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Antropologia da Religião Gedeon J. Lidório Jr. Abril/ 2016 Professor autor: Gedeon J. Lidório Jr Coordenadoria de Ensino a Distância: Gedeon J. Lidório Jr Projeto Gráfico e Capa: Mauro S. R. Teixeira Revisão: Éder Wilton Gustavo Felix Calado Impressão: Artgraf Ind. Gráfica e Editora Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200 03 SUMÁRIO Unid. - 01 Introdução à Antropologia da Religião..............................05 Unid. - 02 A teoria antropológica e o fenômeno religioso..................15 Unid. - 03 As “escolas antropológicas” e o fenômeno religios....................21 Unid. - 04 Etnografia e Etnologia.........................................................31 Unid. - 05 A aplicação da fenomenologia da religião na análise dos fatos sociais e religiosos: Dimensão do humano, cultura e sociedade.........43 Unid. - 06 A dimensão do mito, rito e magia........................................47 Unid. - 07 A dimensão do sagrado, profano, tabus e cosmologia.........67 Unid. - 08 A dimensão da alteridade, representação social e imaginário.......77 Unid. - 09 A dimensão da história, ética e religião..........................................85 Unid. - 10 Observação participante................................................................99 Unid. - 11 Categorização dos fenômenos Religiosos...................................109 Unid. - 12 Padrões de observação dos fenômenos religiosos......................115 Unid. - 13 A mensagem e a forma de entrega-la..........................................121 Unid. - 14 Os mais evidentes perigos de pressupostos de contextualização.....125 Unid. - 15 Pressupostos bíblicos para a contextualização...........................131 Unid. - 16 Comunicação e Contextualização...............................................139 Unid. - 17 Critérios bíblicos para a comunicação........................................147 Unid. - 18 Teologias Bíblicas temáticas para comunicação.........................151 Antropologia da Religião04 05 Antropologia da Religião Unidade - 01 Introdução à Antropologia da Religião 1. Definindo Antropologia A Antropologia, ou ciência antropológica, foi formada a partir de diversas origens, estudos e fundamentos que levaram aos aspectos conclusivos de hoje. Laraia nos fala sobre a diversidade de pensadores que proveram os elementos necessários à ciência antropológica como Confúcio, ao afirmar que “A natureza dos homens é a mesma, são seus hábitos que os mantém separados”. Franz Boas descreve as narrativas de Heródoto (484-424 a.C) aos gregos, a respeito do que havia visto em diferentes terras citando, em uma de suas observações, que os Lícios possuíam “um costume único pelo qual diferem de todas as outras nações. Tomam o nome da mãe e não do pai.” que veio a formar a categoria hoje conhecida como estrutura de parentesco matrilinear. José de Anchieta (1534-1597) observou a estrutura de parentesco patrilinear entre os Tupinambás escrevendo que “porque têm para si que o parentesco verdadeiro vem pela parte dos pais, que são agentes; e que as mães não são mais que uns sacos, em respeito aos dos pais, em que se criam as crianças, e por esta causa os filhos dos pais, posto que sejam havidos de escravas e contrárias cativas, são sempre livres e tão estimados como os outros”. Geertz escreve sobre diversos outros pesquisadores que contribuíram com esboços daquilo que formaria o atual pensamento antropológico, como Khaldun no século XIV, que elaborou a tese de que os habitantes de terras quentes são mais passionais que os de climas frios. Ou ainda Locke que pesquisou o conceito das ideias a partir das distinções geográficas. No século XVIII Rousseau, Schiller e Herder tentaram construir um esboço da história da humanidade a partir dos relatos de diversas viagens, de Marco Polo a Cook. Portanto ‘Antropologia’ poderia, introdutoriamente, ser conceituada como “o resultado da aglutinação histórica de impressões sobre a identidade do homem disperso em seus diferentes ajuntamentos”. Antropologia da Religião06 A ideologia antropológica de Tylor, entretanto, sofria forte impacto acadêmico do evolucionismo de Darwin (denominado na época de método comparativo) e tem como seu principal opositor a claras ideias de Franz Boas (1858-1949). Boas atribui à antropologia duas áreas de estudo: A reconstrução da história de povos ou regiões bem como a comparação da vida social de diferentes povos, cujo desenvolvimento segue as mesmas leis. Desenvolveu, assim, a Escola Cultural Americana defendendo que cada cultura segue seu próprio caminho em detrimento dos eventos históricos que enfrentou. Revolucionando a Antropologia da época, Boas criou escola ao mesmo tempo em que chamou-nos a atenção para a dualidade. 1.1 Determinação ambiental A determinação do ambiente na formação direta cultural do indivíduo permanece inquestionável. Tomemos, como exemplo, um bebê recém-nascido com três meses de idade, tendo nascido em uma família Tukano do Alto Rio Negro. Por algum motivo essa criança é levada para ser criada por uma família Espanhola de Barcelona. Aos 15 anos de idade esse adolescente, senão pelo aspecto físico, será um puro espanhol linguística e culturalmente. Enfrentaria todas as limitações que outro espanhol para se aculturar no universo Tukano, aprender sua língua, entender sua cosmovisão. A determinação do ambiente de fato é relevante e prioritária na formação direta do indivíduo em termos de identidade étnica e cultural. 1.2 Determinismo geográfico Apesar do determinismo geográfico ter seu fundamento bem embasado, há elementos que constroem a cultura em um determinado grupo que independe de sua regionalidade. A comprovação mais conclusiva, observada por Boas, foi o desenvolvimento dos Esquimós (Inuit) em uma mesma região dividida politicamente entre o Canadá e os Estados Unidos da América. As “escolhas” culturais decididas 07 pelo agrupamento foram extremamente distintas gerando grupos também distintos apesar de compartilharem a mesma história, região e ancestralidade. Portanto a “cultura” é um elemento muito mais dinâmico que poderia se esperar, e desta forma mais complexo de ser analisado de forma linear. A Antropologia, inicialmente, era tratada apenas como uma área de estudo dentro da História e da Filosofia. Entretanto, com o descobrimento das complexidades culturais a humanidade viu-se diante da gritante necessidade de uma área de estudo específica e subdividida ao ponto de cobrir algumas fontes de perguntas sociais. Surgiu o “estudo do homem”. Um dos fatos que despertou atenções ao redor do mundo no século XVI foi a inconcebível possibilidade de fatos análogos possam estar desassociados em sua origem. Com as viagens e “descobertas” de novos mundos e povos, os relatos rapidamente chegaram à Europa conduzindo uma série de questionamentos do que antes era tido como certo. Percebeu-se, por exemplo, que o garfo foi usado primeiramente em Fiji e tempos depois inventado na Europa sem que houvesse entre esses lugares qualquer transmissão de conhecimento. Os tesouros artísticos que chegavam do “novo mundo” ocidental possuíam tremenda semelhança com os relatados por Marco Polo no mundo oriental. O golpe final foi dado através dos relatos de grupos isolados por gerações na Polinésia, os quais desenvolveram artifícios de bronze e arpões de pesca quase idênticos aos utilizados na Roma de dois milênios atrás sem que houvesse possibilidade de transmissão histórica de conhecimento. Tornou-se necessária uma área de estudo específica do ser humano, suas interações sociais, herança histórica e identidade comunitária. Surgia a Antropologia que mais tarde viria a se desmembrar em Antropologia Aplicada, Antropologia Cultural, Etnologia, Fenomenologia e diversas outras estruturas de pesquisae conhecimento do desenvolvimento humano em seu contexto social. (Ronaldo Lidório – Capacitação Antropológica – Instituto Antropos – usado com permissão) Antropologia da Religião08 2. Definindo religião O que é religião enquanto fenômeno humano? É preciso definir e conceituar, primeiramente separando o que é a experiência religiosa propriamente dita, a religiosidade e religião no sentido mais fenomenológico para análise. 2.1 Experiência religiosa Uma boa definição passará pela experiência quanto à transcendência e imanência. Explorando, a transcendência está ligada, no seu significado mais antigo e relacionado com as questões divinas para fazer referência da relação com o divino (Deus) e tem uma importância grande para a teologia, mas também é objeto de estudo fenomenológico na antropologia. O Deus transcendente é aquele que está além dos limites cosmológicos, humanos, visíveis. O Deus imanente é aquele que está em contato com a criação, uma manifestação do divino no mundo. Esta é uma visão filosófica antiga, provavelmente vinda de Aristóteles, que entendia esse ser transcendente e imanente como princípio criado, algo parecido com uma “consciência” que está externa à realidade do mundo, do cosmos. Na concepção judaico-cristã, Deus é esse ser, transcendente e imanente que deu origem a tudo a partir do nada (criação “ex nihilo”) e que tem contato (revelação) e manifestação (presença) nesse mesmo universo criado. Sendo assim, a experiência religiosa é a conexão com esse ser transcendente e a realidade pertencente a ele. Religiões antigas definiam que a transcendência poderia dar-se através de uma “saída” da experiência corporal (transes, pensamentos, sonhos, imaginação etc.) bem como através da reflexão criativa da mente humana. Pressupõe- se aí uma “ligação” entre o ser divino e o ser humano, ligação que pode ser transcendente (aqui ligado aos processos próprios da parte imaterial do ser humano), bem como imanente (num contato direto com a divindade, tanto do ponto de vista de manifestação como de 09 “leituras culturais” ou até mesmo “leituras físicas” da presença de um ser divino dentro da própria natureza, como expressa boa parte do estoicismo e panteísmo). A experiência religiosa, enquanto na transcendência, dá respostas diversas sobre a origem da vida, sentido da existência, promove uma segurança em momentos de insegurança e dificuldade, provendo proteção e cuidado e, de certa forma, preenchendo um vazio existencial em decorrência da morte iminentemente presente (finitude humana). A ideia da morte é uma pergunta que promove uma resposta de consolo e de esperança de uma vida pós-morte, daí essa experiência transcendente estabelecer um critério para um destino final humano mais positivo, ou mesmo da necessidade humana de se crer numa vida além da morte, além desta vida humana finita. Schiavo define que “pela experiência religiosa a humanidade olha para o Transcendente como a causa da sua existência, o amparo para a sua contingência (limites) e para o seu abandono, a resposta segura para as suas interrogações e a meta para onde está caminhando” (2005, pgs. 65 e 66). Esse sentido da experiência religiosa transcendente acaba por designar também que alguém pode ter uma experiência religiosa sem mesmo que esteja em contato com um ser divino ou pertencer a uma religião. Algumas religiões orientais pressupõem este fato, pois retiram o contato com Deus na transcendência e colocam a experiência com um contato entre si e o universo vazio, ou mesmo apenas uma experiência transcendente fora do corpo, etérea, como a chamada meditação transcendental, que é mais uma introjeção para dentro de si, para o contato com o seu próprio vazio existencial. Isso tem sido muito comum nessa época de hipermodernidade ou pós-modernidade, pois a experiência religiosa (espiritualidade) tem sido cada vez mais um fator de “cura”, de ajuste, de bem estar, independente de que essa experiência seja com um ser divino. O conceito de imanência, definindo rapidamente, pressupõe a existência desse ser divino dentro do mundo, fisicamente definido. Antropologia da Religião10 As religiões antigas, como hinduísmo, definem essa imanência como sendo a presença da divindade manifestada através de sua criação, presente nela ou mesmo numa manifestação desse ser divino dentro da própria pessoa (aquele que presta culto ou busca conhecer o ser divino). O termo em si vem do latim e designa-se com algo que está dentro de si, ou dentro de algo existente. Literalmente talvez seja algo que permanece ou existe no interior. No conceito cristão, imanência tem principalmente a ver com a encarnação de Jesus Cristo - Paulo sintetiza a ideia em Filipenses: [...] Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até à morte, e morte de cruz! (Filipenses 2:5-8 - NVI). Nesse aspecto, a imanência de Deus se dá através de Jesus, que é “inserido” (encarnação) dentro da raça humana e passa a ter uma existência física, visível, como ser humano. 2.2 Religiosidade Considerada como uma expressão comum da vida a partir de pressupostos espirituais, que envolvem certamente a moral própria ou privada e tem então uma dimensão da subjetividade, individual e compartilhada. Entram então as escolhas pessoais (em relação à religião, modo de prestar culto, adoração, etc.) bem como definição e prática do que se intitula como fé. A religiosidade não é sempre subjetiva, pessoal apenas, mas pode ser também um instrumento coletivo de controle daquilo que é divino em meio a experiência humana, dando vazão e resposta para momentos de crise bem como da dificuldade na experiência religiosa transcendente. Cada vez mais, porém, o processo de religiosidade se dá na construção de uma “psicologização da religião”, na qual o bem estar e o conforto pessoal, bem como resoluções de conflitos mais imediatos, substituem uma religiosidade mais transcendente que levaria a uma preocupação mais com a finitude, morte e vida pós-morte. Na secularização da vida pós-moderna, a espiritualização, 11 portanto, a religiosidade tem sido cada vez mais forte, levando até mesmo a conceitos e técnicas médicas, comerciais e empresariais a valorizar essa forma de espiritualidade subjetiva, em que os valores são colocados sempre ao lado da vida comum, da qualidade de vida, mesmo que tudo isso nada tenha a ver com a relação com um ser divino. Práticas, crenças, conceitos, valores religiosos sempre estão em movimento de obterem novos significados, mudando muitas vezes a atribuição que se dá a ele e isso, de certa forma, tem sido utilizado como forma de controle, até mesmo de uma instrumentalização em meio ao processo religioso. Esta instrumentalização enxergamos muito em empresas que trabalham com a “espiritualidade no contexto do trabalho”. São empresas que tem trabalhado junto com funcionários na busca de uma espiritualidade no contexto do trabalho, um movimento para se trazer paz, tranquilidade, verdade, amor, não violência e tantas outras virtudes que se destacam, hoje, em funcionários, bem como em empresas que priorizam o bem comum, a autorrealização. Ao mesmo tempo, novas formas de espiritualidade/religiosidade tem surgido quase sempre místico-esotérica, que podem ser agrupadas no conceito de novas religiosidades, estas sempre misturam alguma coisa do caráter místico com práticas e valores do dia a dia, surgindo, recentemente, um movimento religioso secular, que retira de qualquer tipo de instituição a prerrogativa de ser e legislar sobre a religião. 2.3 Religião O que é religião, enquanto fenômeno humano? Uma definição mais direta de religião seria a institucionalização das experiências anteriores que falamos, tanto do ponto de vista da experiência religiosacomo da religiosidade. Segue-se também certa padronização ou mesmo uma determinação de que caminho percorrer para se chegar ao transcendente. Em relação a essa padronização ela é cultural, social, pertence a um grupo e portanto caracteriza-se por uma linguagem e estrutura simbólica. Essa organização do sagrado na religião procura dar sentido Antropologia da Religião12 à existência do ser humano, bem como oferecer lógica e coesão de pensamento, valores e ações práticas no mundo. Schiavo afirma que “Quase sempre toda religião, enquanto sistema e enquanto instituição, afirma ter uma origem sobrenatural, pretende ser a única verdadeira, se alicerça na crença em um ente superior e transcendente. Seu enfoque é sempre a divindade” (Ibid. p. 67-77). Esse conjunto de sistemas culturais, de crenças, de cosmovisão (visão sobre o mundo, cosmos) é estabelecido na religião que simbolicamente relaciona a humanidade com valores éticos e morais, bem como com sua espiritualidade. Muitas vezes é utilizada como sinônimo de fé ou mesmo de um sistema de crenças, porém, quando se pensa em religião está pressuposto um aspecto que é público, comunitário. Na sua grande maioria, instituições religiosas possuem seus rituais, seu clero (incluindo aí hierarquias), pressupõe uma parte dos fiéis como sendo leigos, que não fazem parte do clero, há reuniões comunitárias regulares que tem como finalidade não só a adoração do ser divino, culto, mas inclui instrução, comemorações, festivais, festas, iniciações em diversos segmentos, tanto de idade como de prática da fé professada, podendo passar também por serviços na hora da morte, como funerais e celebrações, casamento, música (louvor ou ensino) e tantos outros aspectos variados da cultura. A religião é definida culturalmente e socialmente principalmente por causa do ajuntamento, da sua organização, da sua institucionalização, pois prescinde dela para continuar existindo. Sua manifestação é grupal, coletiva, portanto religião não pode ser vista como um fenômeno puramente individual (“cada um tem a sua”), mas como um processo sociocultural, que pertence a certo grupo de pessoas e crenças que incluem aí pensamentos comuns entre os praticantes do grupo religioso. Nesse aspecto é fácil então de entender as muitas divisões religiosas que encontramos em todos os seguimentos, pois a partir de conceitos e práticas comuns os seres humanos se agrupam, procurando sempre o que está mais perto das suas próprias convicções espirituais e religiosas. 13 3. Definindo Antropologia da Religião? Primeiramente, não é uma análise de cada religião, mas do ser humano em meio à religião, religiosidade e experiência religiosa. A ideia seria de procurar entender o sentido da experiência religiosa para esse ser humano. A palavra religião é muitas vezes usada como sinônimo de fé ou sistema de crença, mas a religião difere da crença privada na medida em que tem um aspecto público. A maioria das religiões têm comportamentos organizados, incluindo hierarquias clericais, uma definição do que constitui a adesão ou filiação, congregações de leigos, reuniões regulares ou serviços para fins de veneração ou adoração de uma divindade ou para a oração, lugares (naturais ou arquitetônicos) e/ ou escrituras sagradas para seus praticantes. A prática de uma religião pode também incluir sermões, comemoração das atividades de um deus ou deuses, sacrifícios, festivais, festas, transe, iniciações, serviços funerários, serviços matrimoniais, meditação, música, arte, dança, ou outros aspectos religiosos da cultura humana. Como bem fala Oliveira: A Antropologia da Religião, partindo de uma reflexão sobre a humanidade e sobre a cultura como realidades complexas, busca compreender como o ser humano foi e continua sendo visto por ele mesmo e por uma das suas mais significativas e originais manifestações, a religião. Não se trata de fazer uma análise de cada uma das religiões, mesmo aquelas mais conhecidas. Na Antropologia da Religião faz-se uma análise científica do fenômeno religioso, enquanto experiência antropológica, isto é, do ser humano (2005, p. 4). Nesse aspecto, não trata apenas de uma significativa observação das práticas religiosas, mas de obter, a partir da observação, um estrato, uma explicação, uma interpretação, portanto, não se quer entender as causas simplesmente, mas sim apreender o significado dessa experiência na vida e cotidiano humano. Creio que desta forma podemos ir para as análises das escolas antropológicas e dos fenômenos religiosos, na próxima unidade. Antropologia da Religião14 Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 15 Antropologia da Religião Unidade - 02 A teoria antropológica e o fenômeno religioso Texto conjunto: Prof. Gedeon J Lidório Jr e Prof. Ronaldo A Lidório A fenomenologia pode ser uma área de estudo de diversas ciências atrelada sempre a uma visão de mundo a partir dos fenômenos. Muito tem se estudado sobre fenomenologia religiosa, porém o foco que se dá, quase sempre, pelas sociologias da religião é o estudo do fenômeno como sendo uma produção social, ou seja, melhor explicando, a sociedade e sua produção religiosa é o objeto do estudo e não os fenômenos religiosos em si, os próprios elementos religiosos. Cacio Silva argumenta acertadamente, citando Filorano que: A sociologia da religião não coloca a religião no centro dos seus interesses; antes fixa a atenção no fato religioso entendido como ‘produto social’ ou como fruto de uma criação coletiva. Assim, o objetivo da sociologia da religião é o estudo das funções sociais da religião (FILORANO apud SILVA, 2008, p.21). Ele ainda mostra que em Durkhein o objetivo da experiência religiosa é a sociedade. Se a religião gerou tudo o que existe de essencial na sociedade, é porque a ideia da sociedade é a alma da religião. As forças religiosas são, portanto, forças humanas, forças morais (DURKHEIN apud SILVA, 2008, p.21). Olhar para a fenomenologia, não é simplesmente analisar fatos ocorridos, não é simplesmente fazer uma análise da história. Isso se dá com historiadores, que traçam as linhas de vida de sociedade a partir dos fatos, interligando-os em uma análise factual. O fenomenólogo procura não somente a narração dosfatos, mas sim o significado da religiosidade humana. A pergunta chave que a fenomenologia religiosa faz traz quatro situações, utilizando visões diferentes para tentar entender a religiosidade humana: o olhar para a 1) dimensão histórica, gera a pergunta chave “quem somos nós?” 2) na dimensão ética, “que valores Antropologia da Religião16 nos definem?”, na 3) dimensão étnica, “como nos organizamos socialmente?” e na 4) dimensão fenomenológica estudaremos “que forças dominam em nosso meio?”. Vamos nos ater agora a última dimensão, que interessa mais ao nosso estudo. Laburth-Tolra e Warnier em “Etnologia, Antropologia”, no capítulo sete, tratam do fenômeno religioso e dizem que “a religião parece ser a mais antiga dessas manifestações do pensamento”. Para eles, o fenômeno religioso consiste em primeiro lugar em crenças, e o que caracteriza estas crenças é o fato de se postular a existência de um meio invisível em pé de igualdade com o visível, mas que não pode ser simplesmente evidenciado como a matéria. O missiólogo terá de estudar todo o acervo mítico do povo alvo para perceber como tal povo entende este mundo invisível com o qual convive. Se já estamos certos da universalidade do sentimento religioso, agora precisamos fazer a leitura fenomenológica. Para isso, é necessário identificar e também interpretar os elementos que fazem parte do sagrado, através de crenças, mitos e ritos. O estudo da fenomenologia religiosa será feito a partir da antropologia e não da sociologia, por isso nos ateremos aos fatos religiosos e não a sua construção social apenas. Muito do que estudamos tem raízes bem estendidas, na época e nas sociedades, por isso as sociedades tribais mais primitivas serão alvo de verificação, pois é de lá que extraímos as formulações dos fenômenos religiosos que seguem o caminho até a sociedade humana ocidental, urbanizada e pluralizada. Gostaria de chamar sua atenção para este ponto. A importância de identificação e interpretação. Uma mera identificação (com consequente descrição) não passará de um capítulo etnográfico. Uma interpretação sem a devida identificação incorrerá em erros grosseiros do elemento a ser estudado. É necessário identificarmos os elementos chaves que compõe a estrutura fundamental do sagrado (as forças que dominam em nosso meio) e as interpretarmos à luz da compreensão do grupo, de forma êmica. Designamos como “espíritos” todos os seres que nas cosmovisões tomam significados distintos do humano e que se mantêm invisíveis, 17 ou seja, “... uma presença oculta ou invisível que se manifesta por uma atividade”. Os espíritos compreendidos como malignos podem ser exorcizados enquanto os tidos como benéficos são adorcisados (chamados em vez de repelidos). Os xamãs (ou outras ‘entidades’ de comunicação com o mundo espiritual) podem utilizar do transe para com eles interagir, que é “... sair de si, muitas vezes por uma elevação ao mundo de cima,” caracterizando a crença no mundo invisível com sentido espacial, onde há lugares que podem ser visitados. “Seja como for, o mundo invisível é concebido como o verdadeiro mundo do qual o mundo visível é somente um fenômeno ou aparência” . Os feiticeiros poderão se servir de animais para caçarem por eles (nagualismo) ou de animais mortos que os ajudarão. Os espíritos dos ancestrais é que mais podem influir no mundo físico, normalmente, influenciando nas decisões e ações da sociedade. Ainda pensando, de forma geral e não categorizada, nas forças que dominam em nosso meio, segundo Laburth-Tolra e Warnier concebem-se grande número de duendes, espectros, espantalhos que povoam a floresta, anões que vivem nos subsolos, gênios da mata, do rio etc. O papel dos espíritos ancestrais é citado como manismo, e se refere aos espíritos dos mortos que podem ser múltiplos em um só corpo. Também estaremos neste capítulo observando os mitos, ou “relatos fundadores, histórias de deuses ou de coisas, que fornecem um conjunto de representações das relações do mundo e da humanidade com os seres invisíveis”. Não devem ser confundidos com fábulas, que poderão ser até mesmo mitos que morreram, pela transformação da cultura por uma evolução ou revolução da sociedade deixando de ter o sentido fundador de antigamente. No estudo fenomenológico haverá de se prestar atenção também aos ritos, que podem ser sacros ou profanos, sendo tal percepção relevante para a comunicação do evangelho. Segundo Laburth-Tolra e Warnier, Mauss divide os mitos em prescritivos e proibitivos. Acrescenta ainda os de controle, com seus interditos, e os comemorativos ou de celebrações. Os mais importantes são os de passagem e os de sacrifício. Também é preciso distinguir rito de culto, pois culto se refere a uma homenagem prestada a uma divindade e “as cerimônias do culto compõem-se de ritos, mas nem todos os ritos são cultuais”. Alguns Antropologia da Religião18 ritos são de certa forma repetidos em várias culturas, como o rito do nascimento, da iniciação, o casamento, a morte, a última passagem e assim por diante (LIDÓRIO, 2008, pg. 68). Aqui poderemos utilizar as categorizações que muito nos ajudarão a compreender os entrelaces das forças supra-humanas dominantes em um grupo ou sociedade. É preciso inicialmente separar os fenômenos que têm micro relevância e fenômenos locais com relevância em um macro nível, por exemplo, regionalmente. A antropologia moderna, portanto, procura levar o pesquisador a ter consciência de que a neutralidade de sua atuação é primordial, deixando de lado os conceitos próprios de sua cultura para a devida compreensão da ideia por trás do ato, de acordo com a cosmovisão local. Entretanto nos propomos a unificar as categorizações para fins de estudo o que, esperamos, pode nos levar a compreender os principais elementos do invisível em uma sociedade; destas forças não vistas que dominam o meio. Elementos fenomenológicos gerais Permita-me inicialmente citar alguns conceitos que nos ajudarão nesta introdução fenomenológica. - Totemismo: É um conjunto de ideias e práticas baseadas na crença da existência de um parentesco místico entre seres humanos e objetos naturais, como animais e plantas. - Veneração a ancestrais: Baseia-se na convicção de que os ancestrais, pertencentes à mesma família ou linhagem, estão em um plano superior com capacidade para influenciar seus familiares no aquém. Demandam assim sacrifícios, reverência e, por vezes, adoração. - Fetichismo: É a expressão do animismo através da ‘localização’ dos centros de poder espiritual que pode estar presente em pedras, árvores ou mesmo objetos fabricados. - Animismo: Convicção que o mundo visível é controlado pelo mundo invisível. Do latim ‘anima’, que dá vida. - Encarnação: crença de que espíritos se mantêm vivos através da utilização de diferentes corpos em diferentes gerações. 19 - Deuses e deusas: espíritos superiores que povoam o mundo do além e mantém controle sobre segmentos do universo e da vida. - Deus: normalmente ligado ao ser criador, que pode ou não reger o universo. Em boa parte das culturas o ser criador é o ser distante, sem relacionamento com sua criação. - Espíritos a-éticos: seres do além que não possuem clara orientação moral de conduta. Podem ser bons ou maus a depender do momento, paixão ou objetivo. - Espíritos éticos: bons ou maus, anjos ou demônios. Portanto, as questões determinantes para a compreensão geral de uma cultura são a Origem (quem somos nós); os Valores (como nós pensamos); a Cultura (como vive o nosso grupo) e a Religião (que forças dominam em nosso meio). Antes de seguirmos adiante no estudo fenomenológico, façamos um exercício. Identifique no conto a seguir a presença de ideias relativas às quatro dimensões estudadas. Enumere-as citando as frases onde se encontram. Esse é um exercício para te ajudar a compreender o que está estudando. Conto Fulani Na tradição oral sobre a criação dos Fulanis no noroeste africano podemosencontrar fragmentos de todos estes elementos, tão importantes a nós para uma compreensão geral da cultural alvo. Convido você a estudar esta narrativa abaixo com cuidado, fazendo as anotações em todas as quatro áreas. “No início dos tempos havia uma família. Esta família vivia em uma ilha enorme com grandes árvores, muito arroz e caju. Eram os únicos que existiam e junto a eles dois deuses guerreavam, pois cada um desejava aquela ilha, e a guerra pairava sobre as suas cabeças. Um dos deuses era bondoso (nós nos esquecemos do seu nome) e outro era mal (chamava-se Ira). Os dois desceram na ilha certo dia e falaram: “apertem o braço” (escolham) com quem desejam ficar: “somente com um de nós”. Entretanto naquela noite Ira desceu sozinho e, escondido na ilha, falou-lhes que eles precisavam de uma ilha maior. No dia seguinte, pela manhã escolheram a Ira, e o deus bom foi embora para Antropologia da Religião20 sua casa e jamais foi visto novamente. Então, depois de pouco tempo, descobriram que Ira era o próprio Mal”. Conseguiu fazer o exercício? Encontrou os elementos? Creio que esse breve exercício deixa claro que mesmo em um sucinto trecho ou conto podemos encontrar ideias e comprovação de ideias fundamentais para a compreensão da cosmovisão do grupo que estudamos. Em cada história, mito, música, conto ou narrativa podemos identificar elementos valiosos que nos levem a perceber verdades referentes à história, aos valores, o agrupamento e as forças espirituais que definem o presente grupo estudado. Essa realidade se aplica concretamente para a nossa sociedade ocidental e podemos, a partir de cada manifestação cultural, histórica, propaganda, jornais, revistas, livros etc. Ler e identificar elementos valiosos que nos ajudarão a perceber história, valores, o grupo e as forças espirituais que dominam nossa realidade. Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 21 Antropologia da Religião Unidade - 03 As “escolas antropológicas” e o fenômeno religioso A antropologia tem suas vertentes ou mesmo suas chaves para interpretação cultural e olhando para o fenômeno religioso existem algumas chaves hermenêuticas que nos darão subsídio para uma leitura o mais próximo possível da realidade. Piazza enumera algumas delas: 1) chave psicológica; 2) chave sociológica; 3) chave racional; 4) chave psiquiátrica; 5) chave cultural; 6) chave estrutural e 7) chave existencial (1983, p. 271-272). Ele também fala sobre as “escolas” que interpretam a religião apresentando-as como: 1. Evemeroísta ou racionalista 2. Mitológica da natureza 3. Dos ciclos culturais (kulturkreiss) 4. Histórico-cultural 5. Morfológico-cultural 6. Funcional 7. Fenomenológica 8. Antropológica O texto de Piazza do livro Fenomenologia Religiosa, que é material de apoio desta unidade, os ajudará a entender concretamente o que ele propõe com estas designações. Iremos nos ater mais a duas escolas: fenomenológica e antropológica. A respeito das metodologias antropológicas para o estudo cultural: Os objetivos da Antropologia e das dificuldades dos métodos. Quanto aos objetivos da Antropologia, Boas tenta responder em sua palestra pronunciada em 1932: “Talvez possamos definir melhor o nosso objetivo como uma tentativa de compreender os passos pelos quais o homem tornou-se aquilo que é biológica, psicológica e culturalmente.” Esse autor continua nos mostrando quais os Antropologia da Religião22 dados principais que precisamos captar tanto física, psicológica e culturalmente. Ele continua a afirmar que O método histórico atingiu uma base mais sólida ao abandonar o principio enganoso de supor conexões onde quer que se encontrem similaridades culturais. O método comparativo, não obstante tudo o que se vem escrevendo e dizendo em seu louvor, tem sido notavelmente estéril em relação a resultados definitivos. Acredito que ele não produzirá frutos enquanto não renunciarmos ao vão propósito de construir uma história sistemática uniforme da evolução da cultura e enquanto não começarmos a fazer nossas comparações sobre bases mais sólidas. Até agora temos nos divertido demais com devaneios mais ou menos engenhosos (LIDÓRIO, 2008). O método mais utilizado na antropologia para o estudo cultural é o método de observação participante (que será objeto de estudo mais profundo em outra unidade), cuja técnica é também denominada de observação participativa. Consiste, resumidamente, em: a) Definição de cenário de estudo e tema; b) Registro de documentação já existente sobre o cenário ou tema de estudo (mapas, dados econômicos, gerais, estatísticos, dados públicos, particulares, pesquisas já realizadas, etc); c) Desenvolvimento de pastas com os principais temas, observados, a serem estudados; d) Registro dos fatos sociais através da observação participante desenvolvendo as seguintes atividades: - descrição cartográfica da comunidade, habitações, lugares sagrados ou religiosos, públicos ou privado; - descrição genealógica (parentesco); - registro e descrição de entrevistas informais; - registro através de fotos e/ou filmagens; - registro de breves biografias; - registro (e gravação) de mitos, lendas e contos; 23 - levantamento de dados estatísticos atualizados quanto à população. e) A participação se dá através da preparação de um cenário para o estudo e compreensão de um fato social. - escolher o fato social a ser estudado; - planejar o momento e cenário quando se dará a observação; - interagir com pessoas locais durante a observação do fato social a fim de recolher impressões, comentários e descrições; - participar do fato social, quando possível e bem-vindo. Comparando algumas descrições de antropólogos e fenomenólogos pode-se perceber, em um exemplo isolado de análise antropológica, a fraqueza do método aplicado à divisão de clãs em sociedades totêmicas. Se por um lado se detalhou a criação de clãs entre os alguns grupos a partir de agremiações ao redor de um valor totêmico, por outro lado se encontrou criações de clãs por divisões funcionais. O método possui grave influência nas conclusões do estudo. Evans-Pritchard nos fala a respeito do uso de máscaras. Apesar de ser um rito encontrado em diversas etnias com um mesmo pano de fundo religioso, animista, por exemplo, as origens provam serem diversas e distintas. Alguns grupos utilizam máscaras a fim de enganar os espíritos quanto à identidade daqueles que as usam. Outros as utilizam personificando um espírito e desta forma o mascarado afugenta outros espíritos. Algumas máscaras são comemorativas e isentas de valor religioso, outras ainda puramente teatrais ou mitológicas. Desta forma podemos concluir que o método comparativo possui a fraqueza da generalização de valores. Fenômenos semelhantes possuem, em diversos casos, origens distintas e, portanto, trazem em si verdades distintas. Cada caso precisa ser analisado separadamente, unicamente, à procura do elemento factual ali presente (LIDÓRIO, 2008). Há diversos métodos historicamente usados para o estudo cultural que podemos dividir, em linhas gerais, em sistema adaptativo e teorias idealistas. Antropologia da Religião24 Sistema adaptativo e teorias idealistasO sistema adaptativo é aquele no qual as culturas são sistemas que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos, incluindo organização econômica, agrupamento social, organização política, crenças e práticas religiosas. Nesse sentido há uma tendência para descrever a cultura como a ferramenta usada pela sociedade para manter sua adaptação à natureza, isto é, ao ambiente no qual todos estão inseridos. Essa ferramenta compreende as concretas, físicas, mas também habilidades e formulários da organização. As chamadas teorias idealistas de cultura, por sua vez, se dividem em diferentes abordagens. A análise componencial é a primeira abordagem inspirada na linguística americana. É vista como um sistema cognitivo, ou seja, a cultura é aqui o resultado de modelos criados pelos membros de uma comunidade a partir de seu próprio universo, isto é, a cultura é aprendida. Por exemplo, o padrão de beleza estabelecido. O belo pode ser o alto, ou o magro, ou o gordo. Assim, cultura é um sistema de conhecimento e consiste em tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou acreditar para apoderar de maneira aceitável dentro de sua sociedade. A ideia, nesse sentido, é que a cultura pode ser limitada aos aspectos comunicativos e significativos da vida social. Mais recentemente, a influência de outras ciências cognitivamente orientadas, como a linguística e psicologia tendem conduzir a um interesse aumentado nas conexões entre a ‘sociedade’ e a ‘cultura’, entre o interativo-material e o cognitivo-emocional, entre o que os povos fazem e o que pensam e dizem sobre eles” (LIDORIO, 2008). O problema que aqui podemos encontrar é que, se cultura for um fenômeno cognitivo estará no mesmo patamar da linguagem, que é aprendida e observável. Este método é falho, porque nem tudo é aprendido. O sentido moral existente no homem de forma natural, mesmo sem ensino objetivo, há de existir e ser usado como critério para escolhas e decisões. 25 A segunda abordagem das teorias idealistas de cultura diz respeito aos sistemas estruturais, cujo promotor é Claude Lévi-Strauss, o qual define cultura como “um sistema simbólico que é a criação acumulativa da mente humana... mito, arte, parentesco e linguagem...” (apud LIDÓRIO, 2008). Ele aqui formula a teoria (amplamente aceita em seu momento no Brasil) da unidade psíquica da humanidade, o que explicaria os paralelismos culturais, pois assim o pensamento humano estaria submetido a regras inconscientes, ou seja, um conjunto de princípios que controlam as manifestações empíricas de um grupo. “É antes de tudo um método de investigação daquilo que pode ser o objeto do discurso... consiste em construir um corpus (mitológico, por exemplo) tão completo quanto possível” (idem). Como exemplo podemos pensar nos termos deus em algumas etnias africanas com etnografias escritas que sugerem ideias comuns em povos que nunca poderiam ter se comunicado. Nas histórias sobre Amowia (O doador do sol) da cultura Ewe (Africa), percebe-se que este povo habita uma área frequentemente nublada (à margem do Rio Volta) e o sol é um elemento necessário para as jornadas de pesca. Já Amosu (O doador da chuva) da cultural Frafra (Africa) que habita o norte árido de Gana está ligado à necessidade do povo de água para o plantio e subsistência. Muitos outros termos para deus e deuses indicam a ligação entre a necessidade objetiva da sociedade e sua religião. Para Lévi-Strauss é a confirmação de uma união psíquica universal. Sistema simbólico O Sistema simbólico constitui a última abordagem, desenvolvido nos Estados Unidos da América, especialmente por Geertz e Schneider. Assim, a cultura deve ser considerada “não um complexo de comportamentos concretos, mas um conjunto de mecanismos de controle, planos, receitas, regras, instruções para governar o comportamento”. Geertz explica que todo homem é geneticamente capaz para receber um programa, e este programa é a cultura, tornando-se assim uma teoria, semelhante, neste aspecto, a Lévi- Strauss, de unidade da espécie (LIDORIO, 2008). Para tal, Geertz afirma que “todos nós nascemos com o Antropologia da Religião26 equipamento para vivermos mil vidas, mas ao fim vivemos apenas uma”, ou seja, qualquer criança poderia se adaptar em 1.000 diferentes culturas se para isso dispusesse de tempo e espaço, mas gasta sua existência em uma fatalidade unitária. Para comprovar sua teoria ele afirma que todos nós sabemos o que fazer em determinadas situações, apesar de não sabermos prever o que iremos fazer. A cultura é, assim, um código de símbolos partilhados pelos membros de uma sociedade. Em outras palavras, no que mais nos interessa, o homem dispõe em si de elementos universais e comuns a todos (LIDORIO, 2008). Antropologia e pós-modernidade A sociedade brasileira, alvo de nossa pesquisa passa por um processo de urbanização (comum ao mundo inteiro). De acordo com o IBGE, em 2006. O Brasil tinha 81% da população urbana e 19 % rural, invertendo o quadro apresentado, o que é uma tendência mundial – porém, esse processo, mesmo que aparentemente incontestável é culturalmente difícil de prever o resultado perante as concepções e vivência social nas cidades –, o que nitidamente se nota é que o Brasil urbano tem características rurais em sua formação cultural, religiosa e social. Segundo o antropólogo brasileiro Ronaldo Lidório, a sociedade brasileira é marcada fortemente pela “presença de simbolismo” e que “dificilmente observam (os brasileiros) um valor a partir dele mesmo, mas sim a partir dos fatos da vida” (Lidório: 2008) e, assim, nos dá a percepção de que mesmo urbanos ainda somos uma sociedade com forte tendência a socializações nos moldes mais rurais. Segmentos culturais se seguem desde os tempos de sua formação – tudo isso está em processo e, com certeza, quanto mais instruída a população, menos simbólico e simples ela é; isso tem se sentido mais em alguns lugares do país que em outros, mas é perceptível. O Referencial teórico (passado) traz sobre o ser humano moderno uma agonia – tudo é muito antigo e “démodé” A geração que experimenta o virtual não quer saber do passado, projeta-se apenas para o futuro, nem o presente é mais real que o futuro. Os marcos e vivência estabelecidos são normas de conduta a serem quebradas, portanto, não tem valor prático, mas apenas é um referencial de como 27 já foram as coisas. A Exigência social (hoje) é tão diversa e difusa como luzes da aurora boreal. O estabelecido é o “não estabelecimento” de nada que se imponha, que se exija, que se espere. Não devemos olhar para o passado, nem para o presente, como um tempo que tenha a dizer ou ensinar-nos alguma coisa, mas sim apenas deve conscientizar-se que isso faz parte de nossa vida e que, portanto, é um gerador do futuro – a Despersonificação processual, no qual inauguramos a era do RFID (Radio Frequency Identification – “Identificação por rádio frequência”) em que um chip implantado poderá fornecer identificação, localização, monitoramento, nos dando a nítida sensação de que o termo aldeia global faz cada vez mais sentido e o sentimento isolacionista que movimenta o coração do homem em busca de felicidade pessoal tem seus dias contados, sendo substituído pela necessidade corporativa. O ser humano, conquanto já na sua atitude pós-moderna, inclui-se numa barbárie de pensamentos soltos, desconexos e sem estrutura, que torna difícil a vida daqueles que pretendem instruir seus semelhantes em caminhos que devem ser trilhados, utilizando para isso experiência ou mesmo contos e fábulas. C S Lewis, apesar de não pertencer à pós-modernidade, é um dos maiores escritores cristãos e nos leva a um mundo criado por sua imaginação, Nárnia, onde a analogia é a demonstração da verdade como princípio de vida. O conceito sobre pós-modernidade de Ernest Gellner mostra que: O pós-modernismo é um movimento contemporâneo. É forte e está na moda. E, sobretudo, não é completamenteclaro o que diabo ele é. Na verdade, a claridade não se encontra entre os seus principais atributos. Ele não apenas falha em praticar a claridade mas em ocasiões até a repudia abertamente... A influência do movimento pode ser discernida na Antropologia, nos estudos literários, filosofia... As noções de que tudo é um “texto”, que o material básico de textos, sociedades e quase tudo é significado, que significados estão aí para serem descodificados ou “desconstruídos”, que a noção de realidade objetiva é suspeita - tudo isto parece ser parte da atmosfera, ou nevoeiro, no qual o pós-modernismo floresce, ou que o pós-modernismo ajuda a espalhar. O pós-modernismo parece ser claramente favorável Antropologia da Religião28 ao relativismo, tanto quanto ele é capaz de claridade alguma, e hostil à ideia de uma verdade única, exclusiva, objetiva, externa ou transcendente. A verdade é ilusiva, polimorfa, íntima, subjetiva... e provavelmente algumas outras coisas também. Simples é que ela não é... Tudo é significado e significado é tudo e a hermenêutica o seu profeta. Qualquer coisa que seja, é feita pelo significado conferido a ela (GELLNER, 1992). Subjetividade e relativismo cultural A subjetividade tomou conta de nossa vida; retirou dela todo critério objetivo; mais que isso, ainda arrancou de nossa vida o sonho, a poesia, a contemplação. O significado, ou o resultado da coisa estabelece uma cortina atemporal que nos leva a redefinir a própria história e vida: resultados são cultuados, mas os valores que os geraram podem ser mascarados e assim, a produção de bens e serviços (em larga ou pequena escala) passou a ser a tecla que move a comunidade, mesmo que para isso sacrifica-se a simplicidade da vida diária (tudo é muito complexo, desde o acordar com o som de acordes polifônicos do celular até a estrutura financeira dos investimentos na bolsa!); pelos objetivos traçados o ser humano passa, hoje, mais tempo na produção de sua vida do que no tempo gasto em viver mesmo e, por isso, o que se perde são os relacionamentos, eles se tornam superficiais – conhecemos mais pessoas menos profundamente. Com tudo isso, há um grande crescimento de ansiedade que gera depressão e várias outras formas de psiquismo. Apesar de entendermos que cultura, principalmente a brasileira, é feita, ou foi formada a partir de muitas fontes, várias influências e grande parte da vivência do povo brasileiro, devemos também reconhecer que o relativismo moral (cultural?) tem se fincado por causa das “leis” criadas nesta própria vivência. Não há de se entender a moralidade ou a cultura de forma relativa, ou seja, como se o bem ou o mal fossem apenas o socialmente aprovados ou negados em cada cultura, pois assim teremos dificuldade em contestar o que se aprova e jamais poderia se questionar qualquer valor cultural. Algumas atitudes, mesmo que socialmente aprovadas não são práticas desejáveis em qualquer sociedade – o fato do povo brasileiro 29 valorizar os relacionamentos mais que os valores que seguem e mudá-los de acordo com as necessidades relacionais que tem inferem diretamente neste conceito do relativismo cultural e, assim, podemos (e devemos!) questionar o fato de que a “vantagem deve estar presente em todos os resultados dos meus atos” – devo levar vantagem em tudo. Há uma grande imposição em “aceitarmos” como real, moral e verdadeiro, aquilo que a “maioria” considera. Creio que nisso reside uma força absolutamente letal para nossa sociedade, pois é gerada a partir de uma imposição e não da naturalidade objetiva da análise e re- aprendizado dos fatos. Questões complexas passariam por este viés – intolerância, gênero, sexualidade, racismo. Não se deverá então questionar valores que levam por exemplo, ao racismo, pois a sociedade em seu agir, aprovando esta prática, seria considerada como boa e aceitável. Mesmo que se tente separar o relativismo cultural do relativismo moral é-nos impossível separar as consequências de tal subjetividade em nossa cultura. O relativismo e a subjetividade, somados aos padrões hermenêuticos da pós-modernidade causa no presente uma instabilidade cultural, na qual a própria coerência social passa a ser difusa. O ser humano, e caminhando na mesma direção geral a passos largos, o ser humano brasileiro, estabelece a cada dia o reinado da sua própria categorização e individualismo, decidindo de forma autônoma e solitária o que aceita como “padrão” ou “norma” ética/moral de conduta cultural e assim vivemos uma época da quebra dos paradigmas, não para substituí-los de forma analisada, mas para uma desconstrução de qualquer ilusão dogmática da verdade: é o império dos sentidos, das necessidades, do clientelismo, da mordaça em prol do ganho, da negociação com padrões estabelecidos para quebrar regras que me impedem de ganhar, de produzir, de estar no topo, de ser beneficiado. Os desafios sociais que surgem a partir desta realidade são grandes, pois o corporativismo toma conta da vida em sociedade – não mais nos vemos como auxílio para o outro, mas vemos no outro uma oportunidade para alavancarmos nossa subida e permanência. Antropologia da Religião30 Anotações __________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ _______________________________________________________ 31 Antropologia da Religião Unidade - 04 Etnografia e Etnologia 1. Etnografia A palavra etnografia vem do grego έθνος, ethno - nação, povo e γράφειν, graphein - escrever. É então a “ciência das etnias” (povos, nações). Pretende ser então a ciência que trata da questão da análise e coleta de dados sobre os povos que existem na terra. É o estudo descritivo da cultura dos povos. Estuda a sua língua, seus hábitos, sua religião, crenças, histórias fundantes etc. Como tal, pretende estudar e revelar sobre os costumes, as tradições e crenças de um determinado recorte - uma nação, um grupo, um clã, uma tribo (seja urbana ou não). O ser humano em sua cultura, imerso nela, é o objeto principal de pesquisa da abordagem antropológica. Laplatine afirma que esta base vem da ideia de uma “observação direta dos comportamentos sociais a partir de uma relação humana” (LAPLANTINE, 1988, p.25). Sendo a etnografia a descrição destas observações, descrevendo pessoas, perfis humanos e sociedades, ela lida com o coletivo eexamina de perto os comportamentos, as relações, tudo aquilo que é produzido, as crenças do agrupamento e suas manifestações socioculturais e religiosas. Novamente Laplatine fala que “o etnógrafo é aquele que deve ser capaz de viver nele mesmo a tendência principal da cultura que estuda” (1988, p.27). A etnografia é entendida como um ramo da antropologia, que coleta e acumula conhecimento sobre realidades, estas ditas sociais, culturais e aqui nesse nosso caso também religiosas, não como puro fruto do movimento social, mas a partir do estudo dos fenômenos. É distinta, porém, da etnologia que se ocupa basicamente com a evolução da raça humana ao longo da vida bem como da comparação entre culturas humanas. Pode-se dizer que a etnografia é definida como uma teoria da descrição, enquanto a etnologia é considerada como teoria da comparação. Antropologia da Religião32 Magnani afirma que cabe a etnografia fazer esta análise: […] o que se propõe é um olhar de perto e de dentro, mas a partir dos arranjos dos próprios atores sociais, ou seja, das formas por meio das quais eles se avêm para transitar pela cidade, usufruir seus serviços, utilizar seus equipamentos, estabelecer encontros e trocas nas mais diferentes esferas – religiosidade, trabalho, lazer, cultura, participação política ou associativa etc. Esta estratégia supõe um investimento em ambos os polos da relação: de um lado, sobre os atores sociais, o grupo e a prática que estão sendo estudados e, de outro, a paisagem em que essa prática se desenvolve, entendida não como mero cenário, mas parte constitutiva do recorte de análise. É o que caracteriza o enfoque da antropologia urbana, diferenciando-o da abordagem de outras disciplinas e até mesmo de outras opções no interior da antropologia. (MAGNANI, 2002, p. 18). Também Lévi-Strauss fala sobre a importância dessa área de pesquisa: É por uma razão muito profunda, que se prende à própria natureza da disciplina e ao caráter distintivo de seu objeto, que o antropólogo necessita da experiência do campo. Para ele, ela não é nem um objetivo de sua profissão, nem um remate de sua cultura, nem uma aprendizagem técnica. Representa um momento crucial de sua educação, antes do qual ele poderá possuir conhecimentos descontínuos que jamais formarão um todo, e após o qual, somente, estes conhecimentos se “prenderão” num conjunto orgânico e adquirirão um sentido que lhes faltava anteriormente. (Lévi-Strauss, 1991, p. 415-416). Nos fins do século XIX, entrando pelo século XX, os antropólogos começam a usar o método da etnografia para que se produza conhecimento e este seja efetivo em meio aos ambientes humanos de produção, crenças e valores. Bronislaw Malinowski e A. R. Radcliffe-Brown são os representantes da escola britânica e estão bastante interessados em analisar e estudar as relações institucionais duráveis. Da escola norte-americana, Franz Boas é que se destaca; ele faz pesquisa principalmente com os indígenas americanos, pois a relação e modo de vida dos nativos americanos foi 33 totalmente modifi cada da maneira tradicional para a quase perda total da identidade. O método etnográfi co é baseado na pesquisa de campo, logicamente, isso implica no seguinte: ele é personalizado ou nomeado a partir do objeto de estudo; ele deve ser indutivo, pois há uma grande possibilidade de acúmulo de informações e outro grande quesito tem a ver com a dialogicidade do método, porque em meio a pesquisa há uma interação entre o objeto e o pesquisador e esse, o objeto, pode responder e interpelar sobre as coisas e não apenas estar lá parado. Na busca de um relato completo, o melhor possível, ele se torna integral (ou holístico). As etapas de uma boa pesquisa etnográfi ca são análise da história, observação participante (ou participativa) e a utilização de questionários e entrevistas. Nenhum destes materiais, por si só, é capaz de nos dar um retrato inteiro da comunidade que pesquisamos, mas os três devem caminhar sempre juntos. Abordagem ANTROPOS Ronaldo Lidório, conhecido antropólogo e missionário brasileiro, faz a partir de sua experiência uma metodologia de análise cultural que muito nos interessa aqui em nosso curso. É a abordagem ANTROPOS (denominada por ele em seus materiais). Antropos é uma abordagem de pesquisa que utiliza a etnografi a em cerca de 70% de sua formulação, a etnologia em cerca de 20% e a fenomenologia em cerca de 10%. Esta abordagem poderá guiá-lo através de uma pesquisa ordenada de assuntos, selecionados, que possuirão fortes implicações quando no momento da apresentação do evangelho em determinada cultura. Você encontrará um método de Antropologia da Religião34 pesquisa sociocultural direcionado especificamente para contextos urbanos. Chamamos tal método de pesquisa Urbanos. Como ponto fraco, promoverá menos definições acadêmicas segmentadas, porém contribuirá para a compreensão geral do grupo ou fenômeno analisado e proverá instrumentos que poderão ser utili- zados pelo acadêmico bem como pelo prático. Optamos por estudar quatro dimensões para a compreensão de uma cultura, etnográfica e etnologicamente. As dimensões que analisaremos aqui são histórica, ética, étnica e fenomenológica. A histórica tentará responder à pergunta: quem somos nós? A ética tratará do questionamento: quais são nossos valores? A étnica irá responder: como nos organizamos socialmente? E a fenomenológica tentará, de forma incipiente, nos guiar na pergunta: quais são as forças que dominam em nosso meio? Em meio a tanta coisa, ouso dizer que, muitas vezes, na antropologia da religião, o teólogo deve tomar o lugar do antropólogo, pois há coisas que este não saberá explicar ou mesmo vivenciar. Bem afirma isso Evans-Pritchard, num estudo sobre a religião Nuer, de um povo no antigo Sudão: O que é essa experiência o antropólogo não pode saber com certeza. Experiências desse tipo não são comunicadas com facilidade mesmo quando as pessoas estão dispostas a fazê-lo e dispõem, para isso, de um vocabulário sofisticado. Ainda que a prece e o sacrifício sejam ações exteriores, a religião nuer é, em última instância, um estado interior. Esse estado é externalizado através de ritos que podemos observar, mas seu significado depende finalmente de uma toma de consciência em relação a Deus e ao fato dos homens serem dele dependentes e deverem se resignar à sua vontade. Nesse ponto, o teólogo toma o lugar do antropólogo (Evans-Pritchard, 1956, p. 322). 35 Etnologia Por Ronaldo A. Lidório A Etnologia é normalmente estudada como um ramo antropológico que está ligado às formulações da identidade cultural de um segmento ou agrupamento. Usando-a como ponto de partida para a avaliação cultural, sugerimos três distintas formas de abordar o homem e suas interações, ou seja, de avaliá-lo em razão do desenvolvimento de sua existência social, que são os padrões ético, êmico e êmico-teológico. Estes primeiros padrões (ético e êmico) já têm sido largamente utilizados na abordagem antropológica para avaliação de um fato ou ideia. Ouvi a primeira explanação a respeito deste assunto em 1990 pela Dra. Francis Popovich que fez referência a Kenneth expôs a necessidade de desenvolvermos uma aproximação êmica aos fatos sociais a fim de os entendermos como eles são para aqueles que os praticam. Introduzimos um terceiro padrão, êmico-teológico, a fim de facilitar nossa proposta metodológica, como veremos adiante. Padrão Ético Inicialmente olharemos o padrão Ético de estudo cultural. Baseia- se na abordagem, estudo e avaliação de um fato antropológico a partir de um valor cultural predefinido pelo observador. Possuímos uma capacidade inerente de interpretação. Tudo o que vemos, semelhante ou distinto, passa pelo crivo da nossa interpretação cultural. Na rua, ao olharmos para uma pessoa instintivamente julgamos seu modo de vestir, andar, agir, falar, mesmo se nunca antes relatado. Os critérios de julgamento são inteiramentenossos, segundo nossa ideologia, ideia e cultura. Assim, quando afirmamos que algo é bom, ruim, ou possui certo significado, estamos interpretando uma pessoa ou fato social de forma ética, a partir de nós mesmos, nossas ideias. Lévi-Strauss desenvolve o estudo da ancestralidade utilizando, no pano de fundo, vários elementos éticos quando analisa as interações de parentesco a partir do ‘bom’ ou ‘mal’ dentro de uma visão idealista. Antropologia da Religião36 Apesar de não condenar explicitamente aquilo que é diferente, o coloca numa categoria questionável. É fácil constatarmos que praticamente toda a Antropologia foi influenciada pela visão ética de pesquisadores que tinham como origem e ideal o padrão ocidental cristão em termos de relacionamentos, religião, modelo de parentesco e tantos outros segmentos analisados. Malinowski, em uma de suas dissertações, expõe que “os desejos animalescos dos pagãos, de fato, tratam de uma rigorosa cadeia de valores e comportamentos baseados em vasta história e tradição”. Ele foi um dos primeiros antropólogos que acusou a forma equivocada de análise cultural, tendo realizado a primeira etnografia moderna sobre o chamado direito primitivo, questionando mitos e abrindo um novo campo de prospecção para a antropologia. Para uma compreensão inicial de seu pensamento sugerimos a leitura de “Crimes e Costumes na Sociedade Selvagem”, no qual aborda os conceitos de justiça grupal e propriedade grupal desmistificando a ideia de subetnicidade. Boa parte de sua análise, porém, possuía cores éticas, fruto de uma interpretação a partir do observador, seus valores e ideias. Entre os Konkomba-Bimonkpeln de Gana, África, pudemos observar a presença de uma mulher, membro de uma das igrejas plantadas na região de Koni, que certa vez queixou-se da presença de um libul (espírito causador de problemas domésticos) em sua palhoça durante o preparo do sakolá, uma comida típica feita de inhame. Rapidamente, na tentativa automática de lhe dar uma explicação dos fatos, afirmei que se tratava de uma opressão espiritual e para tal utilizei um verbete Limonkpeln que emprestava perfeitamente a ideia de opressão. Surpresa, aquela mulher Konkomba respondeu que certamente não estava opressa, e que o libul estava apenas observando-a pilar o inhame, nada mais. Em uma cosmovisão ocidental cristã a simples possibilidade de presença demoníaca seria por demais suficiente para gerar um cenário de opressão enquanto, naquela cultura animista milenar, que se relaciona muito mais visivelmente com o mundo do além, uma pessoa poderia ser observada por um libul durante horas sem que isto, necessariamente a incomodasse. A visão ética possui a tremenda fraqueza de observar um fato dentro de uma camada de valores idealistas preconcebidos que, 37 frequentemente, distorcem a conclusão antropológica do valor do fato social para o que o experimenta. A antropologia busca a verdade sentida, experimentada, pois esta é vital para qualquer processo de relacionamento, comunicação e interação. O padrão ético também impede de respondermos às perguntas do coração do povo, de relevância local, visto que interpretamos seus conflitos a partir de nós, e de nossos conflitos. Talvez seja o padrão mais questionado ao longo da história da antropologia, porém o mais utilizado nas pesquisas culturais, devido à facilidade de observarmos o outro a partir de nós. Padrão Êmico O padrão Êmico se propõe a analisar o fato antropológico, seja étnico, grupal, individual ou fenomenológico, a partir de uma visão propriamente factual. Como o termo êmico significa interno, sugere a procura pela verdade como ela é entendida pelo agente promotor do fato, ou experimentador. Isto é, as pessoas que vivenciam aquela cultura. Quando chegamos entre os Chakali de Gana e Costa do Marfim, África, fomos muito bem recebidos. Rapidamente se destacou aquilo que era diferente. Suas palhoças exóticas (em um ambiente mais parecido com o que pensamos da África numa visão romantizada) e uma diversificada fauna em região de floresta tropical úmida. A única restrição que fizeram à nossa presença entre eles estava ligada à preservação do segredo dos nomes dos animais da floresta. Desta forma, quando observo entre eles o tabu nominal, (a respeito do ato proibitivo de nomeações na fauna) percebo um ato de organização social e espiritual na cosmovisão do povo. Substituem os nomes específicos dos animais da região por apelidos gerais. Assim creem evitar a maldição familiar e mantém o milenar bom relacionamento entre homem e animal, em uma relação estritamente totêmica. Em uma visão ética, este costume seria uma ação inconsequente, enganadora, um temor desnecessário. Em uma visão êmica, seria um tabu mantenedor do relacionamento entre homem e animal, necessário para manter o equilíbrio da sociedade no Antropologia da Religião38 universo e evitar que maldições recaiam sobre as famílias. Uma visão êmica não demanda que creiamos ou aceitemos a interpretação que o povo alvo faz do fato social em destaque, mas sim que analisemos e compreendamos tal fato social pelos óculos de quem o experimenta. A relevância principal de uma análise êmica é a verdade, ou seja, compreender como um fato social é verdadeiramente interpretado, assimilado e experimentado por uma pessoa ou um grupo. O valor da abordagem êmica é, portanto, enraizado em sua veia analítica, pois, em verdade, o antropólogo ou pesquisador deve se propor a entender o fato de acordo com sua origem e não através de sua cultura receptora sob pena de jamais compreendê-lo, apenas julgá-lo. Este julgamento, ético, se dá a partir de valores da nossa própria experiência cultural e moral. E julgar o que não compreendemos é um ato de imprudência. Entre os Bassari de Gana tivemos a oportunidade de visitar uma aldeia já nos limites do Togo. Eles praticavam um ritual religioso por ocasião de um funeral. O homem morto, dois dias atrás, aparentava ser importante e conhecido, pelo número de pessoas que adentravam a aldeia, vindo de todas as partes. Seu corpo se posicionava sobre alguns troncos, bem colocado no centro da aldeia. Coloquei-me em lugar discreto e fiquei por algumas horas observando aquele fato social. A cada hora e meia saía de sua palhoça um feiticeiro, vinha encurvado e trazendo na mão esquerda uma cabaça com sangue, ao que concluí ser de algum animal sacrificado, como a cabra, muito comum entre os Bassari. Sua mão direita segurava alguns ramos de Itopah, uma árvore de folhas minúsculas, com os quais aspergia o corpo estático sobre o tronco, a começar dos pés até a cabeça. Enquanto praticava este, ato o feiticeiro murmurava algumas palavras (aparentemente lafabaah que significa bem ou bom). Em minhas anotações levantei várias hipóteses interpretativas daquele fato social que envolvia adoração aos ancestrais, ritos apotropaicos (de purificação) e invocação espiritual. Era o resultado, porém, de uma abordagem puramente ética, a partir de minha compreensão ou preconcepção dos fatos. Tempos depois fui informado pelos Bassari do que se tratava. Era um processo científico. O homem que saía encurvado de sua palhoça o fazia devido ao fato dela possuir uma porta diminuta, muito baixa, para sua estatura. Devido 39 à sua idade levaria alguns segundos para se recompor do esforço e conseguir aprumar-se novamente. E ele era um ancião, líder do clã daquele que morrera, não o feiticeiro da aldeia que, apesar de presente, sentava-se confortavelmente embaixo de uma frondosa árvore. Segurava em sua mão esquerda uma cabaça, pois precisava utilizar uma das mãos para fazê-lo, direita ou esquerda. Esta cabaça continha de fato sangue de cabra, porém sem envolvimento de sacrifício ou atos de invocação espiritual. Era sobra da última cabra morta para o almoço. A aspersão do sangue sobre o corpo do morto era uma técnica desenvolvida pelos Bassari para minimizar o mau odor devido à exposição do corpo em um climaquente por aproximadamente 48 horas a espera dos parentes que vinham de lugares distantes para o sepultamento. Assim utilizavam o sangue de cabra para, coagulado, tapar os poros do corpo ali postado e minimizar o mau odor. Usavam os ramos de Itopah em lugar de pincel (por não conhecerem e possuírem o segundo) e sua resposta (lafabaah) era puramente a resposta padrão aos que chegavam de lugares distantes cumprimentando-o, que neste caso significa simplesmente “tudo bem, obrigado”. Muitas vezes corremos o risco de transmitir o evangelho com base em fatos e fenômenos religiosos julgados a partir de nossa própria cosmovisão. Não a bíblica, não revelacional, mas da nossa cultura. Boas, em seu artigo, As limitações do método comparativo, informam-nos sobre o método normalmente oferecido para o estudo antropológico, dentro de uma procura êmica, quando diz que “isolar e classificar causas, agrupando as variantes de certos fenômenos etnológicos de acordo com as condições externas sob as quais vivem os povos entre os quais elas são encontradas, ou de acordo com as causas internas que influenciam as mentes desses povos; ou, inversamente, agrupando essas variantes de acordo com suas similaridades. Podem- se encontrar, assim, condições correlatas da vida”. Stoll tentou isolar os fenômenos da sugestão e hipnotismo a fim de estudar os fatores psíquicos em diversas culturas. O uso de um segmento de estudo, através do isolamento e classificação, possui a virtude de nos levar a evitar a universalidade dos fatos e de nos concentrarmos nas pistas que levam à verdade factual. Boas afirma que a formação das ideias, “que se desenvolvem com necessidade Antropologia da Religião40 férrea onde quer que o homem viva” é o problema mais difícil da antropologia. Ele afirma: “quando se trata desse problema – o mais difícil da antropologia – assume-se o ponto de vista de que, se um fenômeno etnológico desenvolveu-se independentemente em vários lugares, esse desenvolvimento é o mesmo em toda parte; ou, dito de outras forma, que os mesmos fenômenos etnológicos devem-se sempre às mesmas causas... é prova de que a mente humana obedece às mesmas leis em todos os lugares. Porém, aqui reside a falha no argumento do método, pois esta prova não pode ser dada. Até o exame mais superficial mostra que os mesmos fenômenos podem se desenvolver por uma multiplicidade de caminhos”. Esta incrível diversidade de cosmovisões, interpretações de fatos vividos ou contados, nos leva a entender que abordarmos os fatos sociais de forma puramente ética, nos levará somente a conclusões prematuras, sem sentido para o povo que o produz ou experimenta. Padrão Êmico-Teológico O padrão êmico-teológico, cuja expressão é um neologismo, sugere utilizarmos o padrão êmico para compreendermos o fato em si, pela ótica de quem o experimenta ou relata e expormos o evangelho de acordo com seus valores supra culturais. Este padrão certamente será questionado por todo aquele que segue uma linha relativista, não intervencionista, ao tratar de grupos étnicos distintos. Um dos principais problemas de relacionamento da antropologia com a teologia é a convicção dogmática. Enquanto a antropologia crê que cada povo possui e desenvolve sua própria verdade, suficiente para si, a teologia protestante reformada crê que há uma verdade universal, dogmática, aplicável a todos os povos em todas as culturas. A respeito de nossos pressupostos escrevemos o capítulo primeiro. A partir deste conceito de ação não intervencionista da antropologia, surgiram expressões comumente utilizadas como observação passiva ou estudo não interativo, o que por um lado resultam da tentativa – não raramente utópica – de minimizar nossas crises de consciência acadêmica ao interagirmos com um povo e cultura. 41 O padrão êmico-teológico, portanto, é uma proposta que visa, primeiramente, analisarmos os fatos sociais por lentes êmicas, compreendo seu valor para o povo que os experimenta, e, após termos feito esta caminhada, expormos a estes o evangelho de forma viva e aplicável, compreensível em seu próprio universo. Podemos aqui salientar diversas iniciativas de contextualização bem sucedidas na história da Igreja, como Lutero que, no nascer da reforma protestante, traduziu os hinos antes recitados apenas pelo clero nas missas em Latim, para o povo comum, em Alemão, na língua conhecida e usada. Ou ainda como Calvino que, na Genebra do século XVI, decide administrá-la a partir de um investimento na educação da presente geração, construindo escolas e assim facilitando a compreensão das Escrituras pelo povo comum. E para este povo escreveu inúmeros livros e comentários bíblicos, a fim de que o conhecimento teológico não fosse restrito a poucos. Não basta comunicarmos a mensagem do evangelho. É necessário fazermos isto na língua do povo, dentro de seu bojo de compreensão cultural, em sua própria casa e sociedade. Uma abordagem êmico-teológica nos ajudará nesta caminhada. Ao introduzir o evangelho como sistema explicativo ao povo Konkomba de Gana, um dos atos recorrentes foi a percepção êmica na cultura para o conceito de pecado e erro. Na cosmovisão Konkomba, o erro pessoal ou social possui uma clara escala de relevância filtrada sob o critério da honestidade. Este elemento, a honestidade, não é apenas o bem mais precioso, mas também o crivo para se julgar a relevância e gravidade dos erros pessoais e sociais. Desta forma, a mentira é o ato mais abominável, enquanto o adultério e assassinato são práticas vistas como erro, porém mais brandas. Uma mentira dita a muitos precisa ser tratada, culturalmente, através de um longo processo de desvendamento, exposição e perdão. O mentiroso recorrente pode ser banido da sociedade, enquanto que para o adultério e assassinato há diversos mecanismos de pacificação. No estabelecimento da liderança da primeira igreja entre os Konkomba-Bimonkpeln, na aldeia de Koni, notamos que a ênfase bíblica dada ao pecado foi interpretada dentro da mesma cadeia êmica de erro social. A mentira, na igreja, passou a ser tratada com relativa maior severidade do que o adultério. Em diversos sermões ouvi a liderança exortando o povo, explicando o valor da Antropologia da Religião42 honestidade no caráter de Cristo, no evangelho e nos fundamentos do Cristianismo. Desenvolvemos, assim, com a liderança Konkomba uma teologia bíblica de honestidade que estuda os princípios bíblicos sobre o tema. Um estudo de caso também foi feito e exposto com base no relato de Ananias e Safira. Seguindo um padrão êmico-teológico, observamos um fato social ou relato de acordo com aquele que o experimenta, e aplicamos a verdade do evangelho a fim de que este, sendo supra cultural e universal, possa responder às perguntas do seu coração, em sua cultura, como o faz conosco. Vemos, então, que devemos e podemos utilizar tanto a etnografia como a etnologia para fazer uma análise criteriosa do meio social onde estamos inseridos em ministério, para, a partir dessas análises, ter uma visão mais acurada da realidade, um olhar mais real, sem tantas máscaras ou interpretações, baseadas apenas e tão somente em noções do senso comum religioso. 43 Antropologia da Religião Unidade - 05 A aplicação da fenomenologia da religião na análise dos fatos sociais e religiosos: dimensão do humano, cultura e sociedade. Em busca das heranças que determinam o pensamento Utilizo o termo cultura quando me refiro à teia de comportamentos mentais que fazem uma sociedade distinta da outra. Isto envolve língua, costumes, valores, música, símbolos e tudo o que os cerca como fruto da sua forma, única, de pensar. Neste ponto, precisamos identificar as heranças culturais que determinam a forma como pensamos. Se pudesse categorizá-las, a fim de facilitar o estudo e pesquisa, eu nomearia três abordagens determinantes: as heranças culturais de agrupamento e dispersão, as de relacionamento interpessoal e as de religiosidade.
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