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Textos complementares-20191005

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01_Teologia Sistemática I_Moltmann_9_16.pdf
EXPERIÊNCIAS DE REFLEXÃO TEOLÓGICA 
Caminhos e formas da teologia cristã 
Jürgen Moltmann 
Tradutor 
Nélio Sclmeider 
nD1TOR1\ UNISINOS 
Coleção Theologia Publica 
2004 
PREFÁClO 
Epilegômenos cm vez de prolegômenos 
l labitualmcnte uma dogmática teológica ou uma teologia sistemática in1c1a 
com os assim chamados /Jrolagô111e11os. Nestes sào abordados os fundamentos da rcolo­
gia cristà, o método escolhido e a concepção Lcológica pressuposta. Sendo o método 
claro, ele poderá ser aplicado a todas as doutrinas teológicas. Pelo fato de, desde os pri­
mórdios cio pensamento crítico da era moderna, os próprios fundamentos e métodos 
d:i teologia terem se tornado questionáveis, os teólogos modernos lançaram-se com 
intensidade especial sobre esses prolcgômenos da dogmática e, com a ajuda da filoso­
fia, psicologia ou ciência da rcligilio, ciências que naquele momento eram novas, pro­
curaram responder às seguintes questões básicas: de gue maneira a teologia cristã é 
possível sob as condições do mundo moderno? e: tuna ética cristã própria é possível 
de alguma forma' 
Essas questões de método pouco me interessaram até o momento, porguc 
queria primeiramente tomar conhecimento dos conteúdos teológicos. Considerei 
mais importanlcs a revisão destes à luz de sua origem bíblica e sua inovação cm face cio 
desafio do presente. Entre outras, há também rnzões pessoais para isso: na minha ju­
ventude, não Live exatamente uma formação cristã. Minha família hamhurgucsa, "es­
clarecida" desde a adesão de meu ::ivô à maçonaria, havia assumido uma postura bas­
tante distanciada e indiferente cm relação ao cristianismo ele modo geral e à igrej�1 cris­
tã cm particular. Desde o início do meu estudo de tcologü1, primeiramente no campo 
de prisioneirns de Norton-Camp junto a Notúngham, depois, após o regresso cm 
1948, cm Gottingcn, o teológico corno um todo constnuiu uma dimensão maravilho­
samente nova 1nm mim. Tive de apropriar-me primeiro com o entendimento de tuào 
aquilo que outros haviam aprendido desde a juventude. 
1\ teologia foi e é para mim um:i aventma das idéias. l�la é um caminho aber­
to, convidativo. 1 �la foscinou e até hoje fascina a minh:, curiosidade intclectua 1. Por 
essa rnzào, os meus métodos Lcológicos surgiram pelo conhecimenLo dos objetos teo-
10 JttR(õl·.N MOI.TM,\NN 
lógicos. O ca111i11hq só foi s111JJ11do ,,o c11111i11hn1: E mil'lhas tentativas de caminhar rnitural­
mente são dctcnni1\adas 110 nível biográfico-pessoal, co11textual-político e pelo krliró.r 
histórico em que estou vivendo. Busquei a palavm certa para o momento cerLo. Não 
escrevi manuais teológicos. Meus artigos de dicionário em diversas enciclopédias teo­
lógicas raramente resultaram satisfatórios. Não 111.t cafa hem éolecion�r exatidõcs teo­
lógicas porque estava por demais ocupado com a percepção de novas per�pec.tivas e 
de aspectos inusitados. Não almejei ser discípulo dos grandes mestres teológicos da 
geração precedente. Tampouco almejo fundar uma nova escola teológica. Tudo o que 
quis e quero é estimular ou tros a descobrirem a teologia por si mesmos, a formul�rem 
seus próprios pensamentos teológicos e a se porem, �k:s próprios, a caminho. Estas 
são as razões que me levaram 11 colocar cm segundo plano as questões metodológicas 
dos prolegômenos gerais à dogmática e a esforçar-me. nestas Co11trih111çõe.r .ri.rtemáticaJ ti 
teologi11, por ir diretamente "aos temas propriamente ditos". Nos J>refácio.r aos volumes 
individuais, manifestei-me a respeito do respectivo,(llmi1ho escolhido, de modo que os 
interessados já puderam reconhecer o meu método implícito a parLir dos cinco prefá­
cios referidos. Pelo fato de o meu método não esta, fixado já antes da sua aplicação, 
mas de ter smgido no seu decorrer, elevo agora, no final desse percurso, falar dele e, 
em lugar dos habituais prolcgômenos � dogmática, redigir alguns epilegômenos às minhas 
contribuições sistemfocas. Como pessoalmente não sou muito afeito a "pós-fácios", 
pode muito bem ocorrer que cu chegue novamente apenas a um "prefácio" a novos 
caminhQs. Se este for o caso, então este "posfácio" de modo algum resultou mal suce­
dido, mas apenas revela a minha convicção mais íntima, de <1ue, na teologia cristã, "no 
final reside o começo" e que o cristão na sua fé na ressurreição, em contraste com o ju­
deu no seu dia sabático, é "o e terno iniciante'', como disse Fram: Rosenzweig certa 
vez, e, pmtanto, sempre necessita começar pelo começo, pois "se o início for bom -
tudo está bem" (Der Stem der Erliwmg, H.eidclbcrg, 3. e.d., 19S4, 111, 2, p. 127). A pro­
missão divina e a esperança despertada ensinam a toda teologia, que ela necessaria­
mente permanece fragmentária e inacabada, porque ela é o pensar sobre Deu s daque­
les que se encontram a caminho e <JUC são, portanto, itinerantes e ainda não chegaram 
cm casa. Por essa ra?.ào, até mesmo as catedrais e os domos medievais tinham de per­
manecer 1nconclusos, pnra poderem àponrnr para além ele si mesmos. 
Contribuições sistemáticas il teologia 
Quando comecei, cm l 980, escolhi p:1rn esta série tcmáuca o título Co11tri/J11i­
çties .rislc111álic".r ri leologi". Quis e:,q,rcssar com isso, cm primem, lugar, que a teologia cm 
seu c.:onjunw é 111�is do tiuc tçolugia �1stemátin1 tn1 dugmáuca. T:imbl'.111 há teologia bí-
PREF/\/'10 11 
blica, teologia h1S1ónca, teologia práuc:1 <' outras mais. Te()log1a sistemática é :1penas 
uma contrihu1ção a u:n tudo mmor, comum, da Lcologia. Por isso, ela não pode consu­
lllir um sistema fechado, mas eleve mostrar os pontos de conexão dialógicos com as 
demais disciplinas teológicas. A velha briga cm torno da "coroa da teologia" é vã. O 
teólogo sistemático pode até ser "um diletante e chrigente" da orquestra teológica, 
como o esulizou cerrn vez Kornchs I kiko Miskoue, mas este naturnlmcnte pode ser 
também um teólogo prático, para quem todas as teorias teológicas desembocam na 
práxis, ou um teólogo histonaclor, se ele acredita que todo o presente e futuro um dia 
serão passado e, ass11n, objeto de sul! pesquisa. P:1ra mim, a teologia ocorre onde pes­
soas chegam ao conhecunento de Deus e "percebem" a presença de Deus com todos 
os seus senudos na práxis de sua vidll, de sua felicidade e de seus sofrimentos. Ú a isso 
que a teologi:1 sistem:ítica deve dar a sua contribLtiçào cm última análise e em prime iro 
lugar. Por outro lado, essas "contribuições" sistemáucas à teologia não pretendem forne 
ccr o "meu sistema" ou a "minha dogmática". Até mesmo no nível da eslrutura tentei 
buscar a vt·rdade no diálogo e evitar os monólogos. A Lcologia cristã é uma tarefa CO· 
munitãna do "ministério teológico geral de todos os crentes". Por essa razão, procure: 
valer-me do estilo comunicativo da proposição. l\kL1 interesse não era a defesa de dog· 
mas impc.:ssoais ou verd11cles desprovid:1s de sujeito. Mas tampouco pretendia externar 
apenas a mmha opinião particular. Desqo, porém, c1ue mrnhas proposições se1am lc­
vaclas a seno na comunhão dos teólogos e das teólogas. não apenas topando com 
aprovação ou rejeiç:io, mas estimulando o diálogo cuntinuado da teologia. Eu própno 
acolhi os e�tímulos de outros sempre t]UC me pareceram fru1íferos e me levaram adian 
te. Isso pode ter ocorrido com mais frcc1iiéncia do que tenho consciência. A teologia é 
como um sisrc:na fh1vial de influências recíprocas e desafios mútuos e de modo algum 
um deserto cm que cada indivíduo está sozinho consigo mesmo e com seu Deus. Para 
mim, o acesso teológico à verdade do Deus triúno é dialógico, comunitário e coopera· 
tivo. Thi:ologit1 vial1Jm111 é um diálogo crítico constante com as gerações anteriores a nós 
e corr. os contempor:ineos ac> nosso lado, no aguardo daqueles que vêm depois de nós. 
Por isso, o que escrevi não está assegurndo por 1odos os lados, mas às vezes
é "arroja­
do", como opina1'am com prcocupaçao alguns homens da igreja. I\ difícil não ser 
"controverso" em assuntos de teologia. Não por último, o autor reconhece, nas suas 
Co11trib11irõr.r, as condições e limites de sua p1·ópria localização no tempo e no espaço e :1 
relati vidadc.: de seu próprio contexto. 1 �le não est{1 cm condições de dizer o que é teolo· 
girnmentc válido para cada um cm todas as épocas e em cada lugar. Uma lheoloJ!/a pcrm­
ni.r não lhe·é possível. Ele deve, portanto, dissipar criticamente a aut<>·refcrência ingê 
nua e absoluta do pt·nsanll''1to. Foi por isso que esncvi. cm 1980, no pl'cfádo :11iinda­
rlr e Remo d,• /)em, o seguinte: "Com certeza, ele é europeu; mns a teologia europeia devi' 
cki:rnr de �cr aprcsc11lada eurou11//icm111•111f. Com rcneza, ele é um homem; mas a tcolo 
r,1a deve ck1:,;ar de \Cr apresentada andrormlnr,1111mlr. Com <-CrtC7J'I, clt· vive no 'Primei 
ro Mundo'; mas a l<·olog1a <Jll<' l'le dt:sc-nvolvt: n:ío pode �cr o reflexo dos pontos de 
vista dos do111111aclorcs. 1 �lc deseja, acima de 1udo, contribuir parn que a voz elos opri­
midos seja ouvida. O conceito ele 'contribrnçõcs para a teologia' visa a mdicar a sus 
pensão do absolutismo Lácito e preconcebido das idéias particulares de um contex 
t0" jPetrópobs: Vozes, 2000, p. 12]. Na partç Ili deste livro, que m1U"1 dos "Reílexos de 
teologia libertadora", procurei finalmente cumprir essa promessa. 
Teologia e biografia 
Apresentei, neste livro, os meus acercamcntos h1stórico-vivcnc1ais à teologia 
na minha própria pessoa, na comunidade e ll:t universidade primeiro cm termos gerais 
e depois em especial a cada um cios problemas 1cológicos, como introdução aos diver­
sos capítulos; procedi assim porque aprendi <JUe a dimensão biográfica é uma d11nen­
sâo essencial do conhecimento teológico. Durante o meu estudo, t0ci:1via, não havia 
percebido que o lugar do sujeito é 1111 clogmiltica; ao contr:íno: a pum objetividade da 
asserção dcvena garnntir a sua vcrificabiüdadc a c1ualqucr tempo por yuak1uer um e 
qualquer uma onde quer que fosse. Essa é a razão por c1ue não se podia reconhecer 
pelo aspecto dos magníficos livros dos meus professores <1uem os unha escrito, nem 
c1uando e onde h:wiam sido cscri1os. Com o recuo da subjctividack do autor também 
passaram parn o segundo plano todas as referências à época. O suposto "espírito de 
época" foi deixado a cargo elos jornalistas, embora nmguém 1ama1s tenha v;sto esse 
"espírito". Tendo s1clo desprtzado o "espínLO de época", desapareceu também a con­
temporaneidade cios teólogos, que se scntifün c:í embaixo apenas como "hóspedes 
numa bela estrela" (l lelmut Thielicke). Custou-me algum tempo e também superação 
até que, por insistência da minha mulher, ousei dizer "cu" t:tmbém na teologia. Contu­
do, numa situação social cm que, ele um lado, é anunciada "a morte do sujeito" e t:1m­
b{:m praticada no en()rmc crescimento do nt'unero de "st:pultamemos anônimos", e, 
po1 outro lado, cada vez mais pessoas se acotovelam para "abrir-se" cm /(llk .rho111s e 
quebrar toda d1scnção respeitosa e t�lo l11mtc do puclor, torna-se necessário e difícil 
falar sobre si mesmo. Nos últimos trinrn anos, notei que e mais difícil comunicar :1os 
mllrns as abstrações ela nossa própria situ:1çào e história de vida do que a verdade con­
creta, não impona quão subjetiva ou contextualmente da seja formulada. (� esta <1ue 
começa a esumular os outros a encontrar a verdade de Deus na história de sua própria 
v1d,1. Os leito1Ts de um livro não gosrnrrnm dr saber apenas o que o ;nnor tem :i dizer, 
mas 1:unbém como ele ch('gou a isso e porque ele o diz cl:1 rnaneirn romo n disse. Nos 
anos 1970, houve um mov1nH:nto tcológ1n> nos �U/\ que exigm, el') ro111rapos1çao :1 
ua,a tco!og1a a1gumc1ua11va um:1 "teologia narrativa" e cnrão, no :imb1to dessa tcolo­
!'P n;1rra11va, 1;11nh<.:m uma "tt·ologia r111110 bwgrafia" . .Johann Bapt1�1 ;\lctz abordou 
l'REF,\CIO 13 
esse tema em 1974 num anigo 1m11to nco cm conteúdo: Theologic(I/J Biogmphie [Teologin 
co1110 /J1oimfinj (in: Clll11he i11 Ce.rchichtc 1111d Cm/lsdHtji, Mainz, l 977, p. 195-203). Pelas mi­
nhas experiências com a reflexão teológica, na teologia cristã as duas coisas andam 
juntas: a 11111mtiw1 da história de Deus e o t1rgw11e11/o cm fov<>r da presença de Deus, a m/J­
;etivid(/(le histórico-vivencial e a objetividt,de esquecida de si mesma. Escrevi as introdu­
ções b1ográfic:1s arincmcs ao assunto porc1ue o caminho, isto é, o método foz parte cio 
conhecimento do assunto, não por causa do sujeito, mas por causa do caminho para 
chegar ao conhecimento do assunto. Não se trata de allt<> referências de um eu solita­
rio, porque o sujeito procede de uma comunidade e fala para dentro de uma comuni­
dade: "O que tens que não recebeste?" 
Teologia cm prol do Reino de Deus 
l lá sistemas teológicos que não pretendem apenas estar livres de contrnd1-
ções internas, mas também ficar livres <le inte1pclação externa. J\ teologia transfor­
ma-se, parn eles, numa estratégia ele auto-imuni'l.açào. Tais sistemas são como fortale­
zas cm que não se consegue penetrar, mas das lluais tampouco se consegue escapar e 
tJue, por isso, são derrntadas à míngua pelo desinteresse público. Não alimento o dese­
jo de viver 1111ma forrnleza clcssi1s, e, mesm<> sendo barthiano, igualmente resist i à ten­
tação ele encarar a D0g111ntic(/ teluiol /Kirthliche D0g111nlikj de Karl Barth como uma forta­
leza desse tipo. Ela nflo o é, mesmo LJLIC alguns banhianos deixem Karl l3arth pensar 
por eles para se sentirem seguros, e outros o declarem como "nco ortodoxo" para não 
terem de lê-lo e se ocupar com ele. Minha imagem ela teologia não é "Castelo forte é 
nosso Deus ... ", mas o êxodo cio povo de Deus no seu caminho para a terra prometida 
da hberdadc, onde habita Deus. Para mim, a teologia não é uma dogmática in­
tra-eclesial ou pós-moderna apenas para a pa:ópria comunidade de fé. Ela tampouco é, 
para mim, a ciência cultural da religião civil da sociedade burguesa. J\ teologia surge da 
paixão pelo Remo de Deus e sua justiça e esta paixão surge da comunhão com Cristo. 
Nessa paixào, a 1cologii1 transforma-se na fantasia cm prol do Reino de Deus no mun­
do e cm prol do mundo no Reino de Deus. Como teologia do Reino de Deus, ela é 
obngawria111cn1c teologin 111i.rsiol/(í1in, que liga a igreja à sociedade e o povo de Deus aos 
povos ela Terra. Eb torna-se uma teologm p,íblim (JJ11b!ic Jbeology}, que compartilha os "so­
fnmcmos desta épora" e que formula suas esperanças cm Deus no lugar cm que vi­
vem os seus contemporâneos. A teologia cio Rc·ino de Deus imiscui-se crítica e profc­
uc.11 1cn1e nos assuntos púlilrcos da sociedade e traz publ icamente à memória, não os 
1111eresses cclesiais,mas "o Reino ele Deus, o mnndamcnw e a justiça de Deus", como 
diz ;1 Tese S de Aamwn. Por c�sa razão, a teologia do Remo de Deus não pode rt·co-
14 JUR(.jl'.t,; MOI.TMANN 
lhcr-se <le modo fundamentalisrn à própria c:omuni<ladc de fé, nem acomodar-se de 
modo modernista �s tendências da sociedade. Ela está com o pensamento voltado fir 
me e produtivamente para o futuro da vida cb criação terrena como um todo. 
Alguns opinaram criticamente <1ue penso saber mais de. Deus e do seu futuro 
cio ttue humanamente se pndl'ria saber. Recomendam-me guardar máis silêncio dian1c 
do mistério insondável, indizível e ÍO{lTlular mais twogu, 11egntiv11 ao "dar pela falta de 
Deus" Q. B Metz). Sou suficientemente m:stico para compreender o que eles estão 
querendo dizer. Todavia, justamente porc1ue o mistério rcveh1do do nome .de Deus é 
insondável, nem se pode pretender saber<> suficiente sobre ele. O Espírito investiga 
também as dimensões profundas da divindade ... 
Outros criacaram 1rnnicamente o 1110 tpie .foffJ d(/ Bí/1/ia como sendo um uso d !t1 
C111te, embora ele não se cliferenc1c cm pnncíp10 do de Karl Bmth ou cio
ele Basílio Mag­
no, :1 não ser quanto à limitação do meu conhecimento (�1 Bíblia. Na ·1 eologin da espmm 
(11 (1964), ainda pude lançar mão elas exegeses vétero e ncotcstamentárias de Gerharcl 
vem Rad e Ernst Kasemann, que cu conhecia bem. No entanto, em algum momen:o 
dos anos 1970, a discussão exegética e mais ainda a discussão hcnnenêutica tomaram 
dimensões impossíveis de serem abrangidas. Senti c1ue elas h:1viam se tornado m11t·s 
um empecilho para ouvir os textos bíblicos. Na Alcm:inh:i, a exegese histórica e a teo­
logica tomaram rumos separados. A crítica histórica pmllcmneme desapareceu. Per­
plexo diante disso, decerto encontrei então uma relação própria, pós crítica e "ingê 
nua" com os escritos bíblicos e tentei formular "minha própri:1 rima" dos textos. Ao 
fazer isso, notei o quanto me sinto em casa na Bíblia e como gosto ele permitir c1uc os 
m:us diversos texms estimulem a reflexão propriamente m111ha. '-.:as citações, auve me 
cada vez mais à Bíblia de Lutcro, não porque a tradução de Lutero seja especialmente 
fiel ao original, mas porc1uc o povo alemão foi alfabetizado com a Bíblia de Lutero e 
porque a linguagem cultural alemã de l .cssing e Goctht• até Thomas Mann e Bert 
Brecht, de Kant e Hegel até Nietzsche e J lcicleggcr foi moldada essencialmente pela 
Bíblia de Lutero. Mas, ao lidar com os enunciados bíblicos, também notei o quanto me 
havrn tornado crítico e livre cm relação a eles. Certamente gostari:1 de saber o que eles 
1111crcm dizer, mas não me sinto na Ol\rigaçao de repetir e interpretar apenas aquilo que 
dcs dizem; antes, posso muito bem me unagmar dizendo o de m:mc1rn diferente da 
1111cLI cm que eles o expressam Portamo, tomo a Escritura como estímulo parn a rcíl<·­
xào teológica própria, não como padrão e limite autoriz:1dorcs. O importante é a "cau­
sa da Escritura" e não a "esnita da causa", mesmo que só se chegue àc1ucla por meio 
desta. "A pal:wra de Deus não está presa", nem â cultura patnarcal e à desqualificação 
cl�, mulheres, nem it sociedade de trah:\lho escravo, nem as iransiçocs pré-modernas 
da vida nômade 1>Ma a vida agn\rin e da vula agrári:1 parn a vida citadina, contextos cm 
tiuc foram rcd1g1dos os escritos bfülicos. Rel<-vante r l1111carncn1c a11t11lo que remete 
pa1;1 além das c'l)OC:,S cm <Jlll" tor:11n rcd1g1dos, n.mo ao nos:,o futi.ao: :i h1st<íria <ia pro 
nuss:io de Dt'us e a hisrú11:1 do seu fu1uro Essa "causa d., 1 �scriwra" ,Li nos lihnd:ul<'
PREl'ACIO 15 
criativa frente aos enunciados temporalmente condicionados da Escritura. Foi nessa 
linha, creio eu, que se desenvolveu o "uso da Escritura" praticado por mim. Coloco 
em discussão o respectivo método hermenêutico na parte 1I deste Livro sob o título 
"l lermenêutica da esperança". 
Pode-se ler este livro também como uma Introd11ção à teologia cristã. Por essa ra­
zão, empenhei-me, na pane 1, por definições detalhadas da "teologia histórica", da 
"teologia cristã" e da "teologia natural" e, na pane II, por uma" teoria teológica do co­
nhecimento". Somente quando se sabe o que é teo!ogi", pode-se escrever uma introdu­
ção à teologia. É por isso que esta /ntrod11çdo aparece só no final. Ela não pretende ser 
uma introdução à minha teologia, mas naturalmente é a minha introdução à teologia. 
Teologia confessional ou ccurnênic�1? 
Em 19'18, retornei dos campos de prisioneiros na condição de cristão, mas 
não tinha CJltalqucr relação com as igrejas. No campo de trabalhos forçados da Escó­
cia, um professor de filosofia católico reunia cm torno de si um círculo de interessa­
dos, cm Norton Camp estudei teologia evangélica. Em Uremen trabalhei numa comu­
nidade reformada e, cm l ,ccr, na Frísia oriental, fui ()rdenaclo como pastor reformado. 
A cooperação com colegas católicos cm Bonn e Tübingen, as conferências ecumêni­
cas da Comissão "Faith anel Order [Fé e ordem]" no Conselho Mundial de Igrejas, das 
(Juais participei de 1963 a 1983, a participação na equipe editorial da revista reforrnisla 
católica CONCILJUM convenceram-me de que a minha origem, por certo, é reforma­
da e evangélica, mas o meu futuro seria ecumênico. Entendo a tradição reformada cm 
que vivo e penso como parte de um todo maior, comum, da cristandade a ser unificada 
ecumenicamente e não senti quak1uer reserva da parte de círculos católicos, ortodoxos 
ou pentecostais; ao contrário, em toda parte me senti aceito e cm casa. Sempre consi­
derei estreitas e sectárias as cartelas de citações cm livros teológicos - papas citam so· 
mente papas, católicos, somente c;itólicos, ortodoxos, somente ortodoxos e teólogos 
evangélicos, somente autores evangélicos. As fronteiras confessionais atualmente ne· 
cessárias não acompanham mais as tradicionais linhas demarcatórias confessionais, 
nem mesmo na doutrina da justificação e nem na compreensão da trindade. Smgirnm , .. novas alianças e novas diferenças no nível teológico. O que importa é valer-se delas 
para formular a teologia ecumênica cm surgimento. 
Devo clcsculpar-mc, ao finiil, junto aos numerosos doutorandos e amores de 
reccnsões, por 11:10 ter podido lcv:tr em conta as suas apreciações críticas. De tantos 
que roram, isso teria n:s11lt:1do num livro para si. Os que me enviaram as suas disserta· 
çôcs e reccnsõcs podem ter certeza de que as li. Os tiuc não :1s cnvi11rnm não o quisc 
ram ou não acharam necess:ítio seguir o estilo acadêmico tradicional. Comudo seria la­
mentável se a comunidade acadêmica fosse dissolvida nesse ponto e os autores não 
mais pudessem saber o c1ue alguém escreveu sobre eles. Nem a internet compensaria 
isso. 
Assim como fiz há 35 anos com a Teo/ogit1 dt1eJpem11çn, com à qua� iniciei a.mi­
nha teologia sistemática. dedico também o último bvro desta série à minh·i1 mulher. As 
minhas Experiências de reflexão teológi.a surgiram durante a nossa comunhão de vida e 
provêm da alegria perene proporcionada por ela. 
Tübingen, 23 de março de 1999 
Ji.irgen Moltmann 
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02_Teologia Sistemática I_Stott_11_25.pdf
A BÍBLIA: 
O LIVRO PARA HOJE 
John R. W. Stott 
ABU Editora S/C 
Livros Para Gente Que Pensa 
1 
DEUS E A BÍBLIA 
Nosso primeiro tópico, "Deus e a Bíblia", nos 
apresenta o tema da revelação. Por isso, peço que 
prestem atenção em meu texto, que é Isaías 55:8-
11. É Deus mesmo quem está falando:
Porque os meus pensamentos nã.o são os vossos
pensamentos, nem os vossos caminhos os meus
caminhos, diz o Senhor,
porque, assim como os céus são mais altos do que
a terra, assim são os meus caminhos mais altos do
que os vossos caminhos, e os meus pensamentos
mais altos do que os vossos pensamentos.
Porque, assim como descem a chuva e a neve dos
céus, e para lá nã.o tornam, sem que primeiro
reguem a terra e a fecundem e a façam brotar, para
dar-semente ao semeador e pão ao que come,
assim será a palavra que sair da minha boca; nã.o
voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz,
e pr.osperará naquilo para que a designei.
12 DEUS E A BÍBLIA 
Esse grande texto nos apresenta pelo 1nenos 
três . liçõe� importantes que ·precisa1n ser 
aprendidas. 
A racionalidade. da revelação 
Certas pessoas acham difícil o próprio conceito 
de revelação. A idéia de que Deus possa revelar­
se à humanidade desafia-lhes o entendimento.· 
"Por que ele faria isso?" e "Como poderia fazê­
lo ?" Minha resposta é que a evidente necessidade 
de uma revelação divina faz com que essa idéia 
seja eminente1nente razoável. Ein todas as 
épocas, a maioria das pessoas sente-se 
desconcertada com os mistérios da vida e
da 
experiência humana. Assiln, se muitas delas 
adinitem que precisam de uma sabedoria que 
venha de fora de si mesmas para que possam 
captar o sentido de suas próprias vidas, quanto 
mais o sentido do Ser Divino, se é que Deus existe. 
Vamos voltar até Platão. Em Fédon, ele fala da 
nossa necessidade de seguir por 1nares escuros e 
vagar sobre a pequena "jangada" de nosso 
próprio entendilnento, "na qual nos 
arriscaremos", acrescenta, "uma vez que não a 
podemos percorrer, com mais segurança e cmn 
menos riscos, sobre um transporte mais sólido: 
quero dizer, uma revelação diviI1a!" 
Se1n a revelação, sem a instrução e a orientação 
diviI1a, nós, seres hwnanos, nos sentilnos como 
um barco sem leme, à deriva em alto-mar; uma 
A B1BUA: O LIVRO PARA HOJE 13 
folha arremessada impiedosamente pelo vento 
ou um cego tateando na escuridão. Como 
podemos encontrar o caminho? E, o que é mais 
importante, como podemos encontrar o caminho
de Deus, sem a sua orientação? A impossibilidade 
de os seres humanos descobrirem Deus pelo seu 
próprio intelecto, sem outra ajuda, é asseverada 
co1n 1nuito clareza neste texto, nos versículos 8 e 
9. "Porque os meus pensamentos não são os
vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os
meus caminhos, diz o Senhor, porque, assim
como os céus são mais altos do que a terra, assim
são os 1neus caminhos mais altos do que os vossos
caminhos, e os meus pensamentos mais altos do
que os vossos pensamentos." Em outras palavras,
há wn grande abismo entre a mente de Deus e a
�ente humana. O texto expressa um contraste
entre os caminhos e os pensamentos de Deus e os
nossos caminhos e pensamentos. Ou seja, entre
aquilo que pensamos e fazemos, e aquilo que
Deus pensa e faz, existe uma grande diferença. Os
pensamentos e os caminhos de Deus são muito
1nais altos do que os pensamentos e os caminhos
do homem, assim como os céus são mais altos que
a terra: isso significa uma distância infinita.
Consideremos os pensamentos de Deus. 
Como poderíamos descobrir seus pensamentos 
ou ler sua mente? Ora, nós nem conseguimos ler 
os pensamentos dos outros. Tentamos. Ficamos 
observando os olhos dos outros, para ver se 
14 DEUS E A BÍBLIA 
estão cintilando ou piscando, sombrios ou 
.al�gr�s. Se _eu fi�asse ·em silêncio aqui no púlpito 
e manti:vessé o ro_sto impassível, vocês não teriam 
a mínima idéia _.do que eu estaria pensando. 
Tentem. Vou ficar uns instantes sem falar. Agora, 
o que estava se ·passando em minha mente?
Algum palpite? Não? Bem, vou lhes q:mtar. Eu
estava escalando a torre da Igreja de All Souls,
tentando alcançar o topo! Mas vocês não sabiam.
Não tinhain noção alguma do que eu estava
pensando. Claro. Vocês não podem ler minha
mente. Se ficarmos em silêncio, será impossível
ler a mente uns dos outros.
E mais i.tnpossível ainda (se é que existem 
graus de hnpossibilidade) é penetrar nos 
pensamentos do Deus Todo-Poderoso! A mente 
dele é infinita. Seus pensainentos se elevam acima 
dos nossos, como os céus se eleva1n acima da 
terra. É ridículo supor que seríamos capazes de 
penetrar na mente de Deus. Não há nenhuma 
escada pela qual nossas mentes limitadas possain 
subir até sua mentê infinita. Não há nenhuma 
ponte que possa alcançar o outro lado do abismo 
infinito. Não há nenhwn cantinho para alcançar 
ou sondar Deus. 
Portanto, é be1n lógico dizer que, se Deus não 
tomar a iniciativa de revelar o que está em sua 
mente, nunca conseguiremos descobri-lo. A não 
ser que Deus se revele a nós, nw1ca consegwrernos 
conhecê-lo, e todos os altares do inundo irão levar 
a trágica inscrição "Ao Deus Desconhecido", 
A BÍBLIA: O LIVRO PARA HOJE 15 
como a que Paulo viu em Atenas (At 17:23). 
Este é o lugar para começar nosso estudo. É o 
lugar da humildade perante o Deus infinito. 
Também é o lugar da sabedoria, quando 
percebemos a racionalidade da idéia da 
revelação. 
O meio de revelação 
Admitindo que seja razoável que Deus tenha se 
revelado, como ele fez isso? Em princípio, do 
mesmo modo como nós nos revelamos ou nos 
expomos uns aos outros, ou seja, pelas ações e 
pelas palavras, pelas coisas que fazemos e 
dizemos. 
As artes criativas sempre foram um dos 
principais meios de auto-expressão humana. 
Estainos conscientes de que temos, dentro de nós, 
algo que precisa vir à tona, e lutamos para dar­
lhe vida. Para alguns, o canal apropriado é a 
música ou a poesia; para outros, uma das artes 
visuais - desenho, pintura ou fotografia, 
cerâmica, escultur�, entalhe ou arquitetura,. 
dança ou teatro. E interessante que, dessas 
1nanifestações artísticas, a cerâmica é a mais 
freqüente na Bíblia - provavelmente porque o 
oleiro era uma figura bem conhecida nas vilas da 
Palestina. Por isso, Deus disse que "fonnou" ou 
"moldou" a terra e também o ser humano, para 
habitar nela (p. ex.: Gn 2:7; Sl 8:3; Je 32:17). E mais: 
ele próprio pode ser visto em suas obras. "Os 
16 DEUS E A BÍBLIA 
céus proclamam a.glória de Deus-e o firma1nento 
anuncia às obr�s dás·suas mãos" (Sl 19:1; Is 6:3). 
Ou como Paulo escreve no começo de Romanos: 
"Porquanto o que de Deus se pode conhecer é 
manifesto entre eles (isto é, no mundo gentio), 
porque Deus lhes manifestou. Porque os 
atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno 
poder como também a sua própria divindade, 
claramente se reconhecem, desde o princípio do 
mundo, sendo percebidos por meio das coisas 
que foram criadas" (Rm 1:19-20). Em outras 
palavras, assim como os artistas humanos se 
revelam em sua pintura, escultura ou 1núsica, o 
artista divino também se revela na beleza, no 
equilíbrio, na complexidade e na orde1n de sua 
criação. Dela, aprendemos um pouco de seu 
poder, sabedoria e fidelidade. Gerahnente isso é 
den01p.inado revelação "natural", porque é dado 
por meio da "natureza". 
Entretanto, não é a isso que o meu texto se 
refere, mas, sim, ao segundo meio, mais direto,· 
pelo qual nos damos a conhecer uns aos outros 
e pelo qual Deus se deu a conhecer a nós, ou seja, 
as palavras. A fala é o meio de comunicação mais 
completo e flexível entre dois seres humanos. Já 
mencionei que, se permanecesse em silêncio no 
púlpito, com o rosto impassível, eu seria 
insondável e vocês não conseguiriam descobrir 
o que estava na minha mente. Mas agora a
situação mudou. Vocês sabem o que está se
passando na minha mente, porque já não estou
A BÍBLIA: O LIVRO PARA HOJE 17 
em silêncio. Estou falando. Estou revestindo os 
pensamentos da minha mente com as palavras da 
minha boca. As palavras da minha boca estão 
lhes comunicando os pensamentos da minha 
mente. 
Portanto, a fala é o melhor meio de 
comunicação, e a fala é o principal modelo usado 
pela Bíblia para ilustrar a auto-revelação de Deus. 
Volte ao texto, nos versículos 10 e 11: "Porque, 
assim como descem a chuva e a neve dos céu.s, 
e para lá não tomam, sem que primeiro reguem 
a terra e a fecundem e a façam brotar, para dar 
semente ao semeador e pão ao que come, assim 
será a palavra ... " Note a segunda referência ao 
céu e à terra: se a chuva desce dos céus para regar 
a terra, é porque os céus estão acima da terra. 
Note também que o autor passa diretamente dos 
pensamentos de Deus para as palavras da boca 
de Deus: '' assim será a palavra que sair da minha 
bocai ... fará o que me apraz, e prosperará naquilo 
para que a designei". O paralelo é evidente. 
Assim como os céus são mais altos do que a terra, 
mas a chuva desce dos céus para molhar a terra, 
os pensamentos de Deus também são mais altos 
do que os nossos pensamentos, mas descem até 
nós, porque sua palavra sai de sua boca e, assim, 
nos transmite seus pensamentos. Corno o profeta 
havia dito antes (Is 40:5), a "boca do Senhor o 
disse". Ele estava se referindo a um de seus
próprios oráculos, mas o descreveu como se fosse
uma mensagem proveniente da boca de Deus. 
18 
DEUS E A BÍBLIA 
Ou, como Paulo escreveu em 2 Tilnóteo, "toda 
� Esq:itura é soprada por Deus" (a tradução literal 
de theopneustos em 2 T1n 3:16). Ou seja, as 
Escrituras são a Palavra de Deus, são proferidas 
pela boca de De.Us. 
Depois de considerar a afirmação expressa e1n 
meu texto, para mim é importante acrescentar 
algumas ressalvas, a fim de esclarecer nosso 
entendimento de como Deus falou sua Palavra. 
Primeiro, a Palavra de Deus (agora registrada 
nas Escrituras) tinha uma relação direta com sua 
atividade. Ou seja, ele falou a seu povo tanto por 
ações como por palavras. Ele se deu a conhecer 
a Israel na história da nação, orientando-a de tal 
forma a manifestar por meio dela, ora sua 
salvação, ora seu julgamento. Assiln, ele resgatou 
o povo da escravidão no Egito; conduziu-o com
segurança pelo deserto e o estabeleceu na terra
prometida; preservou a identidade nacional dos
israelitas através do período dos juízes; deu-lhes
reis para goven1á-los, embora o fato de exigirem
um rei humano fosse, em parte, uma rejeição de
seu próprio reinado; seu julgamento caiu sobre
eles devido à sua desobediência persistente,
quando foram levados ao exílio da Babilônia; e
então os reconduziu à terra e lhes permitiu
reconstruir a nação e o templo. Acima de tudo,
por nós, pecadores, e pela nossa salvação, enviou
seu Filho eterno, Jesus Cristo, para nascer, viver
e trabalhar, para sofrer e morrer, para ressuscitar
e derramar o Espírito Santo. Deus se revela de
A B1BLIA: O LIVRO PARA HOJE 19 
uma forma ativa e pessoal através desses atos, 
primeiro na história do Antigo Testamento, mas 
de modo supremo em Jesus Cristo. 
Por essa razão, alguns teólogos considera1n 
importante fazer uma distinção bem clara entre 
a revelação "pessoal" (através das obras de Deus) 
e a revelação "proposicional" (através de suas 
palavras), rejeitando, então, a última em favor da 
primeira. Entretanto, essa polarização é infeliz e 
desnecessária. Não precisamos escolher entre 
esses dois meios de revelação. Deus usou ambos. 
Além disso, os dois estavam intimamente ligados, 
pois as palavras de Deus interpretavam seus atos. 
Ele levantou os profetas para explicar o que 
estava fazendo para Israel, e levantou os 
apóstolos para.explicar o que estava fazendo 
através de Jesus. É verdade que o processo divino 
de auto-revelação culminou na pessoa de Jesus. 
Ele era a Palavra de Deus encarnada. Ele 
demonstrou a glória de Deus. Vê-lo significava 
ver o Pai (cf. Jo 1:4, 18; 14:9). No entanto, essa 
revelação histórica e pessoal não nos teria 
beneficiado se, juntamente com ela, Deus não nos 
tivesse desvendado o significado da pessoa e da 
obra de seu Filho. 
Portanto, precisamos fugir da armadilha de 
colocar a revelação "pessoal" em contraposição 
à revelação "proposicional", como se fossem 
antagônicas. É mais exato dizer que Deus se 
revelou em Cristo e no testemmlho bíblico a 
20 DEUS E A BÍBLIA 
respeito de Cristo. Um não é completo se1n o 
outro. 
Ségundo; a Palavra de Deus veio a nós através de 
palavras humanas. Quando Deus falou, ele não 
gritou lá do céu azul, de um modo audível para 
as·pessoas. Não, ele falou através dos profetas (no 
Antigo Testamento) e através dos apóstolos (no 
Novo Testamento). Além disso, esses agentes 
humanos da revelação de Deus era1n pessoas 
reais. A inspiração divina não foi u1n processo 
mecânico, que reduzia os autores humanos da 
Bíblia a máquinas, fossem 1náquinas copiadoras 
ou gravadores de fita. A inspiração divina foi um 
processo pessoal, e1n que os autores humanos da 
Bíblia geralmente estavam em plena posse de 
suas faculdades mentais. Basta ler a Bíblia para 
ver isso. Os escritores de narrativa (e a Bíblia 
contém uma grande quantidade de narrativas 
históricas, tanto no Antigo como no Novo. 
Testamento) usaram registros históricos, muitos 
dos quais são mencionados no Antigo 
Testamento. No início de seu evangelho, Lucas 
refere-se a sua cuidadosa pesquisa histórica. 
Além disso, todos os autores bíblicos 
desenvolveram seus próprios estilos literários e 
ênfases teológicas caraterísticas. Daí a rica 
diversidade das Escrituras. Contudo, Deus 
mesmo estava falando através das várias 
perspectivas deles. 
Esta verdade da dupla autoria da Bíblia (ou 
seja, que ela é a Palavra de Deus e a palavra dos 
A BÍBLIA: O LIVRO PARA HOJE 21 
homens, ou melhor, a Palavra de Deus através das 
palavras dos homens) é o conceito que ela própria 
faz de si. A lei do Antigo Testamento, por 
exemplo, às vezes é chamada "lei de Moisés" e 
outras vezes "lei de Deus" ou "lei do Senhor". 
Em Hebreus 1:1 lemos que Deus falou aos pais 
por meio dos profetas. Em 2 Pedro 1:2t 
entretanto, lemos que homens falaram da parte de 
Deus, movidos pelo Espírito Santo. Assim, Deus 
falou e os homens falaram. Eles falaram "da 
parte" dele, e ele falou "através" deles. Ambas as 
afirmações são verdadeiras. 
Além disso, precisamos manter as duas 
afirmações ao mesmo tempo. Como na Palavra 
encan1ada Oesus Cristo), também na Palavra 
escrita (a Bíblia) o elemento humano e o divino 
se combinam e não se contradizem mutuamente. 
Essa analogia, que foi desenvolvida logo no irúcio 
da história da igreja, hoje é muitas vezes criticada. 
E, obviamenteJ não é exata, já que Jesus era uma 
pessoa, enquanto a Bíblia é um livro. Apesar 
disso, a analogia continua sendo útil, contanto 
que nos lembremos de suas limitações. Por 
exemplo: nunca se deve afirmar a divindade de 
Jesus a ponto de negar sua humanidade, nem 
afirmar sua humanidade a ponto de negar sua 
divindade. O mesmo acontece com a Bíblia. Por 
um lado, a Bíblia é a Palavra de Deus. Ele falou, 
decidindo pessoalmente o que desejava dizer, 
mas sem nunca distorcer a personalidade dos 
autores humanos. Por outro lado, a Bíblia é a 
22 DEUS E A BÍBLIA 
palavra dos homens. ·Os homens fararam, usando 
livremente sua§}acUÍdades, mas sem distorcer a 
verdade da mensagem divina. 
A dupla autoria da Bíblia vai afetar a maneira 
como a lemos. Sendo a palavra de homens, 
precisamos estudá-la cmno um outro livro 
qualquer, usando nossa mente, investigando suas 
palavras e sintaxe, suas origens históricas e sua 
composição literária. Mas sendo também a 
Palavra de Deus, devemos estudá-la co1no � 
livro único, de joelhos, humildes, clamando pela 
iluminação de Deus e pela ministração do 
Espírito Santo, sem o qual nunca conseguiremos 
entender sua Palavra. 
O propósito da revelação 
Já estudainos como Deus falou. Mas por que ele 
falou? A resposta é: não só para nos ensinar, mas 
para nos salvar; não só para nos instruir, mas para 
nos instruir especificamente "para a salvação" 
(2 Tm 3:15). A Bíblia tem um propósito 
fortemente prático. 
Voltando para Isaías 55, essa é a ênfase dos 
versículos 10 e 11. A chuva e a neve caem do céu 
e não retomam. Elas cumpre1n um propósito na 
terra. Elas a regam. Fazem-na produzir e 
germinar e a tomam frutífera. Assim também a 
Palavra de Deus, partindo de sua boca e 
desvendando sua mente, não retoma a ele vazia. 
Ela cumpre seu propósito. Além disso, as razões 
A BÍBLIA: O LIVRO PARA HOJE 23 
de Deus para enviar chuva à terra e para falar sua 
Palavra aos seres humanos são similares. Em 
ambos os casos, o propósito é a frutificação. Sua 
chuva toma a terra frutífera. Sua Palavra toma 
frutíferos os seres humanos. Ela os salva, 
transformando-os à semelhança de Jesus Cristo. 
O contexto é, certamente, a salvação. Nos 
versículos 6 e 7 o profeta fala da misericórdia e do 
perdão de Deus, e na seqüência, no versículo 12, 
ele fala sobre a alegria e a paz do povo redimido 
de Deus. 
De fato, aqui está a principal diferença entre 
a revelação de Deus na criação ("natural", 
porque
é dada através da natureza, e "geral", 
porque é dada a todos os seres humanos) e a sua 
revelação na Bíblia ("sobrenatural", porque é 
dada por inspiração, e "especial", porque é dada 
para pessoas específicas, através de pessoas 
específicas). Por meio do universo criado, Deus 
revela seu poder, glória e fidelidade, mas não o 
caminho da salvação. Se quisermos descobrir seu 
plano gracioso para a salvação dos pecadores, 
precisamos nos voltar para a Bíblia, pois é através 
dela que ele nos fala de Cristo. 
Conclusão 
A partir de nosso texto em Isaías 55, aprendemos 
três verdades. 
Em primeiro lugar, a revelação divina não é 
somente racional, mas é também indispensável. 
24 DEUS E A I3ÍI3L1A 
Se1n ela, nunca conseguiríamos conhecer a Deus. 
Em segundo lugar, a revelação divina faz uso 
das palavras. Deus falou através de palavras 
humanas e, ao fazê-lo, estava explicando seus 
atos. 
Em terceiro lugar, a revelação divina é para a 
salvação. Ela nos chama a atenção para Cristo 
co1no o Salvador. 
Minha conclusão é 1nuito simples. É um 
chamado à humildade. Nada é mais nocivo para 
o crescimento espiritual do que a arrogância e
nada é mais propício para o crescimento
espiritual do que a humildade. Precisainos nos
humilhar diante do Deus infinito, reconhecendo
as litnitações de nossa mente hmnana (nunca
conseguiría1nos encontrá-lo por nós mesmos) e
a nossa própria pecaminosidade (nunca
conseguiría1nos alcançá-lo por nós mesmos).
Jesus chamou isso de "hu1nildade de wna 
criancinha". Deus se esconde dos sábios e 
entendidos, disse, mas se revela aos 
"pequeninos" (Mt 11:25). Ele não estava 
denegrindo nossas mentes, pois Deus as 
concebeu para nós. Pelo contrário, estava 
mostrando como nós devemos usá-las. A 
verdadeira função da mente não é se exaltar, 
julgando a Palavra de Deus, mas se humilhar, 
colocando-se sob ela, ansiosa para ouvi-la, 
entendê-la, aplicá-la e obedecer-lhe nos aspectos 
práticos da vida diária. 
A 13!13LIA: O LIVRO PARA HOJE 25 
A "humildade" das crianças não é vista 
apenas no modo como elas aprendem, mas 
tainbém no modo como recebem as coisas. As 
crianças são dependentes. Nenhuma de suas 
posses foi conquistada. Tudo o que têm lhes foi 
dado de graça. Devemos, portanto, "receber o 
reino de Deus como uma criança" (Me 10:15), 
pois os pecadores não merecem - nem podem 
conquistar - a vida etema ( que é a vida do reino 
de Deus); precisamos nos hwnilhar para recebê­
la como um dom gratuito de Deus. 
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		02_stoth_11_25.pdf
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03_Teologia Sistemática I_Berger_81_107.pdf
Do original: ln Praise of Ooubt 
Tradução autorizada do idioma inglês da edição publicada por HarperOne 
Copyright© 2009, by Peter Berger and Anton ZIJderveld. 
© 2012, Etsevier Editora Lida. 
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transmitida sejam quais forem os meios empregados: el1etrõnicos, mecâ.nlcos, fotográficos, gravação ou 
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Edição original: ISBN: 978-0-06-177817-9 
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impressão ou dúvida conceituai. Em qualquer das hipóteses, solicitamos a comunicação ao nosso Serviço de 
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ou bens, originados do uso desta publicação. 
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte 
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ 
B435e Berger, Peter L., 1929· 
11·7824. 
Em favor da dúvida: como ter convicções sem se tornar 
fanático / Peter L. Berger, Anton C. Zijderveld ; tradutor Cristina 
Yamagaml. - Rio de Janeiro : Elsevler, 2012. 
Tradução de: ln praise oi doubt 
ISBN 978-85·352-5550-8 
1. Crença e dúvida. 2. Certeza.1. Zijderveld, Anton C., 1937-. 
li.Título. 
CDD: 121.63 
CDU: 165.413 
Wenn wir die Zweifel nicht haetten, 
Wo waere dann frohe Gewissheit? 
Se não tivéssemos as dúvidas, 
Onde, então, haveria uma certeza jubilante?
5. 
Goethe 
CERTEZA E DÚVIDA 
O 
romancista austríaco do século XX Robert Musil observou, 
com a ironia característica de seus textos, que "a voz da ver­
dade tem um tom suspeito". Essa afirmação lembra a obser­
vação de Pascal, já ,;nencionada, de que verdade em um lado dos Pire­
neus pode ser um erro no outro lado. A verdade, em outras palavras, é 
menos certa ou absoluta do que desejaria o "verdadeiro crente". Para 
parafrasear filosoficamente essa ideia, a verdade é passível de refuta­
ção. Ela se relaciona ao tempo e ao espaço - embora uma pessoa que 
adote uma ou outra crença ou fé metafisicamente fundamentada não 
compartilhe essa visão. Ao longo da maior parte da história, essa fun­
damentação foi proporcionada pela religião e é na esfera da religião 
que a inter-relação entre certeza e dúvida se desenrolou da maneira 
mais drástica (como veremos a seguir). Hoje em dia, contudo, não 
existem muitos "verdadeiros crentes" sem nenhuma afiliação religiosa. 
Em outras palavras, há uma comunidade verdadeiramente ecumênica 
de fanáticos de todas as crenças, religiosas e seculares. 
82 EM FAVOR DA DÚVIDA 
ALGUMAS VERDADES NÃO SÃO ABSOLUTAS? 
O fato de a verdade ser passível de refutação não significa que não exista 
uma verdade "indubitável". Temos, para começar, as regras básicas ma­
temáticas, que ninguém, em sã consci�ncia, sujeitaria à dúvida ou à refu­
tação. Em todas as eras e em todos os tempos, é óbvio que·doi� mais três 
somam cinco e que duas vezes três ·resultam em seis. Trata-se de uma ver­
dade pautada pelo bom-senso que qualquer pessoa men!alment� sã acei­
taria sem questionar. Todavia, a verdade da matemática, da mesma forma 
que a proposição de Pitágoras, deve ser ensinada e aprendida. Ela não é 
inata e naturalmente óbvia. Na verdade, é bastante difícil dar uma respos­
ta verbal convincente à pergunta de uma criança que deseja saber por que 
quatro mais quatro são oito, e não nove ou sete. A única coisa a ser feita é 
pegar as mãos da criança e começar a somar os dedos. A propósito, para 
crianças de, digamos, 5 ou 6 anos, que já aprenderam os fundamentos da 
aritmética, é maravilhoso descobrir 10 dedos das mãos e 10 dedos dos pés 
que podem ser contados, somados, subtraídos e multiplicados. Com efei­
to, os dedos de uma criança funcionam como um ábaco primitivo. 
A verdade e a loucura algumas vezes são irmãs gêmeas antagônicas porém 
estranhamente unidas. O psicólogo social Milton Rokeach, no início dos 
anos 1960, estudou três pacientes mentais em três instituições diferentes, 
e os três acreditavam ser Jesus Cristo. Rokeach achava que eles poderiam 
ser curados desse delírio reunind; os três em uma única instituição. Com 
isso, eles se veriam diante de uma séria dissonância cognitiva, já que a 
existência de três Cristos é uma impossibilidade óbvia - além
do fato 
igualmente óbvio de que Jesus não está mais entre nós há aproximada­
mente dois milênios. Com a ajuda dos psiquiatras desses pacientes, que 
notadamente concordaram com a hipótese de Rokeach sobre o potencial 
curativo da dissonância cognitiva, os três pacientes foram reunidos em um 
hospício em Ypsilanti, Michigan. Rokeach registrou as discussões muitas 
CERTEZA E DÚVl DA 83 
vezes acaloradas dos três homens e as publicou em seu livro The Three 
Christs ofYpsilanti (1964). Em certo ponto, Rokeach achou que o mais 
inteligente dos três de fato havia começado a se curar de seu delírio. O 
homem disse que acreditava que os outros dois eram doidos de pedra por 
acharem que eram Jesus Cristo. Aquilo era um grande absurdo, porque 
naturalm�nte só uma pessoa pode ser Jesus Cristo. Sem dúvida, o Messias 
cristão não era nenhum dos dois malucos, mas ele próprio. 
Rokeach também relatou outro caso de uma identidade plural confli­
tante. Duas pacientes, uma mulher mais velha e uma mais jovem, acredi­
tavam ser Maria, a mãe de Jesus. Elas discutiam o tempo todo, até que, de 
repente, a mais velha encontrou uma solução. Ela perguntou a Rokeach 
quem foi a mãe de Maria. Depois de refletir um pouco, ele respondeu 
que, se não estivesse enganado, a mãe de Maria se chamava Ana. Então 
a mais velha anunciou alegremente ser Ana, abraçou carinhosamente a 
colega mais jovem e passou a chamá-la, daquele momento em diante, de 
sua filha Maria. A dissonância cognitiva foi, dessa forma, engenhosamen­
te dissolvida. 
Em proximidade com as regras objetivas e indubitáveis da aritmética e da 
matemática, temos as regras da lógica formal. Com efeito, de acordo com a 
maioria dos filósofos, a matemática e a lógica são intrinsecamente cognatas. 
Não cabe aqui entrar no campo altamente especializado e complexo da lógi­
ca. Basta dizer que há proposições básicas na lógica, como o silogismo, que, 
em geral, são consideradas indubitáveis - isto é, absolutamente verdadeiras. 
"Os seres humanos são mortais; Sócrates é um ser humano; logo, Sócra­
tes é mortal." Esse é um exemplo do silogismo mais básico, contendo uma 
verdade indubitável. Na verdade, termos substantivos como "ser humano", 
"mortalidade" e "Sócrates" podem ser substituídos por símbolos incorpó­
reos, como tem sido feito na lógica desde Aristóteles: M é P; S é M; logo, S 
é P. Na verdade, a lógica formal prefere símbolos como esses, já que não se 
interessa por ruminações filosóficas ou teológicas - especialmente se lidarem 
84 EM FAVOR. DA DÚVIDA 
com a mortalidade e a imortalidade humana, como no caso do silogismo 
mencionado. 
Mas nenhuma dessas proposições diz respeito à verdade e à certeza pe­
las quais ansiamos na vida cotidiana. A vida não é uma soma de silogismos 
formais, mas, muitas vezes, uma sucessão dolorosa de escolhas e decisões 
nem sempre "lógicas" e relativas a alternativas longe de·seiem '.'.racionais". 
A lógica formal tenta eliminar as insinuações da "voz da verdade" de Mu­
sil, mas, na vida real, é muito difícil eliminar essas insinuações. A verdade 
é perpetuamente obscurecida pela dúvida e pela insegurança. Só o '\rer­
dadeiro crente", que adotou fervorosamente um ou outro "ismo" religioso 
ou filosófico, conseguirá abafar aos gritos as vozes da dúvida - vozes que, 
como vimos, são incontáveis no processo pluralizante da modernização. 
Não obstante, há na verdade uma certeza não religiosa e não filosófica 
bastante fundamental em nossa vida, oferecendo o que Arnold Gehlen 
chamou apropriadamente de "certeza benigna". Discutimos a obra de 
Gehlen no primeiro capítulo, mas vamos retomá-la brevemente aqui. Sua 
"certeza benigna" é a certeza das instituições, em grande parte aceita sem 
questionamento e transmitida de uma geração à próxima, estabelecendo 
o que chamamos de "tradição". Casamento, familia, igreja, templo, mes­
quita, escola, universidade, associação voluntária etc. - todas essas insti­
tuições não são apenas organizações funcionais; também são instituições
significativas que transmitem os valores e as normas que proporcionam
direcionamento e certeza às nossas ações e interações do dia a dia.
Qyando, por exemplo, um in�ivíduo migra para um país estrangeiro, 
deve aprender seu idioma, seus costumes, suas cerimônias religiosas e 
seculares, suas maneiras de agir, pensar e sentir - em resumo, as insti­
tuições. Dessa forma, o indivíduo se apropria dos significados, valores e 
normas das pessoas do novo hábitat social. Essa apropriação é necessária 
para se comunicar e interagir com os novos vizinhos. Pode levar um 
tempo, mas o indivíduo acabará vivenciando a "certeza benigna" do não 
questionamento institucionalmente embasado. É como sentir-se em 
casa, apesar de o velho mundo do qual emigrou subsistir nas memórias e 
CERTEZA E DÚVIDA 8S 
emoções. Na verdade, o sentimento de viver entre dois mundos muitas 
vezes constitui uma zona crepuscular de incontáveis dúvidas e incertezas 
que perdura até a morte. Normalmente, contudo, essa zona se desfaz na 
segunda ou terceira geração. A migração não é um fenômeno novo, mas 
· atingiu dimensões sem precedentes na era moderna. Por conseguinte, o
mundo hoje contém milhões de pessoas que transitam em duas, e mui­
tas vezes mais de duas, culturas.
Como argumentamos, o processo moderno de pluralização constituiu 
uma força desinstitucionalizadora e existencialmente desestabilizadora. 
Ela ampliou nossa liberdade de escolha e, em consequência e em certo 
sentido, nossa autonomia e autossuficiência. Todavia, como uma visita a 
qualquer supermercado moderno demonstra, também deparamos com a 
Qual der Wahl ("-agonia da escolha"), que mencionamos no segundo capí­
tulo. Com efeito, o supermercado pode ser visto como a metáfora de uma 
sociedade p lenamente pluralizada. Essa pluralização levou a duas reações 
opostas. Por um lado, temos movimentos que visam a um retorno radical 
às certezas pré-modernas, como o fundamentalismo religioso e o racio­
nalismo científico, e, por outro lado, temos uma celebração muitas vezes 
igualmente radical das supostas contingências pós-modernas, propagadas 
na forma de um relativismo no qual (moralmente) "vale tudo". No pri­
meiro caso, a agonia da escolha é mitigada pela introdução de um câno­
ne teológico ou 'filosófico da verdade. No segundo caso, é transformada 
em uma suposta yantagem, já que os relativistas acreditam que a escolha 
constitui a derradeira garantia de liberdade e autonomia. 
Nenhuma posição é oprimida pela dúvida; isso, elas têm em comum. Elas 
têm uma certeza que é - supostamente - indubitável. Na verdade, as duas 
posições sãQ mantidas por "verdadeiros crentes", que encontram suas certezas 
na religião, na ciência ou na relatividade pós-modernista. O último grupo, em 
particular, muitas vezes alega celebrar a dúvida, mas, na verdade, absolutiza a 
dúvida em um relativismo radical ou ceticismo que prenuncia o fim da �úvi­
da. Na verdade, os relativistas e os-céticos também são "verdadeiros crentes". 
O que, então, constittú um 'verdadeiro crente"? 
86 EM FAVOR DA DÚVIDA 
COMO OS 'VERDADEIROS CRENTES" 
LIDAM COM A DÚVIDA? 
Em 1951, Eric Hoffer, estivador e filósofo de botequim americano, pu­
blicou um pequeno livro intitulado Thé True Believer:,. no qu_al apresentou 
uma profunda descrição desse tipo de ser humano. Os· movimentos de 
massa, ele argumentou - como movimentos religiosos, social-revolucio­
nários e nacionalistas -, propagam ideologias muito diferentes, mas têm 
uma característica em comum: elas geram e são transmitidas por pesso­
as que, em casos extremos, estão dispostas até a morrer pela causa, que 
preconizam a ação conformista e que promovem e são motivadas pelo 
fanatismo, pelo ódio e pela intolerância. De maneira muito diferente das 
doutrinas que pregam e dos programas que projetam, esses movimentos 
de
massa compartilham a mesma mentalidade - isto é, a mentalidade fa­
nática do verdadeiro crente. Hoffer identificou esse tipo de mentalidade 
no extremismo cristão e muçulmano (hoje em dia, falamos de islamismo 
e fundamentalismo protestante), no comunismo, no nazismo e em várias 
formas de nacionalismo. A observação a seguir, feita por Hoffer em 1951, 
continua válida: "[Visto que] apesar de vivermos em uma era sem Deus, 
ele é o exato oposto do irreligioso. O verdadeiro crente está por toda parte 
e, ao mesmo tempo, convertendo e antagonizando, molda o mundo à sua 
própria imagem." E, como na época de Hoffer, há muitos outros "ismos" 
criados e propagados por verdadeiros crentes, como o modernismo es­
clarecido, o romantismo antirracional e o pós-modernismo igualmente 
antirracional. 
A maioria desses "ismos" pode ser chamada de "deuses" - isto é, obje­
tos de devoção e adoração-, apesar de um profeta hebraico poder defini­
los como "falsos deuses". Eles, muitas vezes, são "deuses que fracassaram", 
parafraseando o título de uma compilação de ensaios de seis intelectuais 
europeus que, no período entre 1917 e 1939, acreditaram nas bênçãos do 
comunismo, mas perderam a fé depois de conhecerem a versão terrorista 
de Stalin. Esses deuses seculares ca,em por terra em particular quando 
CERTEZA E DÚVIDA 87 
suas profecias fracassam, como quando a revolução proletária, as previ­
sões de fim do mundo ou o retorno profetizado da figura messiânica não 
ocorrem. No início do cristianismo, havia altas expectativas em relação 
ao retorno iminente de Jesus Cristo para criar o Reino de Deus na Terra. 
Sugeriu-se que essa escatologia frustrada tenha impulsionado as ativida­
des missionárias do Apóstolo Paulo e o estabelecimento da Igreja Cristã 
como uma organização formal. O pontífice de Roma era visto não apenas 
como o CEO (ChiefExecutive Officer) da Igreja Católica Romana, mas 
também como o representante de Cristo na Terra até o seu retorno. 
Em seu estudo clássico When Prophecy Fails (1956), Leon Festinger 
argumentou que as pessoas profundamente comprometidas com uma 
crença e suas linhas de ação não perdem a fé quando os eventos refutam 
suas alegações, como quando um evento profetizado deixa de ocorrer. 
Pelo contrário, elas vivenciam um aprofundamento de suas convicções 
e se põem a pregar sua fé para confirmá-la. Qiianto mais as pessoas se 
apegam à sua fé, mais verdadeira ela deve ser - pelo menos é o que se 
imagina. No entanto, Festinger acrescenta que, na maioria dos casos, há 
um momento em que as evidências perturbadoras se acumulam a ponto 
de permitir a entrada de dúvidas obstinadas. Essas dúvidas, à medida que 
crescem, acabam causando a rejeição da crença - isto é, a menos que os 
crentes consigam criar uma sólida institucionalização, como foi o caso do 
cristianismo. A dissolução de movimentos apocalípticos é mais provável 
quando se dá uma data precisa para o fim do mundo (e essa data passa 
sem que o mundo acabe). Mais cedo ou mais tarde, transcorrida essa data 
sem a ocorrência de nenhum desastre apocalíptico, um movimento desse 
tipo geralmente cai por terra (apesar de não devermos subestimar a capa­
cidade dos 1seres humanos de negar as evidências invalidantes). 
Fundamentalistas religiosos e seculares e seus adversários se engalfi­
nharam em amargas controvérsias ao longo da História. Apesar de esses 
grupos serem diversos, normalmente têm três características principais 
em comum: em primeiro lugar, têm muita dificuldade de ouvir opiniões 
e ideias discordantes. Em segundo lugar, alegam estar de posse de uma 
88 EM FAVOR. DA DÚVIDA 
verdade irrefutável (seja religiosa ou secular). Em terceiro lugar, alegam 
que sua verdade é a única verdade; em outras palavras, declaram deter o 
monopólio sobre a verdade. As posições antagônicas dos 1'criacionistas" e 
"evolucionistas" apresentam um exemplo revelador. Se esses debates per­
manecessem restritos a espaços como· a igreja; a·mesquita_, o terrip�o, a 
sinagoga ou a universidade, seriam relativamente inócuo;. No.entanto, os 
verdadeiros crentes debatem em locais públicos - em particular, na arena 
política -, onde podem causar danos consideráveis. 
Devido à convicção de que detêm o monopólio da verdade, os "verdadei­
ros crentes" reprimem até o menor sinal de dúvida. Eles ridicularizam e até 
perseguem os representantes da moderação liberal. O fanatismo religioso foi 
o que levou Voltaire a exclamar "Écrasez l'infâmt' ("Destruam a infâmia!") -
sendo os infames a Igreja e talvez o cristianismo em geral. Mas o Iluminismo
também produziu o próprio fanatismo assassino. Não muito tempo depois de
a deusa da razão ter sido entronizada pela Revolução Francesa (nada menos
que na Igreja de la Madeleine, em Paris), o terror foi liberado, superando
facilmente as crueldades do ancien régime, que tanto ultrajou Voltaire.
A supressão da dúvida com motivações religiosas pode ser ilustrada por 
um dos vários exemplos históricos apresentados por séculos de conflitos 
religiosos na Europa. O reformista francês do século XV1 João Calvi­
no, um dos verdadeiros crentes mais inflamados da História, estabeleceu 
uma teocracia protestante na cidade de Genebra. Ele nunca ambicionou 
posição política, tendo permanecido Ministro da Igr�ja por toda a vida. 
Entretanto, como uma espécie de ayatollah, ele tentou manter o firme 
contr9le do cenário político de sua cidade. No início, ele não conseguiu: 
o prefeito e o conselho da cidade se recusaram a se entregar às doutrinas
de Calvino e de seu colega igualmente fanático Guillaume Farel, e os
baniu de Genebra. Mas, dois anos mais tarde, quando as relações entre
facções foram alteradas no conselho, os dois reformistas foram solicitados
a voltar a Genebra. Depois de retornar, Calvino lançou suas Ordonnances
CERTEZA E DÚVIDA 89 
ecclésiastiques, que foram aceitas pelo conselho da cidade. Com essas ri­
gorosas regras eclesiásticas, Calvino instituiu um conselho radicalmente 
presbiteriano - consistindo em laicos mais velhos e ministros com treina­
mento teológico - para ocupar o lugar do tradicional conselho episcopal, 
governado por bispos. V ale notar que esses homens laicos também eram 
oficiais do governo. Calvino determinou que a Igreja precisaria ser autô­
noma, mas a cidade-estado deveria ser subordinada à Igreja, particular­
mente no amplo campo da moralidade. A teocracia de Calvino enfrentou 
uma enxurrada de disputas e conflitos, mas ele conseguiu manter firme 
controle doutriná.rio e moral sobre os cidadãos de Genebra. 
Naturalmente, Calvino foi confrontado com a feroz oposição de alguns 
teólogos. Um deles foi o Cardeal Jacopo Sadoleto, secretário do Papa 
Leão X e bispo de Carpentras, no sul da França. Em uma carta endere­
çada ao conselho e aos cidadãos de Genebra, ele tentou persuadir esses 
"hereges" protestantes, Calvino e Farei, a retornar à Igreja-mãe. Usando 
como coringa o tema da salvação, Sadoleto levantou a seguinte questão: 
O que acontecerá com a nossa alma - a essência de nossa identidade -
quando morrermos? Danação ou salvação? A Igreja Romana Sagrada, 
com mais de 14 séculos de existência, argumentou Sadoleto, oferece a 
salvação por meio da eucaristia, da confissão dos pecados e sua absolvição, 
das orações dos santos a Deus em nosso nome e nossas orações a Deus em 
nome dos mortos. Naturalmente, precisamos da misericórdia de Deus, 
mas boas ações _são igualmente necessárias para nossa salvação. O tom 
de Sadoleto foi conciliador, mas, em certos pontos, ele explodiu em uma 
füria fanática: "Pois bem sei eu que tais inovadores das coisas anciãs e bem 
consolidadas, tais perturbações, tais dissenções, são não apenas pestilentas 
às almas dos homens (o maior de todos os maus), como também perni­
ciosas às relações privadas e públicas." Mas ele conclui a carta em um tom 
cortês: "Não rezarei para q4e o Senhor
destrua os lábios ludibriadores e.as 
línguas retumbantes deles e nem que Ele acrescente iniquidade à iniqui­
dade deles, mas rogarei fervorosamente para que o Senhor, meu Deus, os 
converta e lhes traga lucidez de espíríto, como faço agora." 
90 EM FAVOR DA DÚVIDA 
Apesar de a missiva' não, s'er endereçada. diretamente a ele, Calvino 
respondeu- em cinco meses com uma 1longa e elaborada exposição. Ele 
começou dizendo que.,suan1tividades em ,Genebra não pretendiatn:pro=­
mover:seus:lhteressesr pri.vaclos,.tomo;/mgerira Sadoleto. Tudo· o que.ele 
vinha.. fazendorafürhou11era,feit(ra serviço•de Jesus. Cristo:e �!9 obe�i�ncia 
nã0'.à;lgreja:, ·in:as.1à;!Bfblia, !1qma càusa àlqual o Senhor meiiricumbiú'\ 
Na vetrlaçle; .ele: acres�entou/'se ·desejasse eoristtltanneus· próprios inte­
resses,. jamais1 reí:iai 8eixado seu- partido\,. Ce11tamente;, Mnheço mai-s··que 
um•punhado de·lJ,om,ms 'da· minhalptópllia idade; que'.se, insinuaram na 
eminência - algim:s.- aosi quais-•eu. poderia· ter· me igualado: e outros ,que 
teria superado'1: E,··com todo o respeito,·elecontinuoti, é; de certa foí·ma,
su.speitt> que uma,pessoa que· nunca esteve em Genebra e:nuncà tenhà·de­
monsuado intetesse= algum •pelos' genebreses· "agora subitamente professe 
por eles tamanha afeição, apesar da inexistência· de qualquer indício pré­
vio de tanto afeto;. Calvino acreditava: que.a verdadeira intenção·do bispo 
era "devolver os genebreses ao controle do pontífice romano". •E, quanto 
à salvação, Calvino acreditava que a teologia não se deveria restringir aos 
pensamentos e temores individuais � isto é,, à alma de um indivíduo, mas 
,que .era primordialmente necessário demonstrar· a glória. de Deus. Sim, 
boas ·ações ,são importa,;ites, rnas: t1ão para conquistar, uma vida no Ceu, 
•e; sim para honrar a, glória1 de Deus. Ademâis, rião,deveríamos,confundir
essá glória com· a glória ·do pontífice de Roma ê'. de seus subordinados.
A salvação pode .ser, atingida somente ·-pela, .fé- e pela misericórdia de
Deus: "Mosttaremos ·que o únko refúgio seguro está,· na misericór­
dia de Deus, manifestada em Cristo, no qual cada parte da:nóSsa sal­
vação está completá. Considerando que-toda a humanidade é, ·aos olhos
de Deus, composta de pecadores perdidos, sustentamos que o Cristo é a
única virtude da humanidade; já que, por: Sua obediência, Ele expurgou
todas as nossas transgressões." .. ,
Etn determinado ponto dessa resposta epistolar, Calvino se vanglo­
riou de sua "escrupulosa retidão, profunda sinceridade e franqueza do
discurso". Em comparação com Sadoleto, ele chegou a afirmar ter sido
CERTEZA E DÚVIDA 91 
"consid
_e
ravelmente mais afortunado· na·tarefa de mahte.r a gentile:ia e a 
moderação1\ .Essa resposta foi escrita· ern· agosto de 1539,i Calvino, sem 
dúvida; perdeu toda a: "gentileza" quando publicou- seu Catecf1ismus· Ge-
1ne'Vensineis ·ános m�is tarde;·em que·revelou o .regime·teQcrático e·dis­
ciplinador.ao qual os cidadãos.de-sua· cidade deveriam sujeitar+-se. Nesse 
po1.1to, o cal:vinismo;já havia·se tornaqo uma ideologia eonsolidada. T.odas 
a s críticas foram suprimidas-com fanatismos, mas os,crítiGos,não puderam 
ser silenciados� : · · i ·, . , ·
-. A reayão mais,estrondosa veio de Sebastiarn Castellio; que fora amigo 
.fntimb de• Calvino, màs que sé distanciou de seu cada vez. mais intenso 
fanatismo, criticando em especial:a doutrina· calvinista. da predestinação. 
Castellio acabou fugindo de .Genebra a Basel, onde intensificou.sua ên­
fase anticalvinista·na tolerância e na liberdade de consciência. Em '1553, 
Miguel Servetus, teólogo laico.de certa forma confuso que rejeitou a dou­
triná da Trindade, foi queimado em público na fogueira� uma morte 
extremamente dolorosa à qual Calvino objetou, propondo, sem sucesso, 
o enforcamento como uma alternativa (isso é que é ('gentileza"!). Em res­
posta a··essa atrocidade, Castellio publicou dois, tratados em que rejeitou
fervorosamente a pcmeguição e a execução de hereges. Ele se distanciou
de maneira mais radical do fanatismo teológico com seu tratado intitula­
d0 "The Art ofDoubt, Faith, Ignorance and Krtow:ledge" (1563)- a arte
da dúvida, fé, ignorância e conhecimento·-; no· qual tentou responder
à multifacetada questão: {hiais doutrinas cristãs deveriam ser sujeitas à
dúvida, em quais o.indivíduo deveria: acreditar, quais ele não deveria pre­
cisar conhecer e quais deveria conhecer? Apesar da amplitude do tratado,
Castellio estava mais interessado na questão da dúvida, em oposição a
fanáticosiwmo Calvino.
Ele argumentou,que o Velho e o Novo Testamento continham muitas 
passagens difíceis de acreditar e passíveis .de dúvida·. Por exemplo, :era 
possível encontrar muitas contradições que abriam os portais da dúvi­
da. No entanto - e� neste ponto, Castellio elabora uma forma notada­
mente precoce da hermenêutica moderna-, deveríamos lidar com nossa 
92 EM FAVOR. DA DÚVIDA 
dúvida nos concentrando na corrente principal, no espírito das palavras 
no contexto de sua coerência. Dessa forma, a dúvida e a incerteza abrem 
caminho para o conhecimento e a verdade indubitável. Bem, existe uma 
categoria de pessoas, ele prosseguiu, que insistem que um indivíduo não 
deveria oprimir-se com a incerteza, que· aquiescem .sem críti�as. a tu1o o 
que está registrado nas escrituras e que condenam-sem hesítação qualquer 
um que tenha opinião diferente. Além disso, essas pessoas não apenas 
jamais duvidam, como também não podem permitir o surgimento da dú­
vida na mente de qualquer outra pessoa. Se alguém continua a duvidar, os 
crentes fervorosos não hesitam em acusá-lo de ceticismo, como se alguém 
que duvida de algo automaticamente alegasse que nada pode ser conhe­
cido ou vivenciado com certeza. Castellio parafraseou o Eclesiastes 3:2, 
dizendo: "Há um tempo de dúvida e há um tempo de fé; há um tempo de 
conhecimento e há um tempo de ignorância." 
A parte mais interessante da teoria de Castellio é sua justaposição de ig­
norância e conhecimento por um lado e dúvida e crença por outro. Ele via 
a ignorância como uma fase preparatória inevitável para o conhecimento 
e, de maneira similar, via a dúvida como uma preparação para a fé. Ade­
mais, e estamos falando de um notável passo dialético, ele via a ignorância 
e a dúvida não como opostos totalmente diferentes do conhecimento e da 
fé, mas como contrapartes intrínsecas. Isso, é claro, contraria a visão de 
mundo dos verdadeiros crentes - não apenas no mundo da religião, como 
também no mundo do racionalismo. No que se refere ao mundo do ra­
cionalismo, Castellio pareceu preve1, a ascensão do racionalismo científico 
como um componente inerente ao processo de modernização. 
E sua previsão se provou correta: com a ascensão das ciências no mun­
do ocidental, testemunhamos o nascimento do que foi apropriadamente 
chamado de "cientificismo" - a crença muitas vezes fanática na onipotên­
cia das ciências (em grande parte, naturais) e suas aplicações tecnológicas. 
Trata-se de uma forma de racionalismo que combate com fanatismo to­
das as formas de suposta ignorância- em particular, da religião. Enquan­
to a fé religiosa é definida como ignorância irracional, as ciências racionais 
CERTEZA E DÚVIDA 93 
(inclusive as ciências sociais, elaboradas com base nas ciências naturais) 
são elevadas a alturas metafísicas. Auguste Comte, que apresentamos 
em capítulo anterior, foi um dos primeiros representantes dessa visão de 
mundo racionalista, que ele chamou de "positivismo". Essa ideologia foi 
exemplificada pelo behaviorismo psicológico e sociológico no século pas­
sado e ainda se manifesta nas ciências naturais, embora encoberta pelo 
novo manto do geneticismo. O "deus" desse racionalismo hoje em dia 
é o "gene egoísta", um exemplar moderno da predestinação. Como seu 
antecessor calvinista, ele destrói a ideia de liberdade de escolha e de ações
moralmente boas. 
A dúvida como uma parte intrínseca da fé é, naturalmente, sempre re­
jeitada pelos verdadeiros crentes - aqueles que hoje rotulamos de "funda­
mentalistas". Para o verdadeiro crente fundamentalista, a fé não implica, 
como Paul Tillich a definiu, "acreditar no inacreditável", mas sim a con­
fiança nas revelações indubitáveis de Deus ou de Alá, como registradas 
nos Livros Sagrados, contidas em tradições sagradas e vivenciadas em 
cerimônias sagradas. Há uma coalescência interessante do cientificismo e 
do fundamentalismo religioso no constante debate entre evolucionismo 
e criacionismo. 
O Q!)E, ENTÃO, É A DÚVIDA? 
A dúvida é um fenômeno um tanto quanto complexo - multifacetado e 
pluriforme. Para começar, existe a dúvida tanto superficial quanto pro­
funda. Qyando, ao final de um suntuoso jantar, uma deliciosa sobremesa 
é oferecida\ ·é difícil para uma pessoa que adora doces decidir se aceita ou 
não o regalo. Os economistas podem esperar uma escolha racional, mas 
isso é improvável.. A pessoa sabe que é melhor para sua saúde - e, portaQ­
to, racional - recusar a sobremesa, mas todo mundo sabe como é difícil 
combater racionalmente as tentações. Oscar Wilde alegou conhecer a so­
lução para esse tipo de dúvida superficial: "A única maneira de se livrar da 
94 EM FAVOR DA DÚVIDA 
tentação é se render a ela." Uma dúvida mais profunda e mais torturante 
pode acometer uma noiva ou noivo - presumivelmente, um caso nada raro 
- pouco antes da cerimônia de casamento. "Será que realmente devo me
comprometer com esse relacionamento marital, com essa pessoa - 'para
o bem ou para o mal, até que a morte fl.os separe'?'.' Vej;amos ainda ·outro
exemplo: recentemente, vários praticantes na Holanda expressaram su·as
dúvidas lancinantes em relação à prática da eutanásia legalizada naquele
país. Na ·Holanda, a eutanásia permanece sujeita à lei criminal, mas, em
condições bastante estritas (e em casos de uma doença terminal envolven­
do um terrível sofrimento), os médicos podem ser isentos de acusações
legais. Entretanto, muitos médicos enfrentam sérias e profundas dúvidas
quando os pacientes (e, muitas vezes, parentes próximos dos pacientes)
imploram para dar um fim ao sofrimento pelo qual passam.
Também há o tipo de dúvida que o indivíduo combate ou tenta evitar, 
como no caso da fé religiosa ou alguma crença política ou ideológica em 
particular. Nessa arena, os verdadeiros crentes vivenciam a dúvida como um 
possível caminho para a apostasia. Mas também há a dúvida à qual o indi­
víduo deseja entregar-se e na qual deseja mergulhar, como no caso do ceti­
cismo. Um cético pode ser definido como uma pessoa que sublima a dúvida 
em um modo de pensar e cm um estilo de vida. De acordo com o cético, 
tudo e todos devem ser constantemente sujeitos à dúvida, já que nada - e 
ninguém - pode ser considerado honesto e digno de confiança. A maioria 
dos céticos, a propósito, acredita que essa regra não se aplica a eles - o que 
não significa, é claro, que os céticos sejam dignos de confiança e honestos. 
Apesar de a dúvida cética normalmente ser severa, para não dizer car­
rancuda, há um tipo de dúvida jocosa, expressa em pilhérias e· zomba­
ria. Nesse caso, a dúvida é em geral expressa ironicamente - em outras 
palavras, a pessoa diz uma coisa, mas quer dizer outra (com o segundo 
sentido contendo algum tipo de crítica e, dessa forma, lançando dúvida 
sobre crenças aceitas sem questionam·ento). Um famoso exemplo disso é 
o Elogi.o da loucura, de Erasmo, que constitui mais do que um exercício
de zombar a filosofia e a teologia medieval, mas uma crítica irônica aos
CER.TEZA E DÚVIDA 95 
intelectuais medievais. Com seu tratado, Erasmo tentou dizer que a Sabe­
doria vê a Loucura como quem se olha no espelho. Mas o contrário tam­
bém é verdadeiro, já que, quando a Loucura se coloca diante do espelho, 
vê a Sabedoria refletida. Por mais alegre e divertido que possa ser o texto 
de Elogio da loucura, de Erasmo, ele deixa o leitor se sentindo pouco à 
vontade. Erasmo repete o argumento do Apóstolo Paulo sobre a sabedo­
ria do mundo como uma loucura aos olhos de Deus. Apesar desse vínculo 
com a religião, contudo, o fato inquietante da abordagem de Erasmo é a 
ausência de qualquer realidade metafísica. As fronteiras racionais entre 
sabedoria e loucura não são claras. Elas se evaporam, dissolvendo-se em 
uma espécie de neblina cognitiva e existencial, e uma dúvida extrema­
mente profunda e até perturbadora surge dessa neblina. 
Em resumo, é possível duvidar de coisas grandes e importantes ou 
pequenas e irrelevantes. É possível cultivar dúvidas sobre si mesmo, sobre 
o mundo em geral ou sobre Deus. O que esses casos têm em comum é o
fato de questionarem se algo ou alguém é confiável, digno de confiança e
significativo - isto é, se algo ou alguém é "verdadeiro". Dúvida e verdade,
em outras palavras, se referem a relacionamentos. No próximo capítulo,
discutiremos essa questão em mais detalhes.
SERIA A DÚVIDA UMA PROPOSIÇÃO 
DO TIPO TUDO OU NADA? 
Qyando nos vemos diante de escolhas - e, como vimos em um capítulo 
anterior, na modernidade estamos constantemente diante de muitas esco­
lhas -, a dúvida se apresenta de forma proeminente. Apesar de algumas 
escolhas serem muito superficiais, como qual camisa comprar quando um 
consumidor passeia pelo shopping, ou tão sérias quanto administrar ou 
não uma dose letal de medicamento quando um médico se vê diant� da 
solicitação por parte de um paciente terminal para pôr fim a seu sofri­
mento, esses extremos são casos limítrofes. A dúvida é mais comum e mais 
';/() EM FAVOR DA DÚVIDA 
proeminente como um meio-termo entre a crença e descrença religiosa por 
um lado e o conhecimento e a ignorância por outro. Esses dois opostos 
são, na verdade, inter-relacionados, como acabamos d� ver: conhecimen­
to pode promover descrença, e ignorância pode promover crença ou fé. 
Qiianto ao último caso, um teólogo m�dieval apresentou a n<:>ç_ão da docta
ignorantia, ou ignorância aprendida, como um mét�do-pai-a aprofundar 
o senso mítico do divino. Por outro lado, se um indivíduo analisar cien­
tificamente os textos sagrados da religião - isto é, em termos históricos e
comparativos-, sua fé pode facilmente tender para a direção da descrença.
O meio-termo disso tudo é a dúvida - uma incerteza básica que não está
preparada para se permitir ser destruída pela crença ou pela descrença,
pelo conhecimento ou pela ignorância.
Justamente por ocupar esse meio-termo, a dúvida autêntica pode nun­
ca acabar nos muitos "ismos" que as pessoas têm inventado e propagado. 
A dúvida não pode ser relativista, já que o relativismo, como todos os 
"ismos", suprime a dúvida. O acadêmico renascentista Michel de Mon­
taigne, em seus· famosos ensaios, formulou uma filosofia pragmática da 
vida cotidiana, avessa à metafísica e à religião. Ele deparou com o seguin­
te paradoxo: enfatizou constantemente a relatividade das ideias, ambi­
ções, projetos e atividades humanas e, ao mesmo tempo, se recusou a se 
acomodar em um relativismo fácil. Em um de seus ensaios, ele observou 
ironicamente que, se alguém disser "Eu duvido", deve se dar conta de 
que aparentemente sabe que duvida - e isso, é claro, deixa de ser uma 
dúvida! (Isso nos faz lembrar a lógica sofista sobre o cretense que afirma 
que todos os cretenses são mentiro;os, de forma que sua afirmação deve 
ser uma mentira.) No entanto, Montaigne negligenciou a possibilidade 
de duvidar da própria dúvida! Um poeta flamengo formulou o dilema da 
seguinte maneira: "Desde o início, a condição humana parece ser deter­
minada como dúvida sobre a dúvida." Observe a maneira duvidosa como 
a dúvida é definida aqui - "parece ser determinada"-, seguida da noção 
quintessencial de que a condição humana consiste na dúvida que duvida 
de si mesmo. Isso, naturalmente, abre uma

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