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Apostila da Disciplina de Ética e Responsabilidade Social Ementa da Disciplina: Conceito e contextualização de Responsabilidade Social; Avaliação e vantagens da Responsabilidade Social; Medidas de desempenho social, indicadores, prêmios e certificações; Atuação da empresa frente à comunidade e público interno; A Ética Empresarial e prática de valores; A Crise de Valores na Sociedade e a Ética; O Nascimento da Ética: ética e história; Práticas Sociais, Morais, Éticas e o Cidadão; A Ética e a Ação Profissional; Ética e Responsabilidade Profissional. 2017 Autor: Professor Mestre Oswaldo Oliveira Santos Junior Ética e Responsabilidade Social Oswaldo Oliveira Santos Júnior http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4282701Z8 Resumo O artigo trata dos aspectos centrais da discussão sobre a Responsabilidade Social Empresarial e sua interface com a ética. Para tanto buscou-se trabalhar os conceitos elementares da ética e sua configuração filosófica e histórica, bem como os pressupostos da responsabilidade social empresarial, procurando situá-la no marco histórico nos anos 1990, momento em que a sociedade brasileira experimentava o avanço das políticas de cunho neoliberais. Outra característica deste texto é sua abordagem e análise da sociedade capitalista e as contradições oriundas deste sistema em sua relação com os pressupostos da ética e da responsabilidade social empresarial. Palavras-chave: Responsabilidade Social Empresarial; Ética; Cidadania; Capitalismo; Organização. Introdução A sociedade humana sempre se caracterizou por ser um palco com interesses diversos e em constantes conflitos e lutas sociais. Um espaço onde as relações sociais são marcadas por inúmeras disputas entre grupos. Nestas relações de poder a igualdade entre os sujeitos praticamente não existe, tornando todas as lutas sociais desiguais e marcadamente violentas. Neste ambiente torna-se necessário uma reflexão profunda sobre a ética, entendida aqui como a melhor forma de viver e conviver entre os seres humanos, ou seja, um modo de arrumar a casa comum (o mundo) para nela se viver. A ética, como aqui apresentamos não é uma lista de coisas certas e erradas. Não é, portanto, um conjunto de regras e normas prontas para se cumprir. Compreendemos como sendo equivocada a ideia de ética como sinônimo de lei, norma ou regra. A reflexão sobre a ética nos ajuda a compreender a forma mais adequada para se viver em sociedade. Esta reflexão só possui efeito na medida em que há diálogo entre iguais, ou seja, a ética necessita de espaços dialogais para se efetivar. A ausência do diálogo impede o desenvolvimento da reflexão e da busca pelo convívio entre os seres humanos. Neste contexto, este artigo também tratará da Responsabilidade Social Empresarial (RSE), entendendo-a como uma forma de buscar por esse convívio social. Contudo, nossa abordagem crítica nos leva a levantar e observar algumas contradições presentes neste conceito e suas práticas, visto que existem situações em que os programas de RSE implementados nas empresas visam exclusivamente agregar valor às organizações, transformando-se em “moedas” e ações de propaganda. Por outro lado, observaremos que os programas de RSE, criam também condições para se criticar e avaliar processos no interior das organizações que contradizem os princípios éticos e os valores morais dominantes na sociedade, contribuindo para inibir tais práticas nocivas. É possível observar que esses programas acabam também ensejando, nos indivíduos que estão trabalhando neles, a descoberta das estruturas geradoras de exclusão social. 1. Conceito e contextualização de Responsabilidade Social Empresarial Abordar o tema da Responsabilidade Social Empresarial (RSE) é ir além do modismo ou dos sonhos alternativos assistencialistas. A sociedade atual possui mecanismos vorazes que consomem pessoas e a natureza, que excluem e segregam um grande contingente de seres humanos. Ao tratar do tema com a seriedade necessária, será inevitável o questionamento da estrutura social e econômica vigente em nossa sociedade. Conceitualmente falando, podemos entender a RSE como “uma modalidade de atuação das empresas que se apresentam como comprometidas com o fortalecimento econômico e social do país” (GRACIOLLI; TOITIO, 2008, p. 166). Historicamente podemos situar esse movimento, no Brasil, no contexto do avanço das políticas neoliberais nos anos 1990. Entendemos que a partir dos anos 1990 o Brasil experimentou inúmeras políticas de “ajustes” de cunho neoliberais que impediram os avanços das conquistas da constituição de 1988. Ocorreu, assim, uma contra-reforma do Estado, que impediu a construção de uma ruptura com o modelo excludente de sociedade. Neste sentido as reformas e ajustes vieram sempre na direção da manutenção do status quo da classe dominante, perpetuando e legitimando a hegemonia do projeto neoliberal. Neste sentido, vemos a partir dos anos 1990 uma série de ações políticas em que: Os governos de orientação neoliberal não buscaram – FHC ainda mais Lula – construir arenas de debate e negociação sobre formulação de políticas públicas, e dirigiram-se para reformas constitucionais e medidas a serem aprovadas num Congresso Nacional balcanizado ou mesmo medidas provisórias. Preferiram, portanto a via tecnocrática (BEHRING; BOSCHETTI, 2008, p. 154 e 155). Ou seja, no Brasil não ocorreram reformas que estimulassem processos de modernização das relações sociais e uma maior e efetiva distribuição de riqueza. Ao contrário, desde os anos 1990 o que se observam são políticas que favorecem uma indecente concentração de riqueza em detrimento do aumento da miséria (COUTINHO, 1989). Neste ambiente é que a RSE ganhou espaço, ainda mais respaldada pela noção de Terceiro Setor1, “que reivindica um novo modelo de resolução aos problemas sociais pautado na ação privada, profissionalizada, voluntária e focalizada de agentes e organizações” (GRACIOLLI; TOITIO, 2008, p. 167). Em nosso contexto é necessário considerar que o conceito de RSE possui muitas vertentes e possibilidades de interpretação, que são contraditórias e 1 “O conceito de terceiro setor surgiu em 1978, nos EUA, cunhado por John Rockfeller III, concebido por intelectuais orgânicos do capital. O recorte efetuado da totalidade social em três esferas (Estado, ‘primeiro setor’; mercado ‘segundo setor’; e sociedade civil, ‘terceiro setor) atribui autonomia e isolamento à ‘dinâmica de cada um deles, que, portanto, desistoriciza a realidade social” (GRACIOLLI e TOITIO, 2008, p. 167, Apud: MONTAÑO, Carlos. Terceiro Setor e a questão social. Cortez, 2002, p. 53). ambíguas. Desde uma prática corporativa ética e socialmente responsável, até como uma estratégia de mercado, que atua com o objetivo de agregar benefícios às organizações que dela se utilizam, tornando-a uma “moeda” que soma valor e prestígio às empresas e instituições que se valem deste emblemático título. Nota-se que no interior destas instituições e corporações que se utilizam da RSE como estratégia de mercado, há a clara convicção de que a sociedade consome também um “capital simbólico”, e que os denominados “selos de responsabilidade social” ganham valor nas sociedades de consumo. Presume- se, então, que há consumidores bem-intencionados e dispostos a aportar recursos para participarem das ações relacionadas às causas humanitárias. É certo que não podemos desconsiderar que os sujeitos atendidos por essas práticas assistencialistas da RSE são beneficiados, mas tais práticas não geram as transformações sociais necessárias, tampouco questionam a estrutura geradora de desigualdades e exploração,que efetivamente produz um exército de miseráveis em nossa sociedade. 2. Avaliação e vantagens da Responsabilidade Social A responsabilidade social que de fato interessa é aquela que habilidosamente se articula com uma práxis transformadora plena, ou seja, que supera a prática como uma estratégia de mercado, um mero assistencialismo caracterizado pela ausência de proposta emancipatória, que, repetidamente, segue imprimindo e legitimando uma ordem social injusta e perversa em que as pessoas são “coisificadas” e as coisas são dignificadas. Compreende-se que a práxis social é a atividade material do ser humano agindo na história. Ela enseja transformações que superam os ajustes sociais, ou seja, verdadeiras rupturas com as práticas repetitivas que expropriam as riquezas materiais e imateriais do ser humano. Para se chegar a uma experiência da práxis social será necessário superar o idealismo e a espontaneidade ingênua dos indivíduos e grupos, o que permitirá a avaliação permanente das ações de RSE, o que significa verificar se tais ações sinalizam criativamente para um novo mundo possível: um mundo justo, onde caibam todas as pessoas. Nesta direção é importante ressaltar que as grandes transformações sociais foram realizadas por grupos comprometidos com os valores éticos e motivados pela utopia de justiça social, que superaram as práticas repetitivas na direção de uma práxis social libertadora, transformadora e reflexiva. Estes grupos de indivíduos socialmente responsáveis e criativos fizeram e continuam fazendo toda a diferença em nosso mundo. Ao observar as práticas da RSE é inevitável a constatação das inúmeras contradições que se instalam no cerne do modo de produção capitalista2. Nele se assenta a exploração do trabalho como elemento essencial, gerando inevitavelmente mais pobreza, violência e exclusão do acesso aos bens e serviços básicos para a manutenção da vida. Será, portanto, neste contexto da sociedade capitalista que as práticas de RSEirão ocorrer. Assim, se é possível destacar uma vantagem destas práticas, é que elas podem ensejar uma crítica ao próprio sistema do qual derivam, e, assim, iniciar um movimento crítico de transformação social efetiva. Isso acontece porque elas possuem potencial para desvelar os mecanismos excludentes presentes na sociedade. Contudo, devido aos processos ideológicos que sustentam a noção de que a pobreza é “culpa” dos pobres, acaba reforçando que somente as ações isoladas terão êxito. 3. Medidas de desempenho social, indicadores, prêmios e certificações Existem atualmente inúmeras certificações e premiações para corporações que se apresentam como socialmente responsáveis, a partir de diversos indicadores. Como apontamos nos parágrafos anteriores, é sempre necessário observar quais são as reais motivações na busca destes prêmios e certificações, pois eles acabam atribuindo valores para a imagem corporativa que se associa às práticas socialmente aceitas como éticas. 2 “O capitalismo é um sistema econômico e uma forma de sociedade, que se caracteriza pela produção generalizada de mercadorias e na qual todas as relações econômicas são monetarizadas e a própria fronteira do econômico se expande para englobar todos os aspectos da vida (...). No capitalismo, os meios de produção decisivos são de propriedade privada e a massa de empregados precisa trabalhar para cobrir os próprios custos de sobrevivência e os de suas famílias. A competição estimula cada empresa capitalista a buscar menores custos por unidade, mercados maiores e um nível de inovação de produtos que lhe garanta um monopólio temporário” (SCOTT, 2010, p. 36-37). Vamos aqui destacar alguns destes certificados: a. O certificado da Fundação ABRINQ, criado em 1995 - Selo Empresa Amiga da Criança. Este certificado tem como objetivo reconhecer e engajar o setor empresarial na promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente. A empresa participante deve assumir basicamente três compromissos: a não exploração do trabalho infantil em toda cadeia produtiva; promover a formação profissional e acesso ao trabalho para adolescentes, de acordo com as normas legais; e ter ações sociais voltadas para crianças e adolescentes. De acordo com a própria ABRINQ, os diferenciais deste Selo é que ele “agrega valor a imagem da empresa e se torna um diferencial de mercado” e “é um instrumento de comunicação visual com o consumidor consciente, que identifica o engajamento social da empresa” (Fonte: Fundação ABRINQ3). b. O certificado Internacional SA8000de responsabilidade social. Criado em 1989, pela Social Accountability International, trata de: ...questões tais como trabalho escravo e infantil, saúde e segurança do trabalho, liberdade de associação e negociação coletiva, discriminação, práticas disciplinares, jornada de trabalho, remuneração e sistemas de gerenciamento (SGS4). A Social Accountability International (SAI)(Responsabilidade Social Internacional), tem como visão “um mundo onde os trabalhadores, as empresas e as comunidades prosperem juntos5”. O padrão SA 8000, visa a implementação do “trabalho descente”, sendo atualmente implementado em aproximadamente 3900 empresas em 68 países (Fonte: Social Accountability International). c. Norma Internacional ISO 26000.Publicada em 2010, é conhecida no Brasil como ABNT NBR ISO 26000. 3 Fundação ABRINQ, Disponível em: https://www.fadc.org.br/programas-institucionais/protecao- empresa-amiga-da-crianca Acesso em abril de 2017. 4SGS, Disponível em: http://www.sgsgroup.com.br/ Acesso em abril de 2017. 5Social Accountability International, Disponível em: http://www.sa- intl.org/index.cfm?fuseaction=Page.ViewPage&pageId=472 Acesso em abril de 2017.Texto original: We envision a world where workers, businesses, and communities thrive together. Tradução do autor. Segundo a ISO 26000, a responsabilidade social se expressa pelo desejo e pelo propósito das organizações em incorporarem considerações socioambientais em seus processos decisórios e a responsabilizar-se pelos impactos de suas decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente. Isso implica um comportamento ético e transparente que contribua para o desenvolvimento sustentável, que esteja em conformidade com as leis aplicáveis e seja consistente com as normas internacionais de comportamento. Também implica que a responsabilidade social esteja integrada em toda a organização, seja praticada em suas relações e leve em conta os interesses das partes interessadas (INMETRO6). A norma oferece os princípios que orientam a RSE, tais como: • Accountability (Responsabilidade ética ou prestação de contas) – trata da transparência nas organizações e sua responsabilidade pública. É a boa governança empresarial no sentido de não trazer prejuízos para a sociedade, tais como práticas de corrupção, métodos de produção poluidores, trabalho análogo à escravidão, etc. • Respeito ao Estado de Direito – cumprimento das leis do Estado e respeito aos seus agentes estabelecidos. • Respeito aos direitos humanos – preocupação com os direitos do cidadão e cuidado para que as práticas da organização não firam os direitos humanos. A norma fornece, também, orientações para todos os tipos de organização, independentemente de seu porte ou localização, inclusive sobre padrões de desempenho. São elas: • conceitos, termos e definições referentes à responsabilidade social; • histórico, tendências e características da responsabilidade social; 6 INMETRO, Norma ISSO 26000. Disponível em: http://www.inmetro.gov.br/qualidade/responsabilidade_social/iso26000.asp Acesso em abril de 2017.• princípios e práticas relativas à responsabilidade social; • os temas centrais e as questões referentes à responsabilidade social; • integração, implementação e promoção de comportamento socialmente responsável em toda a organização e por meio de suas políticas e práticas dentro de sua esfera de influência; • identificação e engajamento de partes interessadas; • comunicação de compromissos, desempenho e outras informações referentes a responsabilidade social (INMETRO, Idem). 4. Atuação da empresa frente à comunidade e público interno Como observamos nos itens anteriores, não obstante as contradições que já sinalizamos, as práticas de RSE visam normatizar as relações entre empresas, comunidade e o público interno, as quais são marcadas por profundas disparidades e desigualdades. Nestas relações, as corporações, invariavelmente, são o elo mais forte, enquanto as comunidades (sociedade em geral) e o público interno (trabalhadores e outros) são os elos mais frágeis. Essa condição é, inclusive, consagrada no direito trabalhista brasileiro. As empresas são agentes sociais, pois elas criam novas formas de sociabilidade e relações sociais, “elas controlam determinados bens, estabelecem novas relações na sociedade onde estão inseridas e provocam modificações no ambiente sociocultural” (DIAS, 2012, p. 30). Devido à sua força as organizações presentes na sociedade capitalista acabam impondo uma forma de organização social que favoreça sua atuação, sendo comum a pressão política, o denominado lobby político, com o intuito de buscar favorecimentos, o que provoca um desequilíbrio nas relações sociais. Na história do Brasil se observou que por diversas vezes ocorreu a intervenção das empresas no curso dos acontecimentos. Por exemplo, há um certo consenso entre os historiadores de que a Ditadura de 1964 a 1985 contou com o apoio e articulação de diferentes setores do empresariado, e não somente dos militares, sendo entendida como uma “Ditadura civil-militar” ou, ainda, como “ditadura empresarial-militar”. O papel que muitas empresas desempenharam durante a ditadura Civil-militar é detalhadamente apresentado no relatório da Comissão Nacional da Verdade, onde, por exemplo, se lê que “empresários paulistas [...] espontaneamente colaboraram para a consecução do movimento revolucionário que eclodiria em março de 1964” (BRASIL, 2014, p. 322). Mais adiante, o Relatório da Comissão da Verdade (2014, p. 322), após rigorosa apuração, identifica a criação de um grupo de empresários no interior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), e o descreve deste modo: ... a participação dos empresários industriais do estado, que abasteceram a unidade militar com veículos, peças de reposição e equipamentos variados. Para isso, foi criado um grupo de trabalho industrial, no âmbito da FIESP: “Nosso grupo de mobilização industrial teve que se desdobrar para tornar o II Exército uma unidade móvel”. Em declarações mais recentes, prestadas à Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, Paulo Egídio disse que seria “difícil encontrar alguém que não tenha financiado a conspiração” e que os empresários usavam dinheiro de “caixa dois” para fazer as doações: “Ninguém doava dinheiro de lucro”. Vitoriosa a operação golpista, no dia 30 de abril, formou-se oficialmente, no interior da FIESP, o Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI). Estes empresários, que formaram o Grupo Permanente de Mobilização Industrial, cooperaram estreitamente com a Ditadura no Brasil entre 1964 e 1967, chegando a criar comissões de trabalho entre civis e militares. Alguns deles ajudaram inclusive a Operação Bandeirantes (OBAN), organização que coordenava a repressão aos opositores da ditadura e responsável por inúmeros casos de violações de direitos humanos como torturas e desaparecimentos. (BRASIL, 2014, p. 322-324). Existe hoje no Brasil um farto material documentado revelando essa relação entre ditadura e organizações empresariais. Outros países, tanto no continente americano como no africano também possuem documentos desse mesmo tipo.Este episódio demonstra a dimensão de atuação e as responsabilidades que recaem sobre as empresas e seus gestores na vida política e na sociedade em que elas se encontram. 5. Ética Empresarial e prática de valores Na condição de “pessoas jurídicas” as organizações possuem valores? Em princípio podemos dizer que não, visto que os valores são humanos, inerentes às pessoas. Contudo, as empresas são dirigidas por pessoas que, por sua vez, possuem determinados valores éticos e humanos, portanto, são as pessoas dirigentes das organizações, que possuem valores. Aqui, novamente nos deparamos com as contradições inerentes ao sistema capitalista, visto que em sua finalidade muitas vezes as empresas se veem e oposição com os valores éticos presentes na sociedade. Então, é necessário iniciarmos um diálogo sobre o que entendemos como ética (éthos no grego). Primeiramente a ética não deve ser entendida como um conjunto de regras e normas pré-estabelecidas em uma sociedade, mas, sim, como toda busca humana para tornar o espaço e a convivência humana possível, ou seja, um mundo como lugar para todas as pessoas, indistintamente. Neste sentido, a ética busca realizar plenamente a convivência entre os seres humanos. A grande questão que a reflexão ética busca responder é ‘como viver?’, ou ‘qual a melhor forma de viver e conviver?’. Deste modo, “a ética é um trabalho, um processo, um caminhar: é o caminho pensado de viver, na medida em que tende para a vida boa, como diziam os gregos, ou para o menos ruim possível, e essa é a única sabedoria verdadeira” (COMTE-SPONVILLE, 2003, p. 220). A ética é uma ciência sobre como conviver em sociedade, mas ela não irá nos apresentar uma lista do que é certo e errado. Isto deverá ser construído pela sociedade em permanente diálogo. Sem diálogo não existe a possibilidade da vida ética, pois ela exige uma reflexão partilhada e não imposta. Tendo estes pressupostos iniciais, agora podemos pensar se existe a possibilidade de uma ‘ética empresarial’. Se considerarmos que sim, teremos que entender que essa vivência ética não é da empresa (uma coisa), mas, sim, das pessoas que compõem essa organização. Elas executam práticas que podem favorecer ou prejudicar a vida em sociedade e suas tomadas de decisões terão como elemento fundamental os seus valores, que é o alicerce de toda ação humana. Assim a ética, também a empresarial, será exercida a partir dos valores partilhados e dialogados pela sociedade. E toda as vezes que as práticas se distanciarem dos valores consagrados pelo grupo se incorrerá na ausência da ética. Um valor consagrado por nossa sociedade é a vida humana. Assim, toda prática que resulta em ameaça à manutenção da vida é repudiada e tende a ser condenada. É, portanto, não ética. Por outro lado, ações que valorizam a vida são tomadas como práticas em consonância com a ética. Parece simples, mas, não é. Como existem outros valores presentes na sociedade, a tomada de decisões sempre será algo complexo, já que incorrerá, necessariamente, em uma escolha baseada nesses valores. Aqui voltamos a uma questão crucial de nossos estudos: os valores que fundamentam as práticas empresariais coincidem com os valores éticos? Daí decorre a necessidade de uma reflexão permanente sobre a RSE, pois as práticas responsáveis devem garantir este encontro entre os valores da organização e a ética, mesmo sob pena de redução dos ganhos. 6. A Crise de Valores na Sociedade e a Ética Quando adentramos a reflexão filosófica, entendemos que os valores éticos resultam dos desejos humanos. Assim, por exemplo, a justiça é um valor porque há pessoas que a desejam. Semelhantemente, a verdade passaa ser um valor porque há pessoas que desejam a verdade como fundamento das relações humanas. Visto deste modo entendemos que há uma relação intrínseca entre valores e desejos. Os valores de uma sociedade são aqueles desejados por ela e será por isso que “o dinheiro para alguns, vale mais que a justiça. E é por isso que a justiça, para outros, vale mais que o dinheiro. Não há valores absolutos” (COMTE-SPONVILLE, 2003, p. 618). Talvez a verdade seja o valor mais desejado pelos seres humanos: “todos os homens amam a verdade, dizia santo Agostinho, pois nenhum deles, nem mesmo os mentirosos, gosta de ser enganado” (Idem, p. 619). Os valores entram em crise por não serem absolutos em nenhuma sociedade. Eles são partilhados e aprendidos socialmente. São historicamente construídos e transmitidos de uma geração para outra por meio de várias instituições, como a família, a escola e a religião. Eles precisam ser reafirmados constantemente por meio de rituais sob pena de serem abandonados e substituídos por outros. Tomando como exemplo a ‘verdade’ como um valor, entendemos que ela é resultada da ética, ou seja, daquela busca pela melhor forma de viver e conviver. Em um ambiente em que não haja verdade inexiste a possibilidade de confiança e plena relação social, assim, todos desejam a verdade e ela é um valor buscado, ensinado e ritualizado. Contudo, a verdade como um valor, também sofre ameaças, pois, por exemplo, quando o sucesso passa a ser um valor dominante a verdade pode ser um obstáculo que terá que ser suprimido e relativizado. Aqui se instala a crise, pois a sociedade terá que refletir e retomar os pressupostos da ética, a saber a melhor forma de viver e conviver para retornar aos seus caminhos. 7. O Nascimento da Ética: ética e história O termo Ética, no grego Ethos, é uma forma de escrever em língua latina duas letras gregas, o ethos (com eta inicial) e ethos (com épsilon inicial). A Ética será compreendida como a ciência do ethos, sendo que, o ethos (com eta ηθος inicial) designa a casa do ser humano e também do animal. O ethos é a casa do homem. O homem habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro do ethos. Deste modo, está na origem do termo ética a metáfora da moradia, um espaço do mundo habitável para a convivência humana, contudo “nunca a casa do ethos está pronta e acabada para o homem” (LIMA VAZ, 2004. p. 12-13). A ética aqui é entendida como “lugar habitável”, isto é, lugar de viver e conviver, espaço que possibilita a vida, o bom e o justo para o ser humano. Enquanto espaço humano, não é dado ao ser humano, mas por ele construído ou incessantemente reconstruído(Idem, p.13). Já o ethos escrito com a letra épsilon inicial, significa o comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos. [...] nesse caso, denota uma constância no agir que se contrapõe ao impulso desejo. [...] designa processo genético do hábito ou da disposição habitual para agir de uma certa maneira, o termo dessa gênese do ethos (...) é designado pelo termo hexis, que significa hábito como possessão estável (Idem, p. 14). Oethosé o ‘lugar’ em que o ser humano realiza a história, em que transforma o mundo, realizando, assim, a sua práxis. A ética é um discurso sobre o mundo. Maseste discurso não é impositivo. Ele é reflexivo sobre o que é bom e mal. “Este discurso sobre a ética é feito de conhecimentos e opções, em que se pensam e hierarquizam os desejos e valores presentes na sociedade. É, por assim dizer, uma arte de viver que tende quase sempre para a felicidade e a sabedoria”(COMTE-SPONVILLE, 2003, p. 219). 8. Práticas Sociais, Morais, Éticas e o Cidadão Cidadania é uma expressão que guarda uma grande complexidade. De modo geral, podemos dizer que cidadania resulta do gozo do direito. Diferente do senso comum que insiste na ideia de que cidadania é a “relação entre direitos e deveres”, cidadania é, primeira e fundamentalmente, o exercício do direito. A exemplo disso quando você se depara com uma criança recém-nascida não é possível pensar e impor todas as obrigações sem, antes, garantir todos os seus direitos (moradia, saúde, educação, etc.). Desta maneira, como cobrar deveres de sujeitos que tiveram, sistematicamente, seus direitos negados e sonegados, ou que experimentaram uma cidadania incompleta? Uma das principais referências teóricas sobre a cidadania se encontra em um ensaio de 1949 de T. H. Marshall, cujo título é: “Cidadania, classe social e status”, onde a cidadania é compreendida como evolução dos direitos civis, políticos e sociais. Marshall irá propor uma classificação do modo como a cidadania se concretizou historicamente, com a participação dos indivíduos na comunidade política, em três níveis de direitos, correspondendo às fases do capitalismo (COVRE, 1995, p. 76): a. Direitos civis (mercantilismo – Séc. XVIII): que são aqueles que se realizam com a liberdade individual, (o direito de locomoção, de pensar, de propriedade, de justiça); b. Direitos políticos (liberalismo – Séc. XIX): que garantem ao cidadão o direito à participação na atividade política (votar e ser votado); c. Direitos sociais (fase monopolista – Séc. XX): garantia mínima de bem-estar e à vida (alimento, habitação e saúde). A concepção mais atual de cidadania tem se alicerçado justamente sobre estes direitos, que são administrados pelos que detém o capital, mantendo a “classe trabalhadora como receptora alienada destes direitos então administrados pelo Estado” (COVRE, 1995, p.14). Para que estes direitos sejam sustentados é necessário que exista um aparato institucional para garantir sua efetivação: a. Os tribunais: com todo seu aparato técnico e jurídico (advogados, juízes, promotores), como garantia dos direitos civis; b. O legislativo: como espaço de debate e decisão política, garantindo, assim, os direitos políticos; c. O serviço de assistência social e educacional: garantindo assim os direitos sociais. Marshall compreende a cidadania como “participação integral do indivíduo na comunidade política”(SAES, 2003, p.5). Contudo, essa é uma visão evolutiva e linear do processo de desenvolvimento da cidadania, conquistando primeiramente os direitos civis e gradativamente os direitos políticos e sociais Os críticos de T.H. Marshall apontam para o fato de ele ter deixado para um segundo plano o papel das lutas populares, ignorando assim a força coletiva da classe trabalhadora no processo de formação e conquista da cidadania. De acordo com Saes (2003) há críticas, também, à falta de um aporte teórico capaz de analisar os processos sociais e as relações entre a classe trabalhadora, a classe dominante e o Estado. A questão da cidadania passa, necessariamente, pela análise dos processos históricos das lutas populares que culminaram no alargamento dos direitos dos indivíduos e na ampliação da consciência do direito a ter direito. Foi assim nas lutas que levaram até Constituição de 1988, a constituição cidadã, e que fundamentaram o princípio de participação da sociedade civil. “Este processo é resultado da luta contra o regime militar levada adiante por setores da sociedade civil, destacando-se os movimentos sociais” (DAGNINO, 2004, p.97). Entendemos que a cidadania não se resume a uma condição dada ao indivíduo, um status concedido, mas, é resultado de conquistas de direitos que são construídos ao longo da história em um processo que inclui alargamentos e estreitamentos de direitos, ou seja, momentos em que há mais conquistas e momentos de perdas de direitos de cidadania. Isso acontece, como observamos anteriormente, porque a sociedade é um palco com inúmeros interesses em permanentes conflitos sociais. 9. A Ética e a Ação profissional Vimos que a ética é a busca da melhor forma de viver e conviver. É tornaro mundo um lugar habitável, ou seja, em que a vida seja possível e plena em sua realização e na relação com as outras pessoas. A vida profissional é parte do cotidiano da pessoa, que não se desprende do que ela é, de como ela vive e de seus valores. Assim, com base nos pressupostos da ética, não é possível ser uma pessoa no ambiente profissional, outra no ambiente familiar e uma terceira no convívio com amigos. A ética implica em uma ação e reflexão, tanto na vida pública profissional quanto na vida privada familiar. O sujeito imbuído da ética levará consigo independente do espaço de convívio os valores éticos que orientam suas ações. Deste modo, é desnecessário falar em uma ética profissional, visto que a ética engloba todas as ações e relações do indivíduo. A ética no contexto da atividade profissional também buscará a melhor forma de viver e conviver. Buscará a superação dos conflitos que impedem ou dificultam a convivência e desenvolvimento das relações. As disputas, comuns ao ambiente corporativo deverão ser exercidas tendo como parâmetro a ética, sob pena de colocar em risco todas as demais relações presentes no ambiente empresarial. Aqui podemos retomar a questão entre valores e desejos. Por vezes, no interior de uma organização, as pessoas possuem desejos diferentes. Logo os valores prezados pelos indivíduos também diferem. Neste ambiente, é possível, pois, abrir-se um espaço para um verdadeiro “canibalismo social”, sem sobreviventes e que afetará diretamente a produtividade e o ambiente profissional. 10. Ética e Responsabilidade profissional A palavra responsabilidade tem um sentido muito interessante. Significa ‘dar uma resposta com habilidade’, ou seja, atender uma determinada situação de forma habilidosa. Neste sentido, ela se relaciona a ética, que, por sua vez, busca tornar o lugar habitável para a convivência humana. A responsabilidade profissional implica, portanto, em buscar constantemente a melhor forma de viver e trabalhar no ambiente corporativo, em atender aos anseios da comunidade interna e externa, em conciliar os conflitos gerados pela ação social da empresa e os desejos das pessoas a ela ligada direta ou indiretamente. Considerações finais Ética e RSE, como vimos, são conceitos que se relacionam dinamicamente. São campos independentes, mas, que, necessariamente, precisam caminhar juntos. Os programas de RSE surgiram, de modo mais intenso, nos anos 1990, no mesmo contexto do avanço das políticas neoliberais no Brasil. Sobre estes programas pairam muitas críticas e indagações. Entre as críticas, a mais contundente é que tais iniciativas têm como objetivo projetar a imagem da organização para a sociedade, que ‘consome’ esta imagem ao se associar a ela, comprando seus produtos ou utilizando seus serviços. Por outro lado, os Programas de RSE contribuem também para barrar práticas nocivas para a sociedade, tais como processos industriais poluidores, ausência de segurança no trabalho, utilização de trabalho infantil, e inibir situação de trabalho análogo à escravidão. Parte desta reflexão sobre a RSE se assenta nos pressupostos filosóficos da ética, entendida como a busca pela melhor forma de viver e conviver entre os humanos. A reflexão ética nos capacita para a formação dos valores que são oriundos dos nossos desejos, ou seja, o ser humano considera um valor aquilo que ele deseja. Assim, vimos ao longo do texto que os valores humanos são relativos e estamos em constante negociação em relação a eles. É certo, como vimos, que há valores inegociáveis, tais como a vida, a verdade e a justiça, mas mesmo estes valores encontram opositores que procuram reduzi-los. Será neste contexto que a firmeza ética contribuirá para alicerçar os valores fundamentais da sociedade, possibilitando, assim, a realização da convivência humana, tornando o mundo um lugar habitável. Refletimos que no contexto da sociedade capitalista, a busca essencial pelo lucro é um desejo dominante e um valor fundamental. Dessa forma, existe nessa sociedade, inevitavelmente, a instalação da contradição com os valores presentes e desejados pela maioria da sociedade (a vida, a verdade, a justiça). A RSE é um elemento que contribui para sinalizar essa contradição, não obstante ela não se apresente como um objetivo central da RSE. Referências Bibliográficas BEHRING, Elaine R.; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história. São Paulo: Editora Cortez, 2008. BRASIL, Comissão Nacional da Verdade. Relatório – Brasília: CNV, 2014. – (Relatório da Comissão Nacional da Verdade; v. 2 – Textos temáticos nº 8 Civis que colaboraram com a ditadura). COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003 COUTINHO, Gramsci: um estudo sobre o pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989. COVRE, Maria de Lourdes M. O que é cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1995. DIAS, Reinado. Sociologia das organizações. São Paulo: Atlas, 2012. GRACIOLLI, Edilson José; TOITIO, Rafael Dias. A responsabilidade Social empresarial como aparelho de hegemonia. In: Lutas Sociais nº 21/22, revista do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais (NEILS). São Paulo, 2008. 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