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doença hemolítica perinatal

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DOENÇA HEMOLÍTICA PERINATAL
A doença hemolítica perinatal (DHPN), ou eritroblastose fetal e do recém-nascido, é uma afecção generalizada, acompanhada de anemia, destruição das hemácias e aparecimento de suas formas jovens ou imaturas (eritroblastos) na circulação periférica, com atividade persistente e anômala de focos extramedulares de hematopoese. Decorre, originariamente, de incompatibilidade sanguínea maternofetal. Os anticorpos da gestante, específicos para antígeno localizado nas hemácias do concepto, intervêm como elementos desencadeantes. Em 98% dos casos de DHPN, a incompatibilidade entre a mãe e o feto é atribuída aos sistemas Rh e ABO. Nos 2% restantes, está em jogo um grupo variado e incomum de anticorpos denominados irregulares. A incompatibilidade pelo sistema ABO é responsável pela maioria dos casos de DHPN; todavia, como são de pequena gravidade clínica, esses casos tendem a passar despercebidos. À discordância de Rh atribui-se contingente expressivo de conceptos seriamente afetados. A DHPN determinada por anticorpos irregulares traz consequências variáveis para o feto, dependendo do fator sanguíneo envolvido. Apesar da prevenção com a imunoglobulina Rh, a DHPN continua sendo um grave problema global, sendo a maior causa de anemia fetal.
Incidência 
A incidência da DHPN após a universalização de sua prevenção pelo uso da imunoglobulina anti-D adquiriu novo perfil. Na década de 1940, Rezende tinha estimado o aparecimento da eritroblastose em 1/400 partos na cidade do Rio de Janeiro.
Etiopatogenia 
Estão relacionados com a ocorrência de doença hemolítica os seguintes fatores: Incompatibilidade sanguínea maternofetal Aloimunização materna Passagem de anticorpos da gestante para o organismo do feto Ação dos anticorpos maternos no concepto. 
Incompatibilidade sanguínea maternofetal 
A DHPN é decorrente de incompatibilidade sanguínea maternofetal. Nesse caso, o concepto apresenta fator hemático de herança paterna, ausente no organismo da gestante e capaz de imunizá-la, produzindo anticorpos específicos ao referido fator.
▶ Sistema Rh.
Aproximadamente 55% dos indivíduos Rh-positivos são heterozigotos para o locus D. Nesse caso, durante a concepção deles com mulheres Rh-negativas, apenas 50% dos fetos serão Rh-positivos e, assim, passíveis de serem atingidos pelo anticorpo materno. Por outro lado, os outros 50% de fetos Rh-negativos não são afetados. Para maridos Rh-positivos homozigotos, todos os fetos gerados serão Rh-positivos.
Aloimunização materna 
Na DHPN, a aloimunização materna é ocasionada:
· Pela administração de sangue incompatível produzida por hemotransfusão ou como na antiga prática da heteroemoterapia; em ambas, o que há de danoso e altamente condenável é o desconhecimento do fator Rh da receptora antes da aplicação do sangue.
· Subsecutivamente à gestação de produtos Rh-discordantes, sendo determinada pela passagem de hemácias fetais, que são as únicas células com antígeno Rh, durante a gestação ou no momento do parto. 
Hemorragias fetomaternas espontâneas ocorrem com frequência e volumes crescentes durante a evolução da gravidez. Na maioria dos casos, a carga antigênica do antígeno D das hemácias fetais é insuficiente para estimular o sistema imunológico materno. Todavia, no caso da hemorragia fetomaterna do parto ou, excepcionalmente, vigente grande hemorragia fetomaterna antenatal, os linfócitos B maternos passam a reconhecer o antígeno D. A produção de anti-D materno é inicialmente de IgM, de curta duração, com rápida mudança para a resposta IgG. A memória dos linfócitos B, então, espera nova exposição antigênica que ocorrerá na gravidez subsequente. Se estimulados pelo antígeno D das hemácias fetais, esses linfócitos rapidamente se proliferam e produzem anticorpos IgG que elevam os títulos maternos. Cerca de metade das mulheres sensibiliza-se na primeira gravidez e 1/3 na segunda gestação. Em 20% dos casos, a sensibilização ocorre após 28 semanas da gestação e em 80% dos casos no pós-parto.
Passagem de anticorpos da gestante para o organismo fetal
 Os anticorpos dos vários sistemas de grupos sanguíneos que se encontram na fração IgG (nomeados imunes, incompletos ou bloqueadores) atravessam a placenta. Os IgM e IgA, chamados anticorpos naturais ou completos, não passam para o organismo fetal.
A transferência de anticorpos da mãe para o filho é feita pela placenta e pelo IgG, o qual se liga ao receptor Fc da membrana plasmática do trofoblasto. O transporte é realizado por endocitose receptor-mediada.
Ação dos anticorpos maternos no organismo fetal
Os anticorpos maternos que passam para o feto, em virtude da reação específica antígeno-anticorpo, irão produzir hemólise de suas hemácias e, depois, a das hemácias do recém-nascido e, segundo a subclasse de IgG e a intensidade do fenômeno, condicionam os diferentes quadros clínicos da doença.
Quadro clínico
 Diagnóstico anteparto
 Na gravidez, a incompatibilidade pelo sistema Rh poucas vezes acomete o primeiro filho (5%), exceto se houver referência à hemotransfusão sem o conhecimento prévio do fator Rh. O histórico de um ou dois filhos normais, seguidos de recém-nascidos com icterícia grave e persistente, manifesta nas primeiras horas de vida, anemia e morte nos casos de maior agravo clínico sugerem aloimunização Rh. Em outros casos, há natimortos e hidrópicos que se repetem, encerrando gravidezes de curso normal. Em mulheres com história clínica de um natimorto por incompatibilidade Rh, a probabilidade de se reproduzir o acidente é de 75%, que ascende para 90% quando o histórico é de dois natimortos. A incompatibilidade ABO ocorre, na primeira gravidez, em 40 a 50% dos casos
Ultrassonografia 
A ultrassonografia é extremamente importante para o seguimento fetal na DHPN. Além de possibilitar o monitoramento de procedimentos invasivos, a ultrassonografia pode orientar a identificação dos fetos mais gravemente atingidos por anemia hemolítica, o que possibilita assentar o grau de seu comprometimento. O aumento da espessura placentária (maior que 4 cm), perda de sua arquitetura e maior homogeneidade parecem ser os primeiros indicadores da doença. Polidrâmnio e aumento da circunferência abdominal do feto, medida seriadamente, correspondem ao agravamento do processo hemolítico.
Incompatibilidade ABO.
 Embora seja a mais frequente causa de DHPN, a anemia resultante costuma ser leve. Cerca de 20% de todos os bebês apresentam incompatibilidade ABO, mas apenas 5% são clinicamente afetados:
· A doença ABO é frequentemente vista no primeiro filho (40 a 50% dos casos) porque muitas mulheres do grupo O apresentam isoaglutininas anti-A que antedatam a gravidez. Esses anticorpos imunes são atribuídos à exposição a bactérias que exibem antígenos similares 
· Grande parte dos anticorpos anti-A e anti-B são IgM que não atravessam a placenta e, por isso, não têm acesso às hemácias fetais. Além disso, as hemácias fetais têm menos locais antigênicos A e B do que as células adultas e são, assim, menos imunogênicas. Não há necessidade de monitoramento da gravidez nem justificativa para o parto antecipado
· A doença ABO é invariavelmente muito mais leve do que a aloimunização D e raramente determina anemia significante. Os bebês afetados tipicamente apresentam anemia/icterícia neonatal que pode ser tratada com fototerapia (5% dos casos). Em conclusão, a aloimunização ABO é uma doença pediátrica e não merece maiores preocupações obstétricas
· A aloimunização ABO pode comprometer gestações futuras, mas raramente é progressiva como a Rh. 
· O critério usual para a hemólise neonatal por incompatibilidade ABO é:
· Mãe do grupo O e feto A, B ou AB 
· Icterícia que se desenvolve nas primeiras 24 h 
· Vários graus de anemia, com reticulocitose e esferocitose 
· Teste de Coombs direto positivo, mas nem sempre 
· Exclusão de outras causas de hemólise no bebê.
Acompanhamento na gravidez
 A anamnese deve ser minuciosa. São fundamentais a história das gestações anteriores, o desfecho de cada uma delas e os possíveis eventos hemoterápicos. A assistênciaprocessa-se em três fases: 
· Evidenciação da incompatibilidade sanguínea entre o casal 
· Determinação da possível aloimunização materna. Se presente, deve-se monitorar seu comportamento durante a gestação atual 
· Avaliação das condições do concepto pela dosagem espectrofotométrica da bilirrubina no líquido amniótico e, mais recentemente, por ultrassonografia, Doppler e cordocentese.
▶ Incompatibilidade sanguínea do casal. No sistema Rh, a discordância principal, gestante Rh-negativa e marido Rh-positivo, responde por mais de 90% das histórias clínicas de DHPN, embora se declare aloimunização materna em apenas 1:20 casos. É significativa a proteção determinada pela incompatibilidade ABO. Quando o pai biológico é Rh-positivo homozigoto, todos os filhos serão Rh-positivos; se heterozigoto, apenas 50%.
▶ Aloimunização materna (teste de Coombs). Os anticorpos anti-Rh são identificados por meio de exame imunoematológico no período pré-natal (teste de Coombs indireto). Considera-se o título do teste de Coombs anormal quando associado a risco elevado de determinar hidropisia fetal. Esse valor varia de acordo com a experiência da instituição, mas em geral se situa entre 1:16 e 1:32. À primeira consulta de gestante Rh-negativa (com marido Rh-positivo), deve-se realizar pesquisa de anticorpos anti-Rh. Resultado negativo obriga à repetição do teste com 28 semanas. Se os teores dos anticorpos aumentam em cada determinação, é provável que esteja sendo gerado um feto Rh-positivo, que sofrerá de DHPN. Se o título é ≤ 1:8 até o final da gravidez, praticamente se exclui a possibilidade de nati ou neomorto. Nessas condições, o teste de Coombs é repetido mensalmente.
Provas imunoematológicas no recém-nascido 
São indispensáveis: a determinação do grupo sanguíneo e do fator Rh e o teste de Coombs direto. 
▶ Teste de Coombs direto. Avalia a sensibilização das hemácias do recém-nascido pelos anticorpos maternos. Deve ser feito, sistematicamente, no sangue do cordão umbilical dos bebês nascidos de mulher Rh-negativa, com ou sem aloimunização, e mesmo se ausente história sugestiva de DHPN. As reações negativas não afastam, definitivamente, a doença; nos tipos clínicos ocasionados pelo sistema ABO, elas costumam ser negativas.
Prevenção
A imunoprofilaxia anti-D tornou a eritroblastose fetal determinada pela sensibilização ao antígeno D uma doença previnível, de modo que a mortalidade perinatal pela aloimunização demonstrou diminuição de 100 vezes. Todavia, mesmo nos países desenvolvidos (Reino Unido, Canadá), a aloimunização materna ainda persiste em 0,4:1.000 nascimentos, ou aproximadamente 1 a 2% das mulheres D-negativas, na maioria das vezes por falhas na profilaxia. 
▶ Imunoglobulina anti-D. A imunoglobulina anti-D é um produto sanguíneo que contém títulos elevados de anticorpos que neutralizam o antígeno RhD das hemácias fetais e, assim, é efetiva na prevenção da aloimunização RhD (National Institute for Clinical Excellence [NICE], 2008). A via de administração usual é a intramuscular (IM). Após a administração da anti-D, o rastreamento para anticorpos apresenta resultado fracamente reativo, com título baixo. O anti-D atravessa a placenta e se liga às hemácias fetais, sem causar hemólise, anemia ou icterícia.
▶ Profilaxia pós-parto.
Se a mulher Rh-negativa não receber profilaxia IgG anti-D no pós-parto após o nascimento de bebê Rh-positivo, a incidência de sensibilização na vigência de nova gravidez será de 12 a 16%, em comparação com 1,6 a 1,9% se tiver havido a prevenção.
▶ Rastreamento sorológico antenatal. Todas as pacientes devem ser rastreadas na 1a consulta pré-natal para anticorpos com o teste da antiglobulina indireta (teste de Coombs indireto), desde que 1,5 a 2,0% exibem anticorpos atípicos ou irregulares.
▶ Recomendações
Após abortamento ou gravidez ectópica, há indicação para o anti-D em mulheres Rh-negativas não sensibilizadas: 120 μg até 12 semanas e 300 μg após esse período.
▶ Consentimento informado. 
O consentimento informado deve ser obtido para a administração de qualquer produto sanguíneo. 
▶ Recomendação 
Consentimento informado, verbal ou escrito, deve ser obtido antes da administração de imunoglobulina Rh Teste pré-natal não invasivo (NIPT). Mulheres Rh-negativas não sensibilizadas, com maridos Rh-positivos heterozigotos, deverão obrigatoriamente fazer o NIPT a partir de 9 semanas, pois 50% dos fetos serão Rhpositivos e apenas nesses casos estará indicada a prevenção, assim como o acompanhamento pré-natal.
Tratamento
 ▶ Transfusão intravascular (TIV). Historicamente, a transfusão intraperitoneal por controle fluoroscópico foi o tratamento de escolha durante quase 20 anos após ter sido introduzida por Liley em 1963. Com o advento da cordocentese guiada pela ultrassonografia, a TIV tornou-se universal. Entre os casos de TIV, 85% foram pela aloimunização D, 10% pela K1e 3,5% pela c. As hemácias para TIV são do grupo O, Rh-negativas, citomegalovírus-negativas e coletadas nas últimas 72 h. O local ótimo de punção da veia umbilical é próximo da sua inserção na placenta; na impossibilidade, vale a punção em alça livre (Figura 39.18). Muitos utilizam agente curarizante para paralisar a movimentação fetal. Ao início da TIV, determina-se o hematócrito fetal e, como já se disse, o valor < 30% (Hb < 10 g/dℓ) é indicação para o tratamento. A quantidade de sangue a ser transfundido depende desse hematócrito inicial, do peso estimado fetal e do hematócrito do doador. Se o sangue do doador tem hematócrito aproximado de 75%, o peso estimado fetal pela ultrassonografia pode ser multiplicado por 0,02 para determinar o valor de sangue a ser transfundido para atingir aumento no hematócrito de 10%. Procura-se atingir hematócrito final de 40 a 50%, e declínio de cerca de 1% por dia do hematócrito pode ser antecipado após a TIV.

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