E que necessidade o impeliria (10) a nascer, depois ou antes, começando do nada? E assim, é necessário que seja de todo, ou não. Nem a força da confiança consentirá que do que não é nasça algo ao pé dele. Por isso nem nascer, nem perecer, permite a Justiça, afrouxando as cadeias, (15) mas sustém-nas: esta é a decisão acerca disso – é ou não é –; decidido está então, como necessidade, deixar uma das vias como impensável e inexprimível (pois não é via verdadeira), enquanto a outra é autêntica. Como poderia o que é perecer? Como poderia gerar-se? (20) Pois, se era, não é, nem poderia vir a ser. E assim a gênese se extingue e da destruição se não fala. Nem é divisível, visto ser todo homogêneo, nem num lado é mais, que o impeça de ser contínuo, nem noutro menos, mas é todo cheio do que é (25) e por isso todo contínuo, pois o que é é com o que é. Além disso, é imóvel nas cadeias dos potentes laços, sem princípio nem fim, pois gênese e destruição foram afastadas para longe, repelidas pela confiança verdadeira. O mesmo em si mesmo permanece e por si mesmo repousa, (30) e assim firme em si fica. Pois a potente Necessidade o tem nos limites dos laços que de todo o lado o cercam. Portanto, não é justo que o que é seja incompleto: pois não é carente; ao que [não] é, contudo, tudo lhe falta. Ταὐτὸν δ΄ ἐστὶ νοεῖν τε καὶ οὕνεκεν ἔστι νόημα. [35] Οὐ γὰρ ἄνευ τοῦ ἐόντος, ἐν ᾧ πεφατισμένον ἐστίν, εὑρήσεις τὸ νοεῖν· οὐδ΄ ἦν γὰρ <ἢ> ἔστιν ἢ ἔσται ἄλλο πάρεξ τοῦ ἐόντος, ἐπεὶ τό γε Μοῖρ΄ ἐπέδησεν οὖλον ἀκίνητόν τ΄ ἔμεναι· τῷ πάντ΄ ὄνομ΄ ἔσται, ὅσσα βροτοὶ κατέθεντο πεποιθότες εἶναι ἀληθῆ, [40] γίγνεσθαί τε καὶ ὄλλυσθαι, εἶναί τε καὶοὐχί, καὶ τόπον ἀλλάσσειν διά τε χρόα φανὸν ἀμείϐειν. Αὐτὰρ ἐπεὶ πεῖρας πύματον, τετελεσμένον ἐστί πάντοθεν, εὐκύκλου σφαίρης ἐναλίγκιον ὄγκῳ, μεσσόθεν ἰσοπαλὲς πάντῃ· τὸ γὰρ οὔτε τι μεῖζον [45] οὔτε τι βαιότερον πελέναι χρεόν ἐστι τῇ ἢ τῇ. Οὔτε γὰρ οὐκ ἐὸν ἔστι, τό κεν παύοι μιν ἱκνεῖσθαι εἰς ὁμόν, οὔτ΄ ἐὸν ἔστιν ὅπως εἴη κεν ἐόντος τῇ μᾶλλον τῇ δ΄ ἧσσον, ἐπεὶ πᾶν ἐστιν ἄσυλον· οἷ γὰρ πάντοθεν ἶσον, ὁμῶς ἐν πείρασι κύρει. [50] Ἐν τῷ σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης· δόξας δ΄ ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούων. Μορφὰς γὰρ κατέθεντο δύο γνώμας ὀνομάζειν· τῶν μίαν οὐ χρεών ἐστιν - ἐν ᾧ πεπλανημένοι εἰσίν -· [55] τἀντία δ΄ ἐκρίναντο δέμας καὶ σήματ΄ ἔθεντο χωρὶς ἀπ΄ ἀλλήλων, τῇ μὲν φλογὸς αἰθέριον πῦρ, ἤπιον ὄν, μέγ΄ ἐλαφρόν, ἑωυτῷ πάντοσε τωὐτόν, τῷ δ΄ ἑτέρῳ μὴ τωὐτόν· ἀτὰρ κἀκεῖνο κατ΄ αὐτό τἀντία νύκτ΄ ἀδαῆ, πυκινὸν δέμας ἐμϐριθές τε. [60] Τόν σοι ἐγὼ διάκοσμον ἐοικότα πάντα φατίζω, ὡς οὐ μή ποτέ τίς σε βροτῶν γνώμη παρελάσσῃ. IX Αὐτὰρ ἐπειδὴ πάντα φάος καὶ νὺξ ὀνόμασται καὶ τὰ κατὰ σφετέρας δυνάμεις ἐπὶ τοῖσί τε καὶ τοῖς, πᾶν πλέον ἐστὶν ὁμοῦ φάεος καὶ νυκτὸς ἀφάντου ἴσων ἀμφοτέρων, ἐπεὶ οὐδετέρῳ μέτα μηδέν. O mesmo é o que há para pensar e aquilo por causa de que há pensamento. (35) Pois, sem o que é – ao qual está prometido –, não acharás o pensar. Pois não é e não será outra coisa além do que é, visto o Destino o ter amarrado para ser inteiro e imóvel. Acerca dele são todos os nomes que os mortais instituíram, confiantes de que eram reais: (40) "gerar-se" e "destruir-se", "ser e não ser", "mudar de lugar" e "mudar a cor brilhante". Visto que tem um limite extremo, é completo por todos os lados, semelhante à massa de uma esfera bem rotunda, em equilíbrio do centro a toda a parte; pois, nem maior, (45) nem menor, aqui ou ali, é forçoso que seja. Pois nem é o que não é, que o impeça de chegar até ao mesmo, nem é possível que o que é seja maior aqui, menor ali, visto ser todo inviolável: pois é igual por todo o lado, e fica igualmente nos limites. (50) Nisto cesso o discurso fiável e o pensamento em torno da verdade; depois disso as humanas opiniões aprende, escutando a ordem enganadora das minhas palavras. E estabeleceram duas formas, que nomearam, das quais uma não deviam nomear – e nisso erraram –, (55) e separaram os contrários como corpos e postaram sinais, separados uns dos outros: aqui a chama do fogo etéreo, branda, muito leve, em tudo a mesma consigo, mas não a mesma com a outra; e a outra também em si contrária, a noite sem luz, espessa e pesada. (60) Esta ordem cósmica eu ta declaro toda plausível, de modo a que nenhum saber dos mortais te possa transviar. B9 Mas, uma vez que tudo é chamado luz ou noite e o conforme a estas potências é dado a isto e àquilo, tudo é igualmente cheio de luz e de noite obscura, ambas iguais, visto cada uma delas ser como nada. X Εἴσῃ δ΄ αἰθερίαν τε φύσιν τά τ΄ ἐν αἰθέρι πάντα σήματα καὶ καθαρᾶς εὐαγέος ἠελίοιο λαμπάδος ἔργ΄ ἀίδηλα καὶ ὁππόθεν ἐξεγένοντο, ἔργα τε κύκλωπος πεύσῃ περίφοιτα σελήνης [5] καὶ φύσιν, εἰδήσεις δὲ καὶ οὐρανὸν ἀμφὶς ἔχοντα ἔνθεν ἔφυ τε καὶ ὥς μιν ἄγουσ΄ ἐπέδησεν Ἀνάγκη πείρατ΄ ἔχειν ἄστρων. XI πῶς γαῖα καὶ ἥλιος ἠδὲ σελήνη αἰθήρ τε ξυνὸς γάλα τ΄ οὐράνιον καὶ ὄλυμπος ἔσχατος ἠδ΄ ἄστρων θερμὸν μένος ὡρμήθησαν γίγνεσθαι. XII Αἱ γὰρ στεινότεραι πλῆντο πυρὸς ἀκρήτοιο, αἱ δ΄ ἐπὶ ταῖς νυκτός, μετὰ δὲ φλογὸς ἵεται αἶσα· ἐν δὲ μέσῳ τούτων δαίμων ἣ πάντα κυϐερνᾷ· πάντα γὰρ <ἣ> στυγεροῖο τόκου καὶ μίξιος ἄρχει [5] πέμπουσ΄ ἄρσενι θῆλυ μιγῆν τό τ΄ ἐναντίον αὖτις ἄρσεν θηλυτέρῳ. XIII Πρώτιστον μὲν Ἔρωτα θεῶν μητίσατο πάντων… XIV Νυκτιφαὲς περὶ γαῖαν ἀλώμενον ἀλλότριον φῶς… B10 E conhecerás a natureza do éter e no éter de todos os sinais e dos raios da pura lâmpada do sol as obras destruidoras, e de onde nascem, e conhecerás as obras que rodam em torno da lua de olho redondo e a sua natureza, e saberás do céu que os tem à volta, e de onde nasce, e como guiando-o a Necessidade o obriga a conter os limites dos astros. B11 ... como a terra e o sol e a lua e o éter que a tudo é comum e a Via Láctea e o Olimpo extremo e o calor ardente dos astros forçados a nascer. B12 Pois as coroas mais estreitas enchem-se de fogo sem mistura E as que vêm à noite depois destas, mas com elas lança-se uma parte de [chama. No meio delas está a divindade que tudo governa; Pois em tudo comanda o parto doloroso e a mistura, Impelindo a fêmea a unir-se ao macho, e ao contrário o macho à fêmea. B13 Primeiro que todos os deuses, concebeu Eros. B14 Facho noturno, em torno à terra, alumiado a uma alheia luz XV αἰεὶ παπταίνουσα πρὸς αὐγὰς ἠελίοιο. XVa ὑδατόριζον εἶπειν τὴν γῆν XVI Ὡς γὰρ ἕκαστος ἔχει κρᾶσιν μελέων πολυπλάγκτων, τὼς νόος ἀνθρώποισι παρίσταται· τὸ γὰρ αὐτό ἔστιν ὅπερ φρονέει μελέων φύσις ἀνθρώποισιν καὶ πᾶσιν καὶ παντί· τὸ γὰρ πλέον ἐστὶ νόημα. XVII δεξιτεροῖσιν μὲν κούρους, λαιοῖσι δὲ κούρας… XVIII Femina virque simul Veneris cum germina miscent, Venis informans diverso ex sanguine virtus Temperiem servans bene condita corpora fingit. Nam si virtutes permixto semine pugnent Nec faciant unam permixto in corpore, dirae Nascentem gemino vexabunt semine sexum. XIX Οὕτω τοι κατὰ δόξαν ἔφυ τάδε καί νυν ἔασι καὶ μετέπειτ΄ ἀπὸ τοῦδε πελευτήσουσι τραφέντα· τοῖς δ΄ ὄνομ΄ ἄνθρωποι κατέθεντ΄ ἐπίσημον ἑκάστῳ. B15 Sempre à espreita dos raios do sol. B15a Parmênides no poema diz que “a terra tem raízes na água”. B16 Pois, tal como cada um tem mistura nos membros errantes, assim aos homens chega o pensamento; pois o mesmo é o que nos homens pensa, a natureza dos membros, em cada um e em todos; pois o mais [o pleno] é o pensamento. B17 À direita os machos, à esquerda as fêmeas. B18 Quando a mulher e o homem juntos misturam as sementes de Vênus, a força que se forma nas veias a partir de sangues diversos, mantendo em equilíbrio, gera corpos bem formados. se, contudo, misturados os sêmens, as forças se opõem, e não fazem unidade, misturados no corpo, cruéis, atormentam o sexo da criança com o duplo sêmen. B19 Assim, segundo a opinião, as coisas nasceram e agora são e depois crescerão e hão de ter fim. a essas coisas puseram um nome que a cada uma distingue. UNIDADE 2 O DEBATE SOBRE AS CATEGORIAS ONTOLÓGICAS 1Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 SER ENQUANTO SER: ACERCA DA FILOSOFIA PRIMEIRA DE ARISTÓTELES¹ BEING WHILE BEING: ABOUT ARISTOTELE’S FIRST PHILOSOPHY Juliano Dutra² Carlota Maria Ibertis³ RESUMO Neste trabalho, busca-se compreender o significado de “ser enquanto ser” da metafísica aristotélica. No presente texto, portanto, analisa-se a expressão “ser enquanto ser” e explicitam-se alguns dos elementos que permitem caracterizar o caminho feito por Aristóteles. Conclui-se que, ao buscar as características fundamentais para discorrer sobre a existência, Aristóteles utiliza o que comumente se chama de abstração: processo pelo qual alguns elementos (aqueles que se querem estudar) são retidos por meio de uma técnica própria, estando isso, por sua vez, expresso em enunciados que omitem os aspectos secundários em vista do fim pretendido. Assim, quando ele afirma que a metafísica estuda o “ser enquanto ser”, refere-se às coisas que existem enquanto existem; ele está se ocupando das características relevantes para dizer da existência das coisas. Palavras-chave: Aristóteles, metafísica, ser enquanto ser, abstração.ABSTRACT In this work the meaning of being while being from the Aristotelian metaphysics is intended to be understood. Thus, in the present text, the expression being while being is analyzed and some of the elements which allow characterizing the path traced by Aristotle are explained. It is concluded that, by seeking the fundamental characteristics to reason the existence out, Aristotle uses what is commonly called abstraction: the process by which some elements (those aimed to be studied) are retained by means of a unique technique which, in turn, is conveyed in statements that omit secondary aspects considering the intended purpose. Therefore, when he affirms that the metaphysics studies being while being, he refers to the things which exist while they exist; he is dealing with the relevant characteristics to tell of the existence of things. Keywords: Aristotle, metaphysics, being while being, abstraction. 1 Trabalho Final de Graduação - TFG. 2 Acadêmico do Curso de Filosofia - UNIFRA. 3 Orientadora - UNIFRA. 2 Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 INTRODUÇÃO No conjunto de todo o corpo aristotélico, destaca-se uma obra que, em virtude de sua compilação, séculos mais tarde, ficou conhecida como Metafísica. Aristóteles, entretanto, chama esta investigação de Filosofia Primeira. Uma leitura atenta dessa obra revela diferentes definições de metafísica ou de Filosofia Primeira, que aparecem no decorrer do texto. Nas primeiras páginas da Metafísica, livro primeiro (A 980 a983a20), temos a definição de Filosofia Primeira como a ciência das causas e dos princípios supremos das coisas. Em seguida, no livro quarto (Γ 1, 1003 a 21s), o Filósofo a define como a ciência do ser enquanto ser e dos atributos que lhe pertencem enquanto tal. Posteriormente, no livro décimo-segundo (Λ 1069 a 18), ele a define como ciência da substância. E ainda, nos livros sexto ((E 1, 1026 a 19) e décimo-primeiro (K 7, 1064 b 3), a investigação metafísica é definida como teologia. Certamente, cada uma dessas definições e as possíveis relações e interdependências existentes entre elas são um campo vasto e fascinante de pesquisa. Entretanto, este estudo, seguindo os pressupostos da pesquisa bibliográfica, ocupar-se-á somente em analisar o significado da expressão “ser enquanto ser” que constitui o cerne da segunda definição de metafísica dada por Aristóteles. Nosso trabalho, portanto, num primeiro momento, buscará explicitar alguns dos elementos em torno da expressão “ser enquanto ser”; após isso, apontará algumas noções que permitem dizer que o caminho feito por Aristóteles é o que, comumente, chama-se de abstração, iniciaremos com uma analogia com a filosofia aristotélica da matemática, apresentando, depois, as características de uma verdadeira abstração para, em seguida, analisar a expressão aristotélica “ser enquanto ser” (decompondo, primeiramente, os termos para, em seguida, discorrer sobre a expressão como um todo). No ponto central, compararemos os comentadores de Aristóteles, a saber: Lear, Barnes e Reale, para chegar numa interpretação plausível que, possivelmente, é coerente com as diferentes definições de metafísica. Ela não é, necessariamente, a melhor, estando, inclusive, aberta a novas interpretações. A relevância da discussão que busca analisar os termos da expressão aristotélica “ser enquanto ser”, pretendendo compreendê-la como um todo, talvez resida no fato de que esta abordagem permite distinguir alguns dos elementos fundamentais da filosofia aristotélica: sua singularidade (como ciência do ser) e diferença (ponto de partida), se comparada a de Platão, por exemplo. 3Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 ACERCA DA EXPRESSÃO: SER ENQUANTO SER Numa primeira aproximação ao texto aristotélico que trata da definição de metafísica como a ciência do ser surgem algumas dificuldades referentes a distintas traduções do texto grego. G. Reale, por exemplo, traduz a definição de metafísica como “ciência que considera o ser enquanto ser” (ARISTÓTELES, 2002b, p. 131); entretanto, usa também, no seu comentário à obra aristotélica, a expressão “realidade enquanto realidade” (ARISTÓTELES, 2002c, p. 151) para salientar o objetivo da investigação metafísica. Na tradução portuguesa, da Editora Globo (1969, p. 87), a metafísica é a ciência que estuda o ser como ser. Já Bittar traduz a metafísica como a “ciência que estuda o que é enquanto algo que é” (2003, p. 889). Na edição trilingüe (grego, latim e espanhol), Yebra, por sua vez, fala da metafísica como a “ciencia que contempla el Ente en cuanto ente” (ARISTÓTELES, 1990, p. 150) e Barnes traduz à língua inglesa a passagem da metafísica como ciência dos “beings qua being”, isto é, dos existentes enquanto existentes (1995, p. 69). Há, portanto, divergências quanto aos termos vernáculos correlativos ao texto grego. E a forma de traduzir acarreta conseqüências teóricas. Os termos usados visam a realçar os aspectos, tidos pelo tradutor, como mais importantes. Neste trabalho, entretanto, mais particularmente, serão analisadas as traduções dos termos como “ser” (Reale, Lear) e como “ente” ou “existentes” (BARNES, 2001). Algumas traduções da fórmula, como se verá adiante, são mais ou menos abstratas. Uma análise deste caráter é importante porque o que está em jogo é a definição de Filosofia Primeira4. A pergunta que desafia é a de saber qual era a intenção real de Aristóteles ao delimitar o objeto da Filosofia Primeira como sendo a investigação que trata do “ser enquanto ser”. Dessas dificuldades emergem novos problemas, a saber: quais sãos os reais significados dos termos da expressão? O que significa o primeiro “ser” da fórmula? E o segundo? E ainda, qual o papel do termo “enquanto” no contexto da definição? Uma resposta inicial poderia considerar o primeiro “ser” da expressão como equivalente às diversas acepções que o ser aristotélico comporta (ser como acidente, ser como ato e potência, ser como verdadeiro e não-ser como falso e, ainda, ser como substância); assim, o “enquanto ser” especificaria o sentido mais importante do “ser”: o ser como substância. 4 Aristóteles chama “Filosofia Primeira” (ou sapiência) para denominar a investigação que hoje comumente se chama de “metafísica”. Entretanto, o termo “metafísica” foi cunhado a partir da compilação das obras do Estagirita atribuída a Andrônico de Rodes (séc. I a.C.) e que se encontra também em Nicolau de Damaso, seu contemporâneo. Ela seria, assim, o que vem depois (meta) do estudo da natureza (física). Lear (1994, p. 280, nota 63) não crê que o significado do termo “metafísica” seja tão simples assim e, se o for, segundo ele, isso expressa o fato de que o compilador foi profundo conhecedor da investigação aristotélica e tinha razões para assim dispor as obras. A tradução portuguesa, feita por MORA (2001a, p. 1943-1944), do termo “metafísica” é tá meta tá physicá (“os que estão atrás da física” ou, mais exatamente, “as coisas que estão atrás das coisas físicas”). 4 Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 Entretanto, um raciocínio semelhante, de modo inverso, também poderia ser feito. O primeiro “ser” poderia corresponder ao ser-substância e o “enquanto ser” denotaria, então, as acepções mencionadas do ser de Aristóteles. Na primeira resposta, professar-se-á um “afunilamento” do mais abrangente ao mais específico e, na segunda, será o contrário. As respostas, entretanto, demonstram certa instabilidade visto não haver critérios seguros, numa primeira aproximação, para optar por uma posição em detrimento à outra. Essa instabilidade pode ser compreendida no sentido de que, ao tentar delimitar o objeto de estudo da referida ciência, já estejam pressupostos os conceitos que vão serdesenvolvidos por essa mesma investigação. Assim, é razoável a tentativa de resolução da questão que segue. Uma outra resposta a essa problemática poderia afirmar que o primeiro “ser” da fórmula se refere a todas as coisas existentes e o “enquanto ser” demonstra o modo como essas coisas são estudadas, ou seja, apenas enquanto existentes. Nesta investigação, buscar-se-ão elementos relevantes à existência enquanto tal, o que, em última análise, é abordar o tema da substância5. DELIMITANDO O OBJETO DE ESTUDO: UMA ANALOGIA COM A MATEMÁTICA O itinerário feito por Lear, para compreender melhor o significado da expressão que define a Filosofia Primeira de Aristóteles, começa a partir de elementos da filosofia aristotélica da matemática. O objetivo de Aristóteles é investigar a ampla estrutura da realidade e, assim procedendo, ele teve que esclarecer o papel da matemática nessa investigação. A tese de Platão era que os objetos matemáticos existiam em um mundo separado. Existiam os objetos matemáticos ideais – que sendo formas e números puros – existiam separadamente do mundo físico, do mundo das sombras. Afastando-se de seu mestre, Aristóteles argumenta que não há um mundo separado no qual os objetos matemáticos existem. “A matemática [...] ocupa-se diretamente dos objetos mutáveis do mundo natural [...] O matemático não difere do físico, diz Aristóteles, nos objetos que estuda, senão no modo em que os estuda” (LEAR, 1994, p. 262)6. Ao proceder sua investigação, o matemático ocupar-se-ia do mundo em constante mudança, é, entretanto, no modo como “secciona” a natureza para estudá-la que difere do físico e, por conseqüência, do filósofo. Observando o mundo que muda, 5 Uma das grandes tendências do filosofar grego “... se caracteriza por uma propensão inquisitiva própria do conhecimento científico, ou do “conhecer” em geral, que implica numa peculiar on- tologia acompanhada de teoria do conhecimento. Ela é, nesse sentido, “epistéme”, uma perícia cognoscitiva racional aplicada a campos diversos” (SPINELLI, 1990, p. 43). 6 “La matemática [...] se ocupa directamente de los objetos cambiantes del mundo natural [...] El matemático no difiere del físico, dice Aristóteles, en los objetos que estudia, sino en el modo en que los estudia” (LEAR, 1994, p. 262). 5Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 ele busca os elementos matemáticos que são imutáveis. Esclarecendo as diferenças entre as investigações do matemático e do físico, Aristóteles afirma que se deve considerar [...] em que difere o matemático do físico, uma vez que os corpos naturais possuem superfícies e volumes, linhas e pontos, coisas todas estas que caem dentro do campo de estudo do matemático [...] Destas coisas, pois, também trata o matemático, mas não enquanto cada um desses seres pode ser ou é término dos corpos naturais, e tampouco observa e considera seus acidentes de coisas de tal gênero determinado; portanto, estabelece nelas uma separação, já que as coisas que estão sujeitas a mudança são separáveis por meio do entendimento (ARISTÓTELES, 1964, p. 589)7. A filosofia aristotélica da matemática salienta, portanto, que é nos corpos físicos que se encontram os temas matemáticos (superfícies, volumes, etc.) da geometria. A matemática então estudaria esses temas, porém, considerando-os apenas enquanto temas (no caso, superfícies, volumes, etc) e não como características de determinados corpos físicos. Os objetos particulares dos quais provém o estudo matemático não são considerados na investigação matemática. E mais, a matemática considera esses temas separadamente dos corpos físicos de que provém, mas essa separação não é de um modo platônico (existindo num mundo ideal, separado do físico). A separação é realizada somente no pensamento, na realidade, não há como separar os temas matemáticos dos corpos físicos de que são provenientes (cf. LEAR, 1994, p. 262-263). A filosofia aristotélica da matemática estudaria uma “fatia” da realidade e, isso equivaleria, no caso, às superfícies, volumes, etc.. A peculiaridade distintiva da abordagem física da abordagem matemática residiria no modo de proceder da investigação. O físico estuda a natureza e suas mudanças, já o matemático, para fins de estudo, supõe separado o que, na verdade, não está. Considera imutável o que se dá em seres mutáveis. A matemática estuda as superfícies, os volumes, etc., somente, enquanto superfícies ou volumes. Essa peculiaridade de abordagem e do objeto é o seu diferencial. Ross esclarece: 7 [...] en qué difiere el matemático del físico, ya que los cuerpos naturales poseen superficies y vo- lúmenes, líneas y puntos, cosas todas estas que caen dentro del campo de estudio del matemático [...] De estas cosas, pues, también trata el matemático, pero no en cuanto cada uno de estos seres puede ser o es término de los cuerpos naturales, y tampoco observa y considera sus accidentes de cosas de tal género determinado; por tanto, estableceen ellas una separación, ya que las cosas que están sometidas a cambio son separables por medio del entendimiento (ARISTÓTELES, 1964, p. 589). 6 Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 Consideremos as coisas sensíveis simplesmente como possuindo limites de uma determinada forma, e estaremos considerando os objetos da Geometria. Mas é possível fazer ainda uma abstração de grau mais alto. Não somente se pode abstrair a “matéria sensível” das coisas sensíveis, mas também “a matéria inteligível”, isto é, a extensão, dos objetos geométricos, e chegar- se-á então à essência da linha reta, do círculo, etc., isto é, ao princípio de acordo com o qual são construídos (1969, p. 6). Para se chegar ao objeto da matemática, segundo Ross, é preciso proceder abstrativamente. E a abstração então, primeiramente, deixa de lado “a matéria sensível”, depois, “a matéria inteligível”; assim, o fim desse processo é a essência, no caso, dos entes matemáticos. Portanto, em vista do fim desejado, procede-se de tal forma que os elementos que não interessam são deixados de lado, não sendo, entretanto, negados. ABSTRAÇÃO: O CAMINHO DA METAFÍSICA O posterior procedimento analítico em torno da expressão, “ser enquanto ser”, pressupõe o aprofundamento de alguns dos elementos que compõem o caminho feito por Aristóteles para chegar ao objeto da metafísica. Esse procedimento é tradicionalmente de abstração. Para percorrer esse caminho, serão apresentados os critérios postos por Angelelli, colocando, em seguida, aqueles fornecidos por Allan para, por fim, esboçar uma possível relação entre ambos. Quando se defronta com a natureza, isto é, as coisas existentes, o investigador metafísico se depara com a diversidade; o ponto de vista sob o qual ele considera as coisas é, precisamente, o das características da coisa que é relevante para sua existência, ou seja, estudá-la na sua condição existencial (BARNES, 2001, p. 46). Num artigo, Abstracción y pseudo-abstracción en la historia de la lógica, Ignacio Angelelli estabelece quatro bases ou critérios para definir uma abstração como verdadeira, são eles: 1) ser uma abstração genuína, ou seja, uma operação intelectual que, na consideração das coisas, retém algo e deixa algo de lado; 2) ocultar, nos enunciados, aquilo que não lhe interessa na investigação, ou seja, o processo abstrativo é em nível lógico- lingüístico; 3) ser um estudo empreendido, segundo um sistema ou uma técnica, e 4) também haver uma tentativa de elucidação da natureza da abstração (ANGELELLI, p. 1-3). A partir desses quatro elementos, poderia se distinguir, segundo Angelelli, entre uma abstração e uma pseudo-abstração. No seu estudo, Angelelli percorre a história da lógica (filosofia) para dizer 7Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas,v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 que talvez tenha faltado a Aristóteles somente um estudo sobre a natureza da abstração. Em relação às quatro pautas avaliativas, na tradição aristotélico-escolástica, que é mais ou menos como dizer abstração clássica (já que entre os aristotélico- escolásticos, nestes temas, incluo, por exemplo Descartes, Locke, Berkeley), temos, 1) é óbvio, abstração em sentido genuíno (nada de pseudo- abstrações, como no século XX), 2) clara consciência de que a abstração reflete-se em enunciados verdadeiros que repentinamente, sob a abstração, ficam em suspenso ou “ocultos” (“abstrahentium non est mendacium”: os que abstraem não mentem, isto é, não dizem que essa bela árvore não tem folhas verdes), 3) técnicas sistemáticas abstrativas (por exemplo a “reduplicação”, ou seja o uso de frases como “qua”, “enquanto”, que têm o efeito de filter out, como muito bem diz Lear, aos predicados de que se quer abstrair), mas, 4) não parece haver especial interesse em descrever a natureza do produto da abstração” (ANGELELLI, p. 4)8. Todavia, a falta da quarta base não faz com que a técnica abstrativa aristotélica seja tida por pseudo-abstração. A esses elementos, postos por Angelelli, colocam-se aqueles que, na perspectiva de Allan, validam o procedimento aristotélico. Ele afirma: Aristóteles fala de uma ciência verdadeiramente viva e disponível; esta ciência é contemplativa e não prática na sua intenção, mas contemplativa de uma forma que não exclui um processo intelectual, já que há que proceder-se a uma demonstração de atributos do Ser [...] O significado a atribuir a uma análise do “Ser enquanto Ser” é obviamente mais controverso. As palavras gregas implicadas não significariam naturalmente que o filósofo obtém por abstracção uma idéia geral de ‘entidade’, do modo como, de acordo com Locke, se formam as ideias gerais abstractas a partir de impressões sensoriais e faz desta abstracção o conteúdo de proposições. A ajuizar pelo próprio 8 En relación a las cuatros pautas evaluativas, en la tradición aristotélico-escolástica, que es más o menos como decir abstracción clásica (ya que entre los aristotélicos-escolásticos, en estos temas, incluyo, por ejemplo Descartes, Locke, Berkeley), tenemos, 1) por supuesto, abstracción en sentido genuino (nada de pseudo-abstracciones, como en el siglo XX), 2) clara conciencia de que la abstrac- ción se refleja en enunciados verdaderos que de pronto, bajo la abstracción, quedan en suspenso u “ocultados” (“abstrahentium non est mendacium”: los que abstraen no mienten, es decir, no dicen que ese hermoso árbol no tiene hojas verdes), 3) técnicas sistemáticas abstractivas (por ejemplo la “reduplicación”, o sea el uso de frases como “qua”, “en cuanto”, que tienen el efecto de filter out, como muy bien dice Lear, a los predicados de que se quiere abstraer) pero, 4) no parece haber especial interés en describir la naturaleza del producto de la abstracción” (ANGELELLI, p. 4). 8 Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 procedimento subsequente de Aristóteles, o que este último tinha em vista é, antes, uma visão global ou compreensiva de Ser – do que é substancial, mais que tudo o que lhe está indissoluvelmente ligado – na sua totalidade inquebrantável; cada uma das partes será concebida como um modo de ser e não doutra forma qualquer, por exemplo como algo que se move (este é o significado das palavras adicionais “enquanto Ser”) (ALLAN, 1983, p. 91 - grifo nosso). Allan parece compreender “ser” do “enquanto ser” como um termo que designa o geral e, por isso, é o “Ser”, com maiúscula; também o compreende como uma noção de ser-substância. Haveria então espaço nesta noção “compreensiva de ser” para o processo abstrativo de que fala Angelelli? O que significa dizer que as “[...] técnicas sistemáticas abstrativas (por exemplo, a reduplicação, ou seja, o uso de frases como “qua”, “enquanto”, [...] têm o efeito de filter out, como muito bem disse Lear, dos predicados que se quer abstrair (ANGELELLI, p. 4)9 Ou então: pelo processo de abstração se filtra o que a metafísica investiga, a saber, a existência? Convém esclarecer alguns pontos desse problema. As técnicas abstrativas de que fala Angelelli são como filtros, nos quais, o que não se necessita, numa determinada investigação, é deixado de lado, estando isso expresso em enunciados. Por outro lado, pelo processo abstrativo, à maneira de Locke, forma-se uma ‘entidade’ ou uma idéia geral abstrata, que será conteúdo das proposições e isso, na visão de Allan, não o faz Aristóteles na investigação do ser enquanto ser10. Desse modo, se se considerar o aspecto de que, na investigação metafísica, não está tematizado o ser particular ou até mesmo as particularidades do ser, mas apenas o ser enquanto ser, ou seja, enquanto existente, essa seria então uma forma de abstração. Abstração porque, segundo Angelelli, 1) retrai algo (a existência) e prescinde de outros; 2) nos enunciados, ocultam-se o ser particular e as particularidades dos seres que existem e 3) há, por conseqüência, uma técnica abstrativa neste itinerário. Assim, o produto da investigação não é uma ‘entidade’ ao modo lockiano, mas uma visão global do ser. A visão compreensiva de ser seria 9 [...] técnicas sistemáticas abstractivas (por ejemplo la “reduplicación”, o sea el uso de frases como “qua”, “en cuanto”, [...] tienen el efecto de filter out, como muy bien dice Lear, a los predicados de que se quiere abstraer) (ANGELELLI, p. 4). 10 Há, portanto, perspectivas diferentes entre Angelelli e Allan. Angelelli está preocupado com as bases ou os critérios para falar de uma verdadeira abstração; e nessa avaliação, ele chega a considerar Aristóteles e Locke dentro da mesma tradição porque ambos, de alguma maneira, procedem abstrativamente, segundo os referidos critérios. Já Allan, como metafísico, preocupa-se com o conteúdo da abstração e aí, ele diferencia Locke de Aristóteles. Segundo Allan, o procedimento lockiano forma uma idéia geral de ‘entidade’. Para Locke, as idéias são conteúdos do pensamento, expresso em palavras, sendo 1) um modo de conceber a coisa e 2) objetos o pensamento que, por sua vez, são aspectos das coisas tais como capturadas; por outro lado, Aristóteles buscaria, segundo Allan, uma visão compreensiva ou global de ser, quando da abstração, não sendo, portanto, uma idéia de ‘entidade’ 9Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 possibilitada pelo processo abstrativo que trataria de todo o ser; ‘todo o ser’ significa, entretanto, considerá-lo na existência enquanto tal, e não neste ou naquele existente (significaria dizer que, na investigação da realidade enquanto tal, o que é tratado de fato é a substância). Se, na concepção de Angelelli, a abstração estabelece uma abordagem caracterizada pela seleção de enunciados e não uma idéia geral de ‘entidade’ como o faz Locke, na visão de Allan, a interpretação deste processo de abstração é de “[...] que esta consiste em que, mediante uma força especial do entendimento, de algo particular em si estruturado polifaceticamente se tira algo através do qual esse ente particular recebe sua essência e sua inteligibilidade” (MALTER11, 1977, p. 37)12. Angelelli, portanto, pretende mostrar o caminho que uma tradição, da qual Aristóteles percorre parte, faz para ter uma genuína abstração. Allan, por sua vez, pretende sublinhar a intenção aristotélica de ter uma visão compreensiva de ser. Os dois estudam “o ser”. Não este ou aquele ser, entretanto, ambos fazem um caminho de acordo com o que pretendem tematizar em Aristóteles: um a dimensão gnoseológica, outro a metafísica. Os dois podem se complementar, à medida em que Allan não está preocupado com o caminho para chegar a uma “visão global”. Já Angelellitem a preocupação de descrever o caminho, mas não o seu resultado em nível metafísico. Allan então contribui para a investigação que aqui se faz, quando ratifica a pretensão aristotélica (descrita por Angelelli) de se ocupar do ser e não deste ou daquele ser em particular. O processo abstrativo é, então, como um ‘filtro’ em que são retidos os elementos que se pretendem estudar ou analisar; essa retenção está evidente nos enunciados e há uma técnica para esse processo, como foi visto13. A partir, especialmente, das três características da abstração elencadas por Angelelli, que estão presentes em Aristóteles, pode-se agora estabelecer qual é o objeto da metafísica. 11 Malter distingue, percorrendo a história da filosofia, duas maneiras de interpretação do processo de abstração: o primeiro o já citado (Aristóteles e Tomás de Aquino) e, o segundo que, embora fazendo caminho inverso tem o mesmo ponto de partida e de chegada. Nesta segunda interpretação da abstração, destaca-se Kant que, segundo Malter, “[...] la define [a abstração] como um acto de negación, como um prescindir de las notas especiales de lo dado, a lo que se refiere el entendimiento que niega las notas especiales” (MALTER, 1977, p. 37). Porém, “En ambos os casos lo que se logra en la abstracción es algo general, y la abstracción es aquí según su función epistemológica el órgano de la formación de conceptos generales o de algo concreto” (MALTER, 1977, p. 37). Assim o ponto de partida é sempre uma realidade concreta e o ponto de chegada é sempre a elaboração de conceitos gerais, mesmo que, com técnicas diferentes. 12 “[...] que ésta consiste en que, mediante una fuerza especial del entendimiento, de algo particular em si estructurado polifacéticamente se saca algo a través de lo cual esse ente particular recibe su esencia y su inteligibilidad” (MALTER, 1977, p. 37).. 13 Ao afirmar a existência lógica do Universal em referência à pluralidade do que vemos e expe- renciamos Spinelli diz: “A ciência, para ele [Aristóteles], faz-se por amostra: na medida em que conhecemos uma determinada coisa (enunciamos ou dizemos que sabemos algo sobre ela), assim procedemos em referência a uma certa pluralidade” (1997, p. 348). 10 Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 SER ENQUANTO SER: O OBJETO DA METAFÍSICA Para melhor compreender o procedimento de Aristóteles ao delimitar o objeto da metafísica, pode-se dizer que, ao tratar da filosofia aristotélica da matemática, buscava-se, além de diferenciar uma abordagem matemática da física, elencar algumas noções do que a expressão “enquanto” significa, quando usada pelo Filósofo. Naquele contexto, segundo Lear Aristóteles serve-se do operador enquanto para prover uma ponte entre triângulos de bronze e triângulos geométricos [este é o exemplo usado para explicar essas noções]. Isso garante, para ele, a aplicabilidade da matemática: para que a matemática resulte aplicável ao mundo tem que reproduzir traços estruturais que se encontram (ao menos em algum grau aproximado) no mundo físico (LEAR, 1994, p. 278)14. Na análise metafísica da realidade, objetivo deste estudo, o termo “enquanto” provê também de alguma maneira uma ponte entre as coisas existentes e a consideração da existência enquanto tal e, disso, resulta sua aplicabilidade na compreensão da ampla estrutura da realidade e também sua importância e primazia na referida compreensão. Partindo do fato de que o investigador, pelo processo de abstração, “deixa de lado” certos aspectos da realidade para considerar outros em profundidade, por meio das três características básicas vistas anteriormente, pode-se dizer que: mais do que se centrar unicamente nos aspectos concretos da realidade – por exemplo, os céus ou os organismos vivos, como fazem as ciências da astronomia e da biologia – o homem pode fazer também abstração de todas as propriedades concretas que fazem das coisas as coisas que são e considerá-las meramente como coisas existentes. O desejo de compreender impulsiona o homem desde as primeiras explorações de seu entorno imediato a uma busca de explicações de por que o mundo é como é, à compreensão, finalmente, de que o homem pode transcender a explicação deste 14 Aristóteles se sirve del operador en cuanto para proveer de un puente entre triángulos de bronce y triángulos geométricos [este é o exemplo usado para explicar essas noções]. Esto asegura, para él, la aplicabilidad de la matemática: para que la matemática resulte aplicable al mundo tiene que reproducir rasgos estructurales que se hallan (al menos en algún grado aproximado) en el mundo físico (LEAR, 1994, p. 278). 11Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 ou aquele fenômeno e começar a investigar a ampla estrutura da realidade (LEAR, 1994, p. 279)15. Disso, resultam dois aspectos importantes que convêm salientar: primeiro, há uma investigação que busca compreender o mundo imediato que se apresenta aos olhos humanos e, segundo, quando o homem transcende isso, ele passa a tratar da ampla estrutura da realidade: é esta a investigação metafísica. Na delimitação deste trabalho, a metafísica é definida como ciência do ser enquanto ser. O primeiro “ser” da expressão, nesse contexto, indicaria então o domínio de estudo: as coisas existentes e o “enquanto ser”, a peculiaridade do existir das coisas16, objeto da Filosofia Primeira, ou seja, a existência enquanto tal. Barnes, referindo-se a isso, afirma: A expressão “o ser qua ser” traz em si um tom agradavelmente esotérico, e alguns estudiosos a transformaram em algo enigmático e absurdo. Na realidade, Aristóteles não se refere a nenhuma coisa enigmática nem estranha. “O ser qua ser” não é um tipo especial de ser; na verdade, não existe de modo algum um ser-qua-ser. Quando afirma que há uma ciência que estuda o ser qua ser, Aristóteles diz que há uma ciência que estuda os seres, e ela os estuda qua seres [existentes], isto é, uma ciência que estuda as coisas que existem (e não alguma coisa abstrata chamada “ser”) e as estuda qua existentes (BARNES, 2001, p. 46). A Filosofia Primeira estudaria os entes, portanto, os seres enquanto existem. Estuda os existentes enquanto existem. A investigação metafísica prescinde de elementos que não intervêm na compreensão da existência por si mesma. Compreender a existência, enquanto tal, mesmo sendo próprio de tudo que existe, é o objetivo da metafísica. A denominada investigação não considera a existência do homem chamado Pedro, por exemplo, mas a existência e na existência, estão incluídos os milhões de homens, os inumeráveis animais, as incontáveis espécies e variedades de plantas que existem. Desse modo, 15 Más que centrarse unicamente en aspectos concretos de la realidad – por ejemplo, los cielos o los organismo vivos, como hacen las ciencias de la astronomía e de la biología – el hombre puede hacer también abstracción de todas las propriedades concretas que hacen de las cosas las cosas que son y considerarlas meramente como cosas existentes. El deseo de comprender impulsa al hombre desde las primeras exploraciones de su entorno inmediato a una búsqueda de explicaciones de por qué el mundo es como es, a la comprensión, finalmente, de que el hombre puede trascender la explicación de este o aquél fenómeno y empezar a investigar la amplia estructura de la realidad (LEAR, 1994, p. 279). 16 Spinelli faz uma distinção entre “Ente” e “Ser” ao afirmar que “Ente” trata do existir ou da exis- tência e o “Ser” dos modos de existir e de existência. Desse modo, Ente e Ser não são substâncias das coisas; tomados univocamente, expressam a existência em geral, mas sem acrescentar, todavia, nenhuma determinação predicativa ao que é ou existe enquanto tal (cf. 1997, p. 339). 12 Disciplinarum Scientia.Série: Ciências Humanas, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 [...] estudar uma coisa qua existente é estudar precisamente as características da coisa que são relevantes para sua existência – e não nenhuma das muitas outras características da coisa –, ou seja, é estudá-la em sua condição existencial. Todo aquele que não estuda ficções estuda “seres”, coisas que existem; o estudioso do ser qua ser estuda precisamente os aspectos das coisas existentes que lhe pertencem em virtude do fato de existirem (BARNES, 2001, p. 46-47). No texto Metaphysics, Barnes afirma que o verbo inglês “to be” tem um significado próximo a existir. O primeiro termo da expressão, “beings”, seria um termo que trataria dos existentes e não especificaria a peculiaridade da investigação devendo, portanto, ser traduzido no plural (entes). Já o segundo termo “being” denota a maneira como os entes vão ser tratados, qual seja: enquanto existem. A tradução correta da expressão seria, então: “os entes enquanto (qua) ente”. O “qua being” não modifica o “beings”, mas refere-se ao modo como vão ser investigadas as entidades (beings); assim “[...] estudar “entes qua ente” simplesmente é estudar aqueles atributos que valem de entidades em virtude do fato de que elas são entidades” (BARNES, 1995, p. 71)17. Então, se “entes qua ente” fosse formalizada em Fs qua G, Fs seria o domínio de estudo (todas as coisas que existem) e G, o foco de estudo específico da metafísica (as coisas que existem enquanto existentes) (BARNES, 1995, p. 69). A definição completa diz: “Existe uma ciência que considera o ser enquanto ser e as propriedades que lhe competem enquanto tal” (ARISTÓTELES, 2002b, p. 131 - grifo nosso). Na definição, a conjunção “e” salienta os atributos que, como tal, correspondem à investigação metafísica. Desse modo, tendo em conta a peculiaridade da abordagem metafísica que difere da efetuada pelo matemático ou pelo físico. Pode-se dizer que esta se ocupa da existência, mas não dos existentes no que eles têm de particular, ou seja, este ou aquele existente. Assim, esta investigação, nesse sentido, é sumamente geral. Para Barnes (1995, p. 69), o “e” da fórmula tem uma função específica, é um aposto (“ou seja”). Portanto, a expressão completa ficaria assim: “Existe uma ciência que considera o ser enquanto ser, ou seja, as propriedades que lhe competem enquanto tal”. Outro estudioso da obra de Aristóteles, já citado que, recentemente, publicou um pormenorizado estudo da Metafísica é Giovanni Reale18. Reale se caracteriza por nuanças diversas das de Lear e Barnes (ARISTÓTELES, 17 “To estudy beings qua being simply is to estudy those attributes which old of entities in virtue of the fact that they are entities” (BARNES, 1995, p. 71). 18 Em Aristóteles (2002), composta de 3 volumes; destaca-se o volume I “Ensaio introdutório” e o III “Sumário e comentários” em que o italiano defende sua posição. 13Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 2002c, p. 151-152; 2002a, p. 39-41). Ele enfatiza mais a totalidade da investigação metafísica no decorrer de sua interpretação. A metafísica não se ocupa de uma parte do ser, mas de todo o ser: “[...] a ciência do ser tem como objeto de investigação a realidade, não considerada enquanto esta ou aquela realidade particular, mas considerada em si mesma, justamente enquanto realidade: a realidade enquanto realidade ou o ser enquanto ser” (ARISTÓTELES, 2002c, p. 151). E Reale segue esclarecendo sua concepção: As expressões “realidade enquanto realidade” ou “o ser enquanto ser” indicam – pelo menos num primeiro significado – a totalidade da realidade e do ser, em contraposição às “partes” ou aos “setores” dele; indicam não uma determinada parte da realidade ou um gênero de ser, mas toda a realidade e todo o ser. Todavia, com isso permanece ainda indeterminado o que significa, precisamente, estudar ou ter a ciência da realidade em sua totalidade, do ser enquanto ser. Pois bem, [...] Ciência é o conhecimento do porquê, das causas e dos princípios. Ciência do ser é, portanto, ciência do porquê, das causas e dos princípios do ser (ARISTÓTELES, 2002a, p. 40). No entender de Reale há, pois, uma estreita conexão entre a ontologia (ciência do ser) e a aitologia (doutrina das causas e dos princípios). E o nexo é pelo fato de que [...] justamente porque os princípios buscados pela “sophia” são primeiros e supremos, eles são princípios totalmente condicionantes e, portanto, capazes de explicar, não esta ou aquela (particular) realidade, mas a realidade no seu conjunto, isto é, toda a realidade, todo o ser ou, como diz Aristóteles, o ser enquanto ser (ARISTÓTELES, 2002c, p. 152). A tese fundamental, defendida por Reale, é a de que a investigação metafísica fornece ao filósofo a compreensão de toda a realidade (e não “partes” dela). A partir desse pressuposto, ele argumenta a favor da conexão entre ontologia e aitologia para dizer que, embora sendo diferentes, essas concepções de metafísica fornecidas pela obra conservam sua unidade: a preocupação com um saber universal. Por esses elementos, constatam-se algumas especificidades entre os diversos intérpretes dos textos aristotélicos. Há algumas divergências porque não é a mesma coisa dizer que a Filosofia Primeira estuda “toda a 14 Disciplinarum Scientia. Série: Ciências Humanas, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2003 realidade” e dizer que ela estuda “os entes enquanto existem”. Entretanto, é lícito dizer da Filosofia Primeira que seu objeto de estudo abrange todas as coisas e todas as coisas existentes (não abrange especificamente uma); é também uma investigação que abstrai da realidade aqueles aspectos que lhe importam na investigação, mas que têm como ponto de partida a própria realidade: Aristóteles assim procede porque seu objetivo é compreender a ampla estrutura da realidade. E é, pois, nesse contexto que a Filosofia Primeira ocupa lugar importante em toda a obra do Filósofo: ela possibilita uma compreensão de unidade na diversidade ou identidade na multiplicidade visível que é a natureza. Na análise dos comentadores, pois, uma coisa é clara: a expressão “ser enquanto ser” não se refere a algo distinto, ou separado da realidade, como a teoria platônica; é, entretanto, estrutura da realidade, é a realidade apenas considerada de um modo especial (metafísico), diferente das demais ciências. O caminho feito por cada comentador apresenta particularidades e “olha” a obra aristotélica a partir de um ponto. Não necessariamente melhor ou pior, mas um ponto. A própria organização dos conteúdos deixa transparecer tal posição. Em sua obra, Lear pretende defender a tese de que há um fio condutor na obra aristotélica; e esse fio condutor é o desejo de compreender, comum a todos os homens, que é a parte de abertura da obra Metafísica. Sua preocupação é especificar o modo de abordagem, próprio da Filosofia Primeira e de cada ciência particular; assim a análise do ser, enquanto tal, está centrada, particularmente, no termo “enquanto” porque esse diz do modo de abordagem singular, próprio da Filosofia Primeira. O termo “enquanto” é o filtro que acena para o modo como investigar os existentes, qual seja: na existência. Esse filtro é o que, comumente, se chama de abstração. Abstração é um modo de abordagem da realidade que, em nome de um objetivo, alguns aspectos desse algo que se quer estudar são ‘retidos’ e, por conseqüência, os demais são deixados de lado, não, porém, negados. A partir desse ponto, ele chega a considerar a metafísica como a mais universal das ciências por abordar a ampla estrutura da realidade. Barnes (2001), por sua vez, no capítulo 6 da obra “Aristóteles”, situa o estudo do ser enquanto tal dentro da ciência teórica19 que estudaria as causas e os princípios das coisas. Procede, posteriormente,
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