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LINGUAGEM ORAL E ESCRITA Sumário Concepções de linguagem ................................................... 11 O que é a linguagem? ............................................................................................................. 11 Teorias de aquisição da linguagem ................................... 25 Como se adquire a linguagem? ........................................................................................... 25 Linguagem, cultura e poder ................................................. 37 De que forma dimensões culturais e políticas constituem a linguagem? ............ 37 Aquisição da linguagem oral ............................................... 57 Como a criança adquire a linguagem oral? ..................................................................... 57 O papel das narrativas no processo de aquisição da linguagem ............................. 60 Linguagem e pensamento ..................................................................................................... 61 Problemas relativos à aquisição da linguagem oral .... 71 Como lidar com as regularidades e particularidades que caracterizam crianças que encontram dificuldades no desenvolvimento da linguagem oral? ......71 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Aquisição da linguagem escrita: autoria e reescrita .... 91 Como experiências de leitura e escrita vivenciadas pelo adulto e pela criança interferem no processo de aquisição da linguagem escrita por parte da criança? ...91 Como a criança se constitui autora de suas produções de leitura escrita? ......... 95 Aquisição da linguagem escrita: as relações entre a oralidade e a escrita .........................107 Quais são as relações estabelecidas entre a oralidade e a escrita e como essas relações interferem no processo de aquisição da leitura e escrita? .........107 Como é possível apreender as singularidades presentes nos processos de aquisição da escrita? .........................................................................................111 Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos formais ...............................123 Como são constituídos os problemas de escrita que incidem sobre seus aspectos formais? .............................................................................................123 Por que grande parte da população brasileira tem uma relação negativa com a leitura e a escrita? ...................................................................................128 Como contribuir para que a leitura e a escrita façam parte da vida das pessoas? ..................................................................................................131 Problemas relativos à aquisição da linguagem escrita: aspectos semânticos e estruturais ...................................139 Como são constituídos os problemas de escrita e leitura relativos aos aspectos semânticos e estruturais? .................................................................................139 Como lidar com as dificuldades de interpretação na leitura apresentadas pelas crianças? .............................................................................................141 Como são constituídos os problemas de escrita relativos aos aspectos semânticos e estruturais? .........................................................................145 Como lidar com as dificuldades de elaboração textual apresentadas pelas crianças? .............................................................................................146 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br O normal e o patológico na linguagem .........................155 Como definir o que é normal e o que é patológico quando tratamos de linguagem oral e escrita? ..........................................................155 Linguagem e fracasso escolar ............................................167 De que forma questões relativas ao domínio da linguagem interferem no fracasso escolar? ........................................................................................167 De que forma podemos atuar para que todos tenham acesso e domínio das linguagens oral e escrita? ......................................................................171 A linguagem e o ensino no processo de inclusão e de exclusão social .......................................183 De que forma a linguagem age na promoção tanto da inclusão quanto da exclusão social? .................................................................................................183 Forma e linguagem no contexto escolar ........................................................................185 Gabarito .....................................................................................197 Referências ................................................................................205 Anotações .................................................................................211 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br O que é a linguagem? Conforme as pessoas crescem, elas passam, de uma maneira geral, a falar e a escrever sem se indagarem acerca do que a linguagem signifi- ca. Se uma reflexão mais sistemática em torno dessa questão não é pré- -requisito para que as pessoas adquiram a fala e a escrita, tal indagação é imprescindível para quem atua, direta ou indiretamente, com o processo de ensino e de aprendizagem dessas modalidades de linguagem. É fundamental fazer algumas considerações relativas aos termos que serão utilizados. Ao utilizarmos a palavra linguagem estaremos nos refe- rindo às suas modalidades, ou seja, à linguagem falada e à escrita. Para especificarmos uma ou outra forma de sua realização, adotaremos termos como linguagem oral, fala, oralidade ou, ainda, linguagem escrita, leitura e escrita. Agora vamos verificar como as suas posições se situam em relação aos estudos que vêm sendo elaborados, especialmente, nos campos do conhe- cimento que têm como objeto de análise e intervenção a linguagem oral e a escrita, ou seja, a linguística, a educação e a fonoaudiologia. Podemos perceber que, de uma maneira geral, tais estudos se opõem ou se aproxi- mam, conforme as posições que assumem em relação à concepção de lin- guagem. Nesse sentido, identificamos três perspectivas predominantes: Abordagens acerca da linguagem Linguagem = Comunicação Linguagem = Representação Linguagem = Prática Social Concepções de linguagem Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 12 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão Linguagem como comunicação Conceber a linguagem como comunicação significa estar de acordo com o pressuposto de que ela existe para que as pessoas possam transmitir ao(s) outro(s) sentimentos, pensamentos e conhecimentos, ou seja, de que ela é um instrumento de comunicação. Com base nessa perspectiva instrumental, a lin- guagem é tratada como um sistema de códigos. Conceber a linguagem como comunicação significa, também, acreditar que ela se processa a partir do seguinte mecanismo: Emissor Mensagem Receptor Código Como podemos notar, a partir dessa abordagem, que a efetivação da lingua- gem pressupõe a existência de um sujeito-emissor, uma mensagem a ser trans- mitida, um instrumento-código capaz de transmitir a mensagem e, por fim, um sujeito-receptor para recebê-la. Dessa maneira, a linguagem é tomada como algo “externo” aos sujeitos, como uma ferramenta que possibilita que a comunicação se efetive. Ela existe independentementedos sujeitos e independentemente de qualquer ação que possa ser feita sobre a própria linguagem. Enfim, a linguagem é abordada como um produto acabado que se transmite de geração a geração. Mas se é assim, como explicar, então, que a linguagem se modifique com o passar do tempo? Uma vez que a linguagem é tomada apenas como um instrumento, ela muda apenas porque mudam as necessidades humanas, ou seja, mudam os códigos usados entre as pessoas na sua comunicação. Linguagem como representação Pensar a linguagem como representação significa acreditar que ela tem a função de representar, de dar forma a conceitos e a significados. A pintura a seguir, de René Magritte, é um bom exemplo disso. Abaixo do cachimbo está escrito: “Isto não é um cachimbo”. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Concepções de linguagem 13 D om ín io p úb lic o. Mas, se vemos um cachimbo, por que dizer que não se trata de um cachimbo? Pelo simples fato de que a pintura é uma “representação”. Dessa forma, não se trata de um cachimbo, mas da “representação de um cachimbo”. Assim como a palavra cachimbo não é um cachimbo, mas uma “palavra que representa um cachimbo”. A pintura foi elaborada justamente com a intenção de criticar a ideia de que, no caso, tanto a pintura quanto a linguagem são “naturais”, ou seja, têm existência própria independente do ser humano. Não pode, portanto, ser redu- zida a um “código”, a um mero “instrumento”. Alguns, no entanto, poderiam dizer: “Bem, mas, afinal de contas, o quadro ‘comunica’ algo e usa um ‘código’ específico para isso, a pintura. Qual a di- ferença, então, entre as noções de linguagem como comunicação e como representação?” Vejamos um outro exemplo, agora uma música de Gilberto Gil: Metáfora Uma lata existe para conter algo Mas quando o poeta diz: “Lata” Pode estar querendo dizer o incontível Uma meta existe para ser um alvo Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 14 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão Mas quando o poeta diz: “Meta” Pode estar querendo dizer o inatingível Por isso, não se meta a exigir do poeta Que determine o conteúdo em sua lata Na lata do poeta tudo nada cabe Pois ao poeta cabe fazer Com que na lata venha caber O incabível Deixe a meta do poeta, não discuta Deixe a sua meta fora da disputa Meta dentro e fora, lata absoluta Deixe-a simplesmente metáfora A música, de forma muito simples e, também, muito inteligente, mostra que o significado de uma palavra pode mudar e, com isso, o que está sendo dito. Dessa forma, a palavra “lata”, por exemplo, não “representa uma lata”, mas sim outra coisa e, principalmente, outra “ideia”. Com isso, a noção de que a linguagem é uma “representação” vai na contra- mão da noção de que a linguagem seja, tão somente, um código, uma vez que ela possui características que vão para além disso. Cabe ressaltar que a noção de representação, central em diferentes campos de conhecimento, como a Psicologia e a Educação, não está restrita apenas à linguagem, mas a qualquer atividade mental. A capacidade de representação é aqui concebida como inerente ao ser humano e como um fenômeno psíqui- co, ligado à consciência e que ocorre intencionalmente. Ligado à consciência porque consiste num processo cognitivo que teria o sujeito em sua origem. In- tencional porque as representações, em razão de sua origem, seriam passíveis de compreensão, uma vez que são geradas por motivações explicáveis. Assim, a partir da linguagem, os indivíduos representam ideias ou signifi- cados supostamente presentes no seu entendimento. Tais representações são constituídas por imagens, símbolos, que evocam o que deve ser representado. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Concepções de linguagem 15 Apresentadas as principais ideias que norteiam as concepções de linguagem como comunicação e como representação, propomos uma reflexão acerca de algumas questões: Será que falamos e escrevemos apenas para nos comunicar? � Se a função da linguagem é representar ou comunicar pensamentos, co- � nhecimentos, informações, como esses aspectos são constituídos? A linguagem serve para comunicar verdades ou mentiras ou para provo- � car efeitos e transformações em nós mesmos, nos outros e na realidade? Linguagem como prática social Certamente a linguagem é utilizada como instrumento de comunicação, por ela comunicamos aos outros nossas experiências e estabelecemos com os outros laços “contratuais” porque interagimos e nos compreendemos, influenciamos os outros com nossas opções relativas ao modo peculiar de ver e sentir o mundo, com decisões consequentes sobre o modo de atuar nele. Mas se queremos imaginar esse comportamento como uma ação livre, ativa e criadora, suscetível de pelo menos renovar-se ultrapassando as convenções e as heranças, processo em crise de quem é agente e não mero receptáculo da cultura, temos então que aprendê-la nessa relação instável de interioridade e exterioridade, de diálogo e solilóquio: antes de ser para a comunicação a linguagem é para a elaboração; antes de ser mensagem, a linguagem é construção do pensamento; e antes de ser veículo de sentimentos, ideias, emoções, aspirações, a linguagem é um processo criador em que organizamos e informamos as nossas experiências. (FRANCHI, 1992, p. 9-39) Estudos que concebem a linguagem enquanto prática social oferecem ele- mentos para compreender que, apesar da comunicação e da representação constituírem-se como funções da linguagem, elas não definem a sua natureza. Em outras palavras, podemos representar ou comunicar a partir da linguagem. Contudo, a linguagem implica um fenômeno que extrapola tais funções. Conce- be-se, portanto, a linguagem como uma atividade constitutiva dos sujeitos, das relações sociais e das formas de organização da sociedade. Assim, contrariando as visões instrumentais ou de representação, entende- se que a linguagem não está subordinada ao pensamento, tampouco decorre deste, uma vez que tem função estruturante e organizadora. Vejamos um exemplo dado por Vigotsky (1998, p. 44): Um exemplo especial da percepção humana – que surge em idade muito precoce – é a percepção de objetos reais. Isso é algo que não encontra correlato análogo na percepção Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 16 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão animal. Por esse termo eu entendo que o mundo não é visto simplesmente em cor e forma, mas também como um mundo com sentido e significado. Não vemos simplesmente algo redondo e preto com dois ponteiros; vemos um relógio e podemos distinguir um ponteiro do outro. Alguns pacientes com lesão cerebral dizem, quando veem um relógio, que estão vendo alguma coisa redonda e branca com duas pequenas tiras de aço, mas são incapazes de reconhecê-lo como um relógio; tais pessoas perderam seu relacionamento real com os objetos. Essas observações sugerem que toda percepção humana consiste em percepções categorizadas ao invés de isoladas. Sem essa capacidade de categorização, o mundo seria um caos que chegaria até nós por meio de nossos sentidos. Um caos, por exemplo, de cores, como no caso acima. Daí o papel estruturante que a linguagem tem: permite que aquilo que se apresenta a nós como cores e formas, simplesmente, possa ser entendido como sendo algo particular no interior dessas mesmas cores e formas. Não vemos apenas branco e preto, vemos um relógio. Identificamos, no meio de todas essas cores e formas uma específica e que se apresenta a nós por meio de um nome. Com isso, os brancos e pretos do mundo não sãoidênticos. O depoimento da atriz francesa Emmanuelle Laborit é um dos melhores exemplos do que pode significar a ausência e a presença da linguagem. Surda e muda, só depois de muitos anos ela pôde adquirir a língua de sinais: Eu não tinha língua. Como pude me construir? Como compreendia as coisas? Pensava? Seguramente. Mas em quê? Em minha fúria de me comunicar. Naquela sensação de estar aprisionada atrás de uma enorme porta que não podia abrir para me fazer entender pelos outros. [...] Até os sete anos, nada de palavras, nenhuma frase na minha cabeça. Imagens somente. (LABORIT apud SANTANA, 2007, p. 205) Ou seja, por meio da linguagem podemos categorizar e dar sentido às nossas próprias percepções. Por isso, também, as diferenças entre as línguas são, basica- mente, diferenças históricas e culturais, uma vez que elas expressam diferentes formas de percepção e de relação com o mundo. A partir dessa perspectiva, nega-se o papel central atribuído à percepção e à cognição que, tomadas como uma herança genética, comandariam a apreensão do objeto situado fora. Entende-se, ainda, que não há possibilidade de aquisição de conteúdos cognitivos ou domínios do pensamento fora da linguagem, nem possibilidades integrais de linguagem fora de processos interativos humanos. Ao conceber o homem como ser da linguagem, entende-se que a consciência e o pensamento têm como possibilidades as diferentes modalidades de lingua- gem, e que estas não se estabelecem fora dos signos sociais, mediadores das inúmeras e complexas interações que caracterizam a vida em sociedade. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Concepções de linguagem 17 Conforme Bakhtin (1986, p. 113), [...] a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra se apoia sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor, que constitui e organiza a atividade mental do sujeito, enfim, que a nomeia e determina sua orientação. Se a linguagem é uma ponte entre mim e o interlocutor, compreender a lin- guagem significa compreender, necessariamente, como se dá essa ponte, essa ligação entre dois ou mais interlocutores. Significa compreender, também, que essa ligação pode mudar com o tempo. A música abaixo, de Chico Buarque, é um belo exemplo disso que estamos fa- lando. Conta a história de dois amantes, portanto, a relação entre duas pessoas. Mas conta também da relação deles com algo, o cinema, que fazia parte de suas vidas e, dessa forma, de sua história de amor. As frases ditas em inglês ou francês não podem ser tomadas na sua tradução literal. Isso porque elas traduzem outra coisa: a relação entre eles. Quando essa relação tem um fim, tem um fim também a relação que eles tinham tanto entre si quanto com o cinema e com os filmes de amor que gostavam de ver. Sem essa ligação, as frases perderam seu significado, perderam a possibilidade de traduzir seu amor, “saíram de cartaz”. E uma palavra, que antes não tinha qualquer significado para eles, passou a ter: Tantas palavras Tantas palavras Que eu conhecia Só por ouvir falar, falar Tantas palavras Que ela gostava E repetia Só por gostar Não tinham tradução Mas combinavam bem Toda sessão ela virava uma atriz “Give me a kiss, darling” “Play it again” Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 18 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão Trocamos confissões, sons No cinema, dublando as paixões Movendo as bocas Com palavras ocas Ou fora de si Minha boca Sem que eu compreendesse Falou “c’est fini” “C’est fini” Tantas palavras Que eu conhecia E já não falo mais, jamais Quantas palavras Que ela adorava Saíram de cartaz Nós aprendemos Palavras duras Como dizer “perdi”, “perdi” Palavras tontas Nossas palavras Quem falou não está mais aqui Por que refletir sobre o tema “linguagem” na escola? (BOSCO, 2005, p. 7-13) [...] No que se refere à linguagem oral, acredita-se que a criança venha natural- mente a falar; por isso, não há preocupação com um ensino sistemático a seu Texto complementar Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Concepções de linguagem 19 respeito, nem um questionamento sobre o melhor momento de se começar a falar com a criança – é do senso comum que se deve falar com a criança desde o instante em que ela vem ao mundo. [...] A linguagem oral e a escrita são, então, encaradas a partir de pressu- postos diferenciados já na Educação Infantil: a primeira adquire-se natu- ralmente e a segunda necessita de uma ação pedagógica específica para que seja possível adquiri-la. Evidencia-se, nessa perspectiva, a crença de que a uma aquisição natural da linguagem oral segue-se um aprendiza- do dirigido da escrita. (Reflexão baseada nos comentários de De Lemos, 1998, sobre a aquisição da escrita.). Assim, por um lado, aposta-se de certo modo no diálogo com os adultos e com outras crianças, na interação, como se fosse o suficiente para que uma criança adquira a fala. Ou seja, acredita-se que é na relação dela com a lingua- gem em funcionamento que se funda a aquisição da oralidade, não havendo por parte daqueles que com ela interagem preocupações com metodolo- gias ou com o momento adequado para seu ensino. Por outro lado, quando se trata da escrita, o olhar sobre o processo sofre um desvio. Tomada como mais um objeto de conhecimento a ser adquirido pela criança, a linguagem escrita passa a ser alvo de preocupações pedagógicas entre os profissionais envolvidos, que se voltam para discutir não só sobre qual é o melhor método de ensino para a criança mas, também, sobre qual é o momento mais conve- niente para apresentar a linguagem escrita a ela. [...] De que maneira os trabalhos com leitura e escrita têm lugar na Edu- cação Infantil? Na verdade, é possível encontrar um certo consenso sobre o fato de um dos papéis da Educação Infantil ser o de propiciar um espaço para vivenciar a linguagem em suas várias possibilidades, considerando-se a criança como um sujeito envolvido na história e na sociedade. Sendo assim, indagamos se faria sentido realizar em seu cotidiano tarefas preparatórias, voltadas para o futuro dessa criança na escola – possível, no entanto, constatar a dificul- dade dos profissionais envolvidos em desviar-se totalmente dessas tarefas Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 20 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão na prática diária na Educação Infantil. Mesmo em escolas nas quais existe uma preocupação em contextualizar as atividades realizadas no dia a dia nos chamados “projetos” (baseados em temas escolhidos como propulsores dos trabalhos a serem realizados por um período de tempo), acaba-se por, de uma maneira ou de outra, incluí-las. Atividades de recorte, de seriação, de estimulação com cores, sons e letras, entre outras, terminam, de maneira direta ou não, por fazer parte do cotidiano da Educação Infantil. Exercícios que buscam o desenvolvimento da percepção, da coordenação motora, da discriminação visual e auditiva, da lateralidade e da cognição chegam a ser elaborados e introduzidos de algum modo na prática diária, por se acreditar serem necessários, especialmente, à preparação da criança para o ler e o escrever. [...] Se no que se refere à aquisição da linguagem oral não se chega a julgar necessário preparar a criança para a fala nem ensinar a ela os sons, os fone- mas, para depois juntá-los em segmentos até formar uma palavra, agregar esta a outras, formando frases e, posteriormente, verdadeiros textos orais, umensino nessa direção é, aparentemente, considerado necessário quando o foco é a linguagem escrita. Em função disso, na sequência dos trabalhos, uma das tarefas que essa escola vai realizar é, por exemplo, a apresentação descontextualizada das letras, uma a uma, a fim de que a criança atente para sua forma, discriminan- do-as posteriormente, o que nos leva a supor que a simples apresentação das letras e sua constante retomada seriam, de algum modo, consideradas suficientes para futuros reconhecimentos. O texto, por sua vez, quando chega a ser utilizado nessas circunstâncias, oferece-se como um objeto a partir do qual se retiram os fragmentos – as letras, as sílabas, as palavras – para que estes e a própria escrita se tornem passíveis de um trabalho pedagógico. Com isso, deixa-se de lado, justamente, Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Concepções de linguagem 21 a linguagem escrita como um funcionamento que se revela para a criança num texto, a fim de favorecer uma atividade que se crê facilitadora da apren- dizagem e que prevê que as unidades do escrito sejam assimiladas apenas por suas propriedades percentuais positivas. Convém esclarecer que os pressupostos que sustentam atividades desse tipo não deixam espaço para o reconhecimento dos efeitos da língua como um sistema em funcionamento nos textos (orais e escritos). E isso impede, de certo modo, a identificação da natureza linguística do processo de aquisição da linguagem escrita. A criança vive em um mundo que se significa na lin- guagem e pela linguagem e nele tanto a oralidade quanto a escrita apresen- tam-se de diversas maneiras em seu cotidiano – e sempre contextualizadas. A escola que dá ênfase às tarefas preparatórias que privilegiam exercícios com fragmentos isolados (letras, sílabas, palavras) acaba por esquecer que, quando se trata de linguagem escrita, está lidando com uma outra realização de língua – de materialidade distinta da linguagem oral mas, ainda assim, lin- guagem – cujo funcionamento se dá em textos, a serem lidos e/ou escritos pelo educador e/ou aluno. Ao dar destaque a atividades que retirem do texto os elementos que compõem o escrito, o que está sendo colocado em evidência não são pro- priamente a leitura e a escrita, enquanto processos que envolvem o sujeito na interação, mas os pré-requisitos julgados necessários à sua aquisição – pré-requisitos esses que, convém observar, não são linguísticos, mas físicos e psicológicos. Por essa perspectiva, explicar-se-ia a crença corrente em muitas escolas de Educação Infantil na necessidade de se empreender ações peda- gógicas específicas a fim de propiciar o desenvolvimento da linguagem na criança – ações essas que, geralmente, resultam no esquecimento do texto no dia a dia da sala de aula. Mas se a escola pretende promover a linguagem escrita, é a interação com textos que vai abrir as portas para ela, e não o ensino descontextualizado dos elementos que compõem seus segmentos. [...] Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 22 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão Dicas de estudo Filme � O Enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog. Baseando-se em registros históricos, Herzog nos conta o estranho caso de Kaspar Hauser, um jovem encontrado perdido numa praça em 1828. Ele não falava e não conseguia ficar em pé, pois passara a vida inteira tranca- do num porão. O filme trata do encontro do personagem com uma socie- dade “civilizada” e explora as ligações entre a linguagem e o pensamento. Filme � Dersu Uzala, de Akira Kurosawa. Conta a história de amizade entre um humilde caçador e um militar nas florestas da URSS. O choque entre as duas “culturas” e as representações de mundo envolvidas guia a narrativa da amizade entre eles. O choque, assim como a amizade que passa a existir entre eles, se deve à diferença de significados – atribuídos às suas ações, suas formas de compreensão de mundo e, é claro, à sua linguagem – entre eles. A fronteira se rompe, e a amizade deles inicia, quando eles começam a compreender – e a refletir sobre – essa diferença de significados. Atividades 1. Por que a reflexão e o estudo em torno do que é a linguagem oral e escrita são imprescindíveis para todos os profissionais que atuam com os seus pro- cessos de apropriação e aprendizagem? Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Concepções de linguagem 23 2. Quais as diferentes formas de se conceber a linguagem? 3. Elabore uma breve explicação acerca das diferentes formas de se conceber a linguagem. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Como se adquire a linguagem? As diferentes concepções de linguagem, bem como as diferentes con- cepções acerca dos aspectos relativos às dimensões política, cultural e de poder que a constituem, são questões da maior importância, já que, de- pendendo de qual seja a nossa concepção em relação a elas, adotamos determinados procedimentos práticos na condução das intervenções clí- nicas e/ou educacionais para a aquisição ou para a reabilitação da lingua- gem oral e escrita. Em linhas gerais, as teorias que procuram explicar o fenômeno da aqui- sição da linguagem, ou seja, como os sujeitos passam de “não falantes” e “não escritores” a “falantes” e “escritores”, são as seguintes: Teorias de Aquisição da Linguagem Comportamentalismo Inatismo Construtivismo Sociointeracionismo Comportamentalismo A teoria comportamental (behaviorismo), que exerce uma grande in- fluência nas práticas clínicas e educacionais, tem como um dos seus pre- cursores B. F. Skinner. Segundo o autor, a linguagem deve ser entendida como qualquer outra função comportamental, o que significa que ela é ensinada às crianças a partir daquilo que é designado, em sua teoria, como sendo um “condicionamento”. Sua teoria fundamenta-se em dois conceitos básicos: o condiciona- mento operante e o reforço, conferindo ao ambiente papel determinante no desenvolvimento humano. Teorias de aquisição da linguagem Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 26 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão Há um aspecto aqui, extremamente relevante, sobre o qual devemos chamar a atenção antes de prosseguirmos: todas as teorias de aquisição de linguagem salientam, de uma maneira ou de outra, o papel exercido pelo “ambiente” ou “meio”. Até mesmo para o inatismo, que defende a ideia de uma capacidade inata do ser humano para a linguagem, é necessário um ambiente que possibili- te o desenvolvimento dessa capacidade. Sem esse ambiente, a linguagem seria tão somente uma “capacidade” adormecida, não desenvolvida. Todas as teorias, portanto, chamam a atenção para o “ambiente” ou o “meio”. O que muda, de uma teoria para outra, é como elas concebem a relação das pes- soas com o ambiente ou meio e como elas concebem a linguagem. Trataremos disso com detalhes mais adiante. Por hora, vamos voltar à teoria de Skinner. O conceito de condicionamento operante pressupõe que uma dada ação executada pelo organismo é reforçada conforme seu resultado. Caso o resultado seja o esperado, a ação é reforçada, aumentando a probabilidade de ocorrer no- vamente. Se não corresponde ao esperado, suscita a ausência de reforço positi- vo ou ações punitivas, o que diminui a possibilidade de a ação se repetir. Assim, os resultados definem reforços positivos ou negativos para as ações. Apoiado nessa ideia de aprendizagem, Skinner (1957, p. 33) procurou expli- car da seguinte forma o fenômeno da aquisição da linguagem: Em todo comportamentoverbal sob controle de estímulos há três acontecimentos impor- tantes: estímulo, resposta e reforço. Eles são interdependentes, sendo que o estímulo, agindo antes da emissão da resposta, cria ocasião para que a resposta provavelmente seja reforçada. Sob tal dependência, mediante um processo de discriminação operante, o estímulo torna-se a ocasião em que a resposta, provavelmente, será emitida. Skinner sustenta a ideia de que a linguagem acontece do mesmo modo que a aprendizagem de outros comportamentos complexos. Para esse autor, o apren- dizado da língua materna não é diferente, em essência, do aprendizado de outras habilidades e comportamentos, como dançar, correr, nadar etc., o que significa, portanto, que a linguagem é definida como sendo um “comportamento”. Com base nessa premissa, a aquisição da linguagem, ou melhor, do “compor- tamento verbal”, resulta de mecanismos de reforço e modelagem que o adulto exerce sobre a criança, de uma estimulação adequada que vai do ambiente externo para o indivíduo. Em outras palavras, cabe ao adulto selecionar os es- tímulos adequados às respostas esperadas; à criança cabe, apenas, a reação a esses estímulos, repetindo da melhor forma possível os modelos fornecidos pelo adulto numa ordem crescente de complexidade. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Teorias de aquisição da linguagem 27 Considerando que a aquisição da linguagem passa a ser explicada a partir da associação entre estímulo e resposta, para Skinner, o condicionamento operante do comportamento verbal desenvolve-se a partir de reforços seletivos de sons e combinações de sons presentes no meio ambiente: De acordo com essa posição teórica, a criança inicialmente emitiria sons ao acaso ou por imitação, e receberia, de maneira diferenciada, reforço ou recompensa de adultos que fizessem parte de seu meio ambiente. Aqueles sons que fossem próximos aos usados na fala adulta acabariam se tornando predominantes na vocalização da criança, pois seriam reforçados pela atenção ou elogio dos adultos. (MASSI, 2001, p. 35) Segundo essa teoria, a linguagem é estudada sob a ótica associacionista e a partir de comportamentos observáveis, ou seja, de produtos observáveis e men- suráveis. Seu aprendizado consiste na nomeação de objetos, ações e pessoas, bem como no mecanismo que se faz entre essas nomeações para a composição de frases. A ênfase recai sobre a estrutura formal da linguagem, e pouca ou ne- nhuma importância é dada aos conteúdos ou significados daquilo que se diz. Com base nessa visão, as propostas educacionais e de reabilitação priorizam: o treino das habilidades básicas: percepção auditiva e visual, esquema � corporal, lateralidade e noção temporoespacial, coordenação motora; as atividades de repetição e evocação oral e escrita de palavras a partir de � estímulos visuais e auditivos. Entre tais atividades, podemos destacar o ditado, a cópia e a leitura em voz alta, a separação de sílabas, a formação de frases, a repetição falada e escrita das mesmas palavras; as atitudes que demonstram satisfação pelas produções corretas das � crianças, reforçando-as com aplausos, palavras de incentivo e pequenos “prêmios”, como quadros de estrelinhas, carimbos coloridos etc.; as atitudes que demonstram desagrado pelas produções incorretas das � crianças e para as quais são utilizadas punições ou castigos diversos. Inatismo A abordagem inatista tem como o seu principal representante Noam Chomsky. Ao considerar a linguagem como uma estrutura inata ao ser humano, Chomsky representa uma forte oposição aos princípios behavioristas, conforme podemos acompanhar na citação a seguir: Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 28 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão Simplesmente não é verdade que as crianças possam aprender a linguagem apenas através de “cuidado meticuloso” por parte dos adultos que modelam seu repertório verbal, através de um meticuloso reforçamento diferencial... É comum observar que uma criança pequena, filha de pais imigrantes, pode aprender uma segunda língua nas ruas, com outras crianças, numa rapidez espantosa e que sua fala pode ser inteiramente fluente e correta... Uma criança pode aprender boa parte de seu vocabulário e “sensibilidade” para as estruturas da sentença a partir da televisão, da leitura, da fala dos adultos etc. Até mesmo uma criança pequena... pode imitar bastante bem uma palavra, numa primeira tentativa, sem qualquer esforço por parte de seus pais para ensiná-la. Também é absolutamente óbvio que, em estágios posteriores, uma criança será capaz de construir e entender vocalizações totalmente novas que, ao mesmo tempo, sejam sentenças aceitáveis em sua língua... Deve haver processos fundamentais, operando independentemente do feedback de seu ambiente. Não há qualquer tipo de apoio para a doutrina de Skinner e outros, segundo a qual uma lenta e cautelosa modelagem do comportamento verbal, através de reforçamento diferencial, é uma verdade absoluta. (CHOMSKY apud MUSSEN et al., 1977, p. 204) De acordo com a ideia de que as crianças adquirem a sua língua materna com uma rapidez e fluência extraordinárias, Chomsky considera que os eventos que ocorrem após o nascimento da criança não são essenciais para o seu desenvol- vimento. Para esse autor, no caso da linguagem, a criança deve estar (biologi- camente) preparada para processar a fala que ela ouve, e formar as estruturas que são características da língua humana. O papel da experiência é o de ativar uma estrutura interna que a criança possui. Tal autor, por considerar a linguagem como uma estrutura cognitiva inata, herdada geneticamente, propõe o seguinte desafio aos estudiosos da corrente comportamentalista: No caso da linguagem, deve-se explicar como um indivíduo, a partir de dados muito limitados, desenvolve um saber extremamente rico: a criança, imersa numa comunidade linguística, confronta-se com um conjunto muito limitado de frases, na maioria das vezes imperfeitas, inacabadas etc...; entretanto, ela chega, num tempo relativamente curto a “construir”, a interiorizar a gramática de sua língua, a desenvolver um saber bastante complexo, e que não pode ser induzido só dos dados e de sua experiência. Concluímos, disso, que o saber interiorizado deve ser estreitamente limitado por uma propriedade biológica; e sempre que um saber é constituído a partir de dados muito limitados e imperfeitos (e isto de maneira homogênea entre os indivíduos), poderemos concluir que um conjunto de coerções apriorísticas determina o saber (o sistema cognitivo) obtido. (CHOMSKY, 1977, p. 69) Chomsky considera que os seres humanos possuem um dispositivo univer- sal e inato para a aquisição da linguagem (DAL). Esse dispositivo permite que a criança desenvolva uma gramática da linguagem que dependerá da língua a que ela está exposta, ou seja, a linguagem não pode ser definida tão somen- te como um “comportamento”. Isso porque uma língua, qualquer que seja, tem uma “estrutura” própria, uma sintaxe, e é sobre essa estrutura que adquirimos a linguagem. Adquirir uma língua, portanto, não é a mesma coisa que adquirir um comportamento. Adquirir uma língua significa interiorizar sua “estrutura”, sua sintaxe. Uma vez interiorizada, as crianças podem elaborar frases mesmo nunca as tendo ouvido. Por exemplo: a criança pode, a partir de uma frase como “eu andei de carro”, elaborar várias outras com base na mesma estrutura: “eu andei Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Teorias de aquisição da linguagem 29 de ônibus”, “eu andei de barco” etc., independentemente de ter ou não ouvido essas outras frases antes. No caso do comportamentalismo,a criança, necessa- riamente, deveria ter ouvido todas elas antes de repeti-las. Isso significa que a criança consegue elaborar, desde pequena, frases complexas. Quando a criança diz “ele sabe” e “eu sabo”, embora o termo esteja errado (“sabo”), ele foi deduzido, e falado por ela, com base na mesma estrutura sintática da frase anterior (“ele sabe”). As deduções que fazemos sobre a linguagem quando a estamos apren- dendo, com isso, só são possíveis porque partem de uma mesma “estrutura”, de uma mesma sintaxe. “Eu sabo” é uma dedução que se baseia, também, em frases semelhantes: “eu canto”, “eu falo”, “eu danço” etc. Para Chomsky (1981), essa capacidade, composta por propriedades linguís- ticas universais, é possível graças a um estado mental inicial que caracteriza os seres humanos e que inclui propriedades essenciais, presentes em toda e qual- quer língua e nos indivíduos. Considera-se que a criança, mesmo antes de ad- quirir as primeiras palavras, já tem internalizadas tais propriedades universais, o que lhe confere uma competência (inata) para adquirir a gramática de sua língua materna e, com base nela, elaborar e compreender frases. Por isso também, quando a criança diz “eu sabo”, nós podemos concluir, e portanto compreender, que se trata de “eu sei”, já que “eu sabo” e “eu sei” têm uma mesma “estrutura”, uma mesma sintaxe. Construtivismo O construtivismo foi elaborado por Jean Piaget e influenciou diversas aborda- gens posteriores, as quais ficaram conhecidas como cognitivismo. Vamos tentar compreender, no momento, como se deu a formulação inicial dessa corrente te- órica, nos termos de Piaget. Seu objetivo prioritário foi o de entender a natureza do conhecimento humano, sendo suas análises sobre a linguagem secundárias e decorrentes dos estudos em torno da questão de como a criança desenvolve a sua cognição, de como ela aprende. De acordo com o autor: A linguagem não constitui a origem da lógica mas, pelo contrário, é estruturada por ela. Em outros termos, as raízes da lógica terão de ser buscadas na coordenação geral das ações (incluindo condutas verbais) a partir do nível sensório-motor cujos esquemas parecem ter importância fundamental desde o princípio. (PIAGET, 1993, p. 78) Piaget, assim como toda a geração de intelectuais da qual ele fazia parte, foi fortemente influenciado pela dialética hegeliana. Podemos esquematizar a dia- lética hegeliana da seguinte forma: a transformação dos homens e do mundo depende do conflito que podemos observar entre um certo estado de coisas e Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 30 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão oposições que se lhes impõem. Podemos definir esse estado “inicial” como sendo a “tese”. As oposições que lhe são feitas pelo mundo são chamadas de “antítese”. Esse conflito encontra, em algum momento, uma solução, a que se dá o nome de “síntese”. A “síntese”, portanto, contém elementos tanto da “tese” quanto da “an- títese”, mas não pode ser tomada como equivalente a nenhuma delas. Uma vez que as coisas não estão paradas no tempo, podemos supor que essa dialética também continuará avançando. A “síntese” é uma “nova tese” que irá encontrar, em algum momento, um novo conflito, ou seja, uma “nova antítese”, gerando uma “nova síntese”, e assim indefinidamente. A dialética hegeliana influenciou muitos pensadores, e Piaget de uma forma particular. Quando ele afirma que “A linguagem não constitui a origem da lógica mas, pelo contrário, é estruturada por ela”, é exatamente dessa ideia que ele está partindo, ou seja, a criança, ainda bebê, começa a desenvolver sua inteligência a partir das relações que ela estabelece com o mundo por meio de seus sentidos. Essa seria a “tese”. Mas essas relações com o mundo encontram diversos limites. Por exemplo, a criança passa por várias deduções até chegar à conclusão de que um objeto tem “existência própria”, ou seja, que se trata de um objeto, esses limites seriam a “antítese”. Diante desse obstáculo, a mente precisa se reelaborar para dar conta de novos problemas que, no seu estágio atual, ela não é capaz de dar conta. Essa ampliação da cognição para trabalhar cada vez mais com novas questões e novos obstáculos é aquilo que Piaget chama de “equilibração das es- truturas cognitivas”, o que seria, com isso, a “síntese”, e assim trabalharia a mente humana, indefinidamente, já que sempre temos diante de nós novos obstáculos, novos problemas e novas questões com os quais não havíamos nos deparado antes. A partir do primeiro estágio, a criança constrói um conjunto de estruturas cognitivas que lhe servirão de base para o desenvolvimento da função simbólica, surgindo assim, como uma de suas manifestações, a linguagem. A função sim- bólica “consiste em poder representar alguma coisa, um ‘significado’ qualquer: objeto, acontecimento, esquema conceptual etc. por meio de um ‘significante’ diferenciado e que só serve para essa representação” (PIAGET, 1993, p. 46). Antes de representar um objeto simbolicamente, a criança tem a noção de que um objeto é um objeto, ou seja, tem uma existência real. Só num estágio posterior é que ela pode pensar o mundo não apenas por meio de seus sentidos (tato, visão etc.), mas também por meio de símbolos, quer dizer, por meio de “re- presentações do mundo”. A relação dela com o mundo, a partir desse momento, deixa de ser direta, uma relação com o objeto, e passa a ser mediada, uma relação Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Teorias de aquisição da linguagem 31 com algo que representa um objeto, mas que não pode ser confundido com ele: o objeto e sua representação não são a mesma coisa. É por isso, portanto, que Piaget (1993, p. 78) afirma que “A linguagem não constitui a origem da lógica mas, pelo contrário, é estruturada por ela”. A lingua- gem, para ele, deve ser entendida como parte desse desenvolvimento cogniti- vo mais amplo. Ela só pode surgir num estágio posterior: primeiro é necessário saber que um objeto é um objeto, ou seja, que a criança possa pensar em termos de objetos reais, só depois é que se pode substituir o objeto por sua represen- tação, ou seja, pensar o mundo em termos, também, de representação, além de pensar o mundo em termos de objeto. Mas como esse é um processo dialético que não tem um fim, embora seja a cognição que estruture a linguagem, Piaget também afirmou que, a partir da sua aquisição, as estruturas cognitivas passam a ser transformadas também pela linguagem, ou seja, pelas formas simbólicas de representação e interpretação do mundo. Sociointeracionismo Entre os autores sociointeracionistas adotados como referência, é importante destacar L. S. Vygotsky, psicólogo soviético. Sob a influência de suas elabora- ções teóricas, uma série de estudiosos passaram a analisar o alcance social da aquisição da linguagem. O sociointeracionismo proposto por Vygotsky parte do princípio de que pensamento e linguagem não existem separadamente, uma vez que a atividade simbólica, viabilizada pela linguagem, organiza o próprio pensamento. Dentro dessa perspectiva, ao social é atribuído papel de destaque, uma vez que é a partir dele que ocorre a inserção do sujeito no plano simbólico. Ou seja: a criança, no início da aquisição de sua linguagem, não é um sujeito já constituído, cujo acesso ao objeto linguístico se dá de maneira direta, isto é, não mediado pelo outro. Pelo contrário, Vygotsky considera que o sucesso de tal aquisição por parte da criança depende do outro, de um interlocutor, um “representante da ordem simbólica” que mediará, por sua vez, a relação da criança com estados e coisas do mundo. Vygotsky compreende que o importante papel da linguagem na constituição do sujeito se manifestano que ele chama de internalização da ação e do diálogo. Quando nascemos, encontramos um mundo pronto que nos espera: formas de Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 32 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão diálogo, de conduta, de trabalho etc. Nossa inserção no mundo, com isso, con- siste numa “apropriação” dessas várias relações e mediações. No entanto, a partir do momento que nos apropriamos delas, elas passam a fazer parte constitutiva de nós mesmos, ou seja, o que antes era externo ao indivíduo – o mundo e suas formas de relações e de mediações – vai gradativamente sendo internalizado por ele. De tal forma que, uma vez tendo internalizado todas essas formas de relações e de mediações com o mundo, passamos a pensar que essas formas de conduta são nossas, e não do mundo, como se elas sempre tivessem feito parte de nós mesmos, e não como se fôssemos nos apropriando pouco a pouco de todas elas, nem como se não tivéssemos sido, pouco a pouco, “formados” por elas: Ao internalizar instruções, as crianças modificam suas funções psicológicas: percepção, atenção, memória, capacidade para solucionar problemas. É dessa maneira que formas historicamente determinadas e socialmente organizadas de operar com informação influenciam o conhecimento individual, a consciência de si e do mundo. [...] A forma como a fala é utilizada na interação social e com adultos e colegas mais velhos desempenha um papel importante na formação e organização do pensamento complexo e abstrato individual. O pensamento infantil, amplamente guiado pela fala e pelo comportamento dos mais experientes, gradativamente adquire a capacidade de se autorregular. (DAVIS; OLIVEIRA, 1993, p. 50) Podemos dizer que o diálogo passa a ser o lugar de inserção da criança na lin- guagem e, portanto, é a partir dele, e apenas dele, que o desenvolvimento da linguagem pode se efetivar. A atividade interpretativa do interlocutor – no caso, do adulto – é determinante na apropriação da linguagem, uma vez que, quando uma criança produz um som, uma palavra, esse interlocutor os interpreta. Com isso, a criança e o som ou a palavra produzidos por ela são inseridos numa zona simbólica e de significação, ou seja, de “interpretação”. Segundo Oliveira (1993, p. 48), “são os significados que vão propiciar a mediação simbólica entre o in- divíduo e o mundo real, constituindo-se no ‘filtro’ através do qual o indivíduo é capaz de compreender o mundo e a agir sobre ele”. Para Vygotsky, portanto, a linguagem é uma atividade significante por exce- lência: é por meio dela que nos apropriamos e compreendemos os significados do mundo; é por meio dela também que agimos sobre ele. O significado de uma palavra representa um amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem, que fica difícil dizer se se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da “palavra”, seu componente indispensável. (VYGOTSKY, 1989, p. 404) É importante destacar que se essa abordagem confere ao educador um lugar de destaque na constituição do sujeito, é preciso estar atento para o que Oliveira (1993, p. 63) alerta: Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Teorias de aquisição da linguagem 33 [...] nem seria possível supor, a partir de Vygotsky, um papel de receptor passivo para o educando. Vygotsky trabalha explícita e constantemente com a ideia de reconstrução, de reelaboração, por parte do indivíduo, dos significados que lhe são transmitidos pelo grupo cultural. A consciência individual e os aspectos subjetivos que constituem cada pessoa são, para Vygotsky, elementos essenciais no desenvolvimento da psicologia humana, dos processos psicológicos superiores. A constante recriação da cultura por parte de cada um dos seus membros é a base do processo histórico, sempre em transformação, das sociedades humanas. Uma vez que, para Vytgotsky, a linguagem tem papel preponderante na aqui- sição dos conhecimentos, estabelece-se uma interdependência entre os indiví- duos – criança e adulto, ou criança e educador – no seu processo de ensino- aprendizagem. Texto complementar Implicações pedagógicas das teorias de Vygotsky e Bakhtin: conversas ao longo do caminho (FREITAS, 1994, p. 83-89) O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Walter Benjamin Além das histórias de vida, outras conversas surgiram no decorrer das entrevistas. Meus interlocutores, considerando suas experiências em sala de aula, iam falando de novas maneiras de se ver a criança, de relação dialógica, de situações de aprendizagem que promovem o desenvolvimento, de alfa- betização e ensino de língua baseados na interlocução, de aluno como pro- dutor de textos. Debatendo alfabetização, logo surgiam referências a Emília Ferreiro, confrontada com Vygotsky. E as conversas sucediam-se, chegando a outros temas como computador, televisão e arte. Preocupados em encontrar uma proposta pedagógica capaz de responder aos desafios enfrentados em seu trabalho como professores, discutiam as possibilidades divisadas a partir das teorias de Vygotsky e Bakhtin. Que elementos dessas teorias permitem a discussão de questões edu- cacionais? Até que ponto se pode perceber nelas um direcionamento em função da prática pedagógica? Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 34 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão (X) – Eu acho que a teoria de Vygotsky pode alimentar uma teoria peda- gógica nova, mas eu não a tomo como uma teoria pedagógica. Ela traz uma série de elementos para você pensar uma pedagogia. A meu ver é uma peda- gogia que está, neste momento, sendo começada a pensar, está em constru- ção, mas que não está fechada, pronta. Essa proposta pedagógica é fácil de configurar a partir dos pressupostos psicológicos dessa teoria. Eu acho que é um esforço necessário para quem se interessa pela Educação, pelo ensino que está sendo oferecido aí. Essa teoria tem muito a dizer, mas não pode gerar por si mesma uma proposta pedagógica, nem é em si mesma uma pro- posta pedagógica. (E) – Mas, de qualquer maneira, acho que eles mudam a prática pedagó- gica completamente. porque ela sempre foi muito marcada pela Psicologia. A Psicologia sempre teve muito peso no curso de formação de professores... é uma quantidade de Psicologia! Na minha pesquisa “O estado do conheci- mento da alfabetização” o grande referencial teórico predominante é a Psi- cologia. Daí dá para dizer que a Psicologia determina muito a prática peda- gógica. Esta acaba sendo o que a Psicologia é. Isso a gente viu aí: quando a psicologia behaviorista foi dominante, imediatamente a prática pedagógica se tornou tecnicista. Quando a Psicologia rejeitou o behaviorismo e se cen- trou na pessoa, aquela fase do Rogers, a prática pedagógica mudou intei- ramente em função disto. Houve um momento do Piaget, que está ainda muito presente, mas que agora vai sendo substituído, de certa forma, pelos psicólogos russos e que acaba atuando na prática pedagógica. Eu quase diria que isso é uma mudança de paradigma que está se dando na Psicologia e, mais amplamente, nas ciências que olham o ensino. (S) – Na academia achamos que Vygotsky é altamente promissor para a prática pedagógica, que ele tem grandes diretrizes. Mas como tornar essas diretrizes concretas? Para mim, os conceitos-chave dele (relação pensamen- to-linguagem, consciência semiótica, fala interior, internalização, zona de de- senvolvimento proximal)não estão a serviço da prática pedagógica porque não chegam à escola. Vygotsky não está na escola, a não ser na questão que ele valoriza o papel do professor, que ele resgata esse papel. Portanto, as suas grandes diretrizes ainda estão longe de chegar lá. (P) – É preciso ter cuidado para não fazer uma transposição imedia- ta para a prática e para não desvirtuar a teoria. Ela é inspiradora no senti- do de contribuir para a reflexão do educador sobre o que é a Educação, a aprendizagem. [...] Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Teorias de aquisição da linguagem 35 Dica de estudo O Voo da Gaivota � , de Emmanuelle Laborit, Editora Best Seller. A atriz francesa surda conta como era sua vida antes e depois de aprender a língua de sinais. Depoimento fundamental para quem quer entender melhor o significado da aquisição da linguagem para a vida das pessoas. Atividades 1. Quais são as principais teorias de aquisição da linguagem e os seus princi- pais representantes? 2. Se todas as teorias chamam a atenção para o “ambiente” ou o “meio”, o que muda de uma para outra? 3. Relacione as colunas referentes às diferentes concepções de linguagem ado- tadas pelas teorias de aquisição. (A) Inatismo ( ) linguagem é constitutiva dos sujeitos (B) Sociointeracionismo ( ) linguagem inata (C) Construtivismo ( ) linguagem é condicionada pelo meio (D) Comportamentalismo ( ) linguagem é decorrente da cognição Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br De que forma dimensões culturais e políticas constituem a linguagem? A forma mais visível de desigualdade é a material, aquela que opõe pobreza e riqueza. No entanto, essa não é a única forma de desigualda- de existente. Há muitas outras não tão visíveis, mas nem por isso menos reais. As questões relativas à linguagem são, assim como a diferença mate- rial entre pobreza e riqueza, questões relativas a formas específicas de desigualdade. A diferença (variedade) linguística que pode ser observada no interior de nossa sociedade não pode ser interpretada apenas como “diferença”. Isso porque, forçosamente, em nossa sociedade a diferença é entendida em termos de desigualdade, em termos hierárquicos. Por exemplo: o uso de termos como “pobrema” e “problema” são entendidos pelas pessoas não como sinal de diferença, mas como sinal de ignorância ou cultura. Ou seja: em termos de desigualdade hierárquica faz com que as pessoas sejam classificadas como se estivessem “acima” ou “abaixo”, em termos sociais. Isso significa que as questões linguísticas são, necessariamente, ques- tões político-linguísticas. Se ignorarmos essa dimensão política e social da linguagem, muito pouco poderemos compreender a seu respeito. O que significa dizer que a psicogênese da aquisição da linguagem deve ser, também e necessariamente, uma sociogênese dessa mesma aquisição. Para analisar as dimensões culturais e políticas que a linguagem com- porta, sugerimos uma reflexão em torno de opiniões e afirmações com as quais nos deparamos cotidianamente: “Como ele quer se candidatar a presidente, não sabe nem falar”; � “Ele é importante, fala bem, tem cultura, deve ser rico”; � “Eu detesto falar em público”; � Linguagem, cultura e poder Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 38 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão “Eu não consigo expressar aquilo que penso”; � “Na hora de falar me atrapalho todo”; � “O português é difícil”; � “Ele fala que nem doutor”; � “Falo tudo errado”; � “Odeio escrever”; � “Para falar tudo bem, mas para escrever...”; � “Ele não sabe escrever, parece analfabeto”; � “Cada vez as pessoas escrevem pior”. � Para encaminhar nossa reflexão, vamos eleger alguns dos aspectos pertinen- tes ao tema em discussão. A linguagem não é neutra, nem seus sentidos transparentes A capacidade de significar faz parte do ser do homem, à maneira de uma segunda natureza, atua de forma tão silenciosa e “natural” que raramente merece a nossa consideração. Ela é o cotidiano que nos escapa. Refletir sobre ela é, entretanto, essencial para compreender o ser e o agir do Homem. (PINO, 1995, p. 37) Tudo aquilo que escrevemos ou dizemos carrega sentidos a partir de sua ins- crição histórico-social, e é na trama do seu contexto de produção que a significa- ção se constrói e ganha forma. Com isso, queremos dizer que os sentidos que a fala e a escrita carregam não são configurados apenas pelas suas formas linguís- ticas, mas pelos contextos em que são realizados. Os aspectos que caracterizam os infinitos contextos nos quais a fala e a escrita ganham sentido, embora incon- troláveis, podem ser identificados e dizem respeito: à idade, ao sexo, ao país, ao grupo social, ao grau de escolaridade, ao período histórico, à cultura, à profissão, à religião, à intenção etc. De acordo com Bakhtin, a palavra é um signo neutro. Mas é, ao mesmo tempo, uma arena de conflitos sociais. O que isso quer dizer? Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Linguagem, cultura e poder 39 A palavra “honra”, por exemplo, pode ser usada por qualquer pessoa, inde- pendente de sua classe social ou sua formação cultural, ou seja, tomada isolada- mente, essa palavra é um signo neutro. Mas não podemos isolar a palavra dos contextos sociais em que ela é utilizada. Dessa forma, diferenças sociais e cultu- rais estão, forçosamente, presentes em seu uso. “Honra”, portanto, é uma palavra que tem significados diferentes para as pessoas em função de sua classe social e de sua formação cultural. Como as classes sociais e as formações culturais são diferentes (ou seja, desiguais) em nossa sociedade, é impossível que a palavra tenha o mesmo significado para todas as pessoas. Em função disso, a linguagem é uma “arena de conflitos sociais” porque vem carregada desses diferentes valo- res sociais. Ao enunciar algo, o sujeito apenas indica algo e se expõe às diferentes inter- pretações. Chamamos atenção para o fato de que não existe um sentido único e controlado para as falas e escritas que constituem as relações entre as pesso- as. Ao falarmos algo, o sentido do que falamos será construído a partir do que pretendemos dizer, somado à interpretação de quem recebe tal enunciado. O sentido do que dizemos não é único, nem transparente. Deparamo-nos cotidianamente com situações em que pessoas reclamam não terem sido compreendidas, razão pela qual são corriqueiras frases como: “você não entendeu o que eu disse, não era isso que eu queria dizer”, “é você que está entendendo desse jeito”, ou “eu disse isso, mas não com esse sentido...”. Concluindo, enfatizamos que o trabalho com a linguagem deve levar em con- sideração o que tão bem coloca Bakhtin (1981, p. 95): Na realidade não são palavras que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. Apesar das evidências que apontam para os fatos acima analisados, ou seja, de que os sentidos das falas e das escritas não são únicos nem transparentes, ainda impera uma tendência do educador de tratar os enunciados como porta- dores de um único sentido, solicitando, muitas vezes, a partir dos exercícios de compreensão de texto, que as crianças respondam o que entenderam do texto, esperando uma única resposta. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,mais informações www.iesde.com.br 40 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão As noções de bom e mau falante e escritor A língua portuguesa... tem avesso e direito: o direito é como nós a falamos, e o avesso como a falam os naturais... meias línguas porque eram meio políticas e meio bárbaras: meias línguas, porque eram meio portuguesas, e meio de todas as outras nações que as pronunciavam ou mastigavam a seu modo. (Testemunho de Padre Antônio Vieira apud SILVA NETO, 1963, p. 52). Se a colocação acima foi formulada no período da colonização, a importância de trazê-la para discussão deve-se ao fato de que a ideia de que apenas a norma padrão representa uma língua e as outras são “meias línguas” ainda está pre- sente, influenciando não só a opinião de leigos, como também de profissionais diretamente envolvidos com o processo de ensino e aprendizagem. Diante das implicações negativas decorrentes de tal ideia, sugerimos que, substituindo os conceitos tradicionais e reducionistas de correto/incorreto, passem a nortear as reflexões e práticas de ensino e de avaliação da lingua- gem os conceitos de: “prestígio social da linguagem; associação entre variantes e poder político-social; ligação entre língua e poder social dos falantes” (PRETI, 1998, p. 85-56). Para tanto, é importante ter claro que o reconhecimento das variedades lin- guísticas, caracterizando a natureza de toda e qualquer língua, vem sendo discu- tido por linguistas, implicando, conforme Faraco, um rompimento com a imagem da língua cultivada pela tradição gramatical veiculada pela escola, imagem que padroniza a realidade linguística, cristaliza certa variedade como a única correta, identificando-a com a língua e excluindo todas as outras como “incorretas”. Tal autor oferece elementos para compreender que [...] cada variedade é resultado das peculiaridades das experiências históricas e socioculturais do grupo que a usa: como ele se constitui, como é sua posição na estrutura socioeconômica, como ele se organiza socialmente, quais seus valores e visão de mundo, quais suas possibilidades de acesso à escola, aos meios de informação, e assim por diante. (FARACO, 1991, p. 18) Consideramos que as relações que estabelecemos com a linguagem e a visão que temos sobre nós mesmos e sobre os outros, em relação à condição de falan- te e escritor, está diretamente relacionada ao fato de reconhecermos ou não que a variedade linguística caracteriza toda e qualquer língua. Em outras palavras, a visão que temos sobre nós mesmos e sobre os outros em relação a sermos bons ou maus falantes e escritores, embora regularmente o uso da linguagem oral e escrita não deva ser tomada como superior ou como a única que tem valor. É importante que a criança seja orientada por educadores que saibam que [...] as formas dialetais são em boa parte responsáveis pela constituição da identidade dos falantes, o que é um fator que não pode ser desprezado quando a linguagem é invocada para funcionar como um dos elementos de um diagnóstico. (POSSENTI, 1995, p. 21) Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Linguagem, cultura e poder 41 Ideias, representações e afirmações, em torno das noções de bom e mau fa- lante e/ou escritor, pairam sobre as nossas cabeças, sem contudo pararmos para pensar criticamente sobre elas. Ideias são formuladas e veiculadas, construindo um senso comum acerca das imagens do que é falar e escrever bem e, em oposi- ção, falar e escrever mal. De uma maneira simplista, considera-se que os sujeitos que pertencem ao primeiro grupo são os que falam e escrevem certo, sem erros, ou seja, os que reproduzem a norma culta. Em oposição, os sujeitos que fazem parte do segundo grupo são aqueles que se desviam dessa norma. Primeiramente, é importante perceber que tal norma, descrita em instru- mentos linguísticos como, por exemplo, nos dicionários e nas gramáticas, é fruto de uma construção histórica e que, portanto, não é fixa e nem linguisti- camente superior. A imposição de uma língua padrão, mais do que criar possi- bilidades de troca e de socialização dos conhecimentos, das experiências, dos valores e das informações, passa a ser utilizada como elemento de discrimi- nação social, instaurando uma lógica preconceituosa. Tal lógica resulta numa violência simbólica e material, uma vez que preconiza: aqueles que dominam a norma considerada padrão são superiores intelectual e culturalmente e, por isso, têm maiores condições de ocupar as melhores posições nas relações de trabalho e, portanto, sociais. A norma culta é uma entre outras formas de manifestação da linguagem, a que todos deveriam ter acesso não por se tratar da forma certa, da mais bonita ou da linguisticamente correta, mas pelo que representa socialmente, ou seja: acesso às diferentes publicações; � acesso a um universo cultural socialmente privilegiado; � acesso ao conhecimento acadêmico; � maior possibilidade de sucesso escolar; � maior possibilidade de sucesso em concursos e em entrevistas, ou seja, � em processos de avaliação; possibilidade de participação ativa nas diferentes esferas sociais; � acesso a diferentes textos orais e escritos. � Chamamos atenção para o fato de que o reconhecimento da importância do domínio da norma culta não deve implicar a desqualificação de outras formas de manifestação de linguagem, como se fossem erradas ou sinais de desvios ou Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 42 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão distúrbios. Estudos que discutem questões relativas à linguagem e às formas de organização da sociedade brasileira têm, sistematicamente, denunciado que a linguagem no país infelizmente vem sendo utilizada como elemento de discri- minação social. Como resultado desse processo, observamos tentativas de fazer valer as se- guintes ideias referentes aos indivíduos que não dominam a língua padrão: que a causa do seu não aprendizado está associada a falhas e/ou distúrbios cogniti- vos, orgânicos ou culturais inerentes a esses indivíduos e aos grupos a que per- tencem; que esses indivíduos se encontram destituídos não só de uma língua e de uma cultura, mas, sobretudo, do saber que lhes possibilitaria compreender e intervir na realidade. A compreensão da discriminação social que incide sobre parte da população brasileira, em razão de suas variedades linguísticas, depende de um breve res- gate histórico acerca do processo de oficialização do português como a língua nacional e da definição da norma culta no país. Talvez nunca tenhamos parado para pensar como esses processos ocorreram por considerá-los uma decorrência natural do fato de o Brasil ter sido, de 1500 a 1822, colônia de Portugal. Contudo, estudos revelam que a oficialização da língua portuguesa não ocorreu de forma natural, mas foi resultado de conflitos de interesses. Como é de conhecimento de todos, a formação da população brasileira de- correu da miscigenação de diferentes origens populacionais – índios, negros, italianos, portugueses, japoneses –, que possuíam línguas e culturas diversas. Cabe esclarecer que, na primeira década do século passado, o português não era a língua adotada, predominantemente, entre os que viviam no Brasil, nem mesmo nos centros urbanos em formação. Línguas estrangeiras e variedades de línguas indígenas eram utilizadas por um número maior de pessoas do que o português. Mediante a insistência de tal quadro, grupos dominantes passaram a desen- volver de forma sistemática, a partir do século XIX, uma série de iniciativas obje- tivando a uniformização da língua nacional por meio da imposição do português e em detrimento dos diferentes falares de nossa população. Entre tais iniciativaspodemos citar a construção de gramáticas, de dicionários, a obrigatoriedade do ensino da língua portuguesa nas escolas, o fechamento de escolas estrangeiras e a criação de leis específicas. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Linguagem, cultura e poder 43 Historicamente, a construção de gramáticas e de outros instrumentos lin- guísticos atendem a interesses de grupos dominantes que legitimaram uma de- terminada variante linguística como um dos meios de exercer o poder e, para legitimá-la, desenvolveu-se toda uma perspectiva ideológica. Ao fazer tal cons- tatação, Gnerre (1991, p. 15) afirma que: “a língua dos gramáticos é um produto elaborado que tem a função de ser uma norma imposta à diversidade”. Importante lembrar que esse é um processo que não se restringe à questão linguística, mas diz respeito à educação como um todo e a toda forma de produ- ção e manifestação cultural. Vejamos um exemplo bastante conhecido entre os historiadores da arte. Foi pedido a Caravaggio, por volta de 1600, que ele fizesse uma tela representando São Mateus escrevendo o Evangelho. A pintura feita por ele, reproduzida a seguir, traz a imagem de um pescador pobre e maltrapilho, com os pés sujos, a pele marcada pelo trabalho manual pesado, segurando algo que era totalmente estranho a um pescador analfabeto: um livro. Ele o segura sem jeito e, não sabendo escrever, um anjo guia sua mão com a pena. D om ín io p úb lic o. São Mateus, 1602. Caravaggio. Óleo sobre tela. A Igreja, tendo entendido a pintura como uma grave ofensa a seus princípios, pediu que ele refizesse a tela. Um novo São Mateus foi pintado, dessa vez sendo representado com vestes mais “apropriadas” à importância que a Igreja lhe atri- buía, não mais com a aparência de um pescador que traz consigo as marcas e o cansaço do difícil trabalho diário, mas com a aparência de um homem culto e Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 44 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão distante do trabalho manual. Até mesmo uma aura foi incluída de forma a deixar clara a santidade do personagem que estava sendo representado. O anjo não mais guia sua mão, agora apenas lhe dita o que deve ser escrito. O livro, antes apoiado sobre o joelho de um pescador, agora é apoiado sobre uma apropriada mesa de trabalho que todo homem culto ou de melhor condição social tem em sua casa para escrever e trabalhar. D om ín io p úb lic o. A Inspiração de São Mateus, 1602. Caravaggio. Igreja de São Luís dos Franceses. Roma. Óleo sobre tela. Obviamente, a imagem “oficial” é a segunda. Embora a primeira seja muito mais honesta, o que está em jogo é a definição de certos padrões considerados mais apropriados e a construção de uma certa história e de um modelo de repre- sentação dessa mesma história. Da mesma forma, Orlandi (1997) nos oferece elementos para compreender como a norma linguística não é neutra, tampouco se justifica por suas qualida- des linguísticas, mas é determinada por questões sociais, políticas e históricas: A unidade do Estado se materializa em várias instâncias institucionais. Entre essas, a construção da unidade da língua, de um saber sobre ela e os meios de seu ensino (a criação das escolas e seus programas) ocupa uma posição primordial. A gramática, enquanto objeto histórico disponível para a sociedade brasileira, é assim lugar de construção e representação dessa unidade e dessa identidade (Língua/Nação/Estado). (ORLANDI, 1997, p. 6) Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Linguagem, cultura e poder 45 A definição de uma norma linguística e sua identificação com a norma culta decorrem de uma série de conceitos e ações diretamente ligados às condições de domínio e de uso da oralidade e da escrita, conforme analisa Barros (1997): a existência de um discurso de norma que classifica os fatos linguísticos em bons, corretos, 1. errados, belos etc., de que decorre o caráter prescritivo da norma culta; a remissão a um aparelho de referência, isto é, a usuários de autoridade e prestígio em 2. matéria de linguagem e a academias, gramáticas e dicionários; a imposição na escola, na imprensa e na administração pública. 3. Isso permite entender algumas das justificativas, utilizadas para a imposição do português e da norma culta, formuladas com base na ideia de que o portu- guês foi vitorioso porque as outras línguas faladas em nosso país eram inferiores. Essa visão pode ser percebida nas colocações a seguir: A língua indígena era pobre, simples, rudimentar, sem passado literário, era instrumento de um povo rude, de cultura primitiva. Ao invés, o português era rico, complexo, maleável, possuidor de uma tradição literária. Esta língua superior era dos invasores e dos dominadores. Passada aquela preponderância do tupi, o português entrou a desenvolver sua força e expansão. Resultado: as populações indígenas que tinham o tupi como língua materna passaram a falar o português, isto é, abandonaram a sua língua e adquiriram a outra. (MELLO, 1971, p. 51) [...] o português, transplantado, sofreu um rude abalo. Passou por vicissitudes mil, decorrentes das condições históricas, sociais e geográficas da formação brasileira, sofreu concorrência do tupi, foi altamente deturpado na boca de índios e mamelucos, e na boca dos pretos, ficou ilhado em muitos pontos do território nacional, que se imunizaram do bofejo civilizador. Mesmo depois que reagiu e se adaptou às novas condições de vida, mesmo depois que foi tonificado pelas injeções de sangue novo, as levas de emigrantes lusos que, sucessivas, buscavam a Colônia, mesmo depois que se pôde acastelar na língua escrita, teve de ser usado por um povo que já tinha outra afetividade que não a portuguesa, outro espírito nacional, outra maneira de sentir e interpretar a vida. (MELLO, 1971, p. 18) Contudo, análises que apontam para outra direção vêm sendo formuladas para explicar – ou, melhor dizendo, questionar – a “vitória do português” e “a superioridade da norma culta”. Os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais reconhecem que [...] existe muito preconceito decorrente do valor atribuído às variedades padrão e ao estigma associados às variedades não padrão, consideradas inferiores ou erradas pela gramática. Essas diferenças não são imediatamente reconhecidas e, quando são, são objeto de avaliação negativa. Para cumprir bem a função de ensinar a escrita e a língua padrão, a escola precisa livrar-se de vários mitos: o de que existe uma forma ‘correta’ de falar, o de que a fala de uma região é melhor, de que é preciso “consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. Essas crenças insustentáveis produziram uma prática de mutilação cultural [...]. (BRASIL, 1998, p. 31) A análise acerca da oficialização do português como língua nacional e da de- finição da norma culta como superior mereceria um curso a parte. Para o aspecto Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 46 Psicogênese das Linguagens Oral e Escrita: Letramento e Inclusão Violência simbólica nas práticas de letramento (BERBERIAN; MASSI, 2006, p. 19-31) [...] Preconceitos processados na e pela linguagem escrita [...] É com perplexidade que nos deparamos com crianças fragilizadas e in- seguras em relação às suas possibilidades de adquirir, efetivamente, tal mo- dalidade de linguagem. Sentimentos de incompetência, de ignorância e de inferioridade podem ser apreendidos, recorrentemente, nos discursos e nas posturas de tais crianças, bem como de seus familiares, anunciando um des- tino perverso, porém aparentemente lógico e inevitável,
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