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01_Teologia Sistemática I_Moltmann_9_16.pdf EXPERIÊNCIAS DE REFLEXÃO TEOLÓGICA Caminhos e formas da teologia cristã Jürgen Moltmann Tradutor Nélio Sclmeider nD1TOR1\ UNISINOS Coleção Theologia Publica 2004 PREFÁClO Epilegômenos cm vez de prolegômenos l labitualmcnte uma dogmática teológica ou uma teologia sistemática in1c1a com os assim chamados /Jrolagô111e11os. Nestes sào abordados os fundamentos da rcolo gia cristà, o método escolhido e a concepção Lcológica pressuposta. Sendo o método claro, ele poderá ser aplicado a todas as doutrinas teológicas. Pelo fato de, desde os pri mórdios cio pensamento crítico da era moderna, os próprios fundamentos e métodos d:i teologia terem se tornado questionáveis, os teólogos modernos lançaram-se com intensidade especial sobre esses prolcgômenos da dogmática e, com a ajuda da filoso fia, psicologia ou ciência da rcligilio, ciências que naquele momento eram novas, pro curaram responder às seguintes questões básicas: de gue maneira a teologia cristã é possível sob as condições do mundo moderno? e: tuna ética cristã própria é possível de alguma forma' Essas questões de método pouco me interessaram até o momento, porguc queria primeiramente tomar conhecimento dos conteúdos teológicos. Considerei mais importanlcs a revisão destes à luz de sua origem bíblica e sua inovação cm face cio desafio do presente. Entre outras, há também rnzões pessoais para isso: na minha ju ventude, não Live exatamente uma formação cristã. Minha família hamhurgucsa, "es clarecida" desde a adesão de meu ::ivô à maçonaria, havia assumido uma postura bas tante distanciada e indiferente cm relação ao cristianismo ele modo geral e à igrej�1 cris tã cm particular. Desde o início do meu estudo de tcologü1, primeiramente no campo de prisioneirns de Norton-Camp junto a Notúngham, depois, após o regresso cm 1948, cm Gottingcn, o teológico corno um todo constnuiu uma dimensão maravilho samente nova 1nm mim. Tive de apropriar-me primeiro com o entendimento de tuào aquilo que outros haviam aprendido desde a juventude. 1\ teologia foi e é para mim um:i aventma das idéias. l�la é um caminho aber to, convidativo. 1 �la foscinou e até hoje fascina a minh:, curiosidade intclectua 1. Por essa rnzào, os meus métodos Lcológicos surgiram pelo conhecimenLo dos objetos teo- 10 JttR(õl·.N MOI.TM,\NN lógicos. O ca111i11hq só foi s111JJ11do ,,o c11111i11hn1: E mil'lhas tentativas de caminhar rnitural mente são dctcnni1\adas 110 nível biográfico-pessoal, co11textual-político e pelo krliró.r histórico em que estou vivendo. Busquei a palavm certa para o momento cerLo. Não escrevi manuais teológicos. Meus artigos de dicionário em diversas enciclopédias teo lógicas raramente resultaram satisfatórios. Não 111.t cafa hem éolecion�r exatidõcs teo lógicas porque estava por demais ocupado com a percepção de novas per�pec.tivas e de aspectos inusitados. Não almejei ser discípulo dos grandes mestres teológicos da geração precedente. Tampouco almejo fundar uma nova escola teológica. Tudo o que quis e quero é estimular ou tros a descobrirem a teologia por si mesmos, a formul�rem seus próprios pensamentos teológicos e a se porem, �k:s próprios, a caminho. Estas são as razões que me levaram 11 colocar cm segundo plano as questões metodológicas dos prolegômenos gerais à dogmática e a esforçar-me. nestas Co11trih111çõe.r .ri.rtemáticaJ ti teologi11, por ir diretamente "aos temas propriamente ditos". Nos J>refácio.r aos volumes individuais, manifestei-me a respeito do respectivo,(llmi1ho escolhido, de modo que os interessados já puderam reconhecer o meu método implícito a parLir dos cinco prefá cios referidos. Pelo fato de o meu método não esta, fixado já antes da sua aplicação, mas de ter smgido no seu decorrer, elevo agora, no final desse percurso, falar dele e, em lugar dos habituais prolcgômenos � dogmática, redigir alguns epilegômenos às minhas contribuições sistemfocas. Como pessoalmente não sou muito afeito a "pós-fácios", pode muito bem ocorrer que cu chegue novamente apenas a um "prefácio" a novos caminhQs. Se este for o caso, então este "posfácio" de modo algum resultou mal suce dido, mas apenas revela a minha convicção mais íntima, de <1ue, na teologia cristã, "no final reside o começo" e que o cristão na sua fé na ressurreição, em contraste com o ju deu no seu dia sabático, é "o e terno iniciante'', como disse Fram: Rosenzweig certa vez, e, pmtanto, sempre necessita começar pelo começo, pois "se o início for bom - tudo está bem" (Der Stem der Erliwmg, H.eidclbcrg, 3. e.d., 19S4, 111, 2, p. 127). A pro missão divina e a esperança despertada ensinam a toda teologia, que ela necessaria mente permanece fragmentária e inacabada, porque ela é o pensar sobre Deu s daque les que se encontram a caminho e <JUC são, portanto, itinerantes e ainda não chegaram cm casa. Por essa ra?.ào, até mesmo as catedrais e os domos medievais tinham de per manecer 1nconclusos, pnra poderem àponrnr para além ele si mesmos. Contribuições sistemáticas il teologia Quando comecei, cm l 980, escolhi p:1rn esta série tcmáuca o título Co11tri/J11i çties .rislc111álic".r ri leologi". Quis e:,q,rcssar com isso, cm primem, lugar, que a teologia cm seu c.:onjunw é 111�is do tiuc tçolugia �1stemátin1 tn1 dugmáuca. T:imbl'.111 há teologia bí- PREF/\/'10 11 blica, teologia h1S1ónca, teologia práuc:1 <' outras mais. Te()log1a sistemática é :1penas uma contrihu1ção a u:n tudo mmor, comum, da Lcologia. Por isso, ela não pode consu lllir um sistema fechado, mas eleve mostrar os pontos de conexão dialógicos com as demais disciplinas teológicas. A velha briga cm torno da "coroa da teologia" é vã. O teólogo sistemático pode até ser "um diletante e chrigente" da orquestra teológica, como o esulizou cerrn vez Kornchs I kiko Miskoue, mas este naturnlmcnte pode ser também um teólogo prático, para quem todas as teorias teológicas desembocam na práxis, ou um teólogo histonaclor, se ele acredita que todo o presente e futuro um dia serão passado e, ass11n, objeto de sul! pesquisa. P:1ra mim, a teologia ocorre onde pes soas chegam ao conhecunento de Deus e "percebem" a presença de Deus com todos os seus senudos na práxis de sua vidll, de sua felicidade e de seus sofrimentos. Ú a isso que a teologi:1 sistem:ítica deve dar a sua contribLtiçào cm última análise e em prime iro lugar. Por outro lado, essas "contribuições" sistemáucas à teologia não pretendem forne ccr o "meu sistema" ou a "minha dogmática". Até mesmo no nível da eslrutura tentei buscar a vt·rdade no diálogo e evitar os monólogos. A Lcologia cristã é uma tarefa CO· munitãna do "ministério teológico geral de todos os crentes". Por essa razão, procure: valer-me do estilo comunicativo da proposição. l\kL1 interesse não era a defesa de dog· mas impc.:ssoais ou verd11cles desprovid:1s de sujeito. Mas tampouco pretendia externar apenas a mmha opinião particular. Desqo, porém, c1ue mrnhas proposições se1am lc vaclas a seno na comunhão dos teólogos e das teólogas. não apenas topando com aprovação ou rejeiç:io, mas estimulando o diálogo cuntinuado da teologia. Eu própno acolhi os e�tímulos de outros sempre t]UC me pareceram fru1íferos e me levaram adian te. Isso pode ter ocorrido com mais frcc1iiéncia do que tenho consciência. A teologia é como um sisrc:na fh1vial de influências recíprocas e desafios mútuos e de modo algum um deserto cm que cada indivíduo está sozinho consigo mesmo e com seu Deus. Para mim, o acesso teológico à verdade do Deus triúno é dialógico, comunitário e coopera· tivo. Thi:ologit1 vial1Jm111 é um diálogo crítico constante com as gerações anteriores a nós e corr. os contempor:ineos ac> nosso lado, no aguardo daqueles que vêm depois de nós. Por isso, o que escrevi não está assegurndo por 1odos os lados, mas às vezes é "arroja do", como opina1'am com prcocupaçao alguns homens da igreja. I\ difícil não ser "controverso" em assuntos de teologia. Não por último, o autor reconhece, nas suas Co11trib11irõr.r, as condições e limites de sua p1·ópria localização no tempo e no espaço e :1 relati vidadc.: de seu próprio contexto. 1 �le não est{1 cm condições de dizer o que é teolo· girnmentc válido para cada um cm todas as épocas e em cada lugar. Uma lheoloJ!/a pcrm ni.r não lhe·é possível. Ele deve, portanto, dissipar criticamente a aut<>·refcrência ingê nua e absoluta do pt·nsanll''1to. Foi por isso que esncvi. cm 1980, no pl'cfádo :11iinda rlr e Remo d,• /)em, o seguinte: "Com certeza, ele é europeu; mns a teologia europeia devi' cki:rnr de �cr aprcsc11lada eurou11//icm111•111f. Com rcneza, ele é um homem; mas a tcolo r,1a deve ck1:,;ar de \Cr apresentada andrormlnr,1111mlr. Com <-CrtC7J'I, clt· vive no 'Primei ro Mundo'; mas a l<·olog1a <Jll<' l'le dt:sc-nvolvt: n:ío pode �cr o reflexo dos pontos de vista dos do111111aclorcs. 1 �lc deseja, acima de 1udo, contribuir parn que a voz elos opri midos seja ouvida. O conceito ele 'contribrnçõcs para a teologia' visa a mdicar a sus pensão do absolutismo Lácito e preconcebido das idéias particulares de um contex t0" jPetrópobs: Vozes, 2000, p. 12]. Na partç Ili deste livro, que m1U"1 dos "Reílexos de teologia libertadora", procurei finalmente cumprir essa promessa. Teologia e biografia Apresentei, neste livro, os meus acercamcntos h1stórico-vivcnc1ais à teologia na minha própria pessoa, na comunidade e ll:t universidade primeiro cm termos gerais e depois em especial a cada um cios problemas 1cológicos, como introdução aos diver sos capítulos; procedi assim porque aprendi <JUe a dimensão biográfica é uma d11nen sâo essencial do conhecimento teológico. Durante o meu estudo, t0ci:1via, não havia percebido que o lugar do sujeito é 1111 clogmiltica; ao contr:íno: a pum objetividade da asserção dcvena garnntir a sua vcrificabiüdadc a c1ualqucr tempo por yuak1uer um e qualquer uma onde quer que fosse. Essa é a razão por c1ue não se podia reconhecer pelo aspecto dos magníficos livros dos meus professores <1uem os unha escrito, nem c1uando e onde h:wiam sido cscri1os. Com o recuo da subjctividack do autor também passaram parn o segundo plano todas as referências à época. O suposto "espírito de época" foi deixado a cargo elos jornalistas, embora nmguém 1ama1s tenha v;sto esse "espírito". Tendo s1clo desprtzado o "espínLO de época", desapareceu também a con temporaneidade cios teólogos, que se scntifün c:í embaixo apenas como "hóspedes numa bela estrela" (l lelmut Thielicke). Custou-me algum tempo e também superação até que, por insistência da minha mulher, ousei dizer "cu" t:tmbém na teologia. Contu do, numa situação social cm que, ele um lado, é anunciada "a morte do sujeito" e t:1m b{:m praticada no en()rmc crescimento do nt'unero de "st:pultamemos anônimos", e, po1 outro lado, cada vez mais pessoas se acotovelam para "abrir-se" cm /(llk .rho111s e quebrar toda d1scnção respeitosa e t�lo l11mtc do puclor, torna-se necessário e difícil falar sobre si mesmo. Nos últimos trinrn anos, notei que e mais difícil comunicar :1os mllrns as abstrações ela nossa própria situ:1çào e história de vida do que a verdade con creta, não impona quão subjetiva ou contextualmente da seja formulada. (� esta <1ue começa a esumular os outros a encontrar a verdade de Deus na história de sua própria v1d,1. Os leito1Ts de um livro não gosrnrrnm dr saber apenas o que o ;nnor tem :i dizer, mas 1:unbém como ele ch('gou a isso e porque ele o diz cl:1 rnaneirn romo n disse. Nos anos 1970, houve um mov1nH:nto tcológ1n> nos �U/\ que exigm, el') ro111rapos1çao :1 ua,a tco!og1a a1gumc1ua11va um:1 "teologia narrativa" e cnrão, no :imb1to dessa tcolo !'P n;1rra11va, 1;11nh<.:m uma "tt·ologia r111110 bwgrafia" . .Johann Bapt1�1 ;\lctz abordou l'REF,\CIO 13 esse tema em 1974 num anigo 1m11to nco cm conteúdo: Theologic(I/J Biogmphie [Teologin co1110 /J1oimfinj (in: Clll11he i11 Ce.rchichtc 1111d Cm/lsdHtji, Mainz, l 977, p. 195-203). Pelas mi nhas experiências com a reflexão teológica, na teologia cristã as duas coisas andam juntas: a 11111mtiw1 da história de Deus e o t1rgw11e11/o cm fov<>r da presença de Deus, a m/J ;etivid(/(le histórico-vivencial e a objetividt,de esquecida de si mesma. Escrevi as introdu ções b1ográfic:1s arincmcs ao assunto porc1ue o caminho, isto é, o método foz parte cio conhecimento do assunto, não por causa do sujeito, mas por causa do caminho para chegar ao conhecimento do assunto. Não se trata de allt<> referências de um eu solita rio, porque o sujeito procede de uma comunidade e fala para dentro de uma comuni dade: "O que tens que não recebeste?" Teologia cm prol do Reino de Deus l lá sistemas teológicos que não pretendem apenas estar livres de contrnd1- ções internas, mas também ficar livres <le inte1pclação externa. J\ teologia transfor ma-se, parn eles, numa estratégia ele auto-imuni'l.açào. Tais sistemas são como fortale zas cm que não se consegue penetrar, mas das lluais tampouco se consegue escapar e tJue, por isso, são derrntadas à míngua pelo desinteresse público. Não alimento o dese jo de viver 1111ma forrnleza clcssi1s, e, mesm<> sendo barthiano, igualmente resist i à ten tação ele encarar a D0g111ntic(/ teluiol /Kirthliche D0g111nlikj de Karl Barth como uma forta leza desse tipo. Ela nflo o é, mesmo LJLIC alguns banhianos deixem Karl l3arth pensar por eles para se sentirem seguros, e outros o declarem como "nco ortodoxo" para não terem de lê-lo e se ocupar com ele. Minha imagem ela teologia não é "Castelo forte é nosso Deus ... ", mas o êxodo cio povo de Deus no seu caminho para a terra prometida da hberdadc, onde habita Deus. Para mim, a teologia não é uma dogmática in tra-eclesial ou pós-moderna apenas para a pa:ópria comunidade de fé. Ela tampouco é, para mim, a ciência cultural da religião civil da sociedade burguesa. J\ teologia surge da paixão pelo Remo de Deus e sua justiça e esta paixão surge da comunhão com Cristo. Nessa paixào, a 1cologii1 transforma-se na fantasia cm prol do Reino de Deus no mun do e cm prol do mundo no Reino de Deus. Como teologia do Reino de Deus, ela é obngawria111cn1c teologin 111i.rsiol/(í1in, que liga a igreja à sociedade e o povo de Deus aos povos ela Terra. Eb torna-se uma teologm p,íblim (JJ11b!ic Jbeology}, que compartilha os "so fnmcmos desta épora" e que formula suas esperanças cm Deus no lugar cm que vi vem os seus contemporâneos. A teologia cio Rc·ino de Deus imiscui-se crítica e profc uc.11 1cn1e nos assuntos púlilrcos da sociedade e traz publ icamente à memória, não os 1111eresses cclesiais,mas "o Reino ele Deus, o mnndamcnw e a justiça de Deus", como diz ;1 Tese S de Aamwn. Por c�sa razão, a teologia do Remo de Deus não pode rt·co- 14 JUR(.jl'.t,; MOI.TMANN lhcr-se <le modo fundamentalisrn à própria c:omuni<ladc de fé, nem acomodar-se de modo modernista �s tendências da sociedade. Ela está com o pensamento voltado fir me e produtivamente para o futuro da vida cb criação terrena como um todo. Alguns opinaram criticamente <1ue penso saber mais de. Deus e do seu futuro cio ttue humanamente se pndl'ria saber. Recomendam-me guardar máis silêncio dian1c do mistério insondável, indizível e ÍO{lTlular mais twogu, 11egntiv11 ao "dar pela falta de Deus" Q. B Metz). Sou suficientemente m:stico para compreender o que eles estão querendo dizer. Todavia, justamente porc1ue o mistério rcveh1do do nome .de Deus é insondável, nem se pode pretender saber<> suficiente sobre ele. O Espírito investiga também as dimensões profundas da divindade ... Outros criacaram 1rnnicamente o 1110 tpie .foffJ d(/ Bí/1/ia como sendo um uso d !t1 C111te, embora ele não se cliferenc1c cm pnncíp10 do de Karl Bmth ou cio ele Basílio Mag no, :1 não ser quanto à limitação do meu conhecimento (�1 Bíblia. Na ·1 eologin da espmm (11 (1964), ainda pude lançar mão elas exegeses vétero e ncotcstamentárias de Gerharcl vem Rad e Ernst Kasemann, que cu conhecia bem. No entanto, em algum momen:o dos anos 1970, a discussão exegética e mais ainda a discussão hcnnenêutica tomaram dimensões impossíveis de serem abrangidas. Senti c1ue elas h:1viam se tornado m11t·s um empecilho para ouvir os textos bíblicos. Na Alcm:inh:i, a exegese histórica e a teo logica tomaram rumos separados. A crítica histórica pmllcmneme desapareceu. Per plexo diante disso, decerto encontrei então uma relação própria, pós crítica e "ingê nua" com os escritos bíblicos e tentei formular "minha própri:1 rima" dos textos. Ao fazer isso, notei o quanto me sinto em casa na Bíblia e como gosto ele permitir c1uc os m:us diversos texms estimulem a reflexão propriamente m111ha. '-.:as citações, auve me cada vez mais à Bíblia de Lutcro, não porque a tradução de Lutero seja especialmente fiel ao original, mas porc1uc o povo alemão foi alfabetizado com a Bíblia de Lutero e porque a linguagem cultural alemã de l .cssing e Goctht• até Thomas Mann e Bert Brecht, de Kant e Hegel até Nietzsche e J lcicleggcr foi moldada essencialmente pela Bíblia de Lutero. Mas, ao lidar com os enunciados bíblicos, também notei o quanto me havrn tornado crítico e livre cm relação a eles. Certamente gostari:1 de saber o que eles 1111crcm dizer, mas não me sinto na Ol\rigaçao de repetir e interpretar apenas aquilo que dcs dizem; antes, posso muito bem me unagmar dizendo o de m:mc1rn diferente da 1111cLI cm que eles o expressam Portamo, tomo a Escritura como estímulo parn a rcíl<· xào teológica própria, não como padrão e limite autoriz:1dorcs. O importante é a "cau sa da Escritura" e não a "esnita da causa", mesmo que só se chegue àc1ucla por meio desta. "A pal:wra de Deus não está presa", nem â cultura patnarcal e à desqualificação cl�, mulheres, nem it sociedade de trah:\lho escravo, nem as iransiçocs pré-modernas da vida nômade 1>Ma a vida agn\rin e da vula agrári:1 parn a vida citadina, contextos cm tiuc foram rcd1g1dos os escritos bfülicos. Rel<-vante r l1111carncn1c a11t11lo que remete pa1;1 além das c'l)OC:,S cm <Jlll" tor:11n rcd1g1dos, n.mo ao nos:,o futi.ao: :i h1st<íria <ia pro nuss:io de Dt'us e a hisrú11:1 do seu fu1uro Essa "causa d., 1 �scriwra" ,Li nos lihnd:ul<' PREl'ACIO 15 criativa frente aos enunciados temporalmente condicionados da Escritura. Foi nessa linha, creio eu, que se desenvolveu o "uso da Escritura" praticado por mim. Coloco em discussão o respectivo método hermenêutico na parte 1I deste Livro sob o título "l lermenêutica da esperança". Pode-se ler este livro também como uma Introd11ção à teologia cristã. Por essa ra zão, empenhei-me, na pane 1, por definições detalhadas da "teologia histórica", da "teologia cristã" e da "teologia natural" e, na pane II, por uma" teoria teológica do co nhecimento". Somente quando se sabe o que é teo!ogi", pode-se escrever uma introdu ção à teologia. É por isso que esta /ntrod11çdo aparece só no final. Ela não pretende ser uma introdução à minha teologia, mas naturalmente é a minha introdução à teologia. Teologia confessional ou ccurnênic�1? Em 19'18, retornei dos campos de prisioneiros na condição de cristão, mas não tinha CJltalqucr relação com as igrejas. No campo de trabalhos forçados da Escó cia, um professor de filosofia católico reunia cm torno de si um círculo de interessa dos, cm Norton Camp estudei teologia evangélica. Em Uremen trabalhei numa comu nidade reformada e, cm l ,ccr, na Frísia oriental, fui ()rdenaclo como pastor reformado. A cooperação com colegas católicos cm Bonn e Tübingen, as conferências ecumêni cas da Comissão "Faith anel Order [Fé e ordem]" no Conselho Mundial de Igrejas, das (Juais participei de 1963 a 1983, a participação na equipe editorial da revista reforrnisla católica CONCILJUM convenceram-me de que a minha origem, por certo, é reforma da e evangélica, mas o meu futuro seria ecumênico. Entendo a tradição reformada cm que vivo e penso como parte de um todo maior, comum, da cristandade a ser unificada ecumenicamente e não senti quak1uer reserva da parte de círculos católicos, ortodoxos ou pentecostais; ao contrário, em toda parte me senti aceito e cm casa. Sempre consi derei estreitas e sectárias as cartelas de citações cm livros teológicos - papas citam so· mente papas, católicos, somente c;itólicos, ortodoxos, somente ortodoxos e teólogos evangélicos, somente autores evangélicos. As fronteiras confessionais atualmente ne· cessárias não acompanham mais as tradicionais linhas demarcatórias confessionais, nem mesmo na doutrina da justificação e nem na compreensão da trindade. Smgirnm , .. novas alianças e novas diferenças no nível teológico. O que importa é valer-se delas para formular a teologia ecumênica cm surgimento. Devo clcsculpar-mc, ao finiil, junto aos numerosos doutorandos e amores de reccnsões, por 11:10 ter podido lcv:tr em conta as suas apreciações críticas. De tantos que roram, isso teria n:s11lt:1do num livro para si. Os que me enviaram as suas disserta· çôcs e reccnsõcs podem ter certeza de que as li. Os tiuc não :1s cnvi11rnm não o quisc ram ou não acharam necess:ítio seguir o estilo acadêmico tradicional. Comudo seria la mentável se a comunidade acadêmica fosse dissolvida nesse ponto e os autores não mais pudessem saber o c1ue alguém escreveu sobre eles. Nem a internet compensaria isso. Assim como fiz há 35 anos com a Teo/ogit1 dt1eJpem11çn, com à qua� iniciei a.mi nha teologia sistemática. dedico também o último bvro desta série à minh·i1 mulher. As minhas Experiências de reflexão teológi.a surgiram durante a nossa comunhão de vida e provêm da alegria perene proporcionada por ela. Tübingen, 23 de março de 1999 Ji.irgen Moltmann Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco 02_stoth_11_25.pdf Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco 02_Teologia Sistemática I_Stott_11_25.pdf A BÍBLIA: O LIVRO PARA HOJE John R. W. Stott ABU Editora S/C Livros Para Gente Que Pensa 1 DEUS E A BÍBLIA Nosso primeiro tópico, "Deus e a Bíblia", nos apresenta o tema da revelação. Por isso, peço que prestem atenção em meu texto, que é Isaías 55:8- 11. É Deus mesmo quem está falando: Porque os meus pensamentos nã.o são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos. Porque, assim como descem a chuva e a neve dos céus, e para lá nã.o tornam, sem que primeiro reguem a terra e a fecundem e a façam brotar, para dar-semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca; nã.o voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz, e pr.osperará naquilo para que a designei. 12 DEUS E A BÍBLIA Esse grande texto nos apresenta pelo 1nenos três . liçõe� importantes que ·precisa1n ser aprendidas. A racionalidade. da revelação Certas pessoas acham difícil o próprio conceito de revelação. A idéia de que Deus possa revelar se à humanidade desafia-lhes o entendimento.· "Por que ele faria isso?" e "Como poderia fazê lo ?" Minha resposta é que a evidente necessidade de uma revelação divina faz com que essa idéia seja eminente1nente razoável. Ein todas as épocas, a maioria das pessoas sente-se desconcertada com os mistérios da vida e da experiência humana. Assiln, se muitas delas adinitem que precisam de uma sabedoria que venha de fora de si mesmas para que possam captar o sentido de suas próprias vidas, quanto mais o sentido do Ser Divino, se é que Deus existe. Vamos voltar até Platão. Em Fédon, ele fala da nossa necessidade de seguir por 1nares escuros e vagar sobre a pequena "jangada" de nosso próprio entendilnento, "na qual nos arriscaremos", acrescenta, "uma vez que não a podemos percorrer, com mais segurança e cmn menos riscos, sobre um transporte mais sólido: quero dizer, uma revelação diviI1a!" Se1n a revelação, sem a instrução e a orientação diviI1a, nós, seres hwnanos, nos sentilnos como um barco sem leme, à deriva em alto-mar; uma A B1BUA: O LIVRO PARA HOJE 13 folha arremessada impiedosamente pelo vento ou um cego tateando na escuridão. Como podemos encontrar o caminho? E, o que é mais importante, como podemos encontrar o caminho de Deus, sem a sua orientação? A impossibilidade de os seres humanos descobrirem Deus pelo seu próprio intelecto, sem outra ajuda, é asseverada co1n 1nuito clareza neste texto, nos versículos 8 e 9. "Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os 1neus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos." Em outras palavras, há wn grande abismo entre a mente de Deus e a �ente humana. O texto expressa um contraste entre os caminhos e os pensamentos de Deus e os nossos caminhos e pensamentos. Ou seja, entre aquilo que pensamos e fazemos, e aquilo que Deus pensa e faz, existe uma grande diferença. Os pensamentos e os caminhos de Deus são muito 1nais altos do que os pensamentos e os caminhos do homem, assim como os céus são mais altos que a terra: isso significa uma distância infinita. Consideremos os pensamentos de Deus. Como poderíamos descobrir seus pensamentos ou ler sua mente? Ora, nós nem conseguimos ler os pensamentos dos outros. Tentamos. Ficamos observando os olhos dos outros, para ver se 14 DEUS E A BÍBLIA estão cintilando ou piscando, sombrios ou .al�gr�s. Se _eu fi�asse ·em silêncio aqui no púlpito e manti:vessé o ro_sto impassível, vocês não teriam a mínima idéia _.do que eu estaria pensando. Tentem. Vou ficar uns instantes sem falar. Agora, o que estava se ·passando em minha mente? Algum palpite? Não? Bem, vou lhes q:mtar. Eu estava escalando a torre da Igreja de All Souls, tentando alcançar o topo! Mas vocês não sabiam. Não tinhain noção alguma do que eu estava pensando. Claro. Vocês não podem ler minha mente. Se ficarmos em silêncio, será impossível ler a mente uns dos outros. E mais i.tnpossível ainda (se é que existem graus de hnpossibilidade) é penetrar nos pensamentos do Deus Todo-Poderoso! A mente dele é infinita. Seus pensainentos se elevam acima dos nossos, como os céus se eleva1n acima da terra. É ridículo supor que seríamos capazes de penetrar na mente de Deus. Não há nenhuma escada pela qual nossas mentes limitadas possain subir até sua mentê infinita. Não há nenhuma ponte que possa alcançar o outro lado do abismo infinito. Não há nenhwn cantinho para alcançar ou sondar Deus. Portanto, é be1n lógico dizer que, se Deus não tomar a iniciativa de revelar o que está em sua mente, nunca conseguiremos descobri-lo. A não ser que Deus se revele a nós, nw1ca consegwrernos conhecê-lo, e todos os altares do inundo irão levar a trágica inscrição "Ao Deus Desconhecido", A BÍBLIA: O LIVRO PARA HOJE 15 como a que Paulo viu em Atenas (At 17:23). Este é o lugar para começar nosso estudo. É o lugar da humildade perante o Deus infinito. Também é o lugar da sabedoria, quando percebemos a racionalidade da idéia da revelação. O meio de revelação Admitindo que seja razoável que Deus tenha se revelado, como ele fez isso? Em princípio, do mesmo modo como nós nos revelamos ou nos expomos uns aos outros, ou seja, pelas ações e pelas palavras, pelas coisas que fazemos e dizemos. As artes criativas sempre foram um dos principais meios de auto-expressão humana. Estainos conscientes de que temos, dentro de nós, algo que precisa vir à tona, e lutamos para dar lhe vida. Para alguns, o canal apropriado é a música ou a poesia; para outros, uma das artes visuais - desenho, pintura ou fotografia, cerâmica, escultur�, entalhe ou arquitetura,. dança ou teatro. E interessante que, dessas 1nanifestações artísticas, a cerâmica é a mais freqüente na Bíblia - provavelmente porque o oleiro era uma figura bem conhecida nas vilas da Palestina. Por isso, Deus disse que "fonnou" ou "moldou" a terra e também o ser humano, para habitar nela (p. ex.: Gn 2:7; Sl 8:3; Je 32:17). E mais: ele próprio pode ser visto em suas obras. "Os 16 DEUS E A BÍBLIA céus proclamam a.glória de Deus-e o firma1nento anuncia às obr�s dás·suas mãos" (Sl 19:1; Is 6:3). Ou como Paulo escreve no começo de Romanos: "Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles (isto é, no mundo gentio), porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas" (Rm 1:19-20). Em outras palavras, assim como os artistas humanos se revelam em sua pintura, escultura ou 1núsica, o artista divino também se revela na beleza, no equilíbrio, na complexidade e na orde1n de sua criação. Dela, aprendemos um pouco de seu poder, sabedoria e fidelidade. Gerahnente isso é den01p.inado revelação "natural", porque é dado por meio da "natureza". Entretanto, não é a isso que o meu texto se refere, mas, sim, ao segundo meio, mais direto,· pelo qual nos damos a conhecer uns aos outros e pelo qual Deus se deu a conhecer a nós, ou seja, as palavras. A fala é o meio de comunicação mais completo e flexível entre dois seres humanos. Já mencionei que, se permanecesse em silêncio no púlpito, com o rosto impassível, eu seria insondável e vocês não conseguiriam descobrir o que estava na minha mente. Mas agora a situação mudou. Vocês sabem o que está se passando na minha mente, porque já não estou A BÍBLIA: O LIVRO PARA HOJE 17 em silêncio. Estou falando. Estou revestindo os pensamentos da minha mente com as palavras da minha boca. As palavras da minha boca estão lhes comunicando os pensamentos da minha mente. Portanto, a fala é o melhor meio de comunicação, e a fala é o principal modelo usado pela Bíblia para ilustrar a auto-revelação de Deus. Volte ao texto, nos versículos 10 e 11: "Porque, assim como descem a chuva e a neve dos céu.s, e para lá não tomam, sem que primeiro reguem a terra e a fecundem e a façam brotar, para dar semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra ... " Note a segunda referência ao céu e à terra: se a chuva desce dos céus para regar a terra, é porque os céus estão acima da terra. Note também que o autor passa diretamente dos pensamentos de Deus para as palavras da boca de Deus: '' assim será a palavra que sair da minha bocai ... fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a designei". O paralelo é evidente. Assim como os céus são mais altos do que a terra, mas a chuva desce dos céus para molhar a terra, os pensamentos de Deus também são mais altos do que os nossos pensamentos, mas descem até nós, porque sua palavra sai de sua boca e, assim, nos transmite seus pensamentos. Corno o profeta havia dito antes (Is 40:5), a "boca do Senhor o disse". Ele estava se referindo a um de seus próprios oráculos, mas o descreveu como se fosse uma mensagem proveniente da boca de Deus. 18 DEUS E A BÍBLIA Ou, como Paulo escreveu em 2 Tilnóteo, "toda � Esq:itura é soprada por Deus" (a tradução literal de theopneustos em 2 T1n 3:16). Ou seja, as Escrituras são a Palavra de Deus, são proferidas pela boca de De.Us. Depois de considerar a afirmação expressa e1n meu texto, para mim é importante acrescentar algumas ressalvas, a fim de esclarecer nosso entendimento de como Deus falou sua Palavra. Primeiro, a Palavra de Deus (agora registrada nas Escrituras) tinha uma relação direta com sua atividade. Ou seja, ele falou a seu povo tanto por ações como por palavras. Ele se deu a conhecer a Israel na história da nação, orientando-a de tal forma a manifestar por meio dela, ora sua salvação, ora seu julgamento. Assiln, ele resgatou o povo da escravidão no Egito; conduziu-o com segurança pelo deserto e o estabeleceu na terra prometida; preservou a identidade nacional dos israelitas através do período dos juízes; deu-lhes reis para goven1á-los, embora o fato de exigirem um rei humano fosse, em parte, uma rejeição de seu próprio reinado; seu julgamento caiu sobre eles devido à sua desobediência persistente, quando foram levados ao exílio da Babilônia; e então os reconduziu à terra e lhes permitiu reconstruir a nação e o templo. Acima de tudo, por nós, pecadores, e pela nossa salvação, enviou seu Filho eterno, Jesus Cristo, para nascer, viver e trabalhar, para sofrer e morrer, para ressuscitar e derramar o Espírito Santo. Deus se revela de A B1BLIA: O LIVRO PARA HOJE 19 uma forma ativa e pessoal através desses atos, primeiro na história do Antigo Testamento, mas de modo supremo em Jesus Cristo. Por essa razão, alguns teólogos considera1n importante fazer uma distinção bem clara entre a revelação "pessoal" (através das obras de Deus) e a revelação "proposicional" (através de suas palavras), rejeitando, então, a última em favor da primeira. Entretanto, essa polarização é infeliz e desnecessária. Não precisamos escolher entre esses dois meios de revelação. Deus usou ambos. Além disso, os dois estavam intimamente ligados, pois as palavras de Deus interpretavam seus atos. Ele levantou os profetas para explicar o que estava fazendo para Israel, e levantou os apóstolos para.explicar o que estava fazendo através de Jesus. É verdade que o processo divino de auto-revelação culminou na pessoa de Jesus. Ele era a Palavra de Deus encarnada. Ele demonstrou a glória de Deus. Vê-lo significava ver o Pai (cf. Jo 1:4, 18; 14:9). No entanto, essa revelação histórica e pessoal não nos teria beneficiado se, juntamente com ela, Deus não nos tivesse desvendado o significado da pessoa e da obra de seu Filho. Portanto, precisamos fugir da armadilha de colocar a revelação "pessoal" em contraposição à revelação "proposicional", como se fossem antagônicas. É mais exato dizer que Deus se revelou em Cristo e no testemmlho bíblico a 20 DEUS E A BÍBLIA respeito de Cristo. Um não é completo se1n o outro. Ségundo; a Palavra de Deus veio a nós através de palavras humanas. Quando Deus falou, ele não gritou lá do céu azul, de um modo audível para as·pessoas. Não, ele falou através dos profetas (no Antigo Testamento) e através dos apóstolos (no Novo Testamento). Além disso, esses agentes humanos da revelação de Deus era1n pessoas reais. A inspiração divina não foi u1n processo mecânico, que reduzia os autores humanos da Bíblia a máquinas, fossem 1náquinas copiadoras ou gravadores de fita. A inspiração divina foi um processo pessoal, e1n que os autores humanos da Bíblia geralmente estavam em plena posse de suas faculdades mentais. Basta ler a Bíblia para ver isso. Os escritores de narrativa (e a Bíblia contém uma grande quantidade de narrativas históricas, tanto no Antigo como no Novo. Testamento) usaram registros históricos, muitos dos quais são mencionados no Antigo Testamento. No início de seu evangelho, Lucas refere-se a sua cuidadosa pesquisa histórica. Além disso, todos os autores bíblicos desenvolveram seus próprios estilos literários e ênfases teológicas caraterísticas. Daí a rica diversidade das Escrituras. Contudo, Deus mesmo estava falando através das várias perspectivas deles. Esta verdade da dupla autoria da Bíblia (ou seja, que ela é a Palavra de Deus e a palavra dos A BÍBLIA: O LIVRO PARA HOJE 21 homens, ou melhor, a Palavra de Deus através das palavras dos homens) é o conceito que ela própria faz de si. A lei do Antigo Testamento, por exemplo, às vezes é chamada "lei de Moisés" e outras vezes "lei de Deus" ou "lei do Senhor". Em Hebreus 1:1 lemos que Deus falou aos pais por meio dos profetas. Em 2 Pedro 1:2t entretanto, lemos que homens falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo. Assim, Deus falou e os homens falaram. Eles falaram "da parte" dele, e ele falou "através" deles. Ambas as afirmações são verdadeiras. Além disso, precisamos manter as duas afirmações ao mesmo tempo. Como na Palavra encan1ada Oesus Cristo), também na Palavra escrita (a Bíblia) o elemento humano e o divino se combinam e não se contradizem mutuamente. Essa analogia, que foi desenvolvida logo no irúcio da história da igreja, hoje é muitas vezes criticada. E, obviamenteJ não é exata, já que Jesus era uma pessoa, enquanto a Bíblia é um livro. Apesar disso, a analogia continua sendo útil, contanto que nos lembremos de suas limitações. Por exemplo: nunca se deve afirmar a divindade de Jesus a ponto de negar sua humanidade, nem afirmar sua humanidade a ponto de negar sua divindade. O mesmo acontece com a Bíblia. Por um lado, a Bíblia é a Palavra de Deus. Ele falou, decidindo pessoalmente o que desejava dizer, mas sem nunca distorcer a personalidade dos autores humanos. Por outro lado, a Bíblia é a 22 DEUS E A BÍBLIA palavra dos homens. ·Os homens fararam, usando livremente sua§}acUÍdades, mas sem distorcer a verdade da mensagem divina. A dupla autoria da Bíblia vai afetar a maneira como a lemos. Sendo a palavra de homens, precisamos estudá-la cmno um outro livro qualquer, usando nossa mente, investigando suas palavras e sintaxe, suas origens históricas e sua composição literária. Mas sendo também a Palavra de Deus, devemos estudá-la co1no � livro único, de joelhos, humildes, clamando pela iluminação de Deus e pela ministração do Espírito Santo, sem o qual nunca conseguiremos entender sua Palavra. O propósito da revelação Já estudainos como Deus falou. Mas por que ele falou? A resposta é: não só para nos ensinar, mas para nos salvar; não só para nos instruir, mas para nos instruir especificamente "para a salvação" (2 Tm 3:15). A Bíblia tem um propósito fortemente prático. Voltando para Isaías 55, essa é a ênfase dos versículos 10 e 11. A chuva e a neve caem do céu e não retomam. Elas cumpre1n um propósito na terra. Elas a regam. Fazem-na produzir e germinar e a tomam frutífera. Assim também a Palavra de Deus, partindo de sua boca e desvendando sua mente, não retoma a ele vazia. Ela cumpre seu propósito. Além disso, as razões A BÍBLIA: O LIVRO PARA HOJE 23 de Deus para enviar chuva à terra e para falar sua Palavra aos seres humanos são similares. Em ambos os casos, o propósito é a frutificação. Sua chuva toma a terra frutífera. Sua Palavra toma frutíferos os seres humanos. Ela os salva, transformando-os à semelhança de Jesus Cristo. O contexto é, certamente, a salvação. Nos versículos 6 e 7 o profeta fala da misericórdia e do perdão de Deus, e na seqüência, no versículo 12, ele fala sobre a alegria e a paz do povo redimido de Deus. De fato, aqui está a principal diferença entre a revelação de Deus na criação ("natural", porque é dada através da natureza, e "geral", porque é dada a todos os seres humanos) e a sua revelação na Bíblia ("sobrenatural", porque é dada por inspiração, e "especial", porque é dada para pessoas específicas, através de pessoas específicas). Por meio do universo criado, Deus revela seu poder, glória e fidelidade, mas não o caminho da salvação. Se quisermos descobrir seu plano gracioso para a salvação dos pecadores, precisamos nos voltar para a Bíblia, pois é através dela que ele nos fala de Cristo. Conclusão A partir de nosso texto em Isaías 55, aprendemos três verdades. Em primeiro lugar, a revelação divina não é somente racional, mas é também indispensável. 24 DEUS E A I3ÍI3L1A Se1n ela, nunca conseguiríamos conhecer a Deus. Em segundo lugar, a revelação divina faz uso das palavras. Deus falou através de palavras humanas e, ao fazê-lo, estava explicando seus atos. Em terceiro lugar, a revelação divina é para a salvação. Ela nos chama a atenção para Cristo co1no o Salvador. Minha conclusão é 1nuito simples. É um chamado à humildade. Nada é mais nocivo para o crescimento espiritual do que a arrogância e nada é mais propício para o crescimento espiritual do que a humildade. Precisainos nos humilhar diante do Deus infinito, reconhecendo as litnitações de nossa mente hmnana (nunca conseguiría1nos encontrá-lo por nós mesmos) e a nossa própria pecaminosidade (nunca conseguiría1nos alcançá-lo por nós mesmos). Jesus chamou isso de "hu1nildade de wna criancinha". Deus se esconde dos sábios e entendidos, disse, mas se revela aos "pequeninos" (Mt 11:25). Ele não estava denegrindo nossas mentes, pois Deus as concebeu para nós. Pelo contrário, estava mostrando como nós devemos usá-las. A verdadeira função da mente não é se exaltar, julgando a Palavra de Deus, mas se humilhar, colocando-se sob ela, ansiosa para ouvi-la, entendê-la, aplicá-la e obedecer-lhe nos aspectos práticos da vida diária. A 13!13LIA: O LIVRO PARA HOJE 25 A "humildade" das crianças não é vista apenas no modo como elas aprendem, mas tainbém no modo como recebem as coisas. As crianças são dependentes. Nenhuma de suas posses foi conquistada. Tudo o que têm lhes foi dado de graça. Devemos, portanto, "receber o reino de Deus como uma criança" (Me 10:15), pois os pecadores não merecem - nem podem conquistar - a vida etema ( que é a vida do reino de Deus); precisamos nos hwnilhar para recebê la como um dom gratuito de Deus. Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco 02_stoth_11_25.pdf Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco Página em branco 03_Teologia Sistemática I_Berger_81_107.pdf Do original: ln Praise of Ooubt Tradução autorizada do idioma inglês da edição publicada por HarperOne Copyright© 2009, by Peter Berger and Anton ZIJderveld. © 2012, Etsevier Editora Lida. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei n• 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: el1etrõnicos, mecâ.nlcos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Coptdesque: Shirley Lima da Silva Braz Revisão: Edna Cavalcanti e Roberta Borges Editoração Eletrônica: Estúdio Castellani Elsevler Editora Lida. Conhecimento sem Fronteiras Rua Sete de Setembro, 111 - 1 � andar 20050-006 - Centro - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Rua Quintana, 753 - a• andar 04569·011 - Brooklln - São Paulo - SP - Brasil Serviço de Atendimento ao Cliente 0800-0265340 sac@elsevier.com.br ISBN 978-85·352-5550·8 Edição original: ISBN: 978-0-06-177817-9 Nota: Muito zelo e técnica foram empregados na edição desta obra. No entanto, podem ocorrer erros de digitação, impressão ou dúvida conceituai. Em qualquer das hipóteses, solicitamos a comunicação ao nosso Serviço de Atendimento ao Cliente, para que possamos esclarecer ou encaminhar a questão. Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou bens, originados do uso desta publicação. CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ B435e Berger, Peter L., 1929· 11·7824. Em favor da dúvida: como ter convicções sem se tornar fanático / Peter L. Berger, Anton C. Zijderveld ; tradutor Cristina Yamagaml. - Rio de Janeiro : Elsevler, 2012. Tradução de: ln praise oi doubt ISBN 978-85·352-5550-8 1. Crença e dúvida. 2. Certeza.1. Zijderveld, Anton C., 1937-. li.Título. CDD: 121.63 CDU: 165.413 Wenn wir die Zweifel nicht haetten, Wo waere dann frohe Gewissheit? Se não tivéssemos as dúvidas, Onde, então, haveria uma certeza jubilante? 5. Goethe CERTEZA E DÚVIDA O romancista austríaco do século XX Robert Musil observou, com a ironia característica de seus textos, que "a voz da ver dade tem um tom suspeito". Essa afirmação lembra a obser vação de Pascal, já ,;nencionada, de que verdade em um lado dos Pire neus pode ser um erro no outro lado. A verdade, em outras palavras, é menos certa ou absoluta do que desejaria o "verdadeiro crente". Para parafrasear filosoficamente essa ideia, a verdade é passível de refuta ção. Ela se relaciona ao tempo e ao espaço - embora uma pessoa que adote uma ou outra crença ou fé metafisicamente fundamentada não compartilhe essa visão. Ao longo da maior parte da história, essa fun damentação foi proporcionada pela religião e é na esfera da religião que a inter-relação entre certeza e dúvida se desenrolou da maneira mais drástica (como veremos a seguir). Hoje em dia, contudo, não existem muitos "verdadeiros crentes" sem nenhuma afiliação religiosa. Em outras palavras, há uma comunidade verdadeiramente ecumênica de fanáticos de todas as crenças, religiosas e seculares. 82 EM FAVOR DA DÚVIDA ALGUMAS VERDADES NÃO SÃO ABSOLUTAS? O fato de a verdade ser passível de refutação não significa que não exista uma verdade "indubitável". Temos, para começar, as regras básicas ma temáticas, que ninguém, em sã consci�ncia, sujeitaria à dúvida ou à refu tação. Em todas as eras e em todos os tempos, é óbvio que·doi� mais três somam cinco e que duas vezes três ·resultam em seis. Trata-se de uma ver dade pautada pelo bom-senso que qualquer pessoa men!alment� sã acei taria sem questionar. Todavia, a verdade da matemática, da mesma forma que a proposição de Pitágoras, deve ser ensinada e aprendida. Ela não é inata e naturalmente óbvia. Na verdade, é bastante difícil dar uma respos ta verbal convincente à pergunta de uma criança que deseja saber por que quatro mais quatro são oito, e não nove ou sete. A única coisa a ser feita é pegar as mãos da criança e começar a somar os dedos. A propósito, para crianças de, digamos, 5 ou 6 anos, que já aprenderam os fundamentos da aritmética, é maravilhoso descobrir 10 dedos das mãos e 10 dedos dos pés que podem ser contados, somados, subtraídos e multiplicados. Com efei to, os dedos de uma criança funcionam como um ábaco primitivo. A verdade e a loucura algumas vezes são irmãs gêmeas antagônicas porém estranhamente unidas. O psicólogo social Milton Rokeach, no início dos anos 1960, estudou três pacientes mentais em três instituições diferentes, e os três acreditavam ser Jesus Cristo. Rokeach achava que eles poderiam ser curados desse delírio reunind; os três em uma única instituição. Com isso, eles se veriam diante de uma séria dissonância cognitiva, já que a existência de três Cristos é uma impossibilidade óbvia - além do fato igualmente óbvio de que Jesus não está mais entre nós há aproximada mente dois milênios. Com a ajuda dos psiquiatras desses pacientes, que notadamente concordaram com a hipótese de Rokeach sobre o potencial curativo da dissonância cognitiva, os três pacientes foram reunidos em um hospício em Ypsilanti, Michigan. Rokeach registrou as discussões muitas CERTEZA E DÚVl DA 83 vezes acaloradas dos três homens e as publicou em seu livro The Three Christs ofYpsilanti (1964). Em certo ponto, Rokeach achou que o mais inteligente dos três de fato havia começado a se curar de seu delírio. O homem disse que acreditava que os outros dois eram doidos de pedra por acharem que eram Jesus Cristo. Aquilo era um grande absurdo, porque naturalm�nte só uma pessoa pode ser Jesus Cristo. Sem dúvida, o Messias cristão não era nenhum dos dois malucos, mas ele próprio. Rokeach também relatou outro caso de uma identidade plural confli tante. Duas pacientes, uma mulher mais velha e uma mais jovem, acredi tavam ser Maria, a mãe de Jesus. Elas discutiam o tempo todo, até que, de repente, a mais velha encontrou uma solução. Ela perguntou a Rokeach quem foi a mãe de Maria. Depois de refletir um pouco, ele respondeu que, se não estivesse enganado, a mãe de Maria se chamava Ana. Então a mais velha anunciou alegremente ser Ana, abraçou carinhosamente a colega mais jovem e passou a chamá-la, daquele momento em diante, de sua filha Maria. A dissonância cognitiva foi, dessa forma, engenhosamen te dissolvida. Em proximidade com as regras objetivas e indubitáveis da aritmética e da matemática, temos as regras da lógica formal. Com efeito, de acordo com a maioria dos filósofos, a matemática e a lógica são intrinsecamente cognatas. Não cabe aqui entrar no campo altamente especializado e complexo da lógi ca. Basta dizer que há proposições básicas na lógica, como o silogismo, que, em geral, são consideradas indubitáveis - isto é, absolutamente verdadeiras. "Os seres humanos são mortais; Sócrates é um ser humano; logo, Sócra tes é mortal." Esse é um exemplo do silogismo mais básico, contendo uma verdade indubitável. Na verdade, termos substantivos como "ser humano", "mortalidade" e "Sócrates" podem ser substituídos por símbolos incorpó reos, como tem sido feito na lógica desde Aristóteles: M é P; S é M; logo, S é P. Na verdade, a lógica formal prefere símbolos como esses, já que não se interessa por ruminações filosóficas ou teológicas - especialmente se lidarem 84 EM FAVOR. DA DÚVIDA com a mortalidade e a imortalidade humana, como no caso do silogismo mencionado. Mas nenhuma dessas proposições diz respeito à verdade e à certeza pe las quais ansiamos na vida cotidiana. A vida não é uma soma de silogismos formais, mas, muitas vezes, uma sucessão dolorosa de escolhas e decisões nem sempre "lógicas" e relativas a alternativas longe de·seiem '.'.racionais". A lógica formal tenta eliminar as insinuações da "voz da verdade" de Mu sil, mas, na vida real, é muito difícil eliminar essas insinuações. A verdade é perpetuamente obscurecida pela dúvida e pela insegurança. Só o '\rer dadeiro crente", que adotou fervorosamente um ou outro "ismo" religioso ou filosófico, conseguirá abafar aos gritos as vozes da dúvida - vozes que, como vimos, são incontáveis no processo pluralizante da modernização. Não obstante, há na verdade uma certeza não religiosa e não filosófica bastante fundamental em nossa vida, oferecendo o que Arnold Gehlen chamou apropriadamente de "certeza benigna". Discutimos a obra de Gehlen no primeiro capítulo, mas vamos retomá-la brevemente aqui. Sua "certeza benigna" é a certeza das instituições, em grande parte aceita sem questionamento e transmitida de uma geração à próxima, estabelecendo o que chamamos de "tradição". Casamento, familia, igreja, templo, mes quita, escola, universidade, associação voluntária etc. - todas essas insti tuições não são apenas organizações funcionais; também são instituições significativas que transmitem os valores e as normas que proporcionam direcionamento e certeza às nossas ações e interações do dia a dia. Qyando, por exemplo, um in�ivíduo migra para um país estrangeiro, deve aprender seu idioma, seus costumes, suas cerimônias religiosas e seculares, suas maneiras de agir, pensar e sentir - em resumo, as insti tuições. Dessa forma, o indivíduo se apropria dos significados, valores e normas das pessoas do novo hábitat social. Essa apropriação é necessária para se comunicar e interagir com os novos vizinhos. Pode levar um tempo, mas o indivíduo acabará vivenciando a "certeza benigna" do não questionamento institucionalmente embasado. É como sentir-se em casa, apesar de o velho mundo do qual emigrou subsistir nas memórias e CERTEZA E DÚVIDA 8S emoções. Na verdade, o sentimento de viver entre dois mundos muitas vezes constitui uma zona crepuscular de incontáveis dúvidas e incertezas que perdura até a morte. Normalmente, contudo, essa zona se desfaz na segunda ou terceira geração. A migração não é um fenômeno novo, mas · atingiu dimensões sem precedentes na era moderna. Por conseguinte, o mundo hoje contém milhões de pessoas que transitam em duas, e mui tas vezes mais de duas, culturas. Como argumentamos, o processo moderno de pluralização constituiu uma força desinstitucionalizadora e existencialmente desestabilizadora. Ela ampliou nossa liberdade de escolha e, em consequência e em certo sentido, nossa autonomia e autossuficiência. Todavia, como uma visita a qualquer supermercado moderno demonstra, também deparamos com a Qual der Wahl ("-agonia da escolha"), que mencionamos no segundo capí tulo. Com efeito, o supermercado pode ser visto como a metáfora de uma sociedade p lenamente pluralizada. Essa pluralização levou a duas reações opostas. Por um lado, temos movimentos que visam a um retorno radical às certezas pré-modernas, como o fundamentalismo religioso e o racio nalismo científico, e, por outro lado, temos uma celebração muitas vezes igualmente radical das supostas contingências pós-modernas, propagadas na forma de um relativismo no qual (moralmente) "vale tudo". No pri meiro caso, a agonia da escolha é mitigada pela introdução de um câno ne teológico ou 'filosófico da verdade. No segundo caso, é transformada em uma suposta yantagem, já que os relativistas acreditam que a escolha constitui a derradeira garantia de liberdade e autonomia. Nenhuma posição é oprimida pela dúvida; isso, elas têm em comum. Elas têm uma certeza que é - supostamente - indubitável. Na verdade, as duas posições sãQ mantidas por "verdadeiros crentes", que encontram suas certezas na religião, na ciência ou na relatividade pós-modernista. O último grupo, em particular, muitas vezes alega celebrar a dúvida, mas, na verdade, absolutiza a dúvida em um relativismo radical ou ceticismo que prenuncia o fim da �úvi da. Na verdade, os relativistas e os-céticos também são "verdadeiros crentes". O que, então, constittú um 'verdadeiro crente"? 86 EM FAVOR DA DÚVIDA COMO OS 'VERDADEIROS CRENTES" LIDAM COM A DÚVIDA? Em 1951, Eric Hoffer, estivador e filósofo de botequim americano, pu blicou um pequeno livro intitulado Thé True Believer:,. no qu_al apresentou uma profunda descrição desse tipo de ser humano. Os· movimentos de massa, ele argumentou - como movimentos religiosos, social-revolucio nários e nacionalistas -, propagam ideologias muito diferentes, mas têm uma característica em comum: elas geram e são transmitidas por pesso as que, em casos extremos, estão dispostas até a morrer pela causa, que preconizam a ação conformista e que promovem e são motivadas pelo fanatismo, pelo ódio e pela intolerância. De maneira muito diferente das doutrinas que pregam e dos programas que projetam, esses movimentos de massa compartilham a mesma mentalidade - isto é, a mentalidade fa nática do verdadeiro crente. Hoffer identificou esse tipo de mentalidade no extremismo cristão e muçulmano (hoje em dia, falamos de islamismo e fundamentalismo protestante), no comunismo, no nazismo e em várias formas de nacionalismo. A observação a seguir, feita por Hoffer em 1951, continua válida: "[Visto que] apesar de vivermos em uma era sem Deus, ele é o exato oposto do irreligioso. O verdadeiro crente está por toda parte e, ao mesmo tempo, convertendo e antagonizando, molda o mundo à sua própria imagem." E, como na época de Hoffer, há muitos outros "ismos" criados e propagados por verdadeiros crentes, como o modernismo es clarecido, o romantismo antirracional e o pós-modernismo igualmente antirracional. A maioria desses "ismos" pode ser chamada de "deuses" - isto é, obje tos de devoção e adoração-, apesar de um profeta hebraico poder defini los como "falsos deuses". Eles, muitas vezes, são "deuses que fracassaram", parafraseando o título de uma compilação de ensaios de seis intelectuais europeus que, no período entre 1917 e 1939, acreditaram nas bênçãos do comunismo, mas perderam a fé depois de conhecerem a versão terrorista de Stalin. Esses deuses seculares ca,em por terra em particular quando CERTEZA E DÚVIDA 87 suas profecias fracassam, como quando a revolução proletária, as previ sões de fim do mundo ou o retorno profetizado da figura messiânica não ocorrem. No início do cristianismo, havia altas expectativas em relação ao retorno iminente de Jesus Cristo para criar o Reino de Deus na Terra. Sugeriu-se que essa escatologia frustrada tenha impulsionado as ativida des missionárias do Apóstolo Paulo e o estabelecimento da Igreja Cristã como uma organização formal. O pontífice de Roma era visto não apenas como o CEO (ChiefExecutive Officer) da Igreja Católica Romana, mas também como o representante de Cristo na Terra até o seu retorno. Em seu estudo clássico When Prophecy Fails (1956), Leon Festinger argumentou que as pessoas profundamente comprometidas com uma crença e suas linhas de ação não perdem a fé quando os eventos refutam suas alegações, como quando um evento profetizado deixa de ocorrer. Pelo contrário, elas vivenciam um aprofundamento de suas convicções e se põem a pregar sua fé para confirmá-la. Qiianto mais as pessoas se apegam à sua fé, mais verdadeira ela deve ser - pelo menos é o que se imagina. No entanto, Festinger acrescenta que, na maioria dos casos, há um momento em que as evidências perturbadoras se acumulam a ponto de permitir a entrada de dúvidas obstinadas. Essas dúvidas, à medida que crescem, acabam causando a rejeição da crença - isto é, a menos que os crentes consigam criar uma sólida institucionalização, como foi o caso do cristianismo. A dissolução de movimentos apocalípticos é mais provável quando se dá uma data precisa para o fim do mundo (e essa data passa sem que o mundo acabe). Mais cedo ou mais tarde, transcorrida essa data sem a ocorrência de nenhum desastre apocalíptico, um movimento desse tipo geralmente cai por terra (apesar de não devermos subestimar a capa cidade dos 1seres humanos de negar as evidências invalidantes). Fundamentalistas religiosos e seculares e seus adversários se engalfi nharam em amargas controvérsias ao longo da História. Apesar de esses grupos serem diversos, normalmente têm três características principais em comum: em primeiro lugar, têm muita dificuldade de ouvir opiniões e ideias discordantes. Em segundo lugar, alegam estar de posse de uma 88 EM FAVOR. DA DÚVIDA verdade irrefutável (seja religiosa ou secular). Em terceiro lugar, alegam que sua verdade é a única verdade; em outras palavras, declaram deter o monopólio sobre a verdade. As posições antagônicas dos 1'criacionistas" e "evolucionistas" apresentam um exemplo revelador. Se esses debates per manecessem restritos a espaços como· a igreja; a·mesquita_, o terrip�o, a sinagoga ou a universidade, seriam relativamente inócuo;. No.entanto, os verdadeiros crentes debatem em locais públicos - em particular, na arena política -, onde podem causar danos consideráveis. Devido à convicção de que detêm o monopólio da verdade, os "verdadei ros crentes" reprimem até o menor sinal de dúvida. Eles ridicularizam e até perseguem os representantes da moderação liberal. O fanatismo religioso foi o que levou Voltaire a exclamar "Écrasez l'infâmt' ("Destruam a infâmia!") - sendo os infames a Igreja e talvez o cristianismo em geral. Mas o Iluminismo também produziu o próprio fanatismo assassino. Não muito tempo depois de a deusa da razão ter sido entronizada pela Revolução Francesa (nada menos que na Igreja de la Madeleine, em Paris), o terror foi liberado, superando facilmente as crueldades do ancien régime, que tanto ultrajou Voltaire. A supressão da dúvida com motivações religiosas pode ser ilustrada por um dos vários exemplos históricos apresentados por séculos de conflitos religiosos na Europa. O reformista francês do século XV1 João Calvi no, um dos verdadeiros crentes mais inflamados da História, estabeleceu uma teocracia protestante na cidade de Genebra. Ele nunca ambicionou posição política, tendo permanecido Ministro da Igr�ja por toda a vida. Entretanto, como uma espécie de ayatollah, ele tentou manter o firme contr9le do cenário político de sua cidade. No início, ele não conseguiu: o prefeito e o conselho da cidade se recusaram a se entregar às doutrinas de Calvino e de seu colega igualmente fanático Guillaume Farel, e os baniu de Genebra. Mas, dois anos mais tarde, quando as relações entre facções foram alteradas no conselho, os dois reformistas foram solicitados a voltar a Genebra. Depois de retornar, Calvino lançou suas Ordonnances CERTEZA E DÚVIDA 89 ecclésiastiques, que foram aceitas pelo conselho da cidade. Com essas ri gorosas regras eclesiásticas, Calvino instituiu um conselho radicalmente presbiteriano - consistindo em laicos mais velhos e ministros com treina mento teológico - para ocupar o lugar do tradicional conselho episcopal, governado por bispos. V ale notar que esses homens laicos também eram oficiais do governo. Calvino determinou que a Igreja precisaria ser autô noma, mas a cidade-estado deveria ser subordinada à Igreja, particular mente no amplo campo da moralidade. A teocracia de Calvino enfrentou uma enxurrada de disputas e conflitos, mas ele conseguiu manter firme controle doutriná.rio e moral sobre os cidadãos de Genebra. Naturalmente, Calvino foi confrontado com a feroz oposição de alguns teólogos. Um deles foi o Cardeal Jacopo Sadoleto, secretário do Papa Leão X e bispo de Carpentras, no sul da França. Em uma carta endere çada ao conselho e aos cidadãos de Genebra, ele tentou persuadir esses "hereges" protestantes, Calvino e Farei, a retornar à Igreja-mãe. Usando como coringa o tema da salvação, Sadoleto levantou a seguinte questão: O que acontecerá com a nossa alma - a essência de nossa identidade - quando morrermos? Danação ou salvação? A Igreja Romana Sagrada, com mais de 14 séculos de existência, argumentou Sadoleto, oferece a salvação por meio da eucaristia, da confissão dos pecados e sua absolvição, das orações dos santos a Deus em nosso nome e nossas orações a Deus em nome dos mortos. Naturalmente, precisamos da misericórdia de Deus, mas boas ações _são igualmente necessárias para nossa salvação. O tom de Sadoleto foi conciliador, mas, em certos pontos, ele explodiu em uma füria fanática: "Pois bem sei eu que tais inovadores das coisas anciãs e bem consolidadas, tais perturbações, tais dissenções, são não apenas pestilentas às almas dos homens (o maior de todos os maus), como também perni ciosas às relações privadas e públicas." Mas ele conclui a carta em um tom cortês: "Não rezarei para q4e o Senhor destrua os lábios ludibriadores e.as línguas retumbantes deles e nem que Ele acrescente iniquidade à iniqui dade deles, mas rogarei fervorosamente para que o Senhor, meu Deus, os converta e lhes traga lucidez de espíríto, como faço agora." 90 EM FAVOR DA DÚVIDA Apesar de a missiva' não, s'er endereçada. diretamente a ele, Calvino respondeu- em cinco meses com uma 1longa e elaborada exposição. Ele começou dizendo que.,suan1tividades em ,Genebra não pretendiatn:pro= mover:seus:lhteressesr pri.vaclos,.tomo;/mgerira Sadoleto. Tudo· o que.ele vinha.. fazendorafürhou11era,feit(ra serviço•de Jesus. Cristo:e �!9 obe�i�ncia nã0'.à;lgreja:, ·in:as.1à;!Bfblia, !1qma càusa àlqual o Senhor meiiricumbiú'\ Na vetrlaçle; .ele: acres�entou/'se ·desejasse eoristtltanneus· próprios inte resses,. jamais1 reí:iai 8eixado seu- partido\,. Ce11tamente;, Mnheço mai-s··que um•punhado de·lJ,om,ms 'da· minhalptópllia idade; que'.se, insinuaram na eminência - algim:s.- aosi quais-•eu. poderia· ter· me igualado: e outros ,que teria superado'1: E,··com todo o respeito,·elecontinuoti, é; de certa foí·ma, su.speitt> que uma,pessoa que· nunca esteve em Genebra e:nuncà tenhà·de monsuado intetesse= algum •pelos' genebreses· "agora subitamente professe por eles tamanha afeição, apesar da inexistência· de qualquer indício pré vio de tanto afeto;. Calvino acreditava: que.a verdadeira intenção·do bispo era "devolver os genebreses ao controle do pontífice romano". •E, quanto à salvação, Calvino acreditava que a teologia não se deveria restringir aos pensamentos e temores individuais � isto é,, à alma de um indivíduo, mas ,que .era primordialmente necessário demonstrar· a glória. de Deus. Sim, boas ·ações ,são importa,;ites, rnas: t1ão para conquistar, uma vida no Ceu, •e; sim para honrar a, glória1 de Deus. Ademâis, rião,deveríamos,confundir essá glória com· a glória ·do pontífice de Roma ê'. de seus subordinados. A salvação pode .ser, atingida somente ·-pela, .fé- e pela misericórdia de Deus: "Mosttaremos ·que o únko refúgio seguro está,· na misericór dia de Deus, manifestada em Cristo, no qual cada parte da:nóSsa sal vação está completá. Considerando que-toda a humanidade é, ·aos olhos de Deus, composta de pecadores perdidos, sustentamos que o Cristo é a única virtude da humanidade; já que, por: Sua obediência, Ele expurgou todas as nossas transgressões." .. , Etn determinado ponto dessa resposta epistolar, Calvino se vanglo riou de sua "escrupulosa retidão, profunda sinceridade e franqueza do discurso". Em comparação com Sadoleto, ele chegou a afirmar ter sido CERTEZA E DÚVIDA 91 "consid _e ravelmente mais afortunado· na·tarefa de mahte.r a gentile:ia e a moderação1\ .Essa resposta foi escrita· ern· agosto de 1539,i Calvino, sem dúvida; perdeu toda a: "gentileza" quando publicou- seu Catecf1ismus· Ge- 1ne'Vensineis ·ános m�is tarde;·em que·revelou o .regime·teQcrático e·dis ciplinador.ao qual os cidadãos.de-sua· cidade deveriam sujeitar+-se. Nesse po1.1to, o cal:vinismo;já havia·se tornaqo uma ideologia eonsolidada. T.odas a s críticas foram suprimidas-com fanatismos, mas os,crítiGos,não puderam ser silenciados� : · · i ·, . , · -. A reayão mais,estrondosa veio de Sebastiarn Castellio; que fora amigo .fntimb de• Calvino, màs que sé distanciou de seu cada vez. mais intenso fanatismo, criticando em especial:a doutrina· calvinista. da predestinação. Castellio acabou fugindo de .Genebra a Basel, onde intensificou.sua ên fase anticalvinista·na tolerância e na liberdade de consciência. Em '1553, Miguel Servetus, teólogo laico.de certa forma confuso que rejeitou a dou triná da Trindade, foi queimado em público na fogueira� uma morte extremamente dolorosa à qual Calvino objetou, propondo, sem sucesso, o enforcamento como uma alternativa (isso é que é ('gentileza"!). Em res posta a··essa atrocidade, Castellio publicou dois, tratados em que rejeitou fervorosamente a pcmeguição e a execução de hereges. Ele se distanciou de maneira mais radical do fanatismo teológico com seu tratado intitula d0 "The Art ofDoubt, Faith, Ignorance and Krtow:ledge" (1563)- a arte da dúvida, fé, ignorância e conhecimento·-; no· qual tentou responder à multifacetada questão: {hiais doutrinas cristãs deveriam ser sujeitas à dúvida, em quais o.indivíduo deveria: acreditar, quais ele não deveria pre cisar conhecer e quais deveria conhecer? Apesar da amplitude do tratado, Castellio estava mais interessado na questão da dúvida, em oposição a fanáticosiwmo Calvino. Ele argumentou,que o Velho e o Novo Testamento continham muitas passagens difíceis de acreditar e passíveis .de dúvida·. Por exemplo, :era possível encontrar muitas contradições que abriam os portais da dúvi da. No entanto - e� neste ponto, Castellio elabora uma forma notada mente precoce da hermenêutica moderna-, deveríamos lidar com nossa 92 EM FAVOR. DA DÚVIDA dúvida nos concentrando na corrente principal, no espírito das palavras no contexto de sua coerência. Dessa forma, a dúvida e a incerteza abrem caminho para o conhecimento e a verdade indubitável. Bem, existe uma categoria de pessoas, ele prosseguiu, que insistem que um indivíduo não deveria oprimir-se com a incerteza, que· aquiescem .sem críti�as. a tu1o o que está registrado nas escrituras e que condenam-sem hesítação qualquer um que tenha opinião diferente. Além disso, essas pessoas não apenas jamais duvidam, como também não podem permitir o surgimento da dú vida na mente de qualquer outra pessoa. Se alguém continua a duvidar, os crentes fervorosos não hesitam em acusá-lo de ceticismo, como se alguém que duvida de algo automaticamente alegasse que nada pode ser conhe cido ou vivenciado com certeza. Castellio parafraseou o Eclesiastes 3:2, dizendo: "Há um tempo de dúvida e há um tempo de fé; há um tempo de conhecimento e há um tempo de ignorância." A parte mais interessante da teoria de Castellio é sua justaposição de ig norância e conhecimento por um lado e dúvida e crença por outro. Ele via a ignorância como uma fase preparatória inevitável para o conhecimento e, de maneira similar, via a dúvida como uma preparação para a fé. Ade mais, e estamos falando de um notável passo dialético, ele via a ignorância e a dúvida não como opostos totalmente diferentes do conhecimento e da fé, mas como contrapartes intrínsecas. Isso, é claro, contraria a visão de mundo dos verdadeiros crentes - não apenas no mundo da religião, como também no mundo do racionalismo. No que se refere ao mundo do ra cionalismo, Castellio pareceu preve1, a ascensão do racionalismo científico como um componente inerente ao processo de modernização. E sua previsão se provou correta: com a ascensão das ciências no mun do ocidental, testemunhamos o nascimento do que foi apropriadamente chamado de "cientificismo" - a crença muitas vezes fanática na onipotên cia das ciências (em grande parte, naturais) e suas aplicações tecnológicas. Trata-se de uma forma de racionalismo que combate com fanatismo to das as formas de suposta ignorância- em particular, da religião. Enquan to a fé religiosa é definida como ignorância irracional, as ciências racionais CERTEZA E DÚVIDA 93 (inclusive as ciências sociais, elaboradas com base nas ciências naturais) são elevadas a alturas metafísicas. Auguste Comte, que apresentamos em capítulo anterior, foi um dos primeiros representantes dessa visão de mundo racionalista, que ele chamou de "positivismo". Essa ideologia foi exemplificada pelo behaviorismo psicológico e sociológico no século pas sado e ainda se manifesta nas ciências naturais, embora encoberta pelo novo manto do geneticismo. O "deus" desse racionalismo hoje em dia é o "gene egoísta", um exemplar moderno da predestinação. Como seu antecessor calvinista, ele destrói a ideia de liberdade de escolha e de ações moralmente boas. A dúvida como uma parte intrínseca da fé é, naturalmente, sempre re jeitada pelos verdadeiros crentes - aqueles que hoje rotulamos de "funda mentalistas". Para o verdadeiro crente fundamentalista, a fé não implica, como Paul Tillich a definiu, "acreditar no inacreditável", mas sim a con fiança nas revelações indubitáveis de Deus ou de Alá, como registradas nos Livros Sagrados, contidas em tradições sagradas e vivenciadas em cerimônias sagradas. Há uma coalescência interessante do cientificismo e do fundamentalismo religioso no constante debate entre evolucionismo e criacionismo. O Q!)E, ENTÃO, É A DÚVIDA? A dúvida é um fenômeno um tanto quanto complexo - multifacetado e pluriforme. Para começar, existe a dúvida tanto superficial quanto pro funda. Qyando, ao final de um suntuoso jantar, uma deliciosa sobremesa é oferecida\ ·é difícil para uma pessoa que adora doces decidir se aceita ou não o regalo. Os economistas podem esperar uma escolha racional, mas isso é improvável.. A pessoa sabe que é melhor para sua saúde - e, portaQ to, racional - recusar a sobremesa, mas todo mundo sabe como é difícil combater racionalmente as tentações. Oscar Wilde alegou conhecer a so lução para esse tipo de dúvida superficial: "A única maneira de se livrar da 94 EM FAVOR DA DÚVIDA tentação é se render a ela." Uma dúvida mais profunda e mais torturante pode acometer uma noiva ou noivo - presumivelmente, um caso nada raro - pouco antes da cerimônia de casamento. "Será que realmente devo me comprometer com esse relacionamento marital, com essa pessoa - 'para o bem ou para o mal, até que a morte fl.os separe'?'.' Vej;amos ainda ·outro exemplo: recentemente, vários praticantes na Holanda expressaram su·as dúvidas lancinantes em relação à prática da eutanásia legalizada naquele país. Na ·Holanda, a eutanásia permanece sujeita à lei criminal, mas, em condições bastante estritas (e em casos de uma doença terminal envolven do um terrível sofrimento), os médicos podem ser isentos de acusações legais. Entretanto, muitos médicos enfrentam sérias e profundas dúvidas quando os pacientes (e, muitas vezes, parentes próximos dos pacientes) imploram para dar um fim ao sofrimento pelo qual passam. Também há o tipo de dúvida que o indivíduo combate ou tenta evitar, como no caso da fé religiosa ou alguma crença política ou ideológica em particular. Nessa arena, os verdadeiros crentes vivenciam a dúvida como um possível caminho para a apostasia. Mas também há a dúvida à qual o indi víduo deseja entregar-se e na qual deseja mergulhar, como no caso do ceti cismo. Um cético pode ser definido como uma pessoa que sublima a dúvida em um modo de pensar e cm um estilo de vida. De acordo com o cético, tudo e todos devem ser constantemente sujeitos à dúvida, já que nada - e ninguém - pode ser considerado honesto e digno de confiança. A maioria dos céticos, a propósito, acredita que essa regra não se aplica a eles - o que não significa, é claro, que os céticos sejam dignos de confiança e honestos. Apesar de a dúvida cética normalmente ser severa, para não dizer car rancuda, há um tipo de dúvida jocosa, expressa em pilhérias e· zomba ria. Nesse caso, a dúvida é em geral expressa ironicamente - em outras palavras, a pessoa diz uma coisa, mas quer dizer outra (com o segundo sentido contendo algum tipo de crítica e, dessa forma, lançando dúvida sobre crenças aceitas sem questionam·ento). Um famoso exemplo disso é o Elogi.o da loucura, de Erasmo, que constitui mais do que um exercício de zombar a filosofia e a teologia medieval, mas uma crítica irônica aos CER.TEZA E DÚVIDA 95 intelectuais medievais. Com seu tratado, Erasmo tentou dizer que a Sabe doria vê a Loucura como quem se olha no espelho. Mas o contrário tam bém é verdadeiro, já que, quando a Loucura se coloca diante do espelho, vê a Sabedoria refletida. Por mais alegre e divertido que possa ser o texto de Elogio da loucura, de Erasmo, ele deixa o leitor se sentindo pouco à vontade. Erasmo repete o argumento do Apóstolo Paulo sobre a sabedo ria do mundo como uma loucura aos olhos de Deus. Apesar desse vínculo com a religião, contudo, o fato inquietante da abordagem de Erasmo é a ausência de qualquer realidade metafísica. As fronteiras racionais entre sabedoria e loucura não são claras. Elas se evaporam, dissolvendo-se em uma espécie de neblina cognitiva e existencial, e uma dúvida extrema mente profunda e até perturbadora surge dessa neblina. Em resumo, é possível duvidar de coisas grandes e importantes ou pequenas e irrelevantes. É possível cultivar dúvidas sobre si mesmo, sobre o mundo em geral ou sobre Deus. O que esses casos têm em comum é o fato de questionarem se algo ou alguém é confiável, digno de confiança e significativo - isto é, se algo ou alguém é "verdadeiro". Dúvida e verdade, em outras palavras, se referem a relacionamentos. No próximo capítulo, discutiremos essa questão em mais detalhes. SERIA A DÚVIDA UMA PROPOSIÇÃO DO TIPO TUDO OU NADA? Qyando nos vemos diante de escolhas - e, como vimos em um capítulo anterior, na modernidade estamos constantemente diante de muitas esco lhas -, a dúvida se apresenta de forma proeminente. Apesar de algumas escolhas serem muito superficiais, como qual camisa comprar quando um consumidor passeia pelo shopping, ou tão sérias quanto administrar ou não uma dose letal de medicamento quando um médico se vê diant� da solicitação por parte de um paciente terminal para pôr fim a seu sofri mento, esses extremos são casos limítrofes. A dúvida é mais comum e mais ';/() EM FAVOR DA DÚVIDA proeminente como um meio-termo entre a crença e descrença religiosa por um lado e o conhecimento e a ignorância por outro. Esses dois opostos são, na verdade, inter-relacionados, como acabamos d� ver: conhecimen to pode promover descrença, e ignorância pode promover crença ou fé. Qiianto ao último caso, um teólogo m�dieval apresentou a n<:>ç_ão da docta ignorantia, ou ignorância aprendida, como um mét�do-pai-a aprofundar o senso mítico do divino. Por outro lado, se um indivíduo analisar cien tificamente os textos sagrados da religião - isto é, em termos históricos e comparativos-, sua fé pode facilmente tender para a direção da descrença. O meio-termo disso tudo é a dúvida - uma incerteza básica que não está preparada para se permitir ser destruída pela crença ou pela descrença, pelo conhecimento ou pela ignorância. Justamente por ocupar esse meio-termo, a dúvida autêntica pode nun ca acabar nos muitos "ismos" que as pessoas têm inventado e propagado. A dúvida não pode ser relativista, já que o relativismo, como todos os "ismos", suprime a dúvida. O acadêmico renascentista Michel de Mon taigne, em seus· famosos ensaios, formulou uma filosofia pragmática da vida cotidiana, avessa à metafísica e à religião. Ele deparou com o seguin te paradoxo: enfatizou constantemente a relatividade das ideias, ambi ções, projetos e atividades humanas e, ao mesmo tempo, se recusou a se acomodar em um relativismo fácil. Em um de seus ensaios, ele observou ironicamente que, se alguém disser "Eu duvido", deve se dar conta de que aparentemente sabe que duvida - e isso, é claro, deixa de ser uma dúvida! (Isso nos faz lembrar a lógica sofista sobre o cretense que afirma que todos os cretenses são mentiro;os, de forma que sua afirmação deve ser uma mentira.) No entanto, Montaigne negligenciou a possibilidade de duvidar da própria dúvida! Um poeta flamengo formulou o dilema da seguinte maneira: "Desde o início, a condição humana parece ser deter minada como dúvida sobre a dúvida." Observe a maneira duvidosa como a dúvida é definida aqui - "parece ser determinada"-, seguida da noção quintessencial de que a condição humana consiste na dúvida que duvida de si mesmo. Isso, naturalmente, abre uma
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