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5 Tradução de Luís Coimbra 6 7 Para a minha família: a minha esposa Marilyn e os meus fi lhos, Eve, Reid, Victor e Ben 8 9 Índice Agradecimentos Prefácio da Edição da Perennial Classics Prólogo O Carrasco do Amor «Se a Violação Fosse Legal...» A Mulher Gorda «Morreu o Filho Errado» «Nunca Pensei que me Pudesse Acontecer» «Não Desapareças de Mansinho» Dois Sorrisos Três Cartas por Abrir Monogamia Terapêutica Em Busca do Sonhador 19 31 83 103 133 159 167 183 203 229 247 10 Agradecimentos M ais do que metade deste livro foi escrita durante um ano de li- cença sabática repleto de viagens. Estou muito grato a diversos indivíduos e instituições que me acolheram e facilitaram a es- crita desta obra: o Centro de Humanidades da Universidade de Stanford, o Centro de Estudos Bellagio da Fundação Rockefeller, os Drs. Mikiko e Tsunechito Hasegawa em Tóquio e no Havai, o Caff é Malvina em São Fran- cisco, e o Programa de Escrita Criativa de Bennington College. Agradeço à minha esposa Marilyn (que é sempre a minha crítica mais dura e a minha apoiante mais dedicada); à minha editora na Basic Books, Phoebe Hoss, que muita liberdade me deu neste e nos meus livros anterior- mente publicados pela Basic; e à minha gestora de projecto na Basic Books, Linda Carbone. Agradeço também aos variadíssimos colegas e amigos que não fugiram quando os abordei, com um novo texto na mão e que me ofereceram ora críticas, ora encorajamento, ora consolo. Foi um processo moroso e decerto ter-me-ei esquecido de alguns nomes pelo caminho, mas não posso deixar de agradecer a Pat Baumgardner, Helen Blau, Michele Carter, Isabel Davis, Stanely Elkin, John Felstiner, Albert Guerard, Maclin Guerard, Ruthellen Josselson, Herant Katchadourian, Stina Katchadourian, Marguerite Lederberg, John L’Heureux, Morton Lieberman, Dee Lum, K. Y. Lum, Mary Jane Moff att, Nan Robinson, à minha irmã Jean Rose, a Gena Sorensen, David Spiegel, Winfried Weiss, ao meu fi lho Benjamin Yalom, aos alunos de 1988 na Universidade de Stanford e aos estagiários de psico- logia do mesmo ano lectivo, à minha secretária Bea Mitchell, que, ao longo de dez anos, dactilografou os apontamentos clínicos e as ideias que deram origem a estas histórias. Como sempre, agradeço à Universidade de Stan- ford por me dar o apoio, a liberdade académica e a comunidade intelectual essenciais para o meu trabalho. Tenho uma divida de gratidão para com os dez pacientes cujos casos são apresentados nestas páginas. Cada um deles leu na íntegra a sua história 11 (exceptuando um, que faleceu antes de a sua estar concluída) e autorizou a respectiva publicação. Cada um deles verifi cou e aprovou o disfarce que lhe foi atribuído, muitos deram contributos editoriais, um (Dave) sugeriu-me o título da sua história, alguns comentaram que o disfarce que lhes dera era escusadamente denso e insistiram que a minha descrição deles fosse mais fi el, um ou dois fi caram perturbados com o modo como me expus nesta obra, ou com algumas das liberdades dramáticas que tomei, mas, ainda as- sim, esperando que a sua história viesse a ser útil para psicoterapeutas e/ou outros pacientes, deram-me o seu consentimento e a sua bênção para a pu- blicar. Quero deixar-lhes, a todos eles, os meus profundos agradecimentos. Estas são histórias verídicas, mas tive de fazer bastantes alterações para proteger a identidade dos pacientes. Em muitos casos, incluí substitutos simbolicamente equivalentes para determinados aspectos da identidade e das circunstâncias de vida de certo paciente; noutros, enxertei aspectos da identidade de outros pacientes no protagonista. Em vários casos, os diálo- gos fi ccionais e as minhas refl exões pessoais são post hoc. Os disfarces es- colhidos são densos e as únicas pessoas que conseguirão ver quem está por detrás da máscara são os pacientes em causa. Qualquer leitor que julgue reconhecer um dos dez protagonistas estará, com toda a certeza, enganado. 12 13 Prefácio da Edição da Perennial Classics E stas histórias são revoluções criativas. Vão virar o leitor do avesso. Agora disponível em nova edição da HarperCollins Publishers, A Psicologia do Amor, obra consagrada de Irvin Yalom, mergulha-nos no universo privado da psicoterapia. Cada uma destas dez histórias relata um encontro verídico entre dois indivíduos com papéis bem defi nidos. Estas narrativas clínicas, sujeitas a transformação artística, são retiradas da experiência profi ssional do Dr. Yalom. Foram tratadas com meticuloso cuidado para as identidades dos pacientes referidos serem disfarçadas, de modo que respeitasse a sua priva- cidade e a merecer o seu consentimento para publicação. Tendo isso presente, o que aqui lemos são versões literárias de encon- tros clínicos reais, narrativas fascinantes sobre o processo psicoterapêutico e o seu desenrolar no contexto da vida subjectiva e da interacção entre dois seres humanos, o Terapeuta e o Paciente. Em determinado sentido, o que aqui temos não é arte, mas artifício. Nestas páginas, maravilhamo-nos com a evolução de seres humanos que enfrentam com coragem as circunstâncias difíceis das suas vidas e as suas angústias. Simultaneamente, acompanhamos um psicoterapeuta dotado a aproximar-se daquilo que Martin Buber descreveu como o modo de rela- cionamento entre Eu e Tu, modo que pauta pela reciprocidade absoluta. Também se verifi ca aqui um passe de magia do autor, que encontra um modo de ensinar conceitos de psicoterapia e dar lições de vida de um modo novo e original. Como leitores, como público, damos por nós no papel de observa- dores silenciosos que ouvem, indiscretamente, estes momentos de intensa intimidade. Não podemos deixar de encontrar aspectos de nós próprios refl ectidos nestas histórias. Ao escrever estes parágrafos, recordo-me da primeira vez que me deti- ve a olhar para o Monumento aos Combatentes do Vietname em Washing- 14 ton, DC. Mesmo à luz amortecida do entardecer, os nomes gravados em mármore negro não me impediam de observar a minha própria imagem refl ectida naquela superfície espelhada. Por instantes, cada um dos solda- dos imortalizados no monumento e quem contempla as inscrições estão na presença uns dos outros. As narrativas integradas em A Psicologia do Amor homenageiam vi- das reais. A prosa fi na de Yalom não se limita a agarrar-nos; convida-nos a participar em cada um destes encontros e arrasta-nos para o âmago destas conversas. Gravadas na nossa imaginação, alteram o modo como vemos o mundo e as nossas próprias pessoas. Muitas pessoas, dedicadas ou não às profi ssões sociais e de saúde, be- nefi ciaram da leitura de A Psicologia do Amor. Outras, sensibilizadas com estas histórias, foram levadas adoptar nova perspectivas sobre si próprias ou as difi culdades da vida. Algumas optaram por se submeter, pela primei- ra vez, a psicoterapia. G ostaria, no entanto, de sugerir que, em A Psicologia do Amor, nem tudo é exactamente aquilo que parece ser. Embora pareça uma ferra- menta educativa, este livro também anuncia a criação de um novo género artístico por parte de um autor com verdadeiro talento literário. Esta obra situa-se na encruzilhada da arte com a ciência. Serve simul- taneamente ambos os ramos. A Psicologia do Amor deriva inspiração das obras clássicas da Psicologia que recorrem a casos clínicos para apresenta- rem novos pontos de vista: o estudo clássico de S. Freud sobre o «Pequeno Hans»; o «Case of Ellen West», de L. Binswanger, Memories, Dreams, de C. G. Jung; Young Man Luther e Gandhi’s Truth, de E. Erikson. Também as obras Doctor of Desire e Th e Listener, do Dr. Allen Wheelis, e Lives of a Cell de Lewis Th omas, fazem essa ponte entre ciência e arte. Porém, a sua originalidade, aquilo que demarca esta obra da ciência criativa (neste caso, da psicoterapia criativa) e a insere num género artístico próprio, é o modo como a narrativa clínica deixa aqui de ser um signo e se transforma num autênticosímbolo. As histórias de Yalom mudam o nosso enquadramento conceptual. A narrativa clínica, nas mãos deste artista, converte-se numa metáfora para o percurso da alma ao longo da vida. Entramos no mesmo território artístico que é ocupado por O Coração das Trevas de Joseph Conrad, Moby Dick de Melville, e Dom Quixote de Cervantes. Os episódios relatados em A Psico- logia do Amor são metáforas para o caminho para a plenitude e a realização pessoal, percurso descrito com recurso a vocabulário transparente: o te- rapeuta, o paciente, a história de vida, a doença, as circunstâncias difíceis. Esta obra preludiou dois romances subsequentes: Quando Nietzsche 15 Chorou e Mentiras no Divã, além de um livro de contos: Momma and the Meaning of Life. Nessas obras, Yalom alarga o âmbito artístico e a diversi- dade do discurso humano, transformando, metaforicamente, a consulta de psicoterapia numa nova forma artística. Antes de embarcarmos nesta viagem literária, é importante compre- endermos que o terapeuta referido em A Psicologia do Amor é ao mesmo tempo três doutores Yalom, cada um dos quais revela um aspecto da vida e dos projectos dele. A primeira encarnação remonta aos anos em que fi cou conhecido por Dr. Yalom, professor de psiquiatria na Universidade de Stanford. Desde iní- cios da década de sessenta até hoje, tem-se mantido como docente, mentor e investigador conceituado. Na fase inicial, a sua investigação e os seus es- critos sobre psicoterapia de grupo e os fenómenos sociais emergentes dos encontros em grupo deram-lhe relevo a nível nacional. Esses estudos foram apresentados em duas obras que merecem destaque: Th eory and Practice of Group Psychotherapy e Encounter Groups First Facts. O autor esclareceu o valor intrínseco, e até mesmo a qualidade reparadora, dessas formas so- ciais de psicoterapia, e o porquê de determinados indivíduos se mostra- rem especialmente capazes de benefi ciarem dessa abordagem. Investigou os aspectos que promovem a evolução dentro de todos os grupos de tera- pia e encarou o grupo propriamente dito como um processo evolutivo cuja identidade está em constante mutação. Atentou nas subtilezas da relação entre quem gere e quem participa no grupo, esmiuçando, decididamente, as questões de poder e controlo, amor, agressão, auto-estima e domínio. A segunda encarnação — o Dr. Yalom, por vezes, apelidado de «Irv» —, é um muito estimado médico psiquiatra. Ao longo do seu percurso profi ssional, logo desde o internato de psiquiatria no Johns Hopkins, o Dr. Yalom questionou, constantemente, as tendências psicanalíticas dominan- tes em cada época, sem ignorar certos aspectos profundos e úteis: a com- preensão da vida inconsciente; a estrutura da consciência, os métodos que utilizamos para darmos sentido ao mundo, para nos defendermos da an- siedade, para defi nirmos objectivos na vida, para encararmos o luto e para recuperarmos. Na primeira metade do século xx, no Johns Hopkins, o ilus- tre psiquiatra americano Adolph Meyer apresentara o conceito da análise pormenorizada da vida como método para a compreensão do surgimento e do impacto das doenças mentais, e o estudo das suas características espe- cífi cas e dos fenómenos relacionados. Anos mais tarde, o Dr. Jerome Frank, outro conceituado psiquiatra do Johns Hopkins, debruçou-se sobre o contributo de factores «não espe- cífi cos» para a efi cácia da psicoterapia. A investigação clínica do Dr. Frank 16 incidiu sobre a relação subtil entre o contexto específi co, a consistência e a previsibilidade da presença e da atitude do terapeuta, e a confi ança e a acei- tação que a atitude deste merece. Bebendo da tradição analítica, das ideias de professores infl uentes e aproveitando a sua própria aptidão para questionar com compaixão, mas sem vacilar, Yalom entrou, determinadamente no universo da psicoterapia existencial. Quem sabe quando o seu eterno fascínio com a narrativa da vida humana, ou as cambiantes da existência, ou os nossos modos específi - cos de estarmos connosco e com os outros se conjugaram para dar origem à sua nova identidade? Como se terá ele tornado, realmente, num psicoterapeuta existencial? Talvez tenha sido através do modo absolutamente sincero como encara a sua realidade particular em relação ao próximo, ou através da sua noção da atitude análoga do próximo em relação a ele. Talvez tenha sido por ter per- cebido que os universos, tantas vezes secretos, e, até esquivos, do pensamen- to, do sentimento e da imagem poderiam ser transportados directamente para o encontro terapêutico — com transparência, coragem, respeito —, e por ter subsequente e cuidadosamente experimentado essa possibilidade. É certo que o Dr. Yalom não descobriu, nem reinventou os conceitos de transferência e de contratransferência, essas realidades subjectivas que trazem para o presente novas versões activas das nossas antigas, por vezes até arcaicas, maneiras de ver o mundo, de o pensar e de nos relacionarmos socialmente. No entanto, explorou essas realidades sociais da terapia com uma perspectiva nova, empenho e ousadia. Ao partilhar com franqueza os seus apontamentos sobre o processo de terapia de grupo com os parti- cipantes nos intervalos entre sessões, ou ao trocar apontamentos sobre o processo psicoterapêutico com os pacientes para melhor refl ectirem sobre uma sessão, variação original que descreve em Every Day Gets a Little Clo- ser, Yalom começou a desmistifi car o processo de tratamento e o papel do terapeuta no mesmo. Ironicamente, deste modo, os mistérios da terapia adensam-se. Como o autor descobriu, assim os pacientes entregavam-se mais no diálogo com ele, aprofundavam cada vez mais a análise das suas vidas e dos seus próprios seres. Descobriu que se debatiam corajosamente com aquilo que é comum a todos nós, cada um à sua a maneira, o modo como damos sentido à vida ou tentamos evitá-lo, a nossa solidão e isolamento, o medo que a vida, bem como a morte e a inexistência nos suscitam, o modo como limitamos a nossa liberdade e as nossas possibilidades. O notável contributo que deu na sua obra Existential Psychotherapy (1980), que já vai na sua segunda edição, tornou o Dr. Yalom, investigador e psicoterapeuta, numa fi gura de renome mundial. 17 . . . O terceiro Dr. Yalom, autor e artista, oferece-nos uma perspectiva cria-tiva sobre a condição humana. Nessa encarnação, o Dr. Yalom desta- ca-se como um óptimo contador de histórias. Ao ler as histórias que se seguem, tenha presente que, aqui, as pala- vras-chave são a «abertura» e a «predisposição para a sinceridade inédita». Decerto, alguns leitores fi carão perturbados com tamanha transparência da parte de um psicoterapeuta. Por fi m, é legítimo perguntarmos: «Porquê justapor amor à execução da pena capital?» Relativamente a esse assunto, creio que Yalom, como ar- tista, nos está a propor um estudo das nossas pretensões humanas funda- mentais e do modo como estas podem obscurecer, ou nos podem desviar do caminho para a verdade e a plenitude. Ele acusa, e até condena verda- deiramente à morte, as ilusões que temos sobre o amor: o amor que temos à nossa própria imagem; o amor restrito e distorcido que temos pelos outros; o amor que temos às nossas vidas tantas vezes limitadas e autodestrutivas; o amor que temos ao vazio ou à destruição ou à insignifi cância ou à solidão. Não posso deixar de citar as palavras do poeta W. B. Yeats: «O amor é coisa retorcida Ninguém tem sabedoria Para descobrir tudo de que é feito» W. B. Yeats, Brown Penny, 1990 N o nosso “modo retorcido de amar”, deparamo-nos com guias, pesso- as que não estão dispostas a partilhar ilusões, optando sim por aju- dar a desfazê-las, a descobrir a essência da nossa humanidade. J. P. Sartre escreveu sobre como reivindicamos a nossa liberdade. Subjaz a essa ideia a consciência da responsabilidade que temos para com os outros e o mundo que ajudamos a criar. É nessa noção livre e responsável do amor e da exis- tência que descobrimos a«vertigem de possibilidades» que Yalom exalta nestas histórias. Dr. Randall Weingarten, professor de psiquiatria, Universidade de Stanford, Abril de 2000 18 Todos os nomes, traços característicos e outros pormenores dos indivíduos cujos casos são retratados neste livro foram modificados. 19 Prólogo I magine o seguinte espectáculo: é pedido a trezentas ou quatrocentas pessoas, que não se conhecem umas às outras, que se agrupem em pa- res e façam ao respectivo parceiro apenas e só uma pergunta: «O que quer?», vezes e vezes sem conta. Haverá algo mais fácil do que isso? Trata-se de uma pergunta inocente e da sua resposta. Ainda assim, vezes e vezes sem conta, vi este exercício de grupo suscitar, inesperadamente, emoções fortes. Muitas vezes, em poucos minutos, a sala enche-se de emoções à fl or da pele. Homens e mulheres — indivíduos que não são, de modo algum, desesperados nem carentes, mas pessoas bem sucedidas, funcionais e elegantes que parecem luzir quando se passeiam —, sentem-se abalados até ao âmago do seu ser. Bradam a en- tes desaparecidos — pais, cônjuges, amigos e fi lhos falecidos ou ausentes: «Quero voltar a ver-te.» «Quero que me ames.» «Quero saber se te orgulhas de mim.» «Quero que saibas o quanto te adoro e o quanto lamento que nunca to tenha dito.» «Quero que voltes para mim... estou tão sozinho.» «Quero a infância que nunca tive.» «Quer ter saúde... quero voltar a ser jo- vem. Quero ser amado e respeitado. Quero que a minha vida tenha sentido. Quero fazer algo da vida. Quero fazer a diferença, quero ser importante e não cair no esquecimento.» Tanto querer. Tanto ansiar. E tanta dor, tão à fl or da pele, a poucos minutos de se expor. Dores do destino. Dores existenciais. Dores sempre presentes, que arranham, constantemente, a membrana da nossa vida. Dores demasiado acessíveis. Muitas situações — um exercício de grupo, um instante de profunda refl exão, uma obra de arte, uma homilia, uma crise pessoal, a perda de um ente querido —, relembram-nos de que os nossos desejos mais íntimos podem nunca vir a ser satisfeitos: o desejo de juventude e de travar o envelhecimento, o desejo do regresso de pes- soas desaparecidas, de amor eterno, de protecção, signifi cância, até de imortalidade. 20 É quando esses desejos inviáveis dominam a nossa vida que pedimos socorro à família, aos amigos, à religião e, por vezes, a psicoterapeutas. Narro neste livro as histórias de dez pacientes que recorreram à te- rapia e que, no decurso do processo terapêutico, se debateram com dores existenciais. Não foi esse o motivo pelo qual procuraram a minha ajuda, muito pelo contrário, visto que os dez sofriam de problemas banais do dia-a-dia: solidão, auto-desprezo, impotência, enxaquecas, compulsões se- xuais, obesidade, hipertensão, angústia, uma obsessão amorosa que a tudo o resto consume, mudanças de humor e depressão. Porém, de algum modo (“modo” que se desenrola de maneira diferente em cada história), o proces- so terapêutico desenterrou as raízes desses problemas corriqueiros, raízes que se estendiam até ao cerne da existência. «Eu quero! Eu quero!» são palavras recorrentes em todas estas histó- rias. Uma certa paciente chorava: «Quero que a minha querida fi lha ressus- cite», ao mesmo tempo que votava ao abandono os dois fi lhos que haviam sobrevivido. Outro insistia: «Quero comer todas as mulheres que vejo», en- quanto um cancro linfático invadia todos os recantos do seu corpo. Outro clamava: «Quero os pais e a infância que nunca tive», enquanto se angus- tiava a respeito de três envelopes que não tinha coragem para abrir. Outra afi rmou: «Quero ser jovem para sempre», enquanto, idosa, não conseguia desistir do seu amor obsessivo por um homem trinta e cinco anos mais novo do que ela. Creio que o aspecto fundamental da psicoterapia é sempre essa dor existencial, e não, como muitas vezes se diz, os instintos reprimidos, ou os despojos mal enterrados de um passado trágico. Durante o proces- so terapêutico com cada um destes dez pacientes, o meu pressuposto clínico fundamental — no qual baseei a minha abordagem — é que a ansiedade essencial emerge dos esforços conscientes e inconscientes do indivíduo por lidar com as duras realidades da vida, os «dados adquiri- dos» da existência.1 Constatei que existem quatro dados adquiridos particularmente rele- vantes para a psicoterapia: a inevitabilidade da morte, a nossa e a dos entes queridos; a liberdade para vivermos como nos aprouver; a nossa solidão fundamental, e, fi nalmente, a ausência de qualquer sentido ou signifi cado na vida. Por mais terríveis que estes dados adquiridos possam parecer, con- têm as sementes da sabedoria e da redenção. Espero demonstrar, nestas dez histórias de psicoterapia, que é possível enfrentar as verdades da existência 1 Para uma abordagem pormenorizada a esta perspectiva existencial, bem como à te- oria e à prática da psicoterapia nela baseada, ver o meu livro Existential Psychotherpy (Nova Iorque: Basic Books, 1980). 21 e aproveitar a força destas para alimentar a mudança e o desenvolvimento pessoais. Entre estes factos da vida, a morte é o mais evidente, o mais intuitiva- mente palpável. Desde cedo, bem mais cedo do que muitas vezes se julga, compreendemos que a morte há-de chegar e que não há escapatória. No entanto, nas palavras de Spinoza: «Tudo se esforça por prolongar a sua exis- tência». Desenrola-se no nosso imo um confl ito eterno entre o desejo de continuar a existir e a noção da inevitabilidade da morte. Para nos adaptarmos à realidade da morte, somos infi nitamente habi- lidosos no desenvolvimento de técnicas para a negarmos, ou a evitarmos. Na juventude, negamos a morte com a ajuda do encorajamento dos pais e de mitos seculares e religiosos; posteriormente, personifi camo-la, transfor- mando-a numa entidade, seja ela um monstro, um João-Pestana, ou um demónio. Afi nal, se a morte for uma entidade que nos persegue, talvez en- contremos maneira de escapar; além disso, por mais assustador que possa ser um monstro que traz a morte em si, é menos assustador do que a ver- dade: que trazemos dentro de nós os esporos do nosso próprio fi m. Mais tarde, as crianças experimentam outros métodos para atenuarem a ansie- dade face à morte: tiram-lhe o veneno provocando-a, desafi ando-a através de actos temerários, ou através da dessensibilização, expondo-se a histórias e fi lmes de terror na companhia reconfortante dos seus semelhantes e de pipocas com manteiga. À medida que envelhecemos, aprendemos a não pensar na morte; dis- traímo-nos; transformamo-la em algo de positivo (uma travessia, um re- gresso a casa, a reunião com Deus e, fi nalmente, paz e sossego); negamo-la com mitos que nos sustentam; esforçamo-nos por alcançar a imortalidade através de obras imperecíveis, projectando a nossa semente para o futuro através dos nossos fi lhos, ou aderindo a um sistema religioso que admita a eternização das nossas almas. São muitas as pessoas que se opõem a esta descrição da negação da morte, afi rmando: «Que disparate! Nós não negamos a morte. Sabemos que toda a gente há-de morrer. Trata-se de um facto evidente, mas faz al- gum sentido repisar o assunto?» A verdade é que estamos, mas não estamos cientes dela. Sabemos da sua existência, admitimos esse facto intelectualmente, mas nós — ou seja, a parte inconsciente da psique que nos protege da ansiedade avassaladora —, rompemos, ou dissociamos o terror subjacente à morte. Esse processo de dissociação é inconsciente, não nos é perceptível, mas é possível convencer- mo-nos da sua existência naqueles raros episódios em que os mecanismos de negação falham, ou a ansiedade perante a morte penetra as defesas com toda a sua intensidade. Trata-se de acontecimentos muito raros, nalguns 22 casos, só se verifi cam uma ou duas vezes na vida. Por vezes, acontecem quando estamos despertos, depois de escaparmos à morte por pouco, ou quando um ente querido falece; mas é mais frequentea ansiedade diante da morte manifestar-se em pesadelos. Um pesadelo é um sonho falhado, que, por não «resolver» a ansieda- de, não cumpre o seu papel como guardião do sono. Embora os pesadelos variem de acordo com o seu conteúdo manifesto, o processo subjacente é igual em todos: a ansiedade de morte em estado puro solta-se das suas amarras e rebenta no consciente. A narrativa de «Em busca do sonhador» oferece uma perspectiva única dos mecanismos da nossa fuga à ansiedade perante a morte e dos derradeiros esforços da mente humana para a con- terem: nesse caso, entre as imagens fúnebres e sinistras que preenchem o pesadelo de Marvin, encontra-se um instrumento que promove a vida e desafi a a morte: a bengala luminosa de ponta branca com a qual o sonha- dor trava um duelo sexual com a morte. O acto sexual também é visto pelos protagonistas de outras histórias como um talismã para esconjurar o enfraquecimento, o envelhecimento e a aproximação da morte: daí a promiscuidade compulsiva de um jovem face ao cancro fatal («Se a violação fosse legal...»), bem como o apego de um senhor de idade a cartas amarelecidas, escritas por uma falecida amante há trinta e um anos («Não desapareças de mansinho»). No trabalho que fi z ao longo de muitos anos com doentes onco- lógicos confrontados com a iminência da morte, apercebi-me de dois métodos particularmente poderosos e comuns utilizados para espantar o medo da morte, duas crenças, ou ilusões, que oferecem alguma sensa- ção de segurança. Uma delas é a fé no estatuto especial do eu; a outra, a fé na chegada de uma salvação na hora H. Embora sejam delírios, por representarem «convicções falsas inabaláveis», não lhes atribuo essa de- signação de modo pejorativo: são fés universais que, em algum nível da nossa consciência, existem em todos nós e desempenham um papel em muitas destas histórias. A sensação de que somos especiais está relacionada com a convic- ção de que somos invulneráveis e invioláveis, de que vivemos à margem das leis fundamentais da biologia humana e do destino. Nalgum ponto da vida, todos nós enfrentamos uma crise: pode ser uma doença grave, um insucesso na carreira, ou um divórcio; ou, como aconteceu a Elva, na história «Nunca pensei que me pudesse acontecer», pode ser um inci- dente tão simples quanto o roubo de uma carteira, que, de súbito, põe a nu a nossa banalidade e desmente a ideia frequente de que a vida é e será sempre uma espiral ascendente. Apesar de convicção de que somos especiais ofereça uma sensação de 23 segurança interna, o outro mecanismo fundamental de negação da morte — a fé num salvador — permite que nos sintamos sempre vigiados e pro- tegidos por uma força exterior. Embora possamos cair e adoecer, embora possamos chegar ao limite da nossa vida, convencemo-nos de que existe uma entidade indefi nida, omnipotente, que nos trará sempre de volta. Em conjunto, estes dois sistemas de crença constituem uma dialética — duas respostas diametralmente opostas à condição humana. O ser hu- mano ou reforça a sua autonomia através de uma auto-afi rmação heróica, ou procura segurança através da fusão com uma força superior. Por outras palavras: ou emergimos, ou nos fundimos; ou nos separamos, ou nos inte- gramos. Ou nos tornamos como que nos nossos próprios pais, ou continu- amos a ser crianças para sempre. A maior parte de nós, na maior parte das circunstâncias, sente-se con- fortável a evitar, hesitantemente, olhar para a morte, rindo e concordando com Woody Allen quando diz: «Não tenho medo da morte. Só não quero estar presente quando ela acontecer.» Contudo, existe outra via — uma tra- dição antiga, que se aplica à psicoterapia —, que nos ensina que a perfeita consciência da morte amadurece o nosso pensamento e enriquece a nossa vida. As derradeiras palavras de um dos meus pacientes (em «Se a violação fosse legal...») demonstram que, embora o facto, o aspecto físico da morte nos destrua, a ideia da morte pode ser a nossa salvação. * A liberdade, outro dado adquirido da existência, constitui um dilema para muitos destes dez pacientes. Quando Betty, mulher obesa, anun- ciou que tinha comido até se fartar pouco antes de ir ao meu consultório e que tinha a intenção de fazer o mesmo assim que saísse de lá, estava a tentar prescindir da sua liberdade, procurando convencer-me a assumir controlo sobre a situação. Todo o processo terapêutico com outra paciente (Telma, em «O carrasco do amor») girou em torno do modo como se entregara a um antigo amante (e terapeuta) e da minha procura de estratégias para ajudá-la a recuperar o seu poder e a sua liberdade. A liberdade, como dado adquirido, parece ser a antítese da morte. En- quanto temos pavor da morte, geralmente consideramos que a liberdade é inequivocamente positiva. Não terá sido a História da civilização ocidental pontuada com o desejo de liberdade e até impulsionada por ela? Porém, a liberdade do ponto de vista existencial está associada à ansiedade por im- plicar que, ao contrário do que a experiência do nosso dia-a-dia possa dar a entender, não entramos e acabamos por abandonar um universo bem estruturado que se rege de acordo com desígnios eternos. A liberdade im- 24 plica que somos responsáveis pelas escolhas que fazemos, as acções que to- mamos e a condição das nossas próprias vidas. Embora a palavra «responsável» possa ter diversas acepções, prefi ro o modo como Sartre a defi niu: ser responsável é «ser o autor de», sendo cada um de nós o autor do percurso da sua própria vida. Somos livres de sermos tudo, excepto não livres: estamos, tal como Sartre decerto diria, condenados a sermos livres. De facto, alguns fi lósofos sugerem ainda mais do que isso, sugerem que a arquitectura da mente humana nos torna até responsáveis pela estrutura da realidade exterior, pela composição do es- paço e do tempo. É nessa ideia de auto construção que reside a ansiedade: somos criaturas que desejam estruturas de apoio e assustamo-nos com um conceito de liberdade que implica que não existe nada sob os nossos pés, a não ser o abismo. Todos os terapeutas sabem que o primeiro passo essencial na tera- pia é o paciente assumir responsabilidade pelos problemas da sua pró- pria vida. Enquanto estivermos convencidos de que os nossos proble- mas são provocados por forças ou entidades exteriores, a terapia não tem qualquer infl uência. Se, afi nal, os problemas estão lá fora, porque haveríamos nós de mudar a nossa maneira de estar? O mundo exterior às nossas pessoas (os amigos, o trabalho, o cônjuge) é que deve modifi - car-se, ou até mesmo ser substituído. Foi por esse motivo que Dave (em «Não desapareças de mansinho»), queixando-se com azedume de que fora encarcerado numa prisão conjugal por uma esposa que mais parecia uma directora-prisional bisbilhoteira e possessiva, só conseguiu progre- dir no processo terapêutico quando reconheceu a sua responsabilidade pela construção desse cárcere. Como os pacientes tendem a resistir a assumir as suas responsabili- dades, os terapeutas têm de desenvolver técnicas que lhes permitam fazer com que eles tomem consciência de como criam os seus próprios proble- mas. Uma técnica efi caz, que emprego em muitos destes casos, é concen- trar o diálogo no que se passa aqui e agora. Como os pacientes tendem a recriar no contexto terapêutico os mesmos problemas interpessoais que os perseguem nas suas vidas, concentro-me naquilo que se passa no mo- mento da consulta, entre mim e o paciente, evitando os acontecimentos passados ou actuais na vida dele. Analisando os pormenores da relação terapêutica (ou, na terapia de grupo, das relações entre os participantes), consigo determinar facilmente o modo como um paciente infl uencia as reacções de terceiros. Assim sendo, embora Dave tenha resistido a assu- mir responsabilidade pelos seus problemas conjugais, não pôde resistir à impressão imediata que ele próprio deixava na terapia de grupo, ou seja: o secretismo que caracterizava o seu comportamento,provocador e esquivo, 25 fazia com que os outros participantes tivessem reacções muito semelhantes às da esposa que tinha em casa. Por motivos semelhantes, o processo terapêutico de Betty («A mulher gorda») foi inefi caz enquanto ela atribuiu a sua solidão à cultura excêntrica e instável da Califórnia. Só quando lhe demonstrei, nas horas que passa- mos juntos, como o seu comportamento tímido, inacessível, o recriava esse mesmo ambiente impessoal no contexto terapêutico, começou a explorar a responsabilidade que tinha na criação do seu próprio isolamento. Embora a capacidade para assumir as suas responsabilidades deixe o paciente no limiar da mudança, não é sinónimo desta. E o prémio que realmente perseguimos é a mudança propriamente dita, por mais que um terapeuta possa procurar encaminhar o paciente para a introspecção, a as- sunção das suas responsabilidades e a auto-realização. A liberdade não só nos obriga a admitirmos a responsabilidade que temos nas escolhas que fazemos na vida, como pressupõe que a mudança exija força de vontade. Embora a «vontade» seja um conceito que os tera- peutas, raramente, utilizam de modo explícito, realmente empenhamo-nos sobremaneira em infl uenciar a vontade do paciente. Insistimos em escla- recer e interpretar, pressupondo (sendo que se trata de uma demonstração de fé secular, sem bases empíricas convincentes) que a compreensão gera invariavelmente a mudança. Quando anos de interpretação não propicia- ram a mudança, começamos a apelar directamente à vontade do paciente: «Também é preciso esforço. Tem de se empenhar, sabe? Há um momento para a refl exão e a análise, mas também há uma altura para agir». E quando os apelos directos falham, o terapeuta vê-se limitado, como estas histórias comprovam, a recorrer a todos os meios de que dispõe para infl uenciar o próximo. Nesse sentido, aconselha, discute, persegue, provoca, engoda, im- plora, ou simplesmente atura, na esperança de que a perspectiva neurótica que o paciente tem sobre o mundo desapareça por força do cansaço. É através da vontade, a força motriz da acção, que a nossa liberdade é exercida. Considero que a vontade tem duas etapas: o indivíduo inicia o processo com um desejo e executa-o quando se decide. Há pessoas cujos desejos estão bloqueados, não sabem o que sen- tem, nem o que querem. Sem opiniões, sem impulsos, sem tendências, tornam-se parasitas dos desejos alheios. Tais pessoas tendem a tornar-se cansativas. Betty era uma personagem aborrecida precisamente porque abafava os seus desejos, e os outros cansavam-se de lhe fornecerem desejos e imaginação. Outros pacientes não se decidem. Embora saibam precisamente o que querem e o que têm de fazer, não são capazes de agir, e, em vez disso, mar- cam passo, atormentados, no limiar da decisão. Saul, em «Três cartas por 26 abrir», sabia que qualquer homem ajuizado abriria os envelopes; no entan- to, o medo que estes lhe incutiam paralisava a sua vontade. Th elma («O car- rasco do amor») sabia que a sua obsessão amorosa estava a consumir tudo o que de real existia na sua vida. Sabia que estava, como ela própria disse, a viver no passado, oito anos atrás, e sabia que, para retomar a sua vida, teria de desistir da sua paixão. No entanto, não conseguia, ou não queria, dar esse passo e resistia, ferozmente, a todas as minhas tentativas no sentido de reforçar a sua força de vontade. A tomada de decisões é difícil por diversos motivos, alguns dos quais relacionados com os aspectos fundamentais da existência. John Gardner, no seu romance Grendel, fala de um sábio que resume a sua meditação so- bre os mistérios da vida em dois simples, mas terríveis axiomas: «Tudo de- saparece: as alternativas excluem». O primeiro, relacionado com a morte, já o abordei. O segundo: «as alternativas excluem», é uma chave impor- tante para melhor compreendermos a razão das difi culdades da decisão. Invariavelmente, a decisão exige uma renúncia: por cada sim, tem de existir algum não, cada decisão que tomamos elimina ou aniquila outras alternati- vas. A palavra [decidir] tem na sua origem o conceito de «matar», tal como acontece com as palavras [homicídio] e [suicídio]). Assim sendo, Th elma agarrava-se à hipótese infi nitesimal de um dia poder vir a ressuscitar a re- lação com o seu amante e renunciar a essa possibilidade seria sinónimo de diminuição e de morte. * O isolamento existencial, um terceiro dado adquirido, refere-se ao abis-mo intransponível entre nós e os outros, intervalo que existe mesmo na presença de relações interpessoais profundamente gratifi cantes. Não só nos encontramos isolados de outros seres humanos, como também, uma vez que em que cada um de nós constitui o seu próprio universo, estamos também isolados do mundo. Esse isolamento não deve ser confundido com dois outros tipos de isolamento: o interpessoal e o intrapessoal. Conhecemos o isolamento interpessoal, ou a solidão, quando não temos as competências sociais ou estilo de personalidade que permite in- teracções sociais íntimas. O isolamento intrapessoal verifi ca-se quando as diversas partes do eu estão dissociadas, como quando dissociamos uma emoção da memória de um acontecimento. A manifestação mais extrema e mais dramática desse modo de dissociação, o desenvolvimento de múl- tiplas personalidades, é relativamente rara (embora se torne cada vez mais reconhecida); quando se verifi ca, o terapeuta pode ver-se confrontado, como me aconteceu durante o tratamento de Marge («Monogamia tera- 27 pêutica») com o dilema desconcertante relativamente a qual das personali- dades deve “agarrar”. Embora não haja solução para o isolamento existencial, o terapeuta deve desencorajar a adopção de falsas soluções. Os esforços que fazemos para evitarmos o isolamento podem sabotar as nossas relações com os ou- tros. Foram muitas as amizades e os casamentos que já falharam porque, em vez de as partes envolvidas procurarem entender-se e estimar-se, uma delas utiliza a outra como escudo contra o isolamento. Uma tentativa comum, e enérgica, para resolver o isolamento existen- cial, que ocorre em muitas destas histórias, passa pela fusão, pelo esbater dos nossos limites, pela nossa diluição na identidade do outro. O poder da fusão já foi demonstrado em experiências para o estudo da percepção subliminar durante as quais a mensagem «Eu e a mamã somos um só» era projectada numa tela tão rapidamente que os participantes não podiam vê-la conscientemente, teve como resultado afi rmarem que se sentiam melhor, fortalecidos, mais optimistas, além esses indivíduos terem reagido melhor do que outros ao tratamento (com modifi cação comportamental) de problemas como o tabagismo, a obesidade, ou perturbações no compor- tamento de adolescentes. Um dos grandes paradoxos da vida é que a consciência de nós pró- prios gera ansiedade. A fusão erradica a ansiedade de modo radical — eli- minando a consciência de nós próprios. O indivíduo que se apaixona e entra num estado feliz de fusão com o outro não refl ecte sobre si próprio, porque as interrogações do «eu» solitário (e a ansiedade concomitante face ao isolamento) acabam por se diluir no «nós». Assim sendo, libertamo-nos da ansiedade, mas acabamos por nos perder a nós próprios. É precisamente por isso que os terapeutas não gostam de tratar pa- cientes apaixonados, visto que a terapia e o estado de fusão amorosa são incompatíveis, porque o trabalho terapêutico exige uma noção inquisitiva do eu e uma ansiedade que, no fundo, acabará por funcionar como um mapa dos confl itos internos. Além disso, tal como a maioria dos terapeutas, tenho difi culdade em criar uma relação com um paciente apaixonado. Em «O carrasco do amor», por exemplo, Th elma recusava-se a relacionar-se comigo: a sua energia era totalmente consumida pela sua obsessão amorosa. Devemos ter cuidado com a forte ligação exclusiva a outra pessoa; não é, ao contrário do que por vezes se julga, prova da pureza do amor. Esse amor exclusivo,encapsulado, que se alimenta de si próprio, sem dar nada a terceiros nem qualquer pre- ocupação com eles, está condenado a ruir. O amor não é apenas o nascer de uma paixão entre duas pessoas; existem infi nitas diferenças entre apai- xonarmo-nos e mantermo-nos nesse estado. Aliás, o amor é uma forma 28 de estar, é algo que se «dá» e não um estado em que se «mergulha»; é um modo de nos relacionarmos com o mundo e não um gesto limitado a uma só pessoa. Embora nos esforcemos muito por viver a vida dois a dois, ou em grupos, há ocasiões, principalmente com o aproximar da morte, em que a verdade o facto de nascermos sozinhos e de assim termos de morrer, nos assalta com uma lucidez arrepiante. Já ouvi muitos pacientes moribundos comentarem que o aspecto mais terrível da morte é o facto de ser forço- samente um processo solitário. Porém, mesmo na hora da morte, a dis- posição de outra pessoa para estar verdadeiramente presente pode furar esse isolamento. Tal como me disse um paciente em «Não desapareças de mansinho»: «Embora cada um esteja sozinho no seu barco, é sempre um consolo ver as luzes dos outros navios a boiarem por perto.» * A gora, se a morte é inevitável, se tudo o que realizámos e, de facto, todo o nosso sistema solar haverão de desaparecer um dia, se o mundo é fruto da eventualidade (ou seja, se tudo poderia ter sido de maneira diferente), se os seres humanos têm de defi nir o mundo e o percurso da sua própria vida, que importância duradoura terá a nossa existência? Essa dúvida persegue os homens e as mulheres contemporâneos, e muitos deles recorrem à terapia por sentirem que as suas vidas são isen- tas de sentido e de objectivos. Todos nós somos criaturas que procuram sentido. Biologicamente, os nossos sistemas nervosos estão organizados de modo que o cérebro agrupe automaticamente os estímulos recebidos em determinadas confi gurações. O sentido também oferece uma sensa- ção de controlo: sentindo-nos desamparados e confusos perante aconteci- mentos aleatórios, que não se inserem em qualquer padrão, procuramos ordená-los e, ao fazermos isso, fi camos com a impressão de que os con- trolamos. Mais do que isso, o sentido dá azo a valores e, por conseguinte, origina códigos de comportamento, desse modo a resposta a perguntas sobre «porquês» (porque é que estou vivo?), fornece a resposta a perguntas sobre «como» (como é que eu devo viver?). Ao longo destas dez histórias de psicoterapia, são raras as discussões explícitas sobre o sentido da vida. A procura de sentido, muito como a pro- cura do prazer, deve ser abordada de modo oblíquo. O sentido resulta de actividades signifi cativas: quanto maior a determinação com que o pro- curamos, menor a probabilidade de o encontrarmos; serão sempre mais numerosas as perguntas racionais do que as respostas encontradas na nos- sa busca pelo sentido. Na terapia, tal como na vida, o sentido resulta do 29 empenho e da dedicação ao processo e é para aí que os terapeutas devem direccionar os seus esforços, não que o empenho proporcione respostas ra- cionais a dúvidas sobre essa matéria, mas faz com que essas dúvidas percam alguma importância. O dilema existencial de um ser que procura sentido e certezas num universo onde nem um nem as outras existem é de tremenda relevância para a profi ssão do psicoterapeuta. No seu trabalho diário, para se poder relacionar de modo genuíno com o paciente, o terapeuta é assaltado por bastantes incertezas. Não só o confronto do paciente com as perguntas que não têm resposta expõe o terapeuta a dúvidas semelhantes, como este se vê obrigado a reconhecer, como me aconteceu em «Dois sorrisos», que a experiência do próximo é, no fundo, pessoal, insondável e intransmissível. De facto, a capacidade de tolerar a incerteza é um pré-requisito desta profi ssão. Embora os leigos possam crer que os terapeutas conduzem os pa- cientes de modo sistemático e com fi rmeza através de etapas previsíveis no processo terapêutico rumo a um objectivo pré-defi nido, raramente acon- tece assim; pelo contrário, tal como comprovam as histórias aqui inclusas, é frequente os terapeutas vacilarem, improvisarem e apalparem terreno à procura do caminho certo. A forte tentação de ter certezas através da ade- são a uma escola ideológica e a um sistema terapêutico restrito é traiçoeira: essa atitude pode inviabilizar o encontro incerto e espontâneo que é essen- cial para a terapia efi caz. Esse encontro, o coração da psicoterapia, é o encontro terno e profun- damente humano entre duas pessoas, uma delas mais perturbada do que a outra (geralmente o paciente, embora nem sempre seja assim). Os terapeu- tas têm um papel ambivalente: compete-lhes observar e, ao mesmo tempo, participar nas vidas dos pacientes. Como observador, o terapeuta deve ser sufi cientemente objectivo para proporcionar o aconselhamento básico de que o paciente necessita. Como participante, entra na vida do paciente, aca- bando por se deixar afectar e, às vezes, transformar por esse encontro. Ao optar por entrar profundamente na vida de cada paciente, eu, te- rapeuta, não só me exponho às mesmas questões existenciais que eles se colocam, como tenho também de estar preparado para os analisar segundo as mesmas regras. Tenho de partir do princípio que saber é melhor do que não saber, que correr riscos é melhor do que evitá-los; e que a magia e a ilusão, por mais férteis e sedutoras que possam ser, acabam por enfraque- cer o nosso espírito. Encaro com toda a seriedade a fi rmeza das palavras de Th omas Hardy: «Se há maneira de chegarmos ao Melhor, exige atenta contemplação do Pior.» Esse papel duplo de observador e participante exige muito do tera- peuta, e, quando me confrontei com estes dez casos, suscitou-me perguntas 30 angustiantes. Seria, por exemplo, legítimo da minha parte esperar que um paciente, que me pedira para guardar as suas cartas de amor, fosse capaz de resolver os mesmíssimos problemas que eu, na minha própria vida, te- nho procurado evitar? Seria possível ajudá-lo a chegar mais longe do que eu alguma vez conseguira chegar? Deveria eu fazer difi cílimas perguntas existenciais a um homem às portas da morte, a uma viúva, a uma mãe que chorava a morte da fi lha e a um reformado a quem sonhos transcendentes provocavam ansiedade, ainda para mais perguntas para as quais não tinha resposta? Deveria confessar as minhas falhas e limitações a uma paciente cuja outra personalidade achava muito sedutora? Seria possível desenvol- ver uma relação honesta, compreensiva, com uma mulher gorda cujo as- pecto físico me repugnava? Sob a bandeira do auto-conhecimento, deveria eu delapidar a ilusão amorosa irracional, mas reconfortante e animadora, de uma senhora de idade? Ou impor a minha vontade a um homem que, incapaz de defender os seus interesses, se deixava aterrorizar por três enve- lopes por abrir? Embora nestas dez histórias de psicoterapia as palavras «paciente» e «terapeuta» se repitam muitas vezes, que o leitor não se deixe iludir por esses termos: estas são histórias sobre todos os homens e todas as mulhe- res. Todos nós padecemos destes problemas; o rótulo de paciente é essen- cialmente arbitrário e, muitas vezes, depende mais de factores culturais, educacionais e económicos do que da gravidade da patologia. Visto que os terapeutas, assim como os pacientes, têm de enfrentar os mesmos dados adquiridos da existência, a atitude profi ssional pautada pela objectividade desinteressada que se impõe na aplicação de métodos científi cos não se coaduna com a terapia. Nós, psicoterapeutas, não podemos simplesmente estalar a língua, comiserando, e exortar os pacientes para que enfrentem com determinação os seus problemas. Pelo contrário, devemos falar de nós próprios e dos nossos problemas, pois a nossa vida, a nossa existência, es- tará sempre ligada à morte, o amor ligado à perda, a liberdade ao medo e o crescimento à separação. Nós, todos nós, estamos nisto juntos. 31 UM O carrasco do amorN ão me agrada trabalhar com pacientes que estejam apaixonados. Talvez o desagrado se deva à minha inveja: também eu anseio por ser arrebatado. Talvez se deva ao facto de o amor e a psicotera- pia serem fundamentalmente incompatíveis. Enquanto um bom terapeuta confronta a escuridão e procura iluminar, o amor romântico alimenta-se do mistério e desmorona quando examinado em pormenor. Detesto ser o carrasco do amor. Todavia, Th elma, logo ao abrir a nossa primeira consulta, disse-me que estava perdida e tragicamente apaixonada, e não hesitei, nem por um instante, em aceitar tratá-la. Tudo o que observei à primeira vista: o rosto engelhado pelos seus setenta anos, com aquele queixo que a senilidade fazia tremer, os despenteados cabelos ralos, louros e oxigenados, bem como as mãos macilentas, percorridas por veias azuis, me indicava que a senhora estava enganada, não podia estar apaixonada. Como poderia o amor esco- lher aquele corpo velho e frágil, periclitante, para os seus maus-tratos, ou alojar-se naquele deselegante fato de treino em poliéster? Além disso, onde estava a aura de felicidade que os amantes irradiam? O sofrimento de Th elma não me surpreendeu, visto que o amor está sem- pre contaminado com a angústia; mas o amor dela era monstruosamente desequilibrado: não proporcionava prazer absolutamente nenhum, a vida da senhora era toda ela tortura. Assim sendo, aceitei tratá-la, por estar certo de que sofria, não de amor, mas de alguma variante rara que confundia com esse sentimento. Não só me convenci de que poderia ajudá-la, como fui intrigado pela suspeita de que aquele simulacro de amor poderia ser um farol que iluminaria parte do profundo mistério da paixão. Th elma mostrou-se distante e rígida da primeira vez que nos encon- trámos. Não retribuíra o meu sorriso quando a cumprimentara na sala de espera e seguira um passo atrás de mim quando a conduzira pelo corredor 32 abaixo. Assim que entrámos no consultório, não passou a vista pelo am- biente circundante, sentando-se imediatamente e, então, sem esperar por qualquer comentário da minha parte e sem desabotoar o casacão que trazia por cima do fato de treino, respirou fundo, audivelmente, e começou: — Há oito anos, tive uma relação amorosa com o meu psicoterapeuta. Desde essa altura, nunca deixei de pensar nele. Já quase me suicidei uma vez e creio que da próxima não vou falhar. O doutor é a minha última es- perança. Oiço sempre com muita atenção as primeiras declarações que me fa- zem. Muitas vezes são revelações quase sobrenaturais e auguram o tipo de relação que poderei estabelecer com o paciente. As palavras têm o condão de funcionar como pontes entre a nossa vida e a do próximo, mas o tom da voz de Th elma não me convidava a aproximar-me. Prosseguiu: — Caso tenha difi culdade em acreditar no que disse, talvez isto ajude! Levou a mão a um saco vermelho e desbotado, com atilhos, e entre- gou-me duas fotografi as antigas. Na primeira, fi gurava uma jovem e bela bailarina, vestida com um fato de malha justo, negro e luzidio. Admirei-me quando, ao olhar o rosto da dançarina, vi os olhos grandes de Th elma, dé- cadas atrás, fi xos em mim. — Essa — informou-me, quando me viu passar à segunda imagem, de uma mulher com sessenta anos, bonita, mas impassível — foi tirada há cerca de oito anos. Como vê... — passou com os dedos pelos seus cabelos desgrenhados —... já não cuido da aparência. Embora me custasse imaginar aquela velhota mal vestida a ter um caso com o terapeuta, eu não tinha feito qualquer comentário no sentido de duvidar das suas palavras. Aliás, ainda não dissera absolutamente nada. Tentara manter-me totalmente objectivo, mas ela deve ter-se apercebido de sinais de desconfi ança, indícios ténues, talvez um minúsculo arregalar dos olhos. Optei por não contestar a acusação de que não acreditava na senho- ra. Não era altura para galanteios e, de facto, havia algo de incongruente na ideia de uma septuagenária desalinhada se encontrar perdida e ferida de amores. Ela sabia disso tão bem como eu, e sabia que eu tinha essa noção. Passado pouco tempo, comunicou-me de que, ao longo dos últimos vinte anos, sofrera de depressão crónica e submetera-se a tratamento psi- quiátrico constante. Muito desse acompanhamento fora feito na clínica de psiquiatria pública, onde a senhora tinha sido tratada por uma série de es- tagiários. Cerca de onze anos antes, começara a ser tratada por Matthew, um jovem e elegante estagiário de psiquiatria, com quem tivera consultas sema- nais na clínica ao longo de oito meses e por quem continuara a ser acompa- 33 nhada durante um ano na clínica privada dele. No ano seguinte, Matthew assumira um cargo a tempo inteiro no hospital do Estado e tivera de dar por encerrada a terapia com todos os seus pacientes do sector privado. Foi com grande tristeza que Th elma se despediu dele. Tinha sido, de longe, o melhor terapeuta que alguma vez tivera, afeiçoara-se muito a ele e no decurso daqueles vinte meses passara as semanas a ansiar pela sua hora de consulta. Nunca conversara tão abertamente com outra pes- soa. Nunca outro terapeuta fora tão escrupulosamente honesto, directo e gentil com ela. Th elma cantou loas a Matthew durante vários minutos. — Ele era tão atencioso, tão amável... Já tive terapeutas que tentaram ser calorosos e pôr-me à vontade, mas o Matthew era diferente. Ele pre- ocupava-se verdadeiramente comigo, aceitava-me de verdade. Fizesse eu o que fi zesse, quaisquer que fossem as ideias horríveis que me passassem pela cabeça, sabia que ele me aceitaria e não deixaria de... como é que se diz?... confi rmar-me? Não, de validar-me. Ajudou-me como é costume os terapeutas ajudarem, mas fez muito mais do que isso. — Como por exemplo?... — Apresentou-me a dimensão espiritual e religiosa da vida. Ensi- nou-me a respeitar todos os seres vivos. Ensinou-me as razões pelas quais fui posta na Terra, mas não tinha a cabeça nas nuvens. Estava sempre pre- sente, sempre comigo. Th elma fi cou muitíssimo animada: rematou as palavras com convic- ção e apontou para o céu e para o chão enquanto falava. Notava-se que gostava de conversar sobre Matthew. — Adorava a maneira como ele me dava luta. Não deixava escapar nada. Chamava-me sempre a atenção para os meus hábitos merdosos. Essa frase apanhou-me de surpresa. Não encaixava no resto da expo- sição dela. Porém, Th elma escolhia tão deliberadamente as palavras que presumi que aquela terminologia era da lavra de Matthew, talvez fosse exemplo da sua bela técnica profi ssional! Os meus sentimentos negativos em relação a ele iam aumentando rapidamente, mas guardei-os para mim. As palavras de Th elma indicavam-me, claramente, que não levaria a bem qualquer crítica a Matthew. Depois dele, começara a ser acompanhada por outros terapeutas, mas nenhum deles conseguira tocá-la, ou ajudá-la a dar valor à vida da mesma maneira que Matthew. Imagine-se, então, quão feliz fi cara por se ter cruzado com ele um ano depois do último encontro entre os dois, num sábado à tarde, em Union Square, em São Francisco. Conversaram um pouco e, para fugirem ao cor- rupio de gente que ali ia fazer compras, foram tomar café ao St. Francis Ho- 34 tel. Tinham tanto para discutir, havia tanto que Matthew queria saber sobre como Th elma passara no ano anterior, que o café se prolongou até ser hora de jantar e acabaram por ir comer cioppino de caranguejo ao restaurante Scoma’s, no Fisherman’s Wharf. Por qualquer motivo, todos esses desenvolvimentos pareceram natu- rais, como se já houvessem jantado assim, juntos, variadíssimas vezes. Na verdade, a relação entre os dois fora estritamente profi ssional, sem ter ex- travasado, de modo algum, os limites formais da relação entre paciente e terapeuta. Tinham aprendido a conhecer-se um ao outro em segmentos se- manais com a duração exacta de cinquenta minutos, nem mais, nem menos. Porém, naquela noite, por razões que Th elma, ainda agora, não conse- guia entender,tinham-se desviado da sua realidade habitual. Nenhum dos dois prestou atenção às horas; fi zeram um pacto silencioso no sentido de fi ngirem que não havia nada de invulgar naquela conversa particular, nem no facto de terem tomado café e jantado juntos. Pareceu-lhe natural compor a gola amarrotada da camisa dele, limpar a sujidade que lhe detectara no ca- saco, dar-lhe o braço quando subiram a encosta de Nob Hill. Pareceu-lhe natural que Matthew descrevesse a sua «casota» no Haight e foi com toda a naturalidade que Th elma comentou que estava mortinha por ver como era. Tinham partilhado risos abafados quando ela dissera que o marido estava em viagem: Harry, membro do conselho consultivo do Corpo Nacional de Escutas americano, quase todas as noites dava palestras em cerimónias da organização em algum canto da América. Matthew mostrara-se divertido com o facto de estar tudo na mesma; Th elma não sentira a necessidade de lhe explicar nada: afi nal de contas, já sabia tudo sobre ela. — Mal me lembro do resto dessa noite — prosseguiu —, de como aconteceu, de quem tocou em quem primeiro, de como decidimos ir para a cama. Não tomámos decisões, aconteceu tudo com naturalidade, sem es- forço, espontaneamente. Aquilo de que me lembro com maior nitidez é de me ter sentido arrebatada quando estava deitada nos braços do Matthew: um dos melhores momentos da minha vida. — Conte-me o que aconteceu depois. — Os vinte e sete dias que se seguiram, entre 19 de Junho e 16 de Ju- lho, foram mágicos. Falávamos ao telefone várias vezes por dia e encontrá- mo-nos catorze vezes. Senti que estava a voar, a deslizar, a dançar. A voz de Th elma parecia agora alegre, cadenciada, ela acenava com a cabeça a par de uma melodia de oito anos atrás. Tinha os olhos quase fe- chados, pondo a minha paciência à prova. Não gosto de me sentir invisível. — Foi o auge da mina vida. Nunca tinha sido tão feliz como nessa altura e não voltei a sê-lo. O que aconteceu desde então nunca há-de apagar o que ele me deu naqueles dias. 35 — O que aconteceu desde então? — A última vez que o vi foi às 12h30 no dia 16 de Julho. Durante dois dias, não consegui contactá-lo por telefone, portanto apareci-lhe no consultório sem marcação. Ele estava a comer uma sanduíche e tinha cer- ca de vinte minutos de intervalo antes de uma sessão de terapia de grupo. Perguntei-lhe porque não tinha reagido aos meus telefonemas e limitou-se a responder-me: «Ambos sabemos que isto não está certo.» Th elma calou-se e chorou baixinho. «Que óptima altura para ele descobrir que não estava certo», refl ecti. — Consegue continuar? — Perguntei-lhe: «E se eu te telefonar no ano que vem, ou daqui a cin- co anos? Encontras-te comigo? Podemos voltar a passear na Golden Gate Bridge? Deixas-me voltar a abraçar-te?» A resposta do Matthew foi pegar na minha mão, sentar-me ao seu colo e abraçar-me com força durante vá- rios minutos. «Desde então, liguei-lhe inúmeras vezes e deixei mensagens no aten- dedor de chamadas. De início, respondeu a alguns dos telefonemas, mas depois deixei de ter notícias dele. Cortou relações comigo. Remeteu-se ao silêncio absoluto.» Th elma voltou-se para a janela. Desaparecera-lhe a alegria da voz. Fa- lava com um tom mais deliberado, amargurado, desconsolado, mas não houve mais lágrimas. Pareceu-me que agora tinha mais vontade de bater e de ferir do que de chorar. — Nunca percebi porque acabámos assim, sem mais, nem menos. Numa das nossas últimas conversas, disse-me que tínhamos de regressar às nossas vidas reais e acrescentou que estava envolvido com outra pessoa. Suspeitei, intimamente, que a nova pessoa na vida de Matthew era ou- tro paciente. Th elma não tinha a certeza se a nova pessoa era homem, ou mulher. Desconfi ava que Matthew era homossexual: vivia num dos enclaves ho- mossexuais de São Francisco e pautava pela beleza característica de muitos homossexuais, com o seu bigode aprumado, rosto jovem e corpo de Mer- cúrio. Essa possibilidade ocorrera-lhe um ou dois anos depois do fi m da relação, quando levara uma visita de fora da cidade a ver as vistas, altura em que entrara, receosa, num bar gay na Castro Street e se pasmara ao ver quinze Matthews sentados ao balcão: quinze jovens elegantes e atraentes com bigodes bem arranjados. O corte súbito no contacto com Matthew fora avassalador; não saber a razão por que isso acontecera era insuportável. Th elma estava constante- mente a pensar nele, não passava uma hora sem fantasiar demoradamente sobre ele. Vivia obcecada com porquês. Porque a teria ele rejeitado e aban- 36 donado? Porquê naquela altura específi ca? Porque se recusaria a recebê-la e até a falar com ela ao telefone? Ficara profundamente desanimada depois de todas as suas tentativas no sentido de contactar Matthew terem falhado. Passava o dia em casa, a olhar pela janela; não dormia; os seus movimentos e o seu discurso tor- naram-se arrastados; perdeu o entusiasmo por toda e qualquer activida- de. Deixou de comer e, dentro de pouco tempo, a sua depressão tornou-se imune à psicoterapia e aos medicamentos antidepressivos. Depois de ter consultado três médicos diferentes por causa da insónia e de ter consegui- do que cada um deles lhe receitasse medicação para dormir, não tardou a coleccionar uma quantidade mortífera de comprimidos. Precisamente seis meses depois do seu encontro fortuito com Matthew em Union Square, deixou mensagem de despedidas ao marido, Harry, que fora passar uma semana fora da cidade, esperou que este lhe telefonasse da costa Leste do país para lhe desejar boa noite, tirou o auscultador do descanso, tomou os medicamentos todos e deitou-se na cama. Harry, que nessa noite não conseguiu dormir, voltou a ligar-lhe e fi cou alarmado com o sinal constante de linha interrompida. Ligou aos vizinhos, que bateram, em vão, à porta e às janelas de casa de Th elma. Passado um pouco, chamaram a polícia, que arrombou a porta e foi encontrá-la mori- bunda. Th elma só se salvou graças aos esforços heróicos de uma equipa mé- dica. O primeiro telefonema que fez assim que recuperou os sentidos foi para o atendedor de chamadas de Matthew. Assegurou-o de que guardaria o segredo deles e rogou-lhe que a visitasse no hospital. Visitou-a, mas só lhe fez companhia durante quinze minutos e a sua presença, de acordo com ela, foi pior do que o silêncio a que se remetera antes: esquivou-se a todas as alusões de Th elma aos vinte e sete dias de paixão que tinham partilhado e teimou em adoptar um comportamento formal e profi ssional. Só houve um instante em que saiu desse papel, quando ela lhe perguntou como esta- va a correr a sua relação com a nova pessoa da sua vida e Matthew ripostou: «Isso não te diz respeito!» — E foi tudo! — Voltou-se, pela primeira vez, directamente para mim e acrescentou, numa voz resignada e desgastada: — Nunca mais tornei a vê-lo. Telefonei para lhe deixar mensagens em datas importantes: no ani- versário dele, no dia 19 de Junho (quando nos encontrámos pela primeira vez), no dia 17 de Julho (a última vez que nos encontrámos), no Natal e na passagem de ano. Sempre que troco de terapeuta, ligo-lhe para o avisar. Nunca responde às chamadas. «Há oito anos, nunca paro de pensar nele. Às sete da manhã, pergun- to-me se já terá acordado e às oito imagino que está a comer os seus fl ocos 37 de aveia (ele adora fl ocos de aveia, foi criado numa quinta no Nebrasca). Quando ando na rua, estou sempre à procura dele. Não é raro conven- cer-me, erradamente, de que o vi algures e correr a interpelar um desco- nhecido. Sonho com ele. Revejo na minha cabeça cada um dos nossos en- contros ao longo daqueles vinte e sete dias. Aliás, esses devaneios ocupam maior parte da minha vida, mal me dou conta do que se passa no presente. Continuo a viver no passado, há oito anos atrás.» «Continuo a viver no passado, há oito anos atrás»: uma frase que pren- de a atenção. Memorizei-a para utilização futura. — Fale-me da terapia que tem feito ao longo dosúltimos oito anos, desde a sua tentativa de suicídio. — Durante esse período, nunca passei sem terapeuta. Receitaram-me muitos antidepressivos, que não servem para muito, excepto para dormir melhor. Tenho feito pouca terapia além dessa. A terapia baseada em conver- sa nunca me ajudou. Pode-se dizer que nunca dei grandes oportunidades à terapia desde que me decidi a proteger o Matthew, nunca mencionando o nome dele, nem o nosso caso a outros terapeutas. — Quer dizer que, em oito anos de terapia, nunca falou sobre o Mat- thew!? Foi uma abordagem pouco elegante! Tratou-se de um erro de prin- cipiante, mas não consegui conter o meu pasmo. Passou-me pela cabeça um episódio no qual não pensava há muitos anos, que aconteceu quando estudava na faculdade de medicina, numa aula dedicada às técnicas de en- trevista: um dos meus colegas, aluno bem intencionado, mas desbocado e insensível (que, felizmente, viria a tornar-se cirurgião ortopédico), estava a fazer uma entrevista diante do resto da turma e a tentar utilizar a técnica de Carl Rogers para incitar o paciente a responder através da repetição das palavras deste, regra geral, as últimas palavras de cada afi rmação. O pacien- te, que tinha estado a enumerar as perversidades do seu pai tirano, acabara a lista com o comentário: «E ainda por cima come hambúrgueres crus!» O entrevistador, que tinha vindo a esforçar-se por manter uma postura neutra, não foi capaz de conter a sua indignação e respondeu tonitruante: «Hambúrgueres crus?!» Até ao fi m desse ano, a frase «hambúrgueres crus» foi muitas vezes sussurrada nas aulas e arrancava, invariavelmente, garga- lhadas aos colegas. Claro que guardei essa divagação para mim mesmo e disse: — Mas hoje, decidiu vir ter comigo e de ser falar sinceramente sobre si própria. Fale-me dessa decisão. — Investiguei-o. Telefonei a cinco terapeutas por quem fui acompa- nhada, disse-lhes que queria dar uma última oportunidade à psicoterapia e perguntei-lhes quem devia contactar. O seu nome apareceu nas listas de 38 quatro deles, disseram que era um bom terapeuta de «último recurso», o que foi um ponto a seu favor. Além disso, eu sabia que eles tinham sido seus alunos, portanto, investiguei um pouco mais. Fui à biblioteca e levei para casa um dos seus livros. Fiquei bem impressionada com duas coisas: a sua escrita era clara, não tive difi culdade em compreendê-la, e pareceu-me disponível para falar abertamente sobre a morte. Vou ser sincera consigo: tenho quase a certeza de que, num dia destes, ainda acabo por me suicidar. Vim dar uma última hipótese à psicoterapia para ver se encontro alguma maneira de viver minimamente feliz. Se não encontrar, espero que me aju- de a morrer e a descobrir como provocar a menos angústia possível à mi- nha família. Respondi-lhe que achava que poderíamos trabalhar juntos, mas suge- ri que marcássemos mais uma hora de consulta para ponderarmos melhor a situação e também para lhe dar oportunidade de avaliar se estava dispos- ta a colaborar comigo. Estava prestes a dar-lhe mais informação quando olhou para o relógio e disse: — Já percebi que os meus cinquenta minutos acabaram e, se há coisa que aprendi, foi a não passar mais tempo do que devo em terapia. Ainda eu estava a refl ectir sobre o tom em que ela fi zera o último co- mentário — não fora exactamente sarcástico, nem exactamente coquete — quando Th elma se levantou da cadeira e, à saída, me disse que marcaria a próxima consulta com a minha administrativa. Depois dessa sessão, tive muito em que pensar. Primeiro, pus-me a pensar no Matthew, personagem que me enfurecia. Já conheci demasiados pacientes que foram muito prejudicados por terapeutas que se aproveita- ram sexualmente deles, algo que é sempre prejudicial para o paciente. As desculpas invocadas pelos terapeutas para essas atitudes são sem- pre racionalizações manifestas e egoístas, segundo as quais, por exemplo, o acto é um modo de o terapeuta aceitar e afi rmar a sexualidade do paciente. Embora muitos pacientes possam precisar de afi rmar a sua sexualidade, nomeadamente aqueles que são vincadamente pouco atraentes, extrema- mente obesos, ou deformados por cirurgias, nunca ouvi falar de nenhum terapeuta que tenha afi rmado a sexualidade desses. Os eleitos para a afi r- mação são sempre mulheres atraentes. É óbvio que quem precisa de afi r- mação sexual são os terapeutas infractores e são eles quem revela falta de recursos, ou de desenvoltura para a obterem na sua vida privada. Todavia, Matthew era uma fi gura algo enigmática. Quando seduzira Th elma (ou se deixara seduzir por ela, o que vai dar ao mesmo), acabara de fazer uma pós-graduação e, portanto, deveria ter vinte e muitos, ou trinta e poucos anos. Sendo assim, porque teria feito aquilo? Porque teria um jo- vem atraente, presumivelmente bem sucedido, seleccionado uma mulher 39 de sessenta e dois anos há muitos anos deprimida e atolada na inércia? Ponderei sobre a especulação de Th elma sobre a possível homossexuali- dade dele. Talvez a possibilidade mais lógica fosse que Matthew estava a tentar resolver (ou a manifestar) alguns dos seus problemas psicossexuais e a aproveitar-se da(s) sua(s) paciente(s) para esse efeito. É precisamente por esse motivo que insistimos com os nossos forman- dos para se submeterem a períodos prolongados de psicoterapia. Contudo, hoje em dia, dada a curta duração dos cursos, a menor supervisão, o rela- xamento das exigências curriculares e dos requisitos para a certifi cação, é frequente os terapeutas recusarem-se a isso, e já muitos pacientes sofreram com a falta de conhecimento que o respectivo terapeuta revela ter sobre si próprio. Compadeço-me pouco com a irresponsabilidade de determinados profi ssionais e já procurei convencer muitos pacientes meus a apresenta- rem queixa de terapeutas que cometem ilícitos sexuais a conselhos de ética profi ssional. Ponderei, momentaneamente, sobre como actuar em relação a Matthew, mas presumi que o ilícito já devia ter prescrito. Ainda assim, queria que ele estivesse ciente do mal que tinha feito. Desviei a minha atenção para Th elma e pus de parte, temporariamen- te, a questão da motivação de Matthew, questão com que me viria a debater muitas vezes antes do desenlace deste processo terapêutico, longe de ima- ginar que, de todos os enigmas subjacentes ao caso de Th elma, o mistério de Matthew seria aquele que estava destinado a resolver com maior êxito. Fiquei espantado com a tenacidade da obsessão amorosa dela, que a pos- suíra durante oito anos sem qualquer reforço exterior, obsessão que preenchia toda a sua vida. Th elma tinha toda a razão: estava, de facto, a viver no passado, oito anos atrás. Parte da força da obsessão tinha de derivar do empobrecimen- to do resto da sua existência. Duvidava que fosse possível separá-la da obses- são sem primeiro ajudá-la a enriquecer outras facetas da sua vida. Interroguei-me sobre quanta intimidade teria Th elma no dia-a-dia. Pelo que me contara até àquele momento sobre o seu casamento, parecia haver pouca proximidade entre ela e o marido. Talvez a função da obsessão fosse simplesmente proporcionar-lhe intimidade: unia-a a alguém que não era uma pessoa real, mas uma fantasia. Talvez a melhor solução fosse estabelecer uma relação signifi cativa de proximidade entre nós dois e utilizá-la como dissolvente no qual diluiria a obsessão dela. Porém, não seria missão fácil. A versão que me contara sobre a sua experiência em terapia era arrepiante. Imagine-se fazer oito anos de terapia sem se abordar o verdadeiro problema! Tal só seria possível para alguém com uma personalidade muito especial, alguém capaz de tolerar comportar-se com duplicidade apreciável, alguém que procure intimidade em fantasias, mas talvez a evite na vida diária. 40 Ao abrir a sessão seguinte, Th elma disse-me que aquela semana fora terrível. Via na terapia algo de paradoxal. — Sei que preciso de acompanhamento, não me aguento sem ele. No entanto, cada vezque falo sobre o que aconteceu, tenho uma semana mise- rável. As consultas terapia limitam-se sempre a mexer comigo. Nunca re- solvem nada. Pioram sempre a situação. Não gostei de a ouvir dizer isso. Estaria a mostrar-me cenas dos pró- ximos episódios? Estaria a dizer-me que acabaria por desistir da terapia? — Passei a semana toda a chorar ininterruptamente. Não parei de pensar no Matthew. Não posso falar com o Harry porque só penso em duas coisas: no Matthew, e em suicidar-me, assuntos que não posso, de maneira nenhuma, abordar com ele. «Nunca, nunca, nunca hei-de falar com o meu marido sobre o Mat- thew. Há anos, disse-lhe que uma vez me cruzara por acaso com o Mat- thew. Devo ter-me alongado demais sobre o assunto, porque, passado al- gum tempo, o Hary comentou que estava convencido de que o Matthew tinha sido, de algum modo, responsável pela minha tentativa de suicídio. Se alguma vez vier a descobrir a verdade, acho sinceramente que mata o Mat- thew. O Harry farta-se de pregar a honra dos Escuteiros, não pensa noutra coisa senão nos escutas, mas, no fundo, é um homem violento. Foi ofi cial dos comandos britânicos na Segunda Guerra Mundial e especializou-se em ensinar técnicas para matar corpo a corpo.» — Fale-me mais sobre o Harry. Ficara espantado com a veemência que transpareceu na voz de Th el- ma quando disse que ele mataria Matthew se descobrisse o que acontecera. — Conheci o Harry nos anos trinta, quando trabalhava como dança- rina profi ssional na Europa Continental. Sempre tive só dois interesses na vida: fazer amor e dançar. Recusei-me a deixar de dançar para ter fi lhos, mas fui obrigada a parar há trinta e um anos porque a gota me atacou o polegar de um dos pés; não é doença agradável para uma bailarina. Quan- to ao amor, quando era mais nova, tive muitos, muito amantes. O doutor viu aquela minha fotografi a... seja sincero: era, ou não era bonita? — Sem esperar por resposta, prosseguiu: — Mas assim que me casei com o Harry, acabou-se o amor. Muito poucos homens tiveram coragem para me ama- rem (poucos, mas alguns). Toda a gente tinha medo que se pelava do Har- ry e esse desistiu do sexo há vinte anos (tem muito jeito para desistir das coisas). Hoje em dia é raro tocarmo-nos, creio que tanto por minha culpa, como por culpa dele. Estava prestes a perguntar-lhe sobre o jeito que Harry tinha para de- sistir, mas Th elma seguiu adiante, a correr. Queria falar, mas ainda não dava sinais de estar a falar comigo. Não se vislumbrava qualquer indício de que 41 quisesse resposta da minha parte. Não me olhava nos olhos. Tendia a olhar para cima, como se absorta nas suas reminiscências. — A outra coisa em que penso, mas que não posso discutir, é o sui- cídio. Mais cedo ou mais tarde, sei que me hei-de matar. É a única saída. No entanto, nunca me descoso com o Harry. Ele ia morrendo da última vez que tentei suicidar-me. Teve um pequeno AVC e envelheceu dez anos a olhos vistos. Quando acordei, sem contar com isso, no hospital, ponderei muito sobre o que tinha feito à minha família. Foi nesse preciso momento que tomei algumas decisões. — Que tipos de decisões? Na verdade, foi uma pergunta escusada, visto que Th elma estava pres- tes a descrever as decisões que tomara, mas eu tinha de comunicar com ela de algum modo. Estava a recolher muita informação, mas sem que es- tabelecêssemos contacto um com o outro. Parecia que estávamos em salas diferentes. — Decidi que nunca diria nem faria nada que pudesse magoar o Har- ry. Decidi dar-lhe tudo e ceder em todos os assuntos. Quer construir uma divisão nova para arrumar o equipamento de ginásio — pode. Quer fazer férias no México — seja. Quer ir conhecer pessoas novas em acontecimen- tos organizados pela igreja — vamos. Apercebendo-se do ar de estranheza com que reagi à alusão aos acon- tecimentos na igreja, explicou: — Nos últimos três anos, desde que cheguei à conclusão de que vou acabar por me matar, não tenho querido conhecer gente nova. Fazer novos amigos implicaria mais despedidas e mais pessoas para eu magoar. Já trabalhei com muitos indivíduos que tentaram, realmente, suici- dar-se, mas essa experiência tende a propiciar, de algum modo, uma meta- morfose e um amadurecimento de quem a conhece e adquire nova sabedo- ria. Um verdadeiro confronto com a morte costuma fazer com que nos in- terroguemos com franca seriedade sobre os objectivos e o trajecto da nossa vida até então. Passa-se o mesmo com quem enfrenta a morte por causa de uma doença fatal. Quantas pessoas não se terão lamentado: «Que pena que tenha esperado até agora, que o meu corpo está corroído pelo cancro, para aprender a viver!» Porém, Th elma era diferente. Raras vezes me cruzei com outra pessoa que tivesse estado tão perto da morte e tivesse aprendido tão pouco com a experiência. Quanto às decisões que tomara quando recupe- rara os sentidos depois da sua overdose, estaria realmente convencida de que daria felicidade ao Harry subscrevendo tudo o que ele propusesse, es- condendo os seus próprios desejos e pensamentos? O que poderia ser pior para Harry do que ver a esposa chorar durante uma semana, sem partilhar nada com ele? Tratava-se de uma mulher atolada em auto-ilusão. 42 A sua auto-ilusão tornava-se particularmente evidente quando falava de Matthew. — Tinha uma certa gentileza que lhe permitia afectar a vida de todas as pessoas que tinham contacto com ele. As administrativas adoravam-no, sem excepção. Tinha sempre uma palavra de carinho para elas, sabia os no- mes de todos os seus fi lhos, levava-lhes doughnuts para o pequeno-almoço três ou quatro vezes por semana. Sempre que saímos juntos durante aque- les vinte e sete dias, fez questão de dizer algo que deixasse o empregado de mesa, ou o caixa da loja bem-disposto. O doutor sabe alguma coisa sobre as práticas de meditação budista? — Bem, para dizer a verdade, até... Mas Th elma não esperou que eu terminasse a frase. — Nesse caso, sabe sobre a meditação consagrada ao amor e à bonda- de. Ele praticava-a duas vezes por dia e também me ensinou como se faz. É por isso que eu não sonharia, nem por sombras, que me pudesse tratar assim. O silêncio dele está a dar cabo de mim. Às vezes, quando me ponho a pensar no assunto, tenho a impressão de que a pessoa que me ensinou a falar abertamente não poderia ter inventado um castigo mais terrível do que remeter-se ao silêncio absoluto. Hoje em dia — Th elma baixou o tom de voz até a reduzir quase a um sussurro —, estou cada vez mais convencida de que a intenção dele é levar-me ao suicídio. Acha que é uma ideia maluca? — Não sei se é maluca, mas parece-me sinal de desespero e terrivel- mente doloroso. — Ele está a tentar levar-me ao suicídio. Se conseguisse, livrava-se de mim de uma vez por todas. É a única justifi cação possível! — Pois, mas, mesmo estando convencida disso, não deixou de o pro- teger durante estes anos todos. Porquê? — Porque, acima de tudo, quero que o Matthew tenha estima por mim. Não quero prejudicar a minha única hipótese que me resta de ser feliz! — Mas já passaram oito anos, Th elma. Não tem notícias dele há oito anos! — Mas ainda tenho hipóteses, por mais reduzidas que possam ser. Uma possibilidade de dois por cento, ou até de um, é melhor do que não ter possibilidade nenhuma. Não tenho esperança que o Matthew volte a amar-me, só quero que se importe com o facto de eu existir neste planeta. Não é pedir demais. Uma vez, quando estávamos a passear no Golden Gate Park, quase torceu o pé para não pisar um formigueiro. Tenho a certeza que também me pode dispensar algum desse amor e dessa bondade! Tanta inconsistência, tanta raiva e quase escárnio a conviverem pare- des meias com tamanha reverência. Embora eu tivesse começado a pene- 43 trar, gradualmente, no universo das experiências dela e me fosse acostu- mando às considerações hiperbólicas que tecia sobre Matthew, fi quei fran- camente desconcertado com o comentário que fez a seguir. — Se ele me telefonasse uma vez por
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