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TEORIAS CONTEMPORÂNEAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS AULA 2 Profa. Monise Valente da Silva 2 CONTEXTUALIZANDO Após observar os principais pontos do debate realista, cabe compreender outro paradigma dominante nas Relações Internacionais: o liberalismo. A tradição liberal foi marco importante da institucionalização da disciplina das RI, no início do século XX, tendo se fortalecido no período entre guerras e ressurgido após a Segunda Guerra Mundial, levantando questões essenciais aos grandes debates da disciplina. Nesta aula, iremos compreender a relevância teórica da corrente liberal para o corpo conceitual das Relações Internacionais, assim como explorar seus fundamentos centrais. Procuraremos, ainda, estabelecer os principais pontos de diálogo e embates de seus autores com outras correntes teóricas, distinguir suas vertentes mais relevantes e observar os caminhos de seu debate contemporâneo. Bons estudos a todos! TEMA 1: A TRADIÇÃO LIBERAL E O DEBATE DAS RI Apesar de sua concepção como teoria das Relações Internacionais situar- se em meados do século XX, a tradição liberal encontra suas raízes fundamentais em ideias de pensadores já do século XVII, marcados pela influência do surgimento do Estado moderno. Dentre as primeiras e mais relevantes influências, encontramos os contraturalistas John Locke e Hugo Grotius defensores da doutrina de livre comércio, como Adam Smith e David Ricardo e o filósofo iluminista Immanuel Kant. O que estas abordagens têm em comum, apesar da grande distinção de temas, autores e vertentes, são princípios tais como a liberdade individual, a democracia e a noção de progresso. Trazidos para a análise das relações internacionais, estes princípios ajudam a compreender o choque da tradição liberal frente aos teóricos realistas, com sua visão negativa da natureza humana e da política entre os Estados. A tradição liberal tem como enfoque central a liberdade individual e a garantia de sua autonomia, valorizando as noções de direito natural à vida, à 3 liberdade e à propriedade (NOGUEIRA; MESSARI, 2005). No contexto internacional, a crença na potencialidade e racionalidade do indivíduo leva a uma visão otimista da possibilidade de formação de uma realidade global mais harmoniosa e pacífica. Apesar da concordância acerca da natureza conflituosa da anarquia internacional, os autores liberais não enxergam nesta natureza um caráter imutável. Segundo afirmam, os principais aspectos da anarquia podem ser superados por meio de instituições e políticas cooperativas (VIOTTI, KAUPPI, 2011). Central também à noção de paz da tradição liberal é o livre comércio, apresentado como o responsável por criar laços e relações entre os países, aumentando a tolerância e diminuindo sua propensão à violência. Assim, um aprofundamento da interdependência econômica (e outras formas) seria não só possível como altamente recomendado. A valorização liberal da dimensão do indivíduo, de questões econômicas e sociais, aponta para a relevância de outros atores e temas que não somente o Estado e as questões de segurança na conformação da política mundial. Teóricos liberais reconhecem influências de nível sistêmico, mas questionam a noção do Estado como ator central e unitário das Relações Internacionais (VIOTTI, KALPPI, 2011). Abrem espaço, portanto, para a observação de outras organizações - internacionais ou locais – ou mesmo para os próprios indivíduos, como agentes importantes na definição de perspectivas liberais de análise das Relações Internacionais. TEMA 2: PROPOSTAS TEÓRICAS: PAZ DEMOCRÁTICA, NOVO LIBERALISMO E AS REDES GOVERNAMENTAIS Dentre as variadas propostas teóricas liberais, destacaremos três que auxiliam na compreensão das premissas desta vertente e da amplitude de sua abordagem. A primeira delas é a tese da paz democrática, formulada por Robert Doyle em 1983 e desenvolvida posteriormente por autores como Bruce Russet e Michel Doyle (SALOMON, 2016). Resgatando a herança kantiana, esta teoria afirma que há uma relação direta entre a paz internacional e os regimes democráticos. Desta forma, países de organização democrática tenderiam a agir mais pacificamente no sistema internacional, ao menos em relação a outros 4 atores de semelhante organização. Esta teoria ganhou popularidade com o fim da Guerra Fria, sendo propagada, especialmente, como legitimadora da política externa de Clinton no período, que pregava a expansão da democracia pelo mundo como uma forma de alcançar a paz em nível mundial (NOGUEIRA; MESSARI, 2005). Apesar do grande sucesso, foi muito questionada por seu caráter ideológico e por uma alegada falta de efetividade em explicar a realidade internacional de maneira precisa. A segunda teoria aqui abordada, o Novo Liberalismo, de Andrew Moravksic, se propõe a desenvolver uma proposta liberal sem inclinação ideológica e com bases científicas bem estruturadas (SALOMON, 2016). Moravksic busca explicar os comportamentos dos estados na política internacional em função de suas preferências, partindo da premissa de que estas derivam de pressões domésticas e internacionais que influenciam criticamente seu comportamento (MORAVICSIK, 2008). A partir da definição de pressupostos acerca da natureza dos atores sociais, do estado e do sistema internacional, o autor enfatiza três diferentes dimensões da realidade social, as variantes ideacional, comercial e republicana. Estas tratam das ideias dominantes em diferentes esferas do Estado, das relações de interdependência e suas instituições em um mundo globalizado. São capazes, segundo o autor, de fazer uma “síntese multicausal” e possibilitar predições acerca de temas variados das relações internacionais. (SALOMON, 2016). Por fim, apresentamos a proposta de Anne Marie Slaughter em sua obra The New World Order, que trata do que a autora chama de “paradoxo da globalização” (SLAUGHTER, 2004). Segundo Slaughter, o paradoxo consiste no fato de a globalização estimular a necessidade da formação de governos globais e regionais, mas não haver o desejo de centralização do poder de tomada de decisões e de ação coercitiva por pare dos atores do sistema (SALOMON, 2016). A solução apresentada pela autora envolve o estímulo à cooperação transnacional por meio do reforço das redes de colaboração entre os governos, especialmente entre aquelas unidades que desempenham funções semelhantes. A abordagem de Slaughter envolve, ainda, uma dimensão normativa baseada em cinco princípios básicos para garantir a inclusão, respeito, tolerância e descentralização da ordem mundial que propõe. 5 TEMA 3: TRANSNACIONALISMO E INTERDEPENDÊNCIA COMPLEXO A questão da interdependência nas relações internacionais ganha força na década de 1970, com os estudos de Robert Keohane e Joseph Nye. Em suas duas obras principais, Transnational Relations and World Politics, de 1971 e Power and Interdependence: World Politics in Transition, de 1977, Keohane e Nye defendem a tese de que o transnacionalismo estaria mudando o caráter e a própria natureza do sistema internacional (SALOMON, 2016). Segundo os autores, fatores como o avanço das comunicações, o aumento das transações financeiras, a atuação de empresas multinacionais e de movimentos culturais, estariam criando um cenário transnacional, no qual acontecimentos em outros em um país surtem efeitos significativos sobre outros países e suas realidades. (NOGUEIRA; MESSARI, 2005). A noção de efeitos recíprocos entre Estados ou atores de diferentes países é o que caracteriza a interdependência na política mundial. Para os autores, a reciprocidade da interdependência gera custos voluntários e/ou involuntários aos envolvidos, podendo gerar cooperação e resultar, também, em conflitos e disputas de poder. Desta forma, a interdependência pode gerarefeitos de “sensibilidade”, reconhecendo os impactos ou custos das ações de um país sobre outro, ou de “vulnerabilidade”, tratando da capacidade de reação e dos custos da reação no contexto de interdependência (SALOMON, 2016). Assim, a interdependência complexa, em seu tipo ideal weberiano, aumenta as interações entre os Estados, mas torna, também mais difícil os processos de tomada de decisão e o cálculo das variáveis de suas interações. Três são as características mais relevantes deste fenômeno: 1) a existência de múltiplos canais de conexão entre atores governamentais e não- governamentais; 2) a multiplicidade da agenda dos Estados, ausência de hierarquia entre os temas e existência de fronteiras difusas entre doméstico e internacional; e 3) um declínio na utilidade do poder e força militar na resolução de divergências ou alcance de interesses em contextos específicos. A abordagem da interdependência retoma o debate do papel das organizações nas Relações Internacionais. As organizações são encaradas, neste contexto teórico, como resultado de escolhas feitas pelos Estados, 6 responsáveis por reduzir os custos da interdependência e promover um cenário favorável à cooperação (NOGUEIRA, MESSARI, 2005). TEMA 4: A VERTENTE INSTITUCIONAL E O DEBATE NEO-NEO Partindo da abordagem da interdependência complexa, Robert Keohane avança para o estudo específico dos regimes/instituições e das possibilidades de cooperação internacional (SALOMON, 2016). A nova vertente liberal buscava rever a hipótese da interdependência complexa de maneira a explicar o aumento da cooperação internacional sem um enfoque ideológico. Nesta tentativa, o autor reconhece princípios realistas como a centralidade, unidade e racionalidade do Estado nas RI, a anarquia internacional e os impactos da anarquia na ação dos atores. Em sua principal obra, After Hegemony: Cooperation and Discord in the World Political Economy, Keohane reconhece na anarquia um cenário de possível cooperação que é afetado negativamente pela falta de informação acerca das intenções e estratégias dos atores. Para o autor, os Estados neste cenário vivem uma situação semelhante ao Dilema de Segurança, no qual a otimização dos resultados carece de uma mudança no ambiente de interação, de forma a permitir a mútua compreensão e cálculo de oportunidades e interesses. Reconhecida como neoliberal ou institucional, esta abordagem afirma, portanto, o papel central das instituições na facilitação de acordos mutuamente benéficos a partir da interação internacional. As instituições podem impactar positivamente o cenário de interação a partir de três funções básicas: 1) aumentando o nível de informação entre os atores, reduzindo as incertezas e permitindo a coordenação de estratégias; 2) estabelecendo o controle do cumprimento de acordos, criando mecanismos que aumentam os custos do declínio e da não-cooperação; e 3) alterando as expectativas dos atores em relação a acordos de longo período (NOGUEIRA, MESSARI, 2005). O sucesso desta vertente e suas proposições geraram grande repercussão nas RI, estimulando um debate intenso entre neorrealistas e neoliberais institucionais, conhecido como debate neoneo ou segundo debate das RI. Este debate se desenha a partir da apresentação dos argumentos de 7 cada vertente, acerca da possibilidade de cooperação em condições de anarquia, da dimensão de ganhos relativos/absolutos da cooperação, da prioridade das metas estatais, do papel atribuído às instituições, entre outros (SALOMON, 2016). TEMA 5: O DEBATE LIBERAL NA ATUALIDADE A retomada da relevância da vertente institucional nas Relações Internacionais fez com que ela se tornasse a nova referência da teoria liberal na disciplina (NOGUEIRA; MESSARI, 2005). Uma vez inserido o debate institucional, os novos rumos da vertente liberal têm se preocupado em demonstrar não só como as instituições facilitam a cooperação internacional e a coordenação de interesses comuns, mas, também, de que maneira isto ocorre e como incide na dimensão de formação de interesses dos Estados. O debate institucional atual aborda, entre outras questões, as determinações de desenho institucional e a relação entre instituições internacionais e questões de cunho doméstico (SALOMON, 2016). Teóricos como Koremenos, Lipson e Snidal exploram a questão do desenho institucional, buscando compreender como as instituições são desenhadas e qual a sua eficácia em atender determinado problema e alcançar seus objetivos. Estes autores analisam questões como o caráter dos membros, alcance de temas, regras, tarefas e flexibilidade dos arranjos, concluindo pela existência de relação entre o desenho institucional e os impactos no resultado das negociações entre os atores (SALOMON, 2016). Outra questão atual diz respeito ao impacto das instituições internacionais na esfera doméstica dos Estados. Segundo esta vertente, a dimensão interna tem papel essencial na aceitação das instituições e implementação de suas diretrizes e regras. As instituições internacionais têm impactos, também, na definição e modificação de políticas domésticas, geralmente ligadas ao cumprimento de requisitos de ingresso nestes mecanismos (SALOMÓN, 2016). Assim, esta vertente busca entender o movimento mútuo de influência entre as esferas internas e internacionais. 8 NA PRÁTICA A Organização Mundial do Comércio (OMC) fornece um panorama interessante para a consideração da aplicação prática da teoria institucionalista neoliberal na atualidade. Criado a partir do extinto do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), a OMC surge de um desejo de redução de obstáculos às trocas comerciais entre os países, caminhando em direção à integração da economia mundial. A OMC estabelece um marco institucional comum entre os países signatários, instituindo mecanismos de solução de controvérsias e criando um ambiente favorável a negociação de novos acordos (ITAMARATY, s.d.). Observada sob o prisma do institucionalismo neoliberal, a OMC é o exemplo ideal de uma instituição que responde aos interesses de cooperação dos Estados, aumentando os níveis de informação e mitigando os custos e riscos da interação entre eles. Suas normas preveem, ainda, punições em casos do descumprimento de acordos, respondendo às expectativas de previsibilidade das ações dos atores no longo prazo. Desta forma, a OMC figura como uma instituição que permite o cálculo de interesses e oportunidades dos atores, facilitando acordos mutuamente benéficos entre os Estados, permitindo a cooperação mesmo em contexto internacional anárquico. SÍNTESE É inquestionável o papel central do liberalismo no estabelecimento da disciplina das Relações Internacionais e em alguns de seus principais debates. Indo além de sua influência inicial nos primeiros embates teóricos da disciplina, em oposição ao realismo, a tradição liberal ganhou nova roupagem e relevância após a Segunda Guerra Mundial. Com uma abordagem vasta que respondia ao novo cenário internacional do período e a necessidade de repensar a centralidade do Estado e a influência de outros atores na política internacional, o liberalismo se fortalece na crença da possibilidade de criação de cenários de cooperação, na consideração de novos atores e na possibilidade de diminuição do caráter conflituoso das Relações Internacionais. A perda do caráter idealista e as concessões à teoria realista marcam a abordagem neoliberal atual, mas estimulam a ideia da necessidade de 9 fortalecimento de instituições que facilitem as interações entre os estados e um movimento de governança global bem estruturado. Junto de outras abordagens contemporâneas, formam uma tradição liberal vasta e diversificada, cuja compreensão é central ao debate das Relações Internacionais contemporâneas. REFERÊNCIAS ITAMARATY. OrganizaçãoMundial do Comércio. Disponível em <http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/diplomacia-economica- comercial-e-financeira/132-organizacao-mundial-do-comercio-omc> Acesso em 20/07/2016. JATOBÁ, Daniel; LESSA, Antônio Carlos (coord.); OLIVEIRA, Henrique Altemani de (coord.). Teoria das Relações Internacionais. São Paulo: Saraiva, 2013. KEOHANE, Robert. After Hegemony: Cooperation and Discord in the World Political Economy. Princeton: Princeton University Press, 1984. MORAVCSIK, Andrew. The New Liberalism In: Reus-Smit, Christian e Snidal, Duncan (eds.), The Oxford Handbook of International Relations, Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 234-254 NOGUEIRA, João; MESSARI, Nizar. Teorias das Relações Internacionais: Correntes e Debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. SALOMON, Monica. Teorias Contemporâneas das Relações Internacionais. Curitiba: Editora Uninter, 2016. SLAUGHTER, Anne-Marie. A New World Order. Princeton e Oxford: Princeton University Press, 2004. VIOTTI, Paul R.; KAUPPI, Mark V. International Relations Theory. New York: Pearson, 2011
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