Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ UNIVERSIDADE ESTADUAL DO AMAZÔNAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA REDE AMAZÔNICA DE EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICA IVANETE MARIA BARROSO MOREIRA OS JOGOS DE LINGUAGEM ENTRE SURDOS E OUVINTES NA PRODUÇÃO DE SIGNIFICADOS DE CONCEITOS MATEMÁTICOS BELÉM-PA 2015 2 IVANETE MARIA BARROSO MOREIRA OS JOGOS DE LINGUAGEM ENTRE SURDOS E OUVINTES NA PRODUÇÃO DE SIGNIFICADOS DE CONCEITOS MATEMÁTICOS Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação em Matemática e Ciências. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marisa Rosâni Abreu da Silveira. BELÉM-PA 2015 Dados Internacionais de Catalogação na Fonte. Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte. B277j BARROSO MOREIRA, IVANETE MARIA. OS JOGOS DE LINGUAGEM ENTRE SURDOS E OUVINTES NA PRODUÇÃO DE SIGNIFICADOS DE CONCEITOS MATEMÁTICOS / IVANETE MARIA BARROSO MOREIRA. -- 2015 vi, 40 f. : il. ; 30 cm. Orientadora: Marisa Rosâni Abreu da Silveira. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Rede Amazonica de Educação em Ciências e Matemática, Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática, Cuiabá, 2015. Inclui bibliografia. 1. Educação Matemática. 2. Jogos de Linguagem. 3. 5 A meus pais Rosi e José, e aos meus filhos Gleisy e Gabriel com todo o meu amor. 6 Agradecimentos A Deus, fonte de criação e sabedoria; A meu pai José e minha mãe Rosi, meus refúgios em todos os momentos de desespero; A meus filhos Gleisy e Gabriel, minhas fontes de inspiração; A professora Dr.ª Marisa Rôsani Abreu da Silveira, minha orientadora, pela persistência, incentivo, disponibilidade, competência e dedicação; A todos os integrantes do Grupo de Pesquisa GELIM, pela ajuda nas interlocuções e no desenvolvimento das minhas ideias acerca da Linguagem Matemática. A todos os profissionais da Educação Matemática que lutam por uma educação com compromisso. 7 “Não desejaria, com minha obra, poupar aos outros o trabalho de pensar, mas sim, se for possível, estimular alguém a pensar por si próprio”. Ludwig Wittgenstein (1889-1951) 8 RESUMO Este trabalho apresenta o resultado de uma pesquisa que teve como objetivo analisar os jogos de linguagem entre sujeitos surdos e ouvintes e sua colaboração para a compreensão e ressignificação de conceitos matemáticos em uma sala de aula inclusiva. Essa compreensão está associada à tradução de textos matemáticos para a língua portuguesa, e desta para a língua de sinais, em uma ida e volta discursiva. Isto ocorre nas formas de vida dos sujeitos em sala de aula como: a leitura labial do aluno surdo; a explicação do professor; a função de interpretar da profissional intérprete quando intermedia os diálogos - do aluno surdo para o professor, do professor para o aluno surdo, dos alunos surdos para os alunos ouvintes e vice-versa. Essa tradução se confirma nas modalidades: oral, escrita e sinalizada, confirmando a tese de que “A relação entre a língua de sinais, a língua portuguesa e a linguagem matemática em ambiente de sala aula inclusiva produz jogos de linguagem entre sujeitos surdos e ouvintes na tentativa de compreender conceitos matemáticos”. A pesquisa está pautada nos estudos do filósofo Ludwig Wittgenstein, em sua segunda fase – pós mortem - e suas concepções sobre: os jogos de linguagem e uso de regras. O lócus da pesquisa foi uma sala de aula inclusiva do 3º ano do Ensino Médio de uma Escola do Município de Ananindeua e como sujeitos foram selecionados cinco alunos surdos, sete alunos ouvintes, uma intérprete de LIBRAS e um professor de Matemática. A coleta do material empírico para a investigação foi por meio de: observação; gravações (vídeo e áudio); questionários; entrevistas; anotações em diários de bordo; e atividades das aulas de Matemática. As análises dos dados estão dispostas em dois níveis: i) os jogos de linguagem entre sujeitos surdos e ouvintes na sala de aula inclusiva (professor, intérprete, alunos surdos e alunos ouvintes) e ii) o uso de regras de linguagem no ensino de conteúdos matemáticos (Equação da Circunferência e Números Complexos). As mostras das análises evidenciaram resultados como: a existência de ‘regras particulares’ previamente estabelecidas entre as relações discursivas dos sujeitos surdos e ouvintes; os cuidados que os intérpretes devem ter na interpretação literal de palavras com vários sentidos, a polissemia das línguas portuguesa e de sinais; a dificuldade da tradução da linguagem matemática na língua de sinais, por causa da escassez de sinais matemáticos específicos em Libras e o interminável contrato feito entre intérpretes e alunos surdos com diferentes sinais diferenciados, o que dificulta a organização do ensino e da tradução; e também tivemos a confirmação de que a sala de aula inclusiva, como em qualquer ambiente, contexto, onde se tem relações, interações humanas, existe uma variedade e multiplicidade de jogos de linguagem. Palavras-chave: Educação Matemática; Jogos de linguagem; Regras; Formas de vida; Surdo. 9 ABSTRACT This work shows the result of a research that has the purpose to analyze the language games between the deaf and listener subjects and their collaboration to comprehension and ressignification of mathematic concepts in an inclusive classroom. This comprehension is associated to the translation of mathematic texts to the Portuguese language, and from this to the sign language, in a discursive round trip. This happens in the subjects’ way of life in the classroom like: the deaf student’s lip reading, the teacher’s explanation, the professional interpreter’s function of interpreting when it’s intermediating the dialogues – from the deaf student to the teacher, from the teacher to the deaf student, from the deaf students to the listener students and vice versa. This translation confirms itself in the modalities: oral, written and signed, confirming the theses of “The relation between sign, Portuguese and mathematic languages in an inclusive classroom environment produce language games between the deaf and listener subjects in attempt to understand the mathematic concepts.” The research is guided by the studies of the philosopher Ludwig Wittgenstein, on his second phase – postmortem – and his conceptions about: the language games and the use of rules. The research’s locus was an inclusive classroom of the 3rd year of the High School of an Ananideua’s Municipal School and as subjects were selected five deaf students, seven listener students, a LIBRAS interpreter and a math teacher. The collection of empirical material for the research was by the means of: observation; recording (video and audio); questionnaires; interviews; logbooks’ notes; and activities in the math’s classes. The data’s analyzes are disposed in two levels: i) the language games between the deaf and listener subjects in an inclusive classroom (teacher, interpreter,dead students and listener students) and ii) use of language rules in the teaching of mathematical content (Equation of Circle and Complex Numbers). The samples of analyzes revealed results such as: the existence of ‘particular rules’ previously established between the discursive relations of the deaf and the listener subjects; the care of the interpreters must have in the literal interpretation of the words with various meanings, the polysemy of the Portuguese and the sign languages; the difficulty in translate the mathematic language into the sign language, because the lack of specific mathematical signs in LIBRAS and the endless contract between interpreters and deaf students with different differential signals, which difficult to organize the teaching and the translation; and also we had the confirmation that the incursive classroom, as much in any environment, context, where there’s relations, humans interactions, exist a variety and a plurality of language games. Keywords: Math Education; Language games; Rules; Way of life; Deaf 10 LISTA DE FIGURAS FIGURA 01 ALFABETO DATILOLÓGICO OU MANUAL 63 FIGURA 02 CONFIGURAÇÕES DE MÃOS DA LIBRAS 66 FIGURA 03 ESPAÇO DE LOCAÇÃO 67 FIGURA 04 SINAIS QUE SE OPÕEM AO MOVIMENTO 68 FIGURA 05 EXPRESSÃO NÃO-MANUAL DO SINAL TRABALHAR QUANTO AO GRAU DE INTENSIDADE 70 FIGURA 06 O ALFABETO EM SIGN WRITING 72 11 SUMÁRIO I - INTRODUÇÃO 12 1.1. DOIS MARCOS EM UMA HISTÓRIA 12 II - A CONSTRUÇÃO DAS IDEIAS 17 2.1. QUESTÃO E OBJETIVO DA PESQUISA 17 2.2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 18 2.3. INSTRUMENTOS DE PESQUISA 21 2.4. O LOCAL ESCOLHIDO 24 2.5. OS ATORES DA PESQUISA 26 III REVER, REFLETIR E ESCOLHER 32 3.1. BASES EPISTEMOLÓGICAS DA EDUCAÇÃO DO SURDO 32 3.2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 41 3.3. WITTGENSTEIN: UMA ESCOLHA TEÓRICA 52 3.3.1. JOGO DE LINGUAGEM EM WITTGENSTEIN 55 3.3.2. FORMAS DE VIDA EM WITTGENSTEIN 57 3.3.3. O USO DE REGRAS EM WITTGENSTEIN 58 IV - UMA MISCELÂNEA DE LINGUAGENS 61 4.1. LÍNGUA DE SINAIS: UMA PROTAGONISTA ESPECIAL 61 4.2. LINGUAGEM DE SINAIS, LINGUAGEM NATURAL E LINGUAGEM MATEMÁTICA: UMA MISTURA POSSÍVEL 73 V - UM MUNDO DE DESCOBERTAS 78 5.1. PRIMEIRAS DESCOBERTAS 78 5.2. ORGANIZAÇÃO DAS IDEIAS 81 5.3. NÍVEIS DE ANÁLISE DOS JOGOS DE LINGUAGEM 82 5.3.1. 5.3.2. OS JOGOS DE LINGUAGEM ENTRE SURDOS E OUVINTES O USO DE REGRAS NO ENSINO DA EQUAÇÃO DA CIRCUNFERÊNCIA E NÚMEROS COMPLEXOS 82 102 VI - CONSIDERAÇÕES FINAIS 114 REFERÊNCIAS APÊNDICE 12 I – INTRODUÇÃO 1.1. Dois ‘marcos’ em uma história Na caminhada do estudante, profissional ou pesquisador, surgem questões de todos os tipos e com elas a busca de respostas que sejam suficientemente plausíveis para que se aceite como uma verdade duradoura ou passageira. Umas, acabam sendo substituídas por outras de maior valor e outras, ainda, podem perdurar por anos sem que se consiga uma resposta aceitável. Assim como os estudantes, profissionais e pesquisadores iniciaram seus estudos e pesquisas com alguma questão inquietante, da mesma forma ocorreu comigo. Várias questões me acompanharam durante diversas etapas de minha formação e profissionalização nas áreas da Inclusão e Educação Matemática, dentre as quais destaco: - O aluno surdo consegue compreender a linguagem matemática utilizada pelo professor? - Somente a percepção visual dá suporte para o aprendizado de conhecimentos matemáticos? - A linguagem matemática, em uma relação positiva com a língua portuguesa, consegue ser suficiente para o ensino de conceitos matemáticos para alunos surdos? - Como utilizar a língua portuguesa escrita no ensino de conceitos matemáticos se o aluno surdo tem dificuldades no aprendizado da língua portuguesa? - Como ensinar Matemática por meio da língua de sinais para alunos surdos, se nesta língua os sinais específicos matemáticos ainda estão em construção? Estas ‘inquietações’ surgiram de reflexões e observações em sala de aula inclusiva e sala de recurso1, as quais perpassaram minha vida como professora de 1 Sala de recursos, para o Conselho Nacional de Educação/Câmara de Ensino Básico (BRASIL, 2001), é o serviço de natureza pedagógica, conduzido por professor especializado, que suplementa (no caso de superdotados) e complementa (para os demais alunos) o atendimento educacional realizado em classes comuns da rede regular de ensino. 13 apoio e intérprete de língua de sinais durante mais de duas décadas (1992 a 2013). Como profissional de apoio e intérprete, minha função sempre foi fazer a interpretação (simultânea da fala do professor para a língua de sinais), tradução (de textos escritos) e o apoio disciplinar para alunos com deficiência auditiva. Neste sentido, pude observar inúmeros obstáculos que se manifestavam em sala de aula, e ilustrarei dois episódios, entre inúmeros, que chamarei de ‘marcos’, como um destaque em relação à linguagem, que marcaram e contribuíram para esta pesquisa. O primeiro marco ocorreu quando iniciei na profissão, em 1992, em uma turma de 4ª série (hoje 5º ano). Percebi, pela primeira vez, a dificuldade dos alunos surdos em compreender o que outras pessoas falavam. Esta falta de comunicação para mim era um obstáculo gigantesco. Neste período, a Língua de Sinais (Libras) não era muito divulgada, tampouco conhecida ou utilizada pelos profissionais das instituições públicas de ensino em que eu atuava, nem mesmo nas instituições particulares. A Língua de Sinais na década de 90 não era considerada uma língua e não era reconhecida pelos alunos surdos, que ainda se encontravam em início de alfabetização na língua de sinais, pois o ensino da oralização2 ainda era priorizado pelas instituições de ensino, que relegavam a língua de sinais a um segundo plano, sem a obrigatoriedade de apresentá-la. Nesse contexto, o trabalho de professores intérpretes tornava-se deveras complexo. Os surdos adultos da Comunidade Surda de Belém/PA, conscientes de seus diretos à própria língua, nesta década já iniciavam uma luta para que este quadro fosse revertido. Nesta época, em um dos meus trabalhos, a professora de Matemática da turma, na qual eu era a professora intérprete, explicava as regras do conteúdo de potenciação de números naturais. Os alunos surdos apenas olhavam para ela e depois para mim, dando a entender que nada compreendiam e era frustrante, porque aqueles que estavam na sala não tinham completo domínio de leitura labial3, 2 O ensino da oralização vem da Filosofia do Oralismo, paradigma educacional que perdurou no Brasil até a virada do milênio. Este paradigma “percebe a surdez como uma deficiência que deve ser minimizada pela estimulação auditiva. Essa estimulação possibilitaria a aprendizagem da língua portuguesa oral e levaria a criança surda a integrar-se na comunidade ouvinte e desenvolver uma personalidade como a de um ouvinte. Ou seja, o objetivo do Oralismo é fazer uma reabilitação da criança surda em direção à normalidade”. (GOLDFELD, 2002, p. 34). 3 Condição que é uma característica do individuo surdo e que varia de surdo para surdo em relação a nascimento em famílias ouvintes ou surdas, ou mesmo em condições de perda auditiva nas fases pré ou pós-linguísticas, tornando-se uma necessidade de reconhecimento essencial para o surdo. 14 habilidade que varia de um indivíduo surdo para outro. Esse fator linguísticocitado dificultava o ensino e o meu trabalho como professora de apoio/intérprete, pois passei a suprir a falta de comunicação existente entre alunos e professora, ou seja, eu não apenas interpretava, mas tinha que reapresentar todos os conteúdos que a professora tentava ensinar. A leitura labial não era suficiente para a compreensão dos alunos surdos, assim como a escrita, pois tinham conhecimento fragmentado e insuficiente da gramática da língua portuguesa e não possuíam habilidade e fluência na língua de sinais. Assim, na maioria das vezes, era necessário o uso de vários outros recursos como imagens, material concreto manipulativo, dramatização etc. O segundo marco ocorreu depois que iniciei o trabalho de interpretação apenas para o ensino de Matemática, em 2000. Até então, eu tinha que interpretar todas as disciplinas das séries do Ensino Fundamental (1ª à 8ª séries, atualmente do 2º ao 9º ano). Neste período, a língua de sinais já era divulgada em pequena escala na mídia, e nas ruas as pessoas já reconheciam seu uso, por mais que não conseguissem compreendê-la. Os alunos do centro urbano do Município de Belém, em sua maioria, já haviam sido instruídos na língua, e minha função de instrutora e professora intérprete passou a ser ‘facilitado’. Começou a mudar também o comportamento dos próprios alunos surdos, que faziam questão de conversar e aprender em sua própria língua. Neste período, fui designada para trabalhar com as turmas de 6ª, 7ª e 8ª séries e nas turmas dos três anos do Ensino Médio, onde verifiquei que a leitura labial desses alunos era boa e eles tinham um considerável vocabulário na língua de sinais e na língua portuguesa. Este marco deu-se em uma revisão de conteúdos da série anterior com alunos de 6ª série, sobre operações entre frações com denominadores diferentes. No inicio da revisão o professor explicou rapidamente a adição e subtração de frações, relembrando aos alunos as etapas do cálculo, ou seja, os alunos teriam que achar primeiramente o mínimo múltiplo comum (m.m.c.) entre os denominadores para poderem efetivar os cálculos e chegar ao resultado final. Durante a explicação, o professor falava muito rápido e mexia as mãos em demasia, atrapalhando a leitura labial dos alunos. Como não conseguiam compreender a explicação do professor, os alunos surdos se voltavam para mim, e esse comportamento não agradou o docente. 15 Após a minha interpretação, pedi que eles voltassem o olhar novamente para o professor que havia passado os exemplos no quadro, mas os cálculos expressos no quadro não demonstravam o que havia sido explicado, pois como o professor se expressou na época, ‘eles já deveriam saber todas as etapas deste cálculo, isto é apenas uma revisão’. O professor considerava uma ‘obrigação’ dos alunos já terem este conhecimento. O que esse profissional não compreendia era que existiam inúmeros fatores que poderiam ter ocasionado à ruptura no aprendizado desse conhecimento e que a explicação feita oralmente por ele e a interpretação em sinais, fiel, sobre a explicação dele, não daria conta dos ‘resíduos’4 deixados de ser mencionados. Os resíduos a que me refiro são as outras operações que estão implícitas na efetivação dos cálculos fracionários e que não foram devidamente esclarecidos, como as operações de multiplicação e divisão feitas entre o resultado do m.m.c. e os algoritmos das frações, conceitos básicos neste conteúdo. Além desses, muitos outros ‘marcos’ se apresentaram em minha vida profissional durante o ensino de Matemática para alunos surdos, e a relação destes com alunos e professores ouvintes, amadurece o meu anseio de colaborar com a educação deste alunado, se constituindo uma necessidade de reconhecer, analisar e compreender as relações linguísticas que ocorrem no ensino e na aprendizagem dos sujeitos envolvidos. A partir destes marcos foi crescendo uma angústia em mim quanto à relação da linguagem e comunicação dos alunos surdos. Com esta insatisfação latente, diante das situações que continuaram a aparecer, senti a necessidade de procurar subsídios teóricos que pudessem me apontar respostas. Encontrei, então, alguns estudos como os de Carvalho (1992), sobre as fases históricas da cultura surda; Fernandes (1990) e Ferreira Brito (1993), sobre as questões linguísticas e cognitivas do surdo; Skliar (1997, 1998) sobre a avaliação das políticas públicas na educação de surdos; e Souza (1998) e Góes (1999) sobre a prática pedagógica no processo de alfabetização da criança surda e suas relações com os pares ouvintes, entre outras. Estas leituras me elucidaram várias condições do ser surdo, como sua história, cultura, linguagem e educação. Como consequência destas aspirações e 4 Granger (1974) denomina “resíduo” ou “resíduo de decodificação” para as leituras que se deve fazer além das regras, ou seja, aquilo que escapa ao registro na linguagem, mas que pode ser identificado e apropriado por aqueles que compartilham experiências. 16 necessidade de discutir esta trama linguística, trazemos este estudo, que tem como intento analisar os jogos de linguagem5 entre sujeitos surdos e ouvintes, e como estes jogos colaboram na compreensão e ressignificação de conteúdos matemáticos em uma sala de aula. Outras leituras foram necessárias para dar conta de um estudo coeso na área de linguagem, que se apresentaram durante o curso de Mestrado em Educação, onde participei de uma disciplina específica sobre Linguagem Matemática e neste âmbito, intensifiquei meus estudos na área da linguagem. Na disciplina, entrei em contato com a obra Investigações Filosóficas, do filósofo Ludwig Wittgenstein (1889 - 1951), que dá um enfoque à ideia de jogo de linguagem, ideia que trago como principal fundamentação teórica para esta pesquisa. Após a leitura da obra foi inevitável à escolha por este filósofo, e suas ideias inovadoras sobre jogo de linguagem e regras, conceitos que pude tomar para o desenvolvimento das discussões neste estudo. Outros teóricos também foram trabalhados como Perlin (1998, 2002, 2004), Skliar (1997, 1998, 2001), Quadros (2004), Gottschalk (2008), entre vários outros, que colaboram com pesquisas nas áreas da linguagem e da surdez. O presente texto será subdividido em seções: Seção I - composta por esta introdução, que apresenta o interesse pela pesquisa; Seção II – traz a construção estrutural da pesquisa, desde os objetivos, lócus etc. até a descrição dos sujeitos; Seção III – esclarece inicialmente as bases epistemológicas que se apresentam durante o desenvolvimento educacional do surdo, e também focaliza as escolhas que trazemos quanto à fundamentação teórica; Seção IV – situa teoricamente a linguagem, e esclarece a miscelânea linguística que é trabalhada na pesquisa; A seção V – descreve o momento inicial da pesquisa, as escolhas de categorias e os níveis de análise; As seções VI e VII, trazem os pensamentos finais produzidos e os referenciais adotados. 5 Este termo que será discutido no decorrer do texto. 17 II - A CONSTRUÇÃO DAS IDEIAS 2.1. Questão e objetivos da Pesquisa A linguagem humana só é possível devido à sua regularidade, ou seja, a existência de critérios usuais. Sendo uma atividade pública, seus critérios usuais também são públicos, podendo ser ensinada, compreendida e aprovada pela comunidade linguística que a utiliza. Um autor que analisa a linguagem humana enquanto uso, instituição e prática, é Ludwig Wittgenstein em seu segundo momento, representado na obra póstuma Investigações Filosóficas. Este filósofo trata estas atividades linguísticashumanas como jogos, denominados por ele de jogos de linguagem. A linguagem como aspecto central em todas as atividades humanas tem variados jogos de linguagem inclusive nas relações de aprender e ensinar que ocorrem em salas de aula. Para compreendermos melhor a sala de aula inclusiva no ensino de matemática para alunos surdos e ouvintes, recorremos às ideias de jogo de linguagem de Wittgenstein. A língua de sinais, assim como a língua portuguesa (oral e escrita) e a linguagem matemática, no ambiente sala de aula, quando em uso por seus respectivos usuários, apresenta jogos de linguagem diferenciados. Com este pensar podemos, então, formular as nossas questões de pesquisa. Que jogos de linguagem existem ou são construídos entre sujeitos surdos e ouvintes na sala de aula inclusiva no ensino de conteúdos matemáticos? Como esses jogos de linguagem contribuem para a compreensão de conceitos matemáticos? Desta forma, este estudo analisa a trama entre a língua de sinais, a língua portuguesa e a linguagem matemática em dois níveis: i) os jogos de linguagem entre sujeitos surdos e ouvintes na sala de aula inclusiva; e ii) o uso de regras de linguagem no ensino de conteúdos matemáticos. A ligação entre a linguagem e a comunicação é óbvia, uma vez que esta última é a principal função da primeira. Com este pensamento, e tendo em conta a 18 linguagem existente em sala de aula, parece oportuno questionar: por um lado, o ensino e aprendizagem a partir da linguagem, que tem lugar numa aula de Matemática; por outro, a existência e contribuição do jogo de linguagem para o ensino e aprendizagem da Matemática em sala de aula. Assim, apresentamos a principal intenção que nos impulsiona e o que nos propomos alcançar neste estudo. Analisar os jogos de linguagem entre sujeitos surdos e ouvintes e sua colaboração para a compreensão e ressignificação de conceitos matemáticos em uma sala de aula inclusiva. Partindo deste objetivo geral, temos como objetivos específicos: Caracterizar os jogos de linguagem entre sujeitos surdos e ouvintes na sala de aula inclusiva; Analisar como os jogos de linguagem entre sujeitos surdos e ouvintes podem colaborar para a compreensão de conceitos matemáticos na sala de aula inclusiva. Considerado um fenômeno social, a inclusão de alunos surdos tem sentidos e significados particulares forjados por sujeitos de uma comunidade minoritária, se comparada à comunidade ouvinte. Essa comunidade, quando em contato com o grupo majoritário, exige a necessidade de variados discursos em contextos multilinguísticos (orais, escritos, gesto-visuais, matemáticos etc.), de se misturarem, de se reorganizarem e produzirem jogos de linguagem para que o grupo como um todo possa coexistir. A relevância desta pesquisa se concentra na ideia da comunicação, a partir dos jogos de linguagem na sala de aula inclusiva, entre sujeitos surdos e ouvintes – dando condições a esses sujeitos, de ensino e aprendizagem, em relação a habilidades e competências sobre conhecimentos matemáticos. Esta relevância se refletiria também quanto ao aumento na literatura desta área e como contribuição aos profissionais que estudam e pesquisam sobre o sujeito surdo. 2.2. Procedimentos Metodológicos O trabalho foi desenvolvido a partir de um estudo de caso em pesquisa qualitativa. Para Merriam (1988), o estudo de caso tem um carácter descritivo, 19 indutivo, particular e a sua natureza heurística pode levar à compreensão do próprio estudo, seja ele um programa, um acontecimento, uma pessoa, um processo, uma instituição ou um grupo social. Para Ludke e André (1986), o interesse desse tipo de estudo está exatamente naquilo que ele tem de único, de particular, mesmo que posteriormente possam ser evidentes certas semelhanças com outros casos ou situações. Este estudo de caso toma como sujeito de pesquisa, indivíduos surdos e ouvintes que estão presentes na sala de aula inclusiva e, a partir da leitura das informações recolhidas nas transcrições das aulas gravadas, bem como das anotações feitas durante as observações e entrevistas realizadas, procuramos identificar os jogos de linguagem e as regras de linguagem existentes neste universo. Mesmo reconhecendo a complexidade de relações existentes entre sujeitos e linguagens, posso relatar neste momento que, de todas as observações e conversas, como primeiro levantamento, em pequenos “diários de bordo”, durante os anos em que tive a função de professora intérprete, pude constatar que o maior percentual das situações problemas que se apresentavam, relacionado ao ensino e aprendizagem de Matemática, estava envolto em tramas linguísticas como: Quanto às especificidades dos alunos surdos: dificuldade na leitura labial; falta de alfabetização na língua de sinais (uso de sinais “domésticos” ou “mímicos”); dificuldades na aprendizagem e uso da língua portuguesa nas modalidades escrita e oral; Quanto aos alunos surdos e ouvintes: dificuldades na interpretação e compreensão da linguagem matemática; dificuldades no uso e interpretação da língua portuguesa; Quanto ao docente: lacunas no uso da linguagem matemática (desconhecimento e emprego das regras); dificuldades com a língua portuguesa (confusões gramaticais) utilizada no ensino de conteúdos matemáticos; equívocos no ensino de matemática reproduzidos repetidamente em sala da aula por limitações trazidas das formações (inicial e continuada). Para todos os lados em que me direcionasse, as dificuldades eram aparentes e se revelavam sobre a interpretação, compreensão e uso das linguagens que 20 permeiam o ambiente da sala de aula no ensino e aprendizagem de conteúdos matemáticos, se reafirmando, a meu ver, como barreira. Estabelecida, então, esta meta inicial, coube a busca de meios, ferramentas, para esta empreitada, mesmo ciente que, de uma forma ou de outra, minha maneira de ver o mundo, durante experiências prévias, seguramente me influenciariam em futuras escolhas. A procura e escolha dos meios que me fizessem entender os fenômenos me levaram ao estudo de caso qualitativo, baseado nas ideias de Lüdke e André (1986, p. 17) que afirmam ser o estudo de caso aplicado, quando o pesquisador tiver o interesse em pesquisar uma situação singular, particular. O estudo deve apresentar as seguintes características: 1 – Os estudos de caso visam à descoberta; 2 – Os estudos de caso enfatizam a ‘interpretação em contexto’; 3 – Os estudos de caso buscam retratar a realidade de forma completa e profunda; 4 – Os estudos de caso usam uma variedade de fontes de informação; 5 – Os estudos de caso revelam experiência vicária e permitem generalizações naturalísticas; 6 – Estudos de caso procuram representar os diferentes e às vezes conflitantes pontos de vista presentes numa situação social; 7 – Os relatos de estudo de caso utilizam uma linguagem e uma forma mais acessível do que os outros relatórios de pesquisa (LÜDKE E ANDRÉ, 1986, p. 18-20). Pautada neste pensar, vieram à tona preocupações quanto a diferentes explanações, mesmo reconhecendo que qualquer pesquisa oferece estas variantes de interpretação, trazendo à baila situações e compreensões diversas apresentadas pela pesquisa, ou dando possibilidade de resultados já divulgados por pesquisas anteriores. Para que esta pesquisa qualitativa permita ultrapassar os limites do excêntrico e também para que fiquem registradas as particularidades – inerentes a qualquer pesquisa – torna-se necessária a descrição do caminho adotado, esclarecendo as decisões tomadas, as mudanças de percurso e reconhecer as metas alcançadas. Ao reconhecer que certa etapa da pesquisa – ação dos sujeitosou de grupos de acordo com o ambiente ou contexto – somente será revelada no processo, ou mesmo, no contato de resultados de pesquisadores experientes, Alves (1991), Neves (1996), Goldenberg (1999) e Patton (2002), se atêm ao fato de que poderão emergir necessidades de aprofundamentos ou mudanças teóricas, provindos do contato direto e prolongado com o campo de estudo. Estes autores também acreditam que a discussão e compreensão dos fenômenos estudados e os 21 comportamentos dos sujeitos observados, sem a preocupação de generalizações estatísticas, se manifestam como características da pesquisa qualitativa. O pensar em uma pesquisa é um processo lento e demorado, se iniciando, na maioria das vezes, por um questionamento não muito elaborado que, em um primeiro momento, nos parece à chave do estudo, mas com o passar do tempo e após várias reflexões, individuais ou coletivas (colegas, bibliografias, orientadores etc.), transformam essa simples e pouco elaborada questão em outra ou outras melhor estruturadas. Não estou confabulando sobre este fato para justificar um dos atos do pesquisador, mas para apresentar a tese a ser defendida; A relação entre a língua de sinais, a língua portuguesa e a linguagem matemática em ambiente de sala de aula inclusiva produzem jogos de linguagem entre sujeitos surdos e ouvintes na tentativa de compreender conceitos matemáticos. Deste momento em diante procuramos buscar meios, a partir da pesquisa de campo e coleta de dados, para acessar informações necessárias para dar conta desta tese definida. 2.3. Instrumentos de Pesquisa Ao partilhar e estudar o ambiente complexo e dinâmico da aula inclusiva confirmou-se ser prioritário, como instrumento principal para registro dos dados, o uso de gravações (fotografia, filmagem e áudio) nas aulas, que foram revistos, catalogados, selecionados e transcritos na íntegra e fazem parte das análises deste texto, com o intento de disponibilizá-las como fonte para futuros leitores e pesquisadores. A opção por gravações/filmagens tornou-se necessária pela percepção da língua de sinais ser visuogestual, não existindo um registro escrito ou oral, necessitando então de uma posterior interpretação e tradução da língua de sinais para a língua portuguesa escrita. Com isso, evitamos prejudicar o desenrolar dos diálogos permeados por diferentes subjetividades, além de ter que dar conta das combinações linguísticas, com o acréscimo da linguagem matemática, presentes no 22 ambiente da sala de aula inclusiva. Optamos por este procedimento, por confiar nas filmagens (língua de sinais), fotografias (linguagem matemática) e o áudio (língua portuguesa) captados para favorecer as análises, dando possibilidades de ver e rever diálogos além das entonações verbais e expressões faciais entre o professor e alunos surdos, alunos surdos e alunos ouvintes e intérprete e alunos surdos. As filmagens e fotografias foram feitas pela pesquisadora e uma colaboradora intérprete, em uma câmera digital e uma filmadora portátil. O foco principal das fotografias eram os registros escritos das atividades matemáticas realizadas pelos alunos surdos e ouvintes e o foco das filmagens eram os jogos de linguagem entre os sujeitos de pesquisa para futura observação das nuances verbais (entonação de voz) e expressões faciais que não poderiam ser registradas apenas pela observação. Essas nuances verbais, no caso dos ouvintes, foi para registro de ironias e outras figuras de linguagem não perceptíveis em toda a sua amplitude pelos sujeitos surdos e, quanto às expressões faciais e corporais, para complementação frasal e de significado que na língua de sinais tem necessidade obrigatória. Outras formas de instrumentos de coleta de dados utilizados neste estudo foram: a. A entrevista informal (todos os sujeitos), com a finalidade de reconhecimento de afinidades, preferências, saberes de experiências anteriores, habilidades e competências existentes na área de matemática e qualquer outra informação relevante nesse sentido para a pesquisa; b. O questionário (professor e intérprete), com a intenção de reconhecer a escolarização, conhecimento sobre o alunado surdo e as escolhas metodológicas; c. As atividades matemáticas do apostilado produzido pelo professor que serviram para registro fotográfico, tinham a finalidade de reconhecimento da efetivação dos cálculos e produção de conhecimento matemático individual ou coletivo; d. O diário de campo, para organização e registro de todos os comentários (jogos de linguagem) relevantes antes do início das aulas, nas conversas 23 informais entre os sujeitos de pesquisa, durante a aula, conversas pelo corredor que fossem sobre as aulas e qualquer diálogo que estivesse, por algum motivo, relacionado aos jogos de linguagem ou que pudessem servir como continuação de comentários entre acontecimentos ocorridos em sala de aula. A construção dos dados relativa a presente investigação foi feita exclusivamente pela investigadora. A observação em campo, em sala de aula, foi no período de outubro a dezembro de 2012, mas a pesquisa propriamente dita foi efetivada no período de março a novembro de 2013. A observação teve o objetivo de conhecer a turma e verificar a forma de trabalho dos sujeitos investigados (professor, intérprete), além de possibilitar a familiarização da pesquisadora com os futuros atores da pesquisa (alunos surdos e ouvintes, professora e a intérprete). Os dados de cada um dos participantes foram obtidos a partir de questionários, entrevistas e relatos no diário de campo, além de gravações em áudio e vídeo. Os dados iniciais dos profissionais são referentes ao perfil e escolhas metodológicas, em seguida as observações foram direcionadas para a coleta de dados em relação ao tipo de interação discursiva estabelecida entre professor e alunos ouvintes (questionamentos e participação), dentro do contexto da sala de aula; a interação do professor com os alunos surdos (suas reações, dúvidas); a relação do professor com a intérprete; a análise das atividades matemáticas produzidas pelo professor e utilizados pelos alunos em sala. A utilização de tais recursos se fez necessária pelo tipo de investigação e análise que seriam desenvolvidos, visto que a melhor forma de investigar as linguagens, dos sujeitos envolvidos, e os possíveis problemas gerados pelas suas diferenças e organização não poderiam ser contemplados apenas por meio de uma simples observação ou registro das aulas. Diante das observações prévias efetuadas, constatamos que se fazia necessária a aplicação de questionário e realização de entrevista complementar com o professor e a intérprete, com os alunos ouvintes e surdos, para verificar de que forma a formação inicial, a formação continuada e os anos de experiência poderiam estar influenciando nas práticas em sala de aula e como se dava o relacionamento entre os alunos, respectivamente. Tal coleta foi realizada no mesmo período inicial 24 das observações em sala de aula. Para a aplicação do questionário e realização da entrevista, fizemos um roteiro de questões, pensando nos dados relacionados à formação, tempo de serviço, prática pedagógica, entre outros. As entrevistas do professor e da intérprete se realizaram na Sala de Professores, indicada pelo professor. Já as entrevistas dos alunos surdos e ouvintes, se deram na própria sala de aula, individualmente e em grupo, em conversas informais, com perguntas inicialmente direcionadas em relação aos seus conhecimentos prévios, aos colegas ouvintes, à disciplina Matemática e ao professor. Na seção a seguir, daremos atençãoao lócus da pesquisa, que mediante a legislação como a Constituição de 1988 (Art. 205 e Art. 206), e a lei de Diretrizes e Bases de 1996 (Art. 58, Art.59 e Art. 60), garantem a entrada e permanência de alunos com deficiência nas escolas da rede regular de ensino. 2.4. O local escolhido A escolha do lócus deveu-se à condição existente na atualidade das instituições de ensino, em relação à Educação Especial, ou seja, a partir das normativas, no âmbito municipal, estadual e federal, as escolas devem receber alunos com deficiências. Na Capital Belém e nos Municípios vizinhos existem inúmeras escolas que cumprem as normativas quanto ao recebimento e permanência de alunos com deficiências. Neste sentido, o critério de escolha da escola foi quanto a dois fatores facilitadores da pesquisa: a aceitação do estudo pela gestão escolar e quantidade de alunos surdos inseridos por sala de aula no ambiente escolar. A partir desses critérios foi selecionado no Município de Ananindeua-Pará uma Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio. Esta instituição de ensino recebe alunos com Deficiência Visual, Deficiência Intelectual, Deficiência Fisica e Deficiência Auditiva, entre outras especificidades, com uma quantidade considerável de alunos surdos por série, em cada sala. Em 2010, foram matriculados do 5º ao 9º ano, dezesseis (16) alunos surdos e do 1º ao 3º ano do Ensino Médio, nove (9). Este número vem 25 crescendo6 a cada ano, com uma demanda em 2013, de vinte e dois (22) alunos surdos no Ensino Fundamental e dezesseis (16) no ensino Médio, sendo informado pela gestora que dos que iniciaram em 2010, cinco (5) foram remanejados para outra instituição, tendo como justificativa a proximidade das residências em relação às novas escolas. A escola tem seis turmas do Ensino Médio: três do 1º ano; duas do 2º ano e uma do 3º ano, sendo essas turmas atendidas por dois professores de Matemática e duas intérpretes. A escolha dos sujeitos deu-se quanto à turma, pela idade e competência ou habilidade dos alunos surdos na leitura labial e fluência na língua de sinais; o número de indivíduos concentrados na mesma sala. Neste sentido, a turma escolhida foi a do 3º ano, composta de 32 alunos ouvintes e 5 alunos surdos. Os profissionais que participaram da pesquisa tinham como características: 1) O professor: com graduação em Matemática; sem fluência na língua de sinais; sem habilidade para lidar com os alunos surdos; 2) A intérprete: com graduação em Matemática; com fluência na língua de sinais; com experiência na profissão de intérprete (mais de 10 anos). A seleção dos alunos ouvintes foi bem mais criteriosa, pois inicialmente pensamos em uma escolha por relação de afinidade (amizade) com os alunos surdos, porém esta opção de escolha trouxe um entrave: os alunos surdos que fariam parte da pesquisa mantinham uma relação amigável com todos da turma, o que tornaria nossa análise, inviável. Achamos melhor adentrar no campo de pesquisa e encontrar outro critério que provocasse uma seleção mais apropriada dos alunos ouvintes. Na seção seguinte apresentaremos de forma apropriada os sujeitos de pesquisa e esclareceremos sobre como aconteceu à seleção dos alunos ouvintes. 6 De acordo com o MEC/SEESP “no Brasil, ampliou-se significativamente a educação de orientação inclusiva”. Na educação básica, a matrícula dos alunos com necessidades educacionais especiais nos sistemas de ensino, cresceu de 13% em 1998 para 41% em 2005. Alguns aspectos desse crescimento na área da deficiência auditiva é o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais – Libras, em 2002, e a sua regulamentação pelo Decreto 5.626/2005; na área da deficiência mental e deficiência múltipla com atendimento em larga medida em escolas especiais e em classes especiais, também um crescimento considerando os processos de definição de políticas para a educação inclusiva. (BLATTES, 2006: p. 12/13) 26 2.5. Os atores da Pesquisa7 A descrição dos sujeitos será apresentada brevemente em forma de perfil pessoal e profissional com a intenção de situar os personagens em relação aos jogos de linguagem no ambiente sala de aula inclusiva do Ensino Médio. O Professor (P) Iniciaremos com o perfil do Professor, que tinha trinta e nove anos de idade, dos quais os últimos quinze anos foram dedicados à prática docente. É formado em Matemática, tem o curso de Especialização em Fundamentos da Matemática Elementar, e pretendia cursar, no segundo semestre de 2013, uma formação continuada em Língua de Sinais, mas não conseguiu. Sua primeira experiência como docente ocorreu na Rede Privada por contrato. Hoje, leciona na Rede Estadual, Municipal e Privada de Ensino, sendo concursado na rede Pública. Atende, em suas turmas, crianças com Deficiência Física, Auditiva e com Visão Subnormal8 (subdivisão da Deficiência Visual). A escola não adota nenhum livro didático para as turmas do Ensino Médio, mas este professor utiliza o livro didático “Curso Prático de Matemática” do autor Paulo Bucchi, como seu referencial de pesquisa para suas aulas e para a produção do seu apostilado de atividades. O Professor (P) trabalhou os conteúdos matemáticos de duas formas distintas: na primeira, ele inicia com uma explanação das regras do conteúdo matemático passando em seguida para questões no quadro ou orais; na segunda, ele começa com uma questão-problema, no quadro ou em apostilados previamente construídos, até chegar às regras gerais dos conteúdos matemáticos. Os apostilados, produzidos pelo professor (P) em consonância com o referencial utilizado por ele, contêm conteúdos que são trabalhados bimestralmente. A forma de comunicação usada pelo professor (P), com os alunos surdos, são a oralidade e a escrita. Este profissional, mesmo tendo uma formação continuada, se 7 Para preservarmos a identidade dos sujeitos pesquisados, os mesmos serão identificados por letras maiúsculas. O professor pela letra (P), a intérprete pela letra (I) e os alunos surdos pelas letras (A), (B), (C), (D) e (E). 8 Os autores Sá, Campos e Silva (2007) explicam que a definição de visão subnormal (ambliopia, baixa visão ou visão residual) é complexa devido à variedade e à intensidade de comprometimentos das funções visuais. Essas funções englobam desde a simples percepção de luz até a redução da acuidade e do campo visual que interferem ou limitam a execução de tarefas e o desempenho geral. 27 mantém atrelado a práticas pedagógicas rígidas9 como a memorização – demonstrações de teoremas, e a mecanização de cálculos – listas extensas de exercício. Esta prática é apontada por Ponte (2004) como uma das características marcantes do “ensino tradicional”, muito difundido nas décadas de 40 e 50, do século passado. A Intérprete (I) A intérprete (I) tem quarenta e oito anos de idade, dos quais os últimos vinte e dois foram dedicados ao trabalho com o Surdo. Na escola pesquisada, no horário matutino, esta profissional exerce a função de Tradutora/Intérprete Itinerante10, sendo responsável por três turmas do Ensino Médio. No horário vespertino, sua função passa para professora de sala de recurso, atuando com reforço disciplinar para turmas do Ensino Fundamental em uma escola especializada na Educação de Surdos. É formada inicialmente no Magistério, tem formação específica na área de Matemática e inúmeros cursos de formação continuada em Língua Brasileira de Sinais (Libras). Sua primeira experiência como docente foi na Rede Municipal de Educação, na qual lecionou contratada por cinco anos, em turmas de 1ª a 4ª séries. Atualmente é concursada naRede Estadual de Educação, onde atua como professora de Educação Especial, atendendo somente na itinerância11 e sala de recurso. Esta profissional considera sua experiência como professora do ensino especializado, bem como os conhecimentos adquiridos durante sua formação, 9 Para Saviani (1988) a prática pedagógica rígida é hierarquizada com normas rígidas de disciplina e se caracteriza pelo conteudismo, exercícios de fixação e memorização. 10 De acordo com Quadros (2007, p.7) o professor tradutor/intérprete itinerante de Libras é conceituado como “a pessoa que interpreta de uma dada língua de sinais para outra língua, ou desta outra língua para uma determinada língua de sinais”. O seu campo de trabalho é bastante amplo, pois corresponde a necessidade comunicativa dos surdos, dessa forma atende: as instituições de ensino, dando suporte aos professores e aos alunos surdos; quando solicitado participa de eventos (conferências, seminários, congressos, etc.); e na realização de traduções escritas e acompanhamento aos surdos em atividades extraclasse, quando necessário. 11 Os autores Alves e Gotti (2006) consideram a itinerância ou ensino itinerante como um Atendimento Educacional Especializado (AEE), como um serviço educacional prestado pela Educação Especial para atender as necessidades educacionais dos alunos, devendo ser organizado para apoiar, complementar e suplementar os serviços educacionais comuns. Este apoio pedagógico, desenvolvido por profissional devidamente capacitado se caracteriza pela movimentação do professor, que se deslocará para as escolas do ensino regular onde existirem matriculados alunos com deficiência. 28 especialmente no curso de pós-graduação - no qual teve um contato amplo com referenciais que lhe deram novas perspectivas de trabalho, como os principais fatores que a levaram não só a trabalhar com alunos especiais, mas que contribuíram para sua formação e prática docente. A intérprete (I) trabalha no horário matutino como tradutora/intérprete de três turmas do Ensino Médio (duas do 2º ano e uma do 3º ano), compondo um quadro de profissionais da Educação Especial com outras três colegas intérpretes (duas que atendem o Ensino Fundamental – 6º ao 9º ano e uma que atende o Ensino Médio – três turmas do 1º ano). Seu planejamento de trabalho, orientado por sua coordenadora, se foca nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática. A intérprete justifica essa orientação de sua Coordenadora com o seguinte argumento: “Língua Portuguesa e Matemática são as matérias-chave em avaliações de grande porte, como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), provas de concurso e vestibular, necessitando dos alunos maior competência” (fala da intérprete em conversa informal). A intérprete (I) atende os sujeitos de pesquisa que estão inseridos na turma inclusiva do 3º ano, três vezes por semana em sala de aula, com o atendimento voltado diretamente para a interpretação na língua de sinais e tradução para a língua portuguesa. A metodologia que pauta a prática da intérprete é baseada no bilinguismo. Os alunos Alunos surdos A turma analisada – 3º ano – tinha um total de 37 alunos, dos quais, cinco eram surdos – A, B, C, D e E. Destes, os alunos A, C e E são do gênero feminino e B e D do gênero masculino. Esses alunos sentavam-se sempre nas primeiras carteiras das fileiras laterais, para terem uma boa visão do professor e com isso facilitar a leitura labial. A idade dos alunos surdos variava entre dezoito e vinte e dois anos. Veremos a seguir um breve perfil de cada sujeito surdo. 29 A aluna A tem 19 anos, reside próximo à escola, tem ótima leitura labial (capacidade de reconhecer visualmente palavras ou frases pela gesticulação dos lábios), reconhece a língua portuguesa como segunda língua, tem fluência na língua de sinais e mantém uma liderança em relação aos colegas. Esta aluna foi oralizada, possui uma fala compreensível, intermedia a comunicação entre os colegas surdos, ouvintes e professor. Entre os sujeitos surdos esta aluna é a que mais conseguia manter atenção e concentração durante as aulas, chamava a atenção dos colegas quando estão dispersos, esclarecia a eles o máximo possível do que acontece na aula, tirava as dúvidas deles quando pode, solicitava do professor repetição do que foi explanado, questionava com a intérprete ou os colegas ouvintes aquilo que não conseguia compreender, e tentava colaborar com todos na medida de suas possibilidades. O aluno B tem 18 anos, morava em um bairro distante, sendo este o motivo que alegava para chegar constantemente atrasado, tinha uma leitura labial boa e fluência na língua de sinais. Este aluno tinha dificuldades em manter atenção e concentração nas aulas por qualquer motivo externo (pessoas transitam perto da porta e janela) ou interno (promove brincadeiras entre os surdos e os ouvintes, fica desenhando no caderno, observa os colegas ouvintes conversando etc.), e tinha um círculo de amizades extenso, com os colegas da sala e de outras turmas. A aluna C tinha 19 anos tinha boa leitura labial, fluência na língua de sinais e tinha uma amizade forte com a aluna A, por vários fatores, como morar próximo, terem estudado juntas desde a Educação Infantil, participarem dos eventos da comunidade surda (reuniões da associação de surdos, fazer instrução da língua de sinais, eventos sociais entre os surdos e ouvintes - aniversários, casamentos, etc.); e andarem sempre juntas. A aluna C recebe grande influência da aluna A, aprovando todos os seus atos e a posição desta como líder do grupo. O aluno D tinha 22 anos, tinha uma leitura labial deficitária por ter sido estimulado tardiamente, introvertido e tímido, foi alfabetizado na língua de sinais na fase adulta (18 anos), necessitava sempre da ajuda dos colegas para a compreensão de conceitos novos na língua de sinais. Este aluno não mantinha relação de amizade ou afinidade com nenhum aluno ouvinte, pois não conseguia se comunicar com eles, mesmo os alunos ouvintes que foram alfabetizados pela aluna 30 A e reconheciam sinais em Libras, não conseguiam sustentar um diálogo com ele, forçando-o a um isolamento com seu grupo. Quando a intérprete não se fazia presente em sala, a aluna A fazia o papel de intermediadora entre o aluno D, o professor e os alunos ouvintes. A aluna E tinha 20 anos, ótima leitura labial, fluência na língua de sinais, foi oralizada, mas não tinha uma boa produção de fala, era repetente desta série, porque teve problemas de saúde no ano anterior e foi obrigada a parar os estudos. Esta aluna tinha vantagens em relação aos colegas, por ter a compreensão de alguns conteúdos matemáticos vistos no ano anterior. A aluna A e a aluna E se desentendiam em alguns momentos em relação: à atenção dos colegas surdos, à escolha dos sinais que deviam ser ensinados aos alunos ouvintes, à disputa de atenção da intérprete e do professor. Alunos ouvintes Os alunos ouvintes eram sete e suas idades variavam entre dezesseis e dezenove anos. Esses alunos foram escolhidos (recrutados) pelos alunos surdos para manter uma relação de colaboração e receber o ensino básico12 em língua de sinais, ou seja, o aluno foi considerado pelo(s) surdo(s) como um surdo honorário, com tempo de relação extenso ou curto, demonstrado por suas ações no novo grupo (de surdos) do qual passa a fazer parte. As ações dos alunos ouvintes estariam ligadas à relação extensa – competências e habilidades na disciplina Matemática, frequência nas aulas, paciência, afinidade; relação curta – pouca habilidade na disciplinaMatemática, ausências constantes nas aulas, impaciência, discordâncias em geral, falta de afinidade. Este recrutamento e o ensino básico de sinais matemáticos na língua de sinais, para os alunos ouvintes, foram considerados pela pesquisadora como uma preparação prévia, um hábito, para futuros jogos de linguagem matemáticos, ou seja, uma particularidade na forma de vida do sujeito surdo. 12 Será considerado, neste estudo, um ‘ensino básico’ na língua de sinais, a alfabetização proporcionada pelo aluno surdo ao aluno ouvinte, dos sinais referentes a língua com priorização no ensino de sinais matemáticos, que servirão para intermediar ou complementar o ensino de conceitos matemáticos. 31 Os alunos ouvintes estão identificados a partir de números agregados às letras que identificam os alunos surdos, com os quais mantinham maior nível de relacionamento. Ver quadro abaixo. Quadro 1: Sujeitos da Pesquisa. Fonte: Moreira (2013) Com as escolhas feitas e o campo de pesquisa promissor, nos mobilizamos para o reconhecimento dos dados que seriam analisados futuramente. Para que pudéssemos analisá-los, foi necessário antes rever, refletir e escolher, a partir de conhecimentos anteriores e do referencial teórico; para isso, no capítulo seguinte apresentaremos os paradigmas da educação dos surdos e a revisão literária que nos permitiram refletir sobre nossas análises. QUANTIDADE SUJEITOS DA PESQUISA 01 Professor de Matemática (P) 01 Intérprete (I) 05 Alunos surdos - A, B, C, D, E 07 Alunos ouvintes – A1, A2, B1, B2, C1, E1, E2 32 III – REVER, REFLETIR E ESCOLHER A Inclusão nas escolas brasileiras, como paradigma da educação, é uma novidade do período atual que exige da escola, da família, da sociedade, novas atitudes e um novo pensar, aludindo à necessidade de mudanças de paradigmas e concepções, arraigadas no imaginário social, sobre atitudes discriminatórias e excludentes com indivíduos marginalizados (analfabetos, ribeirinhos, deficientes, moradores de rua, etc.). Essas mudanças no agir e no pensar acarretam mudanças em ações como, por exemplo, o aperfeiçoamento de profissionais da área da Educação (professores, pedagogos, interpretes, tradutores etc.) e afins (psicólogos, assistentes sociais, médicos, fisioterapeutas etc.) e nas interlocuções entre setores variados de conhecimento; e realizações de novas pesquisas sobre especificidades, que possam propiciar possibilidades e progressos significativos não apenas para esses indivíduos, mas principalmente para a melhoria da sociedade da qual fazem parte. Neste sentido, é importante frisar que as pesquisas existentes foram pontos de partida para inúmeras outras que se descortinam na atualidade e que tiveram como bases epistemológicas as perspectivas existentes nas áreas médicas e psicológicas. Assim sendo, é necessário um reconhecimento dessas bases epistemológicas para compreendermos melhor como a educação dos surdos ocorreu historicamente e quais suas implicações para as pesquisas atuais. 3.1. Bases Epistemológicas da Educação do Surdo As bases epistemológicas sobre o ensino e a aprendizagem de alunos surdos envolvem variadas teorias, filosofias, metodologias e enfoques contextuais, paradigmas, que foram concebidos e evidenciados em todo o espaço temporal durante o que reconhecemos como a Educação de Surdos. Apresentamos, a seguir, uma síntese destes diferentes paradigmas relacionados à comunicação e linguagem como ponto chave para o processo de educação (ensino e aprendizagem) e inclusão escolar do aluno surdo, e também como cenário que acarretaram os obstáculos existentes na atualidade. Eles serão descritos na seguinte ordem: Clínico- terapêutica; Socioantropológica; Sociocultural; Sociolinguística; e Sociointeracionista. 33 No modelo Clínico-terapêutico a surdez é classificada por autores da área patológica a partir do exame de audiometria13, que demonstra os graus de perdas auditivas14. Neste modelo, surge a nomenclatura Deficiência Auditiva ou Deficiente Auditivo, que para Slomski (2000) é utilizada clinicamente, e trazem em seu bojo preconceitos e julgamentos preconcebidos pelo imaginário social, de incapacidade e doença. A surdez, neste modelo, é vista e reconhecida como uma patologia que deve ser tratada, para não ocasionar novas e inúmeras outras falhas ou inaptidões. Para Thoma (2004), o surdo, no modelo clínico-terapêutico, é entendido como um indivíduo incapacitado, por não ter a capacidade auditiva, devendo ser cuidado clinicamente para ter sua imperfeição removida ou minimizada por meio de terapias de fala, cirurgias reparadoras, sessões de oralização e outras formas de cuidados para que se assemelhe ao máximo com os indivíduos saudáveis (ouvintes). Esses cuidados apenas mascaram a falta de audição, com proibições de linguagem sinalizada, com a receita de vocalização e leitura labial. Este modelo alcançou seu auge após o Congresso de Milão, ocorrido no ano de 1880, na Itália, que foi um marco para a história dos surdos, pois neste congresso internacional, discutiu-se e foi avaliada a importância de três métodos de educação rivais no período - Língua de Sinais, Oralismo e Mista (linguagem de sinais e a linguagem oral, utilizadas conjuntamente). O Método Oralista, neste congresso, como método para a educação dos surdos, afirma Skliar (1997), saiu vencedor das discussões, em uma votação com 160 votos a favor e 4 contra. A partir do Congresso de Milão, a língua de sinais foi proibida oficialmente, sendo alegada, para isso, a deformação ou destruição da habilidade de oralização dos indivíduos surdos. A maioria dos países da Europa e América, após este evento, adotou rapidamente o método oral nas escolas para surdos, começando com este impacto, uma longa e sofrida batalha das comunidades surdas e familiares, para defender o seu direito linguístico cultural, que perdurou por décadas. 13 A audiometria é um exame que avalia a audição. Geralmente, é realizado por um fonoaudiólogo ou otorrinolaringologista. O resultado é expresso em um audiograma, um gráfico, que revela as capacidades auditivas do paciente por meio de medidas audiométricas (medidas dos limiares mínimos de audição por via aérea - por meio de fones, e por via óssea - por meio de vibradores), realizada em cabine acústica. Esse teste permite determinar o grau e o tipo da perda auditiva. (DIÓGENES, 2005) 14 Perda auditiva é a redução da audição em qualquer grau que reduza a inteligibilidade da mensagem falada para a interpretação apurada ou para a aprendizagem podendo comprometer a linguagem, o aprendizado, o desenvolvimento cognitivo e a inclusão social da criança. 34 Os surdos foram obrigados a práticas ouvintes, tendo que abdicar de sua identidade e língua, tornando-se sombras imitativas dos ouvintes. De acordo com Borne (2002), mesmo com variados temas propostos neste congresso como: Vantagens e desvantagens do internato; Tempo de instrução; Trabalhos mais apropriados aos surdos; Medidas curativas e preventivas; entre outros, as discussões se concentraram nas questões de Comunicação, entre o Método Oralista e o da Língua de Sinais. Segundo Machado (2002), a visão oralista e clínico-terapêutica ainda hoje aparece presente na educação de surdos, cujo objetivo é a “cura” da surdez, visando a uma melhor integração social e educacional do surdo. Concordando com este autor Skliar (1998) explica que, dentro dessa concepção, a inclusão do surdo no âmbito social e escolar só ocorre com a transformação daespécie surda por meio da prática da língua oral e do suposto, como denominou o autor, de ‘etnocentrismo ouvintista’15, copiando valores e arquétipos culturais dos que ouvem e falam. Strobel (2006) critica essas práticas ouvintistas afirmando que “durante cem, anos os sujeitos surdos ficaram subjugados as praticas ouvintista, tendo que abandonar sua cultura e sua identidade Surda, obrigados a se submeter a uma ‘etnocentria ouvintista’, sendo forçados a imitá-los e a se esforçarem em parecer ouvintes”. (p. 247) Assim sendo, a filosofia de educação associada a esta perspectiva, firma a aprendizagem da língua oral da comunidade ouvinte, na qual o surdo se insere, argumentando que só com a oralidade o indivíduo surdo poderá integrar-se na sociedade ouvinte e caminhar para a normalização (FREIRE, 2006; MELRO, 2003; VALENTE, CORREIA e DIAS, 2005), ou mesmo se comunicar com os pais, quando estes são ouvintes (FREIRE, 2006). Para quem assume esta abordagem, a língua de sinais poderá ser aprendida na fase adulta do surdo por opção mas, até lá, a utilização de gestos é proibida (MELRO, 2003; VALENTE, CORREIA e DIAS, 2005), devendo a língua oral ser introduzida o mais cedo possível (FREIRE, 2006). Segundo Moura (2000), durante cerca de cem anos houve uma predominância do Oralismo (1880 - 1980), sem resultados satisfatórios quanto ao 15 O “etnocentrismo ouvintista”, para Skliar (1998), a partir de uma evolução histórica, seria a ideia de sujeitos surdos tendo que se moldar nos padrões ouvintes, isto é, tendo que imitar os ouvintes no falar, agir e ouvir. 35 desenvolvimento da fala e da aprendizagem dos surdos. Durante esse tempo a flexibilidade do Método Oralista acontece quando os estudiosos começam a comparar o desempenho acadêmico entre alunos surdos e alunos ouvintes, com uma discrepância de aprendizagem se revelando persistente e acentuada (VALENTE, CORREIA e DIAS, 2005). Surge, então, o que ficou conhecido como Método Bimodal, proposta que permitia a utilização simultânea dos gestos e da fala, que tinha o objetivo de “facilitar a aprendizagem da língua oral, mas utilizando agora o gesto como ponto de partida” (FREIRE, 2006, p. 45), havendo uma correspondência entre o gesto e a palavra (língua oral). Com este novo método, o desempenho acadêmico e nível de desenvolvimento dos alunos surdos se tornaram superiores em relação aos indivíduos sujeitos ao método oral, aumentando as críticas a este último. Mesmo com a melhoria no aprendizado do surdo, houve controvérsias a este novo método, o qual Sacks (1998) criticou apontando para a impossibilidade de se fazer corresponder a cada sinal uma palavra da língua oral. Quadros (1999), linguista e estudiosa da língua de sinais, faz uma crítica a este novo método, e afirma sobre a impossibilidade de usar, em simultâneo, as duas línguas, sem que a estrutura de uma, ou de ambas, seja alterada. Para Valente, Correia e Dias (et al2005) a crítica incide no impedimento do surdo de usar sua língua materna, a língua de sinais com as características especificas que lhe são próprias, e não apenas de usar gestos como auxiliares na aprendizagem da língua materna de uma maioria ouvinte. A partir de todas estas controvérsias deu-se início a novas discussões sobre a educação do surdo, surgindo então o Modelo Socioantropológico. O Modelo Socioantropológico surgiu no início do século XX, com a insatisfação das comunidades surdas em relação ao método oralista. Neste período, as comunidades surdas lideraram vários movimentos sociais (AFONSO, 2007, p. 52) otimizando seu processo de surgimento. Segundo esta concepção, a surdez é valorizada, pois é vista como diferença e “o surdo como membro de uma comunidade linguística minoritária, na medida em que usa uma língua diferente daquela que é usada pela maioria ouvinte” (VALENTE, CORREIA e DIAS, 2005: p. 84). 36 Nesta perspectiva, há uma ruptura com as conotações pejorativas e redutoras da deficiência e da patologia (AFONSO, 2007; FREIRE, 2006; VALENTE, CORREIA e DIAS, 2005). De acordo com a filosofia de educação associada a esta perspectiva, procura-se garantir que os surdos tenham, em primeiro lugar, acesso à língua de sinais, uma vez que essa é a língua materna adequada a quem faz parte da comunidade surda (CARVALHO, 2007; FREIRE, 2006; MELRO, 2003; VALENTE, CORREIA e DIAS, 2005). Para este modelo, a língua de sinais é considerada central no Bilinguismo16 e a língua oral (falada ou escrita) uma segunda língua (CARVALHO, 2007; FREIRE, 2006). O modelo socioantropológico, de acordo com Skliar (1997), diz respeito à outra forma, oposta, de entendimento da surdez e das pessoas surdas. O modelo enfatiza que os surdos constituem um grupo minoritário de pessoas que se agrupam para discutir e opinar sobre suas vidas, não apenas porque tem em comum o fato de não escutar, mas porque constituem um grupo social, cultural e necessita partilhar um entendimento e apreensão do mundo, o que se traduz pelo reconhecimento, legalização e utilização da língua de sinais pelas sociedades nacionais. Vários estudos na área da antropologia indicam que a comunidade surda passou a se organizar, produzir, desenvolver e autorizar as línguas de sinais em todo o mundo e mesmo após a proibição no século passado, os sinais eram usados pelos surdos como língua, pois para eles, ela já tinha um status de língua. Neste século e a partir deste modelo, se começa a pensar, discutir e pesquisar sobre uma educação bilíngue, que leva em conta a necessidade de socialização da criança surda o mais cedo possível na comunidade de seus pares e também na comunidade ouvinte, permitindo que ela encontre arquétipos com os quais possa se identificar, abandonando a ideia da ausência, dando relevância apenas para aquilo que faz com que os surdos sejam diferentes: na língua, cultura, identidade e socialmente (THOMA e LOPES, 1998). De acordo com Machado (2002), a visão socioantropológica da surdez, pelo seu caráter inovador e único, ainda está em construção. 16 Bilinguismo para Quadros (2000), refere-se a proposta educacional bilíngue que reconhece a língua de sinais como primeira língua e mediadora da segunda: a língua portuguesa. “Quando me refiro ao bilinguismo, não estou estabelecendo uma dicotomia, mas sim reconhecendo as línguas envolvidas no cotidiano dos surdos, ou seja, a Língua Brasileira de Sinais e o Português no contexto mais comum do Brasil.” (2000, p.54). 37 A partir do modelo socioantropológico descortinou-se novos desdobramentos em relação à educação da pessoa surda. Para Thoma e Lopes (1998), é a partir desta diferenciação que se começa a pensar em uma educação voltada à língua gesto-visual fluente nos indivíduos surdos e à necessidade de apresentar à pessoa surda condições de apreender o mundo que a cerca por meio da construção, produção e identificação de sua própria identidade, cultura e linguagem. Deixa de lado a ideia da incapacidade e da deficiência e põe em pauta o que faz com que os surdos sejam diferentes linguística e socialmente, dando à sociedade um novo referencial, o Modelo Sociocultural. O Modelo Sociocultural da surdez considera os aspectos sociais, linguísticos e culturais dos surdos. Neste ponto de vista, a surdez não é identificada como uma deficiência, pois os aspectos legítimos do surdo são enaltecidos, ou seja, sua criatividade, atenção, interesse, habilidade e cognição. Também pelo uso de sua língua diferenciada e a sua capacidade de adaptação, ocorrendo em décadas de lutas ao favorecimento da inclusão. De acordo com essa concepção, a surdez se distinguepor experiências visuais com uma forma diferenciada e única de estabelecer a realidade histórica, política e social do indivíduo. (QUADROS, 2003: p. 88) A partir de pesquisas científicas sobre a surdez, emergiram variados movimentos de grupos minoritários que buscavam, por meio de denúncias contra a discriminação, seus direitos. Direito a sua própria identidade, por serem diferentes em sua essência e natureza. Essas lutas formaram um intenso movimento multicultural que tomou forma e se alastrou, chamando a atenção da sociedade, fazendo com que esta transformasse o seu olhar para o social e o cultural desses grupos. Neste sentido, um novo grupo de surdos se constituiu mudando o conceito de “ser deficiente”, relacionado ao sentir-se deficiente, tendo total consciência do que lhe falta, ou seja, na concepção da palavra, como se isto as definisse e caracteriza-se. Dessa forma, o pensamento que se concretiza é de que todos os obstáculos residem no ambiente no qual estão inseridos e não em si como ser humano. O pesquisador Behares (1993, p. 20) define este novo indivíduo surdo como uma pessoa que “por portar um déficit auditivo, apresenta uma diferença em relação ao padrão de normalidade esperado” devendo estabelecer uma identidade 38 que lhe será própria de forma a “se integrar na sociedade e na cultura na qual nasceu”. A diferença entre o Modelo Clínico-terapêutico e o Modelo Sociocultural, é que no primeiro, o insucesso na aquisição e desenvolvimento da língua oral padrão, é conferido à deficiência do indivíduo, a qual restringe as capacidades de abstração, comunicação, socialização e cognição. No segundo, as dificuldades são remetidas aos fracassos dos métodos de educação, que se mostram inadequados em favorecer o desenvolvimento do sujeito, necessitando ser aprimorados. Para isto, tem-se a importância da língua de sinais como instrumento fundamental para que a educação do surdo se efetive, modificando não somente os preceitos filosóficos embutidos neste processo, como também as práticas educativas e o processo de relação e inter-relação dos indivíduos surdos com seus familiares (ALMEIDA, 2000), trazendo à tona concepções do Modelo Sociolinguístico. No Modelo Sociolinguístico, de acordo com Skliar (1997), a fundamentação teórica e cultural defende que a língua de sinais deve ser considerada como primeira língua, ocasionando competências comunicativas e cognitivas do indivíduo surdo, tendo como princípio que a deficiência auditiva não lhe impede adquirir competências linguísticas e cognitivas. Desta forma, a língua de sinais deve ser utilizada para transmissão de todo e qualquer conteúdo escolar para que o surdo se sinta respeitado em sua condição única, além de favorecer o aprendizado da segunda língua, neste caso a Língua Portuguesa, dando a oportunidade de aprendizado e conhecimento e lhe oportunizando a integração em um mundo bilíngue e bicultural que o cerca. Nas escolas regulares a entrada e permanência de surdos adultos mesclados com crianças surdas, tem papel relevante neste contexto, pois além dos adultos surdos tornarem-se modelos linguísticos para os que ainda não têm um desenvolvimento comunicativo com a língua de sinais, também são referências afetivas, sociais e culturais para os que ainda se sentem relegados por sua condição. Este modelo ainda traz um fator primordial que é retirar do canal oral-auditivo (membros constitutivos da fala e audição) a responsabilidade do indivíduo surdo não ter habilidades linguísticas, de comunicação e cognitivas. Em seu livro Slomski (2000) comenta que o modelo sociolinguístico tem o Bilinguismo como organizador 39 metodológico, considerando o indivíduo surdo possuidor de uma primeira língua (língua de sinais), que é o instrumento de acesso aos processos de aprendizagem de antigos e novos conhecimentos, à informação, à cultura e ao reconhecimento de uma segunda língua que lhe pode servir de apoio em qualquer contexto do qual participe na comunidade maior de ouvintes. Neste aspecto, a língua passa a ser a diferença no desenvolvimento do indivíduo surdo, em todos os aspectos (lazer, trabalho, escola etc.), pois possuindo uma língua própria, consegue uma integração à comunidade ouvinte, de forma a não acentuar sua deficiência, mas ressaltar sua diferença e diversidade nas áreas sociais, de comunicação e cultural. Almeida (2000) afirma que não há patologia ou mesmo uma diferença inferior entre o surdo e o ouvinte, apenas uma desigualdade a ser considerada, que é a língua de sinais como recurso próprio para interagir com o meio, o que permite aos surdos expressarem-se. Outros autores como: Behares (1997); Fernandes (1990) e Quadros (1997) acreditam que os surdos desenvolvem a visão como um canal sensorial para o processo de construção de conhecimento, pois são privados do sentido da audição, necessitando de uma língua diferenciada, na qual, alcancem um nível de comunicação tão eficiente quanto o dos ouvintes, que garanta o desempenho de todas as funções de uma língua reconhecida pela Linguística. Para esses autores, na perspectiva sociolinguística de surdez, devemos pensar uma educação para surdos que pondere suas características sociais, descartando a área clínica e a constante vontade de caracterizar a surdez como patologia clínica. A semelhança de aprendizagem e desenvolvimento do surdo com o ouvinte é tarefa que só muito recentemente vem sendo alcançada e está além de ser consonância entre a maioria dos envolvidos, pois a forma de pensar essa educação está atrelada a outras representações relacionadas aos surdos e à surdez. O Modelo Sociointeracionista, para Coll e Gillièron (1987, p. 30), tem como objetivo compreender como o sujeito se constitui enquanto sujeito cognitivo e produtor de conhecimentos. Em concordância com este pensamento, está De Lemos (1995, 1996), que compreende a linguagem humana como constitutiva do sujeito, focalizando então as interações entre os interlocutores e os modos como se desenvolvem as práticas discursivas. Este autor, ainda comenta que a língua, na 40 perspectiva sociointeracionista, não é um sistema de que o sujeito se apropria para usá-la, mas é reconstruída na atividade de linguagem. No contexto linguístico, a perspectiva sociointeracionista, para Perlin (1998) é de que a língua existe constituída de signos e significados, para a comunidade ouvinte, a partir da condição auditiva, e que o sujeito surdo tem dificuldades de utilizar-se de todos os signos e significados dos vocábulos dos ouvintes, principalmente de variados conhecimentos e significados, mantendo uma compreensão limitada, pois as duas línguas têm na sua utilização signos visuais. O suporte linguístico para este modelo educacional é o de estabelecer um comportamento bilíngue para as crianças surdas, considerando a língua de sinais como primeira língua (L1) e a língua portuguesa como segunda língua (L2). O posicionamento aqui suscitado, sobre o modelo sociointeracionista, permite inferir que o ensino para o indivíduo surdo, baseado somente na oralização, pode limitá-lo à pronúncia de palavras isoladas, prejudicando o ensino das variadas áreas de conhecimentos, uma vez que a repetição de palavras isoladas e a aquisição de um número reduzido no vocabulário não constitui um aprendizado de uma língua, fala e comunicação, apenas desenvolve a produção de um ‘minidicionário’ deficitário de uma língua sem significado para o sujeito, tornando-se o obstáculo principal deste modelo. A explanação das bases epistemológicas que fundamentam a Educação de sujeitos surdos tornou-se necessária para a compreensão do que os estudiosos consideram
Compartilhar